terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Havia muito sol do outro lado (Crónica de José Eduardo Agualusa)

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     Havia muito sol do outro lado

Aquilo tornara-se um vício. Ele ouvia um telefone a tocar e logo estendia o braço e levantava o auscultador.

– E se fosse para mim?

Os amigos faziam troça:

– No consultório do teu dentista?

Uma noite estava sozinho, no Rossio, à espera de um táxi, quando o telefone tocou numa cabina ao lado. Era no fim da noite e chovia: uma água mole, desesperançada, tão leve que parecia emergir do próprio chão. Ruben enfiou as mãos nos bolsos do casaco.

– É claro que não vou atender – disse alto. – Não pode ser para mim. Se atender este telefone é porque estou a enlouquecer.

O telefone voltou a tocar. Não chegou a tocar cinco vezes. Ele correu para a cabina e atendeu.

– Está?

Estava muito sol do outro lado. Era, tinha de ser, uma tarde de sol.

– Posso falar com o Gustavo?

A voz dela iluminou a cabina. Ruben pensou em dizer que era o Gustavo. Estava ali, àquela hora absurda, abandonado como um náufrago na mais triste noite do mundo. Tinha direito de ser o Gustavo (fosse ele quem fosse).

– Você não vai acreditar, mas a sua chamada foi parar a uma cabina telefónica.

Ela riu-se. Meus Deus – pensou Ruben – era como beber sol pelos ouvidos.

– Não brinques! És tu, Gustavo, não és?…

Sim ele tinha o direito de ser o Gustavo:

– Infelizmente não. Você ligou para uma cabina telefónica, no Rossio, eu estava à espera de um táxi e atendi.

Quase acrescentou: "pensei que pudesse ser para mim". Felizmente não disse nada. Ela voltou a rir:

– Tenho a sensação de que esta chamada vai ficar-me cara. Sabe onde estou?


Pulau Penang


Estava em Pulau Penang, na Malásia, e dali, do seu quarto, num hotel chamado Paradise, podia ver todo o esplendor do mar.

– Nunca vi nada com esta cor – sussurrou – só espero que Deus me dê a alegria de morrer no mar.

Ele ficou em silêncio. Aquilo parecia a letra de um samba. Ela começou a chorar:

– Desculpe que vergonha… Nem sequer sei como se chama.

Ruben apresentou-se: – Ruben, 34 anos, trabalho em publicidade.

Pediu-lhe o número de telefone e ligou utilizando o cartão de crédito. Aquela chamada ficou-lhe cara. Casaram oito meses depois. Ele diz a toda a gente que foi o destino. Ela, pelo sim pelo não, proibiu-o de atender telefones.

José Eduardo Agualusa, A substância do amor e outras crónicas. 3.ª edição, Lisboa, Publicações D. Quixote, 2009, pp. 53-54

 ***


Escreve um pequeno comentário, entre 80 e 100 palavras, sobre o sentido global do texto de José Eduardo Agualusa, atentando na caracterização de Ruben, nas atitudes perante o telefonema oriundo de Pulau Penang e na importância do destino na vida das pessoas.

(Proposta de escrita por Carla Marques e Inês Silva, em Contos & Recontos 7. Lisboa, ASA2013, p. 152)

 

       Sugestão de resposta:

O sentido global do texto é mostrar como o destino pode intervir na vida das pessoas, de forma surpreendente e maravilhosa.

Ruben é uma personagem solitária, que tem o hábito de atender telefones alheios, na esperança de encontrar alguém que lhe fale.

As atitudes perante o telefonema de Pulau Penang são de curiosidade, encantamento e coragem. Ruben decide arriscar-se a conhecer a mulher que lhe ligou por engano, e acaba por se apaixonar e casar com ela.

O destino é a força que une as duas personagens, que vivem em lugares tão distantes e diferentes.

O texto é uma celebração do amor e da magia do acaso.


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