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quarta-feira, 5 de julho de 2023

Jovens à porta do Chiado, Gastão Cruz

Moby&The Void Pacific Choir – Are You Lost In The World Like Me

 

JOVENS À PORTA DO CHIADO

Veem-se ao telemóvel como ao espelho
nos nomes e nos números buscando
o lodo morno dum profundo poço

O seu mundo está preso àquele fio
de presente irreal que não explica
o facto de ser a pele a pele ainda

Tudo fica no raio do olhar
brevemente fictício a vida reduzindo
ao enredo menor das chamas perdidas

das mensagens que vindas ou não vindas
fazem tremer do dia o edifício
Disso vivem fingindo que se veem

a si somente enquanto o mundo escorre
com a rapidez do dia para o poço

 

Gastão Cruz, Escarpas, Assírio & Alvim, 2010

 

Muitos livros de Gastão Cruz (1941-2022) têm como título uma só palavra, ou, quando não, duas palavras (o artigo e o nome). Hematoma (1961), Escassez (1967), Campânula (1978), O Pianista (1984), Crateras (2000), Fogo (2013), Óxido (2015), Existência (2017). A palavra nuclear que, do título aos poemas de um livro, faça irradiar a mensagem, essa uma das linhas da obra deste enorme poeta. Em 2010, Escarpas convidava-nos a lermos o tempo e o seu sentido ou a ausência de sentido no tempo. Nas suas cinco secções, na melodia dos ritmos e no trabalho rigoroso da frase, escrevendo-se sobre pianistas (Emil Gilels, Richter, Horowitz), pintura (Holbein), cinema (W. Allen), sobre o amor e o desencontro, o corpo e o desencanto, é da vida que a poesia sempre fala. Gastão Cruz, como nenhum outro poeta, leu a nossa época e, atualíssimo, sintetizou em versos impressionantes: "A perda real é a perda do sentido/Só se perde o sentido do que não/ foi nunca real senão quando perdido." Em tempo de preparação do verão, que se leia este poeta.

António Carlos Cortez, sinopse do livro Escarpas. In: Diário de Notícias, 02-07-2023. Disponível em https://www.dn.pt/opiniao/appetite-for-destruction-a-geracao-mais-bem-preparada-de-sempre-2-parte-16623307.html

 

Linhas de leitura

“Jovens à porta do Chiado”, de Gastão Cruz, é um poema que retrata a alienação dos jovens com o mundo digital.

  • Os jovens estão constantemente conectados ao telemóvel, vendo-se refletidos nele como se estivessem diante de um espelho.
  • Eles estão imersos num ambiente superficial, representado pelo "lodo morno dum profundo poço".
  • O seu mundo é limitado e dependente dessa conexão virtual, que não explica a verdadeira experiência da interação física.
  • Tudo o que lhes importa é o que está ao alcance dos seus olhos, reduzindo a vida a uma realidade momentaneamente fictícia, limitando-a ao enredo trivial das chamas perdidas.
  • Esses jovens dependem das mensagens, mesmo que não cheguem, para manterem a ilusão de estarem a viver.
  • Eles fingem que se veem e se conhecem, mas a verdade é que estão isolados na sua própria superficialidade, enquanto o mundo ao seu redor escorre rapidamente, como o tempo que passa, para o poço da insignificância.

 

Poderá também gostar de:

Opinião

Appetite for destruction: a "geração mais bem preparada de sempre" (2.ª parte)

Veem-se ao telemóvel como ao espelho
nos nomes e nos números buscando
o lodo morno dum profundo poço
Gastão Cruz, Escarpas, Assírio & Alvim, 2010, p. 39

 

Acrescento mais alguns argumentos ao artigo de 8 de junho aqui publicado. As críticas que tenho feito ao digital na escola e na universidade têm tido algum eco junto de professores e outros agentes educativos. Mas não era previsível a alienação, a ignorância, a incuriosidade dos "nativos digitais" quanto aos mais diversos saberes, uma vez imersos no mundo digital? Todos vemos que nada leem e pouco sabem, porque se tudo o que importa está "à distância de um clique", tudo o que exija esforço lhes é odioso. Jamais o "como" e o "para quê" das aprendizagens é questionado pelos estudantes. Decorar sem saber, dizer umas quantas coisas politicamente corretas, isso basta para garantir classificações acima do 16. Os professores, salvo raríssimas exceções, estão reféns desta lógica alienante. Todavia, ouve-se dizer que "esta é a geração mais bem preparada de sempre". Uma mentira soez. Propaganda pura. Estamos confrontados com um problema que Heidegger enunciou há décadas: a ausência de linguagem. "Débito e crédito", eis a novilíngua. O poeta António Ramos Rosa, nos anos 60, denunciava no Poema dum funcionário cansado o terror de vivermos num quotidiano que esmaga a imaginação e a curiosidade, tudo vendo sob a ótica do lucro imediato.

Os exames nacionais provam as consequências desta lógica alienante. A geração mais bem preparada de sempre é filha deste sistema, errado, assassino e corruptor. Os exames de Português e de Matemática relacionam-se, claro, porque revelam: 1.º não há como avaliar a expressão escrita e a análise do texto literário de forma séria e rigorosa, porquanto isso equivaleria a formular questões de natureza hermenêutica a que nenhum aluno sabe hoje responder com propriedade. Nas aulas de Português quase nunca leem ensaio e crítica, impera ainda o impressionismo como "método" de compreensão de um texto literário. Daí os verdadeiro-falso e as cruzinhas e a escolha múltipla, isto numa disciplina que já foi a base do ler e do escrever; 2.º as dificuldades do exame de Matemática devem-se à incompreensão dos enunciados. Linguagem, uma vez mais. É que "a geração mais bem preparada de sempre" à saída do 12.º ano pouco sabe ou mesmo nada. Redige uns quantos lugares-comuns sobre as obras do currículo, que não leu. Em Matemática, se não sabem o sentido dos verbos ou se se crê que armadilhar um exame é ser exigente, como não terão dificuldades? Que educação é esta?

A Suécia proibiu o uso de tablets e de quaisquer suportes multimediáticos na escola, investindo 60 milhões de euros em livros e manuais; nós por cá insistimos nos tablets e demais parafernália tecnológica. Somos um país progressista, pois claro. Somos modernos, pois então! Manuel Cruz, filósofo espanhol, escreveu em 2016, em Ser Sin Tiempo (ed. Herder, Barcelona), que a nossa época, desmaterializada, se caracteriza pela instantaneidade, pelo impensado. Tudo - das escolas às empresas, dos programas de televisão aos programas políticos - obedece à lógica do "não há tempo a perder, porque não há tempo". A geração "mais bem preparada de sempre" nunca será filha de Voltaire: "Na educação, a questão não é ganhar tempo, mas perdê-lo." Do TikTok às redes sociais, dos ecrãs à infantilização das aprendizagens, os nossos estudantes são desmemoriados e insensíveis. Viverão "cantando e rindo", olhando-se nos telemóveis como num espelho. No "profundo poço" de uma existência morna, serão incapazes de lidar com o "não", porque tudo foi "sim" nas suas vidas. Mais violentos e inconscientes, o pragmatismo destes "nativos digitais" é sinónimo de individualismo - o totalitarismo egóico. É o Portugal futuro? É o Portugal presente.

Gastão Cruz, pela mão da poesia, viu-os às portas do Chiado. A geração mais bem preparada de sempre não lerá poesia. Lerá simulacros. A sua música é a da pornografia. A imaginação, a beleza, o estranho da arte e das disciplinas que exigem escrita e leitura confronta-os com o que ignoram. Não gostam. Na escola da felicidade - onde todos são educados para serem "todos iguais" e geniais - o apetite pela destruição é a única linguagem com que dizem um mundo escarpado.

António Carlos Cortez, Diário de Notícias, 02-07-2023. Disponível em https://www.dn.pt/opiniao/appetite-for-destruction-a-geracao-mais-bem-preparada-de-sempre-2-parte-16623307.html




 ARE YOU LOST IN THE WORLD LIKE ME


Look harder, say it’s done
Black days and a dying sun
Dream a dream of god lit air
Just for a minute you’ll find me there
Look harder and you’ll find
The 40 ways it leaves us blind
I need a better place
To burn beside the lights

Come on and let me try

Are you lost in the world like me?
If the systems have failed?
Are you free?
All the things, all the loss
Can you see?
Are you lost in the world like me?
Like me?

Burn a courtyard, say it’s done
Throwing knives at a dying sun
A source of love in the god lit air
Just for a minute, you’ll find me there

Look harder and you’ll find
The 40 ways it leaves us blind
I need a better way
To burn beside the lights

Come on and let me try

Are you lost in the world like me?
If the systems have failed?
Are you free?
All the things, all the loss
Can you see?
Are you lost in the world like me?
Like me? [x2]

 

Moby & The Void Pacific Choir



quinta-feira, 4 de maio de 2023

Andreia C. Faria


Teresa David, 2023-11-19
https://www.facebook.com/teresa.david.904



Haveria árvores em vez de homens

no sentido em que os homens crescem
no lugar das árvores, ao invés das árvores

Fossem as árvores casas a desmontar e esquecer
como a cabeça que dói, cresceríamos
árvores de pernas para o ar, ramos
lutando no sentido do céu, o sentido da cabeça,
esse, para baixo, mais fundo
na morte, e ainda os cabelos e as memórias
irrompendo
da armação de osso por onde hão de espreitar
arqueólogos de dedos translúcidos

Haveria árvores em vez de homens

A cabeça que pouso
no reduto da árvore ausente
é ao invés da árvore uma casa
descendente, com o sentido de um jarro
esvaziado na terra

Andreia C. Faria, Um pouco acima do lugar onde melhor se escuta o coração, Edições Artefacto, 2015

 


O século das mulheres

O que mais me vem interessando na literatura de hoje é a poesia das novas poetas. A mulher é uma equação que o mundo nunca permitiu ser resolvida. Adiada pela História, mormente pela História dos homens, à mulher nunca lhe foi dada verdadeiramente a oportunidade. As mais das vezes, a cultura ocidental dá a mulher como tolerada ou sacralizada. Está constantemente colocada na posição de visita no mundo, mais do que sua proprietária, seu padrão natural.

Parece-me, contudo, que com tantas limitações, hipocrisia e paternalismo, a mulher chega ao seu século, depois das primeiras gerações académicas, depois das conquistas inestimáveis das sufragistas. A mulher culta de hoje, sem mais paciência para a expectativa dos homens, parece-me chegar a uma poesia profundamente própria que contrasta com uma mais linear poesia dos homens.

A poesia é sintoma do que está por vir. Arte de pressentimento profundo, ela denuncia muito do que outras artes e ciências apenas entendem mais tarde. Há um sem licença que faz com que a poesia das mulheres de hoje não se comporte como reação para passar a comportar-se como ensimesmamento. É uma identidade plena e não um complemento. Por mais que nos vejamos como partes dos outros, seres votados para o encontro, o poema sonha o absoluto de si mesmo, quer bastar-se, valer acima do seu autor, superá-lo.

Esta geração de mulheres poetas é sem precedentes. O passado preserva as mais magníficas poetas, mas quero crer que nunca como agora se assistiu a uma geração que revelasse tão vasta quantidade de autoras, tão grande qualidade, tão entusiasmante universo discutido. De certo modo, à poesia das mulheres, com exceções, faltava-lhe o seu extremo, coisa que parecia apenas denunciada por casos pontuais. O que vejo nas poetas de agora é muito mais do que um protesto ou resistência, é liberdade. O sujeito poético deita mão da sua plena dimensão, feita de sua inteligência, desejo ou escatologia, e faz de seus assuntos um sem limite, onde o corpo se usa inteiro, a casa deixa de ser lugar de submissão, o homem acaba como sentido último da vida ou, sequer, inevitável para a realização da mulher.

Gosto de ver estas poetas nos antípodas do que as cantigas d’amigo sonharam para as mulheres. Deixaram de ser medidas pela espera do cavaleiro encantado. Deixaram de temer. A vida da mulher não pode mais justificar-se pela conquista ou, sequer, pela presença do homem. A voz das poetas deixou-se disso.

São muitos os exemplos que podemos evocar em Portugal. Contudo, com maior ou menor distância, em todos os exemplos podemos sentir a marca de Adília Lopes. A voz sem concessões, suspirando francamente por seus ensejos mas sem se conduzir a uma higienização que modere o discurso, que lhe incuta medo ou uma subserviência, desde logo uma subserviência ao homem amado. Assisto à nova poesia das mulheres, de tantas mulheres, como o verdadeiro manifesto feminista. Algo que não propende para qualquer retaliação, mas que tem que ver, sim, com a liberdade que menciono acima.

De Filipa Leal a Renata Correia Botelho, de Andreia C. Faria a Tatiana Faia, de Cláudia R. Sampaio a Sandra Andrade, de Rosalina Marshal a Matilde Campilho, e mais Margarida Vale de Gato, Margarida Ferra ou Golgona Anghel, entre tantas outras. De facto, o coletivo de mulheres poetas revelado desde 2000 é, como um todo, muito mais urgente do que o coletivo de homens poetas que lhe corresponde. Não encontro na História momento algum que se lhe compare. Faz-me acreditar que se levante um século das mulheres.

Sem ingenuidade, o futuro não está para graças. Regredimos em quase todos os índices no que respeita à paridade entre géneros, no entanto, a paridade que os homens podem não querer reconhecer já não pode impedir que as mulheres se assumam. O que espero deste século é isso. Que não deixem de ser livres por mais que o mundo que continua a ser dos homens, e a tender ser para homens, as queira disciplinar. Isto não é um apelo a um feminismo desenfreado que opere por ódio aos homens. É um sonho de ver o padrão feminino livre, sem preconceito nem submissão. Livre.

Escreve assim Andreia C. Faria: “Haveria árvores em vez de homens/ no sentido em que os homens crescem/ no lugar das árvores, ao invés das árvores”. E também: “Não desejes nada puro -/ compaixão, água fresca, incidências vegetais./ Não te queiras fímbria, orla/ humilde de substâncias imortais”. 

Valter Hugo Mãe, Jornal de Letras, 2018-03-29

Crónica disponível em: http://visao.sapo.pt/jornaldeletras/letras/2018-03-29-O-seculo-das-Mulheres


Teresa David, 2023-11-19
https://www.facebook.com/teresa.david.904



Dupla negativa

 

Não comas nada que não possa apodrecer
Não comas nada que não anoiteça
à espera do grande luar de Agosto, a cabeça mansa
do boi que espreita à janela do curral
Nada que não resplandeça
e se abra, irregular odor ao vento

Não comas nada menos que aceso
e amadurecido pelas semelhanças, nada
que enquanto dormes te não pondere o sangue
Nada comas que te não acaricie ou ofereça a linha do dorso, suprema

Não queiras nada que não tenha
superfície e mistério

Não desejes nada puro─
compaixão, água fresca, incidências vegetais
Não te queiras fímbria, orla
humilde de substâncias imortais

Andreia C. Faria, Alegria para o fim do mundo. Porto Editora, 2019


 

Andreia C. Faria, por Rui Duarte Silva


poema de “Flúor”

(sem título)

 

Sou a mulher que se mata por amor a ti
e a mulher por amor de quem se morre
Sou o rapaz que há como uma água turva
na mulher por quem se morre
o bucal húmido do telefone onde ela expia
pensamentos violentos como plumas
Sou a pluma que lhe abre os lençóis
a lasca de madeira sobre a mesa
a lâmina à espera
que a nudez dê frutos
Sou aquilo que fere o rapaz
e a roupa que o tapa
Sou o brilho da janela onde a mulher
se balança

 

Andreia C. Faria, Alegria para o fim do mundo. Porto Editora, 2019




O trabalho de Andreia C. Faria está entre os mais urgentes, magníficos, da poesia contemporânea. A sua profundidade, uma contenção que não a impede da frontalidade, o enunciado terrivelmente irónico, o rasgo inesperado de cada verso, fazem do seu texto uma novidade por classificar, demarcando-a inclusive do coletivo de mulheres poetas que hoje escrevem também em força e bastante esplendor.

Admiro a sua atmosfera desarmante construindo grande intimidade, sem se tornar obscena e sem fazer cedências. Há uma bravura férrea que nos parece sugerir que a intimidade está posta no poema como matéria responsável, animal ciente que se analisa numa medicina rica, eficaz. São poemas da "difícil cria", pessoa improvável, consciência improvável, como desigual, desajustada, que profere para saber de si mas, sobretudo, para desmascarar. O poema está para a perplexidade mas está igualmente para a constatação de que adiantará muito pouco perante o elementar estrago existencial.

Valter Hugo Mãe, coordenador da coleção elogio da sombra



Enquanto escrevo esta mensagem
o telemóvel vibra
como um pássaro que batesse as asas
entre as minhas mãos.
Apiedo-me dele, da luz morna que expele
como um hálito, da sofreguidão
de cria sondando-me
os dedos à procura de alimento.
Enraízo-me nele, na sua
lógica de pios e de palhas vãs,
e enraíza-se ele nos meus sonhos, trazendo
luas e marés às minhas mãos,
terra rara onde pousar palavras,
doces escoriações na alma por cada
homem que me lembra
e esquece
lembra
e esquece.

 

Andreia C. Faria, Canina. Edições Tinta-da-China, 2022, p. 40


 ***

Morrer
é talvez mudar de luz
como quem muda os lençóis
ou sacode
na erva o calor
de mantas sombrias.

 

Andreia C. Faria, Canina. Edições Tinta-da-China, 2022, p. 51

 

***

CANÍCULA

 

Reconheço a estrela baça de calor,
o cão que a segura
sobre a aziaga selva de gavetos,
avenidas, varandas que sustentam
planos sem trato nem meditação.

Como Goya, esgravatando o surdo adobe
procuro-a, inesperada e náufraga,
vinda da noite num derrame
de pele rósea, quase humana,
o crânio morno dormitando
na disjunta alba, entre as minhas mãos.

Em formas de carne e blandícia,
semelhando humana víscera, a borra
de cidades imortais: falo
de estrelas porque perco do amor a face
e só um húmido nariz me guarda
dos clamores da casa num dia de verão.

 

Andreia C. Faria, Canina. Edições Tinta-da-China, 2022


Andreia C. Faria, por Rui Duarte Silva

Andreia C. Faria: com a língua fora dos eixos

“Um desejo tão espúrio, escrever.” Assim começa um dos poemas de “Canina”, o último livro de Andreia C. Faria. Às tantas lemos que “nada do que importa está escrito” e que “é tão estranho viver, tão roubado às flores, ao sono, ao vinho”. Viver é estranho e o que importa não está escrito. E, no entanto, ela escreve desde que começou a ler e a palavra ganhou o peso do que existe. Em 2018, o volume “Tão Bela Como Qualquer Rapaz” (Língua Morta) ganhou o Prémio Autores da SPA e, um ano depois, “Alegria para o Fim do Mundo” — compilação dos seus livros mais alguns inéditos lançada pela Porto Editora — venceu o Prémio Literário Fundação Inês de Castro. Na altura ouviu repetidamente uma frase: “Esperamos muito de si.” Porque uma poeta com menos de 40 anos está a começar, é incipiente, ainda que se sinta já “uma rapariga a envelhecer”.

“Ganhar prémios pode criar alguma esquizofrenia. Há uma pessoa que é a Andreia C. Faria, que não é exatamente quem eu sou no quotidiano. Por vezes tenho algumas saudades de quando escrevia e nem sabia o que estava a fazer”, diz ao Expresso. Nesses tempos, quando o primeiro livro deu à estampa, em 2008, andava à procura. Chamou-lhe “De Haver Relento”, 19 poemas marcados por leituras então feitas, e, se não os renega, também não os considera totalmente ‘seus’. “Continuo a gostar do livro, mas não me identifico com ele. É um número zero, um bom exercício”, comenta. Lembra-se de o ter escrito numa semana, de rajada, e que foi quase sem emendas que o entregou ao editor da Cosmorama, José Rui Teixeira, “amigo da Maia”, para este o publicar.

Antes de um poeta ser verdadeiramente há um caminho. E custa encontrar a própria voz. “Não é fácil explicar essa evolução da Andreia, até porque foi gradual e mantém alguns elementos dos poemas iniciais, mas diria que a sua poesia se foi tornando cada vez mais depurada, mais despida de artifícios, mais lapidar e mais potente”, reflete José Mário Silva, crítico literário que, em 2017, coordenou a antologia “Os Cem Melhores Poemas Portugueses dos Últimos Cem Anos” (Companhia das Letras). Entre estes encontra-se um poema dela, extraído do livro “Um Pouco Acima do Lugar Onde Melhor Se Escuta o Coração” (Artefacto, 2015), no qual se lê: “As fúrias do vulcão são amadas/ por quem ele despe e desfeia/ (A lava, creem, é a pura língua/ do diabo que beija o sovaco.)/ (...) Mas a mim ninguém me ama/ Como um prometeu incapaz do fogo,/ sóbrio sísifo subo a encosta/ e escrevo tensos versos que coxeiam.”

José Mário Silva escolheu-o “por razões de lógica interna da antologia”, mas vê nele “elementos essenciais” que percorrem a produção da poeta, como “o carácter explosivo e expansivo (vulcão), o diálogo com outras artes, a intertextualidade, o esplendor da matéria e do corpo na sua mais radical animalidade”. “O que a distingue é um certo carácter visceral, uma capacidade de fazer do corpo escrita e da escrita corpo, uma espécie de pulsação que atravessa todos os seus textos. Seja poesia ou prosa, há neles uma espécie de incandescência, um abrir de caminhos sumptuosos, um saber olhar de frente ‘o labor excessivo da beleza’”, explica o crítico.

Para a escrita, Andreia C. Faria acrescentou o ‘C’ à sua assinatura. Urgia distinguir a poeta da jornalista formada na Universidade do Porto e que chegou a estagiar na secção de Cultura do “Jornal de Notícias”, embora aquele não fosse o seu lugar. “Logo que entrei na faculdade percebi que não tinha olhado bem para o currículo, muito virado para os novos meios, multimédia, edição de áudio e vídeo. E muito pouco para a escrita. Fiz o curso sabendo que aquilo não era o que tinha em mente”, recorda. No contexto de uma das cadeiras criou o blogue “Muita Letra”, onde vertia textos sobre livros e literatura. E essa constante atualização sobre o que as editoras iam lançando criou as condições para, ao longo de quatro anos, trabalhar na livraria Leitura, recebendo “uma verdadeira formação” na companhia de livreiros experientes. Não por acaso, atualmente é coordenadora editorial da ESAD Idea, ainda que, até julho, usufrua de uma bolsa de criação literária atribuída pela DGLAB.

Outra grande fonte de ‘nutrientes’ poéticos foi um mestrado em estudos anglo-americanos, feito na Universidade do Porto e então dirigido por Ana Luísa Amaral. Ali descobriu autoras importantes, como Sylvia Plath ou Emily Dickinson. Aprofundou também a teoria feminista, o que naquele momento “fazia mais sentido do que agora”. “Nestes dez anos, as coisas passaram de uma certa marginalidade para um certo mainstream que ultrassimplificou a luta das mulheres, retirando-lhe as contradições. O lado de demarcação do espaço individual não me interessa. O feminismo é uma questão de direitos cívicos”, nota, observando que a expressão ‘poeta feminista’ não é mais do que “outra forma de limitar as mulheres e de lhes tirar força, de as pôr dentro de um saco para que não incomodem, diluindo e apagando a sua especificidade”.

Relevante é igualmente que se considere uma autora política apenas num sentido muito lato. Andreia não se revê numa poesia-manifesto, que seja “um lugar de certezas, de slogans, de murais ou de didatismos”. A poesia intervém, mas subterraneamente, e talvez por isso ela prefira nem sequer ser apelidada de poeta. “Considero-me escritora, a palavra ‘poeta’ provoca-me pudor. Vejo-me sobretudo como alguém que trabalha com a imaginação, talvez de um modo mais extremo. O espaço do poeta não é o de aparecer como poeta, é o dos livros e do confronto silencioso com os leitores, na página. Desconfio da ideia de ser poeta. É uma jarretice”, sublinha.

Escrever poesia é, acima de tudo, um trabalho de estranheza, “de distância do que estamos a observar, de estranhamento da língua em relação aos seus eixos mais formatados”. É tirar a língua dos eixos, o que para Andreia significa uma certa ferocidade e impiedade, uma crueza (não misantrópica), um rasgão, um confronto “corpo a corpo”. Em Andreia C. Faria, escrever não tem a ver com o desabafo das próprias obsessões. Não é uma poeta da neurose urbana contemporânea. “Até posso ser, mas não o vou publicar.” Há dias, na exposição sobre Eugénio de Andrade na Biblioteca Almeida Garrett, no Porto, chamou-lhe a atenção o poema “Requiem a Pasolini”. “A primeira versão é péssima, porque é um desabafo. Ele trabalha-o ao longo de sete versões, e a última é maravilhosa”, assinala.

Para José Mário Silva, ela tem “uma poesia de uma radical originalidade e coerência, que desde muito cedo criou a sua própria dicção e léxico, uma voz lírica expansiva que vem crescendo de livro para livro, culminando na beleza crua e brutal de ‘Canina’ [Tinta da China, 2022], em que fala da ‘memória dos ossos’ e se vai definindo através de versos extraordinários.” “Canina” é esse recanto claro e escuro com ossos e arestas e sede animal, brutal e comovedor, onde “morrer é talvez mudar de luz”. Algo assim como o retorno à terra pura, suja e elementar, que se encontra andando uns quilómetros para fora da cidade. Um pouco como aconteceu à própria Andreia, nascida no Porto, mas criada numa Maia de contornos rurais.

Se a sua não era uma casa com livros — a mãe era operária têxtil e o pai metalúrgico —, a influência de uma professora primária que lhe captou uma “hipersensibilidade para a linguagem” levou a que os pais a fossem rodeando de boas leituras. O bibliotecário local também lhe emprestou vasta orientação. Já em adulta, a voz poética de Andreia carrega as referências “óbvias” de Luís Miguel Nava e Luiza Neto Jorge, diz José Mário Silva, “embora seja evidente que ela vai beber a muitas fontes e leu certamente muitos outros poetas, escapando sempre às armadilhas do epigonismo”.

Um dos nomes do futuro da poesia portuguesa, Andreia C. Faria foi, como é costume, uma aposta das pequenas editoras. “Se olharmos para o catálogo da Assírio & Alvim ou da Relógio D’Água, encontramos poetas consagrados, conhecidos. Os mais novos não chegam lá e, se chegam, é graças à aposta anterior de editoras mais pequenas. Daqui a uns anos vamos perceber, olhando para o catálogo dessas editoras, que a elas devemos o andamento da poesia.” Ela, nova mas já não tanto, sabe-o por experiência própria: “Talvez o reconhecimento pressuponha que estou no caminho de algo reconhecível, predefinido, mensurável. Pode ser que seja, pode ser que não. Nem estou empenhada em gorar as expectativas nem me pauto por elas.”

Luciana Leiderfarb, Expresso 50 n.º 3 (O futuro foi ontem - 50+50 personalidades que marcaram e vão marcar o país e o mundo), 2023-03-03. Disponível em https://expresso.pt/50anos/100-personalidades/2023-03-09-Andreia-C.-Faria-com-a-lingua-fora-dos-eixos--uma-das-50-vozes-do-futuro-escolhidas-pelo-Expresso--ed67f663

 

***


Eu tinha grandes naus
aparelhadas na ribeira do coração.
– Fernando Assis Pacheco


Um desejo tão espúrio, escrever,
quando a monte tem andado tudo.
Nada do que importa está escrito, só repousa
a intensa sombra dos seus olhos
entre o seco arvoredo dos signos.
É tão estranho viver, tão roubado
às flores, ao sono, ao vinho, quanto mais
esta vaidade do que nunca teve brilho
mas empluma a linguagem
pelas falhas do que outros dizem.

Tinha passado anos a talhar madeira
alumbrada e rosa, quase viva, enquanto
no rosto a ilusória imobilidade
do fogo me dava a impressão de existir.
Sabia como recrudesce o tempo
em redor dos materiais — cada hora
uma navalha suja, cada imagem
uma joia deletéria, o mar
lavrando pelas ondas a sua cicatriz.

Quis sofrer o mel, metáforas ocultas,
espécies rebentando-me por dentro
com os seus anzóis extintos. Nada mais
cretino, já que à vista começava a apodrecer
a infância, os frascos a estalar, a carne
rigorosa, uma arca desfalcada por invernos
e famílias vagamente nucleares.
E eu não via, eu queria estar à sombra e escrever
mulheres no esquema dos meus dias,
mulheres cujo coração se abate, o meu
estético sentido era o terror. Eu via e não via,
e de livros e mulheres só queria
erguê-los como grandes naus

e escrevia. Escrevo ainda,
qual aranha com as patas na penumbra.
Escrevo as coisas que das mãos
me caem, rachadas e celestiais.
De óculos escuros, dou-lhes o veludo
do outono, ou da fé o roxo manto.
Faço grandes passeios a pulso. De resto,
ando a monte como tem andado tudo.


Este e outros poemas de Andreia C. Faria lidos pela própria, em https://poesia.fm/piece/andreia-c-faria-compacto/


Teresa David, 2023-11-19
https://www.facebook.com/teresa.david.904


quarta-feira, 5 de abril de 2023

O Concerto Interior, António Osório

  

E VOLTO A ULISSES

E volto contigo a Ulisses, a maior
palavra, depois de amor, que deste.
Mortal, não Deus, eis a astúcia.
O seu, o corpo de Penélope preferia.
A jangada de viver uma só vez.
e ficar, deitado, em Ítaca.

 

António Osório, A luz fraterna: poesia reunida. Lisboa, Assírio & Alvim., 2009, p. 112.

 

A SUA MÃE

...e eu quis abraçar a alma da minha
falecida mãe. Três vezes me lancei para ela,
pois o coração impelia-me a abraçá-la, e
outras três se evolou entre os meus braços
como uma sombra ou um sonho.

Odisseia 11.204-8

A sua Mãe o sangue negro
deu a beber Ulisses. De reses
sacrificadas no inferno,
sobre um fosso, que cobrira
de mel, vinho, água,
farinha de cevada: assim
implorou a cabeça dos mortos.
Tudo conseguiu Ulisses,
menos iludir a sua dor.
Mais engenhosa a morte
e seus cavalos de Troia.

 

António Osório, A luz fraterna: poesia reunida. Lisboa, Assírio & Alvim., 2009, p. 112.

 


Leia o excerto de uma entrevista realizada por Carlos Vaz Marques ao poeta António Osório, na sequência da publicação do seu livro O Concerto Interior.

 

O que é que o levou a decidir contar a sua vida?

Toda a minha poesia é, em certo sentido, uma biografia. O João Gaspar Simões1, quando saiu o meu primeiro livro – e com toda a razão –, interrogou-se: «Mas quem é este poeta António Osório que ninguém conhece?» Depois observou: «Este homem, ao contrário da poesia de hoje, só escreve sobre sentimentos vividos.» E é um facto. Eu nunca escrevi nada sobre este mundo todo que não fosse isso: a cadela que eu amei, os pássaros, o Sol, a Lua.

Em certo sentido, é um poeta nos antípodas de Fernando Pessoa.

Eu não quero estabelecer comparações dessas. Mas há pessoas que já viram isso: que eu estou num outro lado.

Do lado do vivido mais do que do intelectualizado?

Exatamente. Isso, sim.

Estas suas memórias podem ser lidas como uma espécie de livro de instruções para os leitores da sua poesia?

O livro [O Concerto Interior] também é isso. Ajuda. Se as pessoas não perceberam, por exemplo, o poema «Volto contigo a Ulisses», eu explico o poema todo. Eu estava doente, a minha mãe tinha pavor de que eu morresse tuberculoso e lia-me o Ulisses.

Isso confirma que este livro é a chave para a sua poesia.

Em certo sentido, é a revelação dos recessos2 da minha poesia, de um certo número de segredos. Todos temos segredos e eu revelo alguns, importantes, que ajudam o leitor a perceber que aquele sujeito que lia o Dante ou o Camões era um indivíduo que podia morrer.

A sua poesia ainda tem segredos para si?

A minha poesia é uma luta contra a morte. Contra esse erro que é a morte.

Mas tem zonas obscuras ou tudo nela é cristalino para si?

A vida é cristalina, a morte é repelente. Nunca percebi como, no mistério da criação, pode existir a morte. Nisso sou do contra. E procuro o quê? Procuro exaltar tudo o que a vida tem de bom.

Daí ter um livro que se chama A Ignorância da Morte; procura bani-la do seu horizonte poético?

Exatamente. E na vida prática.

Paradoxalmente – e até com um certo grau de ironia –, parece ter sido a doença a permitir-lhe orientar-se na direção da poesia.

Exatamente. Que me orientasse, não; que fosse orientado pela minha mãe. A minha mãe, naquela minha idade – tinha oito anos quando adoeci –, podia ter-me lido o Borda d’Água3 ou outra coisa, mas só me lia poetas italianos e gregos: o Homero, o Dante.

Pode dizer-se que se lhe aplica a máxima de que há males que vêm por bem?

A mãe tentou compensar-me, tentou lutar contra a minha morte dando-me poesia. Tenho de agradecer a dádiva da poesia.

Escreve até que foi «salvo ao mesmo tempo pelo médico, pelo amor dos pais e pela dádiva da poesia».

É verdade. A poesia deu-me uma alma enorme. Eu estava na cama, queria ir para a praia, mas a mãe, lendo-me aquelas aventuras do Pátroclo e do Heitor4, a maravilha da Odisseia, despertou-me um outro entusiasmo. Tinha aquilo todos os dias e queria.

Ler, n.º 117, outubro de 2012 (adaptado)

______________
1 João Gaspar Simões (linha 2) – escritor e ensaísta português.
2
recessos (linha 18) – lugares mais recônditos ou escondidos, íntimos.
3 Borda d’Água (linha 33) – publicação anual que contém informações sobre marés, feriados e as culturas próprias de cada mês.
4 Pátroclo e Heitor (linha 41) – personagens de Ilíada de Homero.

 

 

Questionário sobre o excerto da entrevista a António Osório

1. Para responder a cada um dos itens de 1.1. a 1.7., selecione a única opção que permite obter uma afirmação correta.

Escreva, na folha de respostas, o número de cada item e a letra que identifica a opção escolhida.

1.1. De acordo com o conteúdo da entrevista, a poesia de António Osório distingue-se da dos seus contemporâneos pelo seu carácter

(A) fantasista.

(B) metafísico.

(C) autobiográfico.

(D) intelectualizado.

1.2. Relativamente à obra poética de António Osório, O Concerto Interior constitui uma

(A) explicação.

(B) contradição.

(C) fatalidade.

(D) incoerência.

1.3. Relativamente à morte, o poeta tem uma atitude de

(A) resignação.

(B) insurreição.

(C) apatia.

(D) indiferença.

1.4. O despertar de António Osório para a poesia resulta

(A) da observação da natureza.

(B) de vivências da infância.

(C) de leituras da obra pessoana.

(D) da consciência da eternidade.

1.5. A questão iniciada por «Mas» (linha 23), relativamente à questão colocada na linha 21, corresponde

(A) à introdução de uma ideia nova, oposta à anterior.

(B) a uma síntese da opinião do entrevistado.

(C) a uma leitura alternativa da obra do poeta.

(D) à clarificação daquilo que se pretende perguntar.

1.6. No contexto em que ocorre, a expressão «Tenho de agradecer» (linhas 36 e 37) transmite um valor de

(A) possibilidade.

(B) obrigatoriedade.

(C) permissão.

(D) concessão.

1.7. Na frase «A mãe tentou compensar-me, tentou lutar contra a minha morte dando-me poesia.» (linha 36), os pronomes pessoais desempenham, respetivamente, as funções sintáticas de

(A) predicativo do sujeito e complemento direto.

(B) complemento indireto e complemento direto.

(C) complemento direto e complemento indireto.

(D) predicativo do sujeito e complemento indireto.

2. Responda de forma correta aos itens apresentados.

2.1. Transcreva a oração subordinada adverbial presente no excerto seguinte.

«Se as pessoas não perceberam, por exemplo, o poema “Volto contigo a Ulisses”, eu explico o poema todo.» (linhas 14 e 15).

2.2. Classifique o ato ilocutório presente em «A sua poesia ainda tem segredos para si?» (linha 21).

2.3. Indique o valor da oração subordinada adjetiva relativa presente em «Daí ter um livro que se chama A Ignorância da Morte» (linha 27).

 

Chave de correção:

1.1. (C); 1.2. (A); 1.3. (B); 1.4. (B); 1.5. (D).

2.1. «Se as pessoas não perceberam, por exemplo, o poema “Volto contigo a Ulisses”».

2.2. (Ato ilocutório) diretivo.

2.3. (Valor) restritivo.

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 639 (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Prova Escrita de Português - 12.º Ano de Escolaridade. Portugal, GAVE-Gabinete de Avaliação Educacional, 2013, 2.ª Fase



 

Recensão crítica a O Concerto Interior. Evocações de Um Poeta, de António Osório

Autor de uma obra vasta e original, repartida em poesia e prosa, António Osório ocupa, nas letras portuguesas dos séculos XX e XXI, o raro lugar de poeta dos afetos. A singularidade da sua obra resulta, entre outros aspetos, da presença de um conjunto de figuras íntimas, provenientes da esfera familiar, que acabam por transformar-se em imagens poéticas autónomas com uma vida e uma expressão que lhes são conferidas pelo sujeito.

A presença daquelas figuras, na obra do autor de Décima Aurora, é tão ou mais importante quanto daí advêm consequências quer para a indiferenciação genológica de alguns dos seus textos, quer para uma certa amálgama discursiva que parece abranger a sua obra. Talvez o melhor exemplo do que se acaba de referir seja o facto de encontrarmos, na poesia de Osório, um coloquialismo mais próprio da prosa e, nesta, pelo contrário, um sentido mais poético.

Será, porventura, nesta mistura entre o poético e o coloquial, que encontramos a linguagem do «cuore» (coração), que António Osório cultiva através do uso de uma sintaxe que recusa excessos vocabulares, e que já Eduardo Lourenço notava no prefácio de uma antologia que organizou sobre a poesia do primeiro, onde, aliás, também não deixou de sublinhar esse incomum deslumbramento pela vida tão próprio da escrita deste poeta.

É, pois, desse encantamento perante a beleza da vida, dos homens, dos animais, das plantas ou das coisas que nasce uma linguagem do coração, onde a compreensão da realidade não se faz sem recurso ao afeto e onde, em última instância, nada existe sem estar ligado a essa «raiz afetuosa». Neste sentido, tanto a poesia como a prosa do autor de A Teia Dupla parecem fazer parte de um belo e luminoso tecido brocado, onde cada memória surge emoldurada pela ternura e calma próprias de um espírito que procura a harmonia das coisas simples e naturais, aceitando a vida com a sabedoria e a passividade que, porventura, absorve nos clássicos gregos e latinos.

Se a poesia de António Osório se constrói em torno de uma constelação de figuras provenientes do seio familiar, o que, entre outras coisas, lhe define uma feição autobiográfica - como aliás já foi referido por outros ensaístas neste mesmo lugar -, tal não é menos verdadeiro para a prosa seja em títulos como Vozes Íntimas ou O Concerto Interior, de que agora nos ocupamos.

Não sendo nosso objetivo discutir se se trata de uma autobiografia ou de um conjunto de memórias, o que nos levaria longas e demoradas páginas, gostaríamos, ainda assim, de referir que O Concerto Interior é talvez um curioso livro de memórias, onde o lado da procura (de si mesmo) que compete ao sujeito – traço característico do discurso autobiográfico – está sobretudo presente nos poemas, neles imprimindo a emoção que destapa o interior daquele que escreve: «Não te ouvirei mais ruminar,/tua forma de prece, olhando-me, grata,/distante, aquecendo-me no Inverno,/fazendo-me sonhar em minha mãe,/como um camponês sua fortuna, temendo que morresses.» (p.22)

Porém, no universo da escrita do eu não há, em regra, géneros rigorosamente definidos, por isso cada texto tende a procurar uma forma própria, onde apenas a substância se mostra indicadora da sua natureza. Assim, há muitos textos, que mesmo contendo traços autobiográficos não são autobiografias e é, neste sentido, que queremos justificar O Concerto Interior mais como um interessante conjunto de memórias do que propriamente uma autobiografia. Apesar da existência de um sujeito de primeira pessoa, que elege a sua vida como matéria central da obra, a quem não falta até o desejo da confissão, como se pode ler no prefácio (p. 11), a verdade é que, ao longo da maior parte do texto, o eu prefere projetar-se nos outros mais do que encerrar-se no seu eu – vejam-se as páginas dedicadas às tias e à explicação das relações familiares. Sabemos, claro, que essa projeção é, no fim de contas, uma outra maneira de falar de si, porquanto o gesto que fazemos na direção do outro implica que procuremos também completar algo em nós – note-se, a título de exemplo, o caso de Memórias, de Raul Brandão. Contudo, e como se faz notar no mesmo prefácio, há, por parte do sujeito, um deambular de memória em memória – que, aliás, o subtítulo - evocações de um poeta - parece de algum modo corroborar - que se liga mais ao ato de recordar do que ao ato de se procurar. A busca da identidade, que subjaz à autobiografia, é substituída por uma soma de factos passados, ordenados em secções, a cada uma pertencendo um título, que, sem dúvida, esboçam o percurso de uma vida, mas onde os «outros» merecem um destaque superior ao do eu.

Voltando à relação entre a prosa e a poesia, de que se falava atrás, as duas conjugam-se para urdir a tessitura autobiográfica que vemos completar-se no tear da memória e que tem na obra de que nos ocupamos, a invulgar capacidade de estabelecer esse diálogo direto e assumido com o discurso poético: «As recordações são aqui acompanhadas de poemas. Não se trata de uma antologia – a poesia procurou sempre tornar mais clara a minha vida, e a prosa revela a verdade dos versos e das pessoas invocadas.»

Assim, memória e poesia orquestram este concerto interior, onde a partir desta noção de complementaridade entre os dois discursos, o sujeito tende a construir a sua identidade: a evocação dos entes queridos faz-se acompanhar dos poemas que, porventura, albergam o que de mais íntimo existe nesta escrita. É nos poemas que podemos ler as emoções que, adivinhamos, dificilmente se podem dizer de outro modo, como estes versos que se referem à figura materna: «E volto contigo a Ulisses, a maior/palavra, depois de amor, que deste.» (p.26). Ou os versos que recordam o pai: «Lia-me Camões meu Pai./A tristeza de ambos/se juntava, em mim crescia.» (p.29)

Como vimos anteriormente, a poesia torna mais «clara» a vida do sujeito, servindo a prosa, ao que parece, para, de algum modo, comprovar a existência das figuras que surgem nos versos. De facto, é interessante reparar como certas figuras da poesia de António Osório, quer em títulos como A Raiz Afetuosa ou A Ignorância da Morte são aqui como que descodificadas. À prosa cumpre explicar desenvolvidamente aquilo que a poesia só consegue, porventura, transmitir em matéria de emoção como no excerto em que se esclarece a identidade da Srª Conceição para, em seguida, se transcrever o poema «Louvor da Srª Conceição» (pp.18-19).

Por outro lado, se tomarmos como subjacentes ao discurso do eu – aqui entendido em sentido lato - os atos de recolha e construção de figura percebemos, desde logo, que o próprio título (O Concerto Interior) isso reflete: concerto é sinónimo de consonância, harmonia; e essas encontramo-las ao longo das várias páginas em que o sujeito parece percorrer um álbum de recordações, coligindo memórias, desde a infância à idade adulta, na procura de uma edificação de si e dos outros que não passa propriamente nem por um ajuste de contas com o passado nem com um deitar contas à vida, mas talvez mais com o ato de mostrar o que se viveu e com quem se viveu - a tal ato não falta, apesar da atitude parcimoniosa do sujeito expressa no prefácio, um certo narcisismo difícil de evitar para quem se aventura pelos terrenos do intimismo e da autobiografia.

O sujeito que encontramos aqui busca de si e dos outros, mas sobretudo destes, a face mais brilhante, mais luminosa, expressando com frequência um sentimento de gratidão para com aqueles que o ajudaram a progredir como indivíduo. Por isso, concerto tem talvez ainda uma outra aceção – para além da relação com a música clássica, à qual acrescem as referências a Vivaldi, por exemplo -, porventura mais bíblica, porquanto significa também pacto ou aliança: não propriamente com Deus, mas com a vida que, na obra de Osório, parece muitas vezes atingir uma dimensão sagrada.

Concluindo: não será sempre para aquele que se procura, mesmo através dos outros – sobretudo dos que mais amou -, o pacto com o passado algo essencial? O pacto com um passado que é o seu e o dos seus, qual farol iluminando a vida adiantada de alguém que encontra nas lembranças afetivas um território seguro? Em O Concerto Interior, é com o passado, espaço anterior e interior, que o sujeito estabelece a aliança com uma visão sobre a vida e a arte que se deseja luminosa, brilhante e limpa, onde o sofrimento, apesar de presente, serve principalmente como degrau para um patamar espiritual mais elevado, pontuado pela beleza das coisas naturais, dos bichos e dos gestos fraternos, estando tudo isso envolto numa poesia que é quase música. Assim, confundem-se perspectivas textuais, onde tão depressa vimos o homem atrás do poeta como, em seguida, é este que se revela, convertendo a presente obra num belo exemplar de escrita do eu, território onde o estilo do autor é, segundo alguns críticos, aquilo que maior propriedade confere a textos que são, na maioria das vezes, entre outras, uma mescla de autobiografia e memória. No caso de António Osório vemos, ainda, juntar-se ao que há de autobiográfico e memorialístico uma inegável nota poética.

 

Filipa Barata, "[Recensão crítica a 'O Concerto Interior. Evocações de Um Poeta', de António Osório]", Colóquio/Letras, n.º 183, maio 2013, p. 236-238. Disponível em https://xdata.bookmarc.pt/gulbenkian/cl/pdfs/183/PT.FCG.RCL.9569.pdf

 

 


CARREIRO, José. “O Concerto Interior, António Osório”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 05-04-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/04/o-concerto-interior-antonio-osorio.html