quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

AUSÊNCIA (José Carreiro)


     
À luz gelada do amanhecer
ele toma a direcção da praia
a força do mar arrima-o um pouco
ao imo prestado pelos elementos
observa a fúria da areia que voa
açoita a cara empurrando-o
a procurar abrigo.
Sim, que ausência.
    
Rolam tumultuosas mas lentamente
as letras para sua própria ordem
por imposição incendiária de montanhas
de rios e de cidades.
Sim, muitos deixam as ilhas
areias cristais e buscam continuamente
forma onde repousar.
    
– Sim, dir-me-ás tudo isso
mas eu não sei o que quero nem o que faço
para que tudo se represente igual sempre igual a si mesmo.
     
      



Praia da Ribeira Quente, ilha de São Miguel, Açores, 2006. José Carreiro


Praia do Porto Formoso, ilha de São Miguel, Açores, 2009. José Carreiro.


 [Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2010/02/11/ausencia.aspx]

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Nuno Júdice sobre a arte poética




ARTE POÉTICA COM MELANCOLIA

 

Preocupam-me ainda as coisas do passado. Escrevo

como se o poema fosse uma realidade, ou dele nascessem

as folhas da vida, com o verde esplêndido de uma súbita

primavera. Sobreponho ao mundo a linguagem; tiro

palavras de dentro do que penso e do que faço, como

se elas pudessem viver aí, peixes verbais no

aquário do ser. É verdade que as palavras não nascem

da terra, nem trazem consigo o peso da matéria;

quando muito, descem ao nível dos sentimentos, bebem

mesmo sangue com que se faz viver as emoções,

e servem de alimento a outros que as leem como se, nelas,

estivesse toda a verdade do mundo. Vejo-as caírem-me

das mãos como areia; tento apanhar estes restos de tempo,

de vida que se perdeu numa esquina de quem fomos; e

vou atrás deles, entrando nesse charco de fundos movediços

a que se dá o nome de memória. Será isso a poesia? É

então que surges: teu corpo, que se confunde com o das

palavras que te descrevem, hesita numa das entradas

do verso. Puxo-te para o átrio da estrofe; digo o teu nome

com a voz baixa do medo; e apenas ouço o vento que empurra

portas e janelas, sílabas e frases, por entre as imagens

inúteis que me separam de ti.

 

Nuno Júdice, Teoria Geral do Sentimento. Lisboa, Quetzal Editores, 1999, p. 9

 

 

COMO SE FAZ O POEMA


 


Para falarmos do meio de obter o poema,

a retórica não serve. Trata-se de uma coisa simples, que não

precisa de requintes nem de fórmulas. Apanha-se

uma flor, por exemplo, mas que não seja dessas flores que crescem

no meio do campo, nem das que se vendem nas lojas

ou nos mercados. É uma flor de sílabas, em que as

pétalas são as vogais, e o caule uma consoante. Põe-se

no jarro da estrofe, e deixa-se estar. Para que não morra,

basta um pedaço de primavera na água, que se vai

buscar à imaginação, quando está um dia de chuva,

ou se faz entrar pela janela, quando o ar fresco

da manhã enche o quarto de azul. Então,

a flor confunde-se com o poema, mas ainda não é

o poema. Para que ele nasça, a flor precisa

de encontrar cores mais naturais do que essas

que a natureza lhe deu. Podem ser as cores do teu

rosto – a sua brancura, quando o sol vem ter contigo,

ou o fundo dos teus olhos em que todas as cores

da vida se confundem, com o brilho da vida. Depois,

deito essas cores sobre a corola, e vejo-as descerem

para as folhas, como a seiva que corre pelos

veios invisíveis da alma. Posso, então, colher a flor,

e o que tenho na mão é este poema que

me deste.

 

Nuno Júdice, Geometria variável, Lisboa, Dom Quixote, 2005

 

 

POÉTICA

 

Quero que o meu poema fale de barcos e de azul, fale

do mar e do corpo que o procura, fale de pássaros e

do céu em que habitam. Quero um poema puro, limpo

do lixo das coisas banais, das contaminações de quem

só olha para o chão; um poema onde o sublime nos

toque, e o poético seja a palavra plena. É este poema

que escrevo na página branca como a parede que

acabou de ser caiada, com as suas imperfeições

apagadas pela luz do dia, e um reflexo de sol

a gritar pela vida. E quero que este poema desça

às caves onde a miséria se acumula, aos bancos onde

dormem os que não têm teto nem esperança,

às mesas sujas dos restos da madrugada, às

esquinas onde a mulher da noite espera o último

cliente, ao desespero dos que não sabem para onde

fugir quando a morte lhes bate à porta. E canto

a beleza que sobrevive às frases comuns, às

palavras sujas pelo quotidiano dos medíocres,

aos versos deslavados de quem nunca ouviu

o grito do anjo. E digo isto para que fique, no

poema, como a pedra esculpida por um fogo divino.

 

Nuno Júdice, A Matéria do Poema. Lisboa, Dom Quixote, 2008, p. 11.

 

 

GUIA DE CONCEITOS BÁSICOS

  

Use o poema para elaborar uma estratégia

de sobrevivência no mapa da sua vida. Recorra

aos dispositivos da imagem, sabendo que

ela lhe dará um acesso rápido aos recursos

da sua alma. Evite os atolamentos

da tristeza, e acenda a luz que lhe irá trazer

uma futura manhã quando o seu tempo

se estiver a esgotar. Se precisar de

substituir os sentimentos cansados

da existência, reinstale o desejo

no painel do corpo, e imprima os sentidos

em cada nova palavra. Não precisa

de dominar todos os requisitos do sistema:

limite-se a avançar pelo visor da memória,

procurando a ajuda que lhe permita sair

do bloqueio. Escolha uma superfície

plana: e deslize o seu olhar pelo

estuário da estrofe, para que ele empurre

a corrente das emoções até à foz. Verifique

então se todas as opções estão disponíveis: e

descubra a data e a hora em que o sonho

se converte em realidade, para que poema

e vida coincidam.

 

Nuno Júdice, in revista NEO #9, 2009

 

Analisa comparativamente os poemas tendo em conta os seguintes aspetos:

- Conceção de poema;

- Perfil psicológico do sujeito poético;

- Linguagem e estilo.


quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O GATO (José Carreiro)

            
           
                
               
          
Esticou-se a tarde toda ao calor do chão
e assim ficámos cada um em seu poiso
na intermitência do sol e ao gosto dos insectos.
Ri. Passaram-se letras e frases inteiras
pelos olhos quando eu não estava ali.
Conheço a dormência do animal
o esticar dos membros, das patas
e daquela boca dentada.
Sou-lhe absolutamente dispensável.
    
De repente, os dias achatados, os pressupostos
e as mudanças de lugar tomam presença
nos corredores arqueados do pensamento
e eu pareço um eterno monstro, irreflectido.
Ouvi o dia inteiro impropérios,
a minha humanidade calcada em ajuntamentos.
Onde os desabridos pitéus
a efabulação intensa da casa.
As vozes que se tocam são um fio esticado,
logro de acções.
Levaria sem pensar um poste
lamberia as patas como os gatos
para limpar-me pelo lado de dentro da albarda.
Farejo a noite tão igual por dentro
ao som e aos gestos de um lobo.
Permaneço nas couves, nas formigas e nos crisântemos.
Apesar do lagar entumecido e visceral
eu resisto na terra e no muro, lugar sem porta.
Às vezes dá uma paragem no pensamento
e eu sou um animal lambendo as patas
abro a boca em toda a extensão do espaço
aquieto-me.
            
   
José Maria de Aguiar Carreiro
in revista NEO #92009


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2009/10/07/gato.aspx]

sábado, 29 de agosto de 2009

A «Consciência», segundo António Damásio





     
Embora eu não veja a consciência como o apogeu da evolução biológica, encaro-a como um ponto de viragem na longa história da vida. Mesmo quando recorremos à simples e clássica definição de consciência do dicionário — a percepção pelo organismo do seu próprio ser e do seu ambiente — conseguimos facilmente imaginar como a consciência deve ter permitido à evolução humana uma nova ordem de criações que não seriam possíveis sem ela: a consciência moral, a religião, a organização social e política, as artes, as ciências e a tecnologia. A consciência é a função biológica crítica que nos permite conhecer a tristeza ou a alegria, sentir a dor ou o prazer, sentir a vergonha ou o orgulho, chorar a morte ou o amor que se perdeu. Tanto o pathos como o desejo são produtos da consciência. Sem ela, nenhum desses estados pessoais poderia ser conhecido por cada um de nós. Não culpem a Eva pelo facto de conhecer, culpem a consciência mas agradeçam-lhe também.  
Estou a escrever estas palavras em Estocolmo, enquanto observo pela janela um velho frágil que se dirige a um barco que está prestes a partir. O tempo é escasso, mas a marcha é vagarosa e a cada passo os tornozelos claudicam; o cabelo é branco; o casaco está gasto. Chove sem parar e o vento obriga-o a dobrar-se ligeiramente, como um arbusto solitário em campo aberto. Finalmente consegue chegar ao barco. Sobe com dificuldade o degrau alto que dá acesso à prancha de embarque e inicia a descida para o convés, receoso de ganhar demasiada velocidade na rampa, olhando com rapidez para a esquerda e para a direita, enquanto o seu corpo inteiro parece perguntar: «Estou no sítio certo? E agora, para onde vou?» Nessa altura, os dois marinheiros que se encontram no convés ajudam-no afirmar o último passo, conduzem-no para a cabina com gestos amigáveis e ele está, finalmente, em segurança. A minha preocupação acaba. O barco parte.  
Deixe agora, leitor, que a sua mente vagueie. Pense o impensável e considere que, sem consciência, o nosso homem não poderia ter conhecido o seu desconforto e talvez humilhação. Sem consciência, os dois homens no convés não teriam reagido com a mesma simpatia. Sem consciência, eu não me teria preocupado e nunca teria pensado que um dia poderei estar nas mesmas circunstâncias, caminhando com a mesma dolorosa hesitação e o mesmo desconforto. A consciência amplifica o impacto destes sentimentos na mente dos personagens desta cena.  
A consciência é, com efeito, a chave para uma vida examinada, para o melhor e para o pior; é a certidão que nos permite tudo conhecer sobre a fome, a sede, o sexo, as lágrimas, o riso, os murros e os pontapés, o fluxo de imagens a que chamamos pensamento, os sentimentos, as palavras, as histórias, as crenças, a música e a poesia, a felicidade e o êxtase. A consciência, no seu plano mais simples e básico, permite-nos reconhecer o impulso irresistível para conservar a vida e desenvolver um interesse por si mesmo. A consciência, no seu plano mais complexo e elaborado, ajuda-nos a desenvolver um interesse por outros si mesmos e a cultivar a arte de viver.
  
In O Sentimento de Si. O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência, António Damásio,
Mem Martins, Publicações Europa-América, 2000 (1ª ed.), pp. 23-24. Título Original: The Feeling of What Happens.Versão portuguesa do original americano revista pelo autor e baseada em parte, numa tradução de M.F.M.
  
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2009/08/29/.consciencia.aspx]