sábado, 8 de outubro de 2011

ARQUEOLOGIA HISTÓRIA POSSÍVEL (António Franco Alexandre)


                              Padre António Vieira evangeliza os índios em terras de Vera Cruz
        
        
        
condenado das leis e sem
outra defesa que os lábios emudeceu subitamente.
vendido escravo pró Brasil, o Pe. A. V.
o iluminou na fé cristã & misericórdia.
Jose Ignacio Pombo: injusto también y bárbaro el derecho
que se cobra em cada venta de los esclavos.
Es um derecho sobre los hombres.
Mas guardou (hoje o sabemos) crenças
selvagens & a impiedade natural das origens,
alheio à salvação espiritual & progresso na via do culto.
                                y él grava también
                                sobre la agricultura,
os ombros tremiam-lhe por dentro devagar. Fugido
em novembro dois, de 1804
& entregue a estas autoridades cinco meses passados
& cortadas as mãos em culpa de furto,
morte, e hábitos (dizem) viciosos que uma missão
não extirpou completamente,
habitava em comunhão carnal contra natura,
adorando ídolos, dado a bruxedo & feitiçaria.
Los 38800 pesos producto de novillos, y
mulas vendidas en Jamayca, reducido a
negros comprándolos a 215 pesos
dan ..................................... 152
Agravado de conhecedor dos princípios morais
& catecismo, & civilização, & instruído
no conhecimento da língua e costumes,
ajudado que fora pelo Pe. A. V. e outros
no caminho da Redempção;
                                será obligación precisa,
y personal de los Curas, aplicar todos los dias festivos
la Misa, por el pueblo, explicarle el evangelio
antes de ésta, y la doctrina cristiana por la tarde
& com o reconforto das unções Xtãs
foi decepado em abril 20, de 1805 depois
de lhe cortadas as regiões
por exemplo maior que guardem
as populações & extirpe costumes bárbaros
& incitamento à fuga.
                                (tremiam-lhe
os ombros ao de leve, por dentro.
Levava no peito uma medalha redonda de cobre;
ferido nas costas de uma bala rés-vés.
Estando o sol mto forte & o tempo húmido
apodreceu rapidamente o corpo).
Por derechos de marca de 263 negros
a 40 pesos cada uno ....................... 10520.
Por 6% de muertos, y gastos sobre
los 71070 pesos em total ..................... 4260.
Producto líquido de los negros ...................56230.
Tremiam-lhe os ombros porque tinha medo
& sinais das estrelas mau presságio, & vira
mortos os companheiros antes de ser preso,
& estando sozinho
lhe parecia a morte mto difícil.
                                (ao de leve, como
por dentro. E ao ser castrado
abriu a boca como se falando, como
se fora gritar, mas não se lhe ouviu voz,
enquanto o cerrava os olhos & uma lágrima
escura lhe escorria o suor dos lábios)
Logramos la fortuna
                                   de tener um Soberano,
Padre verdadero
                            y amante de sus vasallos,
foi a enterrar no campo maior por
despesa ordinária,
                             (ao de leve)
& os filhos, que tivera, entregues
ao cuidado de seu legítimo
proprietário.
Si a estos se agregan los derechos de alcabala de venta, y
reventa en estos negros; el aumento de frutos y
consumos, que dan, subirán mucho las utilidades, que produce
esta negociación, al Rey, a los interesados y a la Provincia.
              
             
Refs.: D. José Ignacio Pombo, Informe del Real Consulado de Cartagena de Indias a la Suprema Junta Providencial de la Misma, 1810; D. Antonio de Narvaéz y la Torre,Informe del Gobernador, Provincia de Santa Maria y Rio Hacha del Virreynato de Santafé, 1778, e Discurso sobre la utilidad de permitir el comercio libre de neutrales en este Reyno, 1805.
             
António Franco Alexandre, Sem palavras nem coisas,
Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1974.
Reeditado em Poemas
Lisboa, Assírio & Alvim, 1996
             
     

           
             
    
             
             

             
In “Arqueologia história possível”, the author embarks upon a dialogue with history, represented by three documents – two “reports” and one “speech” in Spanish. These are submitted to the devices of an ars combinatoria in order to carry out (with “possible” veracity) an “archaeology” of a historical phenomenon, namely, that of slavery in the last quarter of the eighteenth century and the first years of the nineteenth century; and also to highlight the inevitable distance separating a modern viewpoint from the ideology dominant in the period from which, in the poem, “history” is made.
             
In After the Revolution: twenty years of Portuguese literature, 1974-1994
Helena Kaufman e Anna Klobucka
Associated University Presses, 1997
             
             
             
    
Olga Sinclair, Esclavos, 2003. 
Triptych, oil on linen, 250 x 400 cm


     
      

 [Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/10/08/ArqueologiaHistoriaPossivel.aspx]

sábado, 1 de outubro de 2011

COMO ELREI MANDOU CAPAR HUUM SEU ESCUDEIRO POR QUE DORMIO COM HUUMA MOLHER CASADA (João Miguel Fernandes Jorge)


Parecia anunciar-se uma manhã solene aquelaem que descemos de Coimbra a Alcobaça. Depoismonteámos caçámos pelos dias da amizademeu trovador de grandes ligeirices.     
Entre mar e bosque um mar de imagensnunca arrebatado aos meus ciumentos olhos.Do abismo um bando de aves cinzentassolitárias no seu trabalho       
o mal inevitável deste país.Somos como as aves resignadas à solidãotu, amigo, vigiaste o meu sono       
nas costas longínquas do mar Atlânticoentre justas correrias e pecados de espanto.Amigo, ex-amicus, esqueceste o meu reino sobre o mundoo tempo que descemos sobre as dunas.Agora nada reconheces fronteira altíssima e confusanatural door.
       
João Miguel Fernandes Jorge, Crónica
Lisboa, Moraes Editores, 1977, p. 40
       
           
    P.CHARTERS d'AZEVEDO (Nasceu em Lisboa a 3/11/1946)
       
       
Em esta sesão vivia com el-rei um bom escudeiro, e para muito, mancebo, e homem de prole, e n'aquelle tempo estremado em assignadas bondades, grande justador e cavalgador, grande monteiro e caçador, luctador e travador de grandes ligeirices, e de todas as manhas que se a bons homens requerem, ‑ chamado por nome Affonso Madeira, ‑ por a qual rasão o el-rei amava muito e lhe fazia bem gradas mercês.
Este escudeiro se veiu a namorar de Catharina Tosse, e mal cuidados os perigos que lhe advir podiam de tal feito, tão ardentemente se lançou a lhe querer bem, que não podia perder d'ella vista e desejo: assim era traspassado do seu amor. Mas, porque lugar e tempo não concorriam para lhe fallar como elle queria, e por ter aso de a requerer ameude de seus deshonestos amores, firmou com o aposentador tão grande amisade que para onde quer que el-rei partia, ora fosse villa ou qualquer aldeia, sempre Affonso Madeira havia de ser aposentado junto, ou muito perto do corregedor. E havia já tempo que durava este aposentamento, sempre cerca um do outro; tendo bom geito e conversação com seu marido, por carecer de toda suspeita.
Affonso Madeira tangia e cantava, afóra sua apostura e manhas boas já recontadas, de guisa que por aso de tal achegamento, com longa affeição e falas ameude, se gerou entre elles tal fructo, que veiu elle a acabamento de seus prolongados desejos. E porque semelhante feito não é da geração das cousas que se muito encobram, houve el-rei de saber parte de toda sua fazenda, e não houve d'ello menos sentido que se ella fora sua mulher ou filha. E como quer que o el-rei muito amasse, mais que se deve aqui de dizer, posta de parte toda bemquerença, mandou-o tomar dentro em sua camara, e mandou-lhe cortar aquelles membros que os homens em mór preço tem: de guisa que não ficou carne até aos ossos, que tudo não fosse corto. E pensaram Affonso Madeira, e guareceu, e engrossou em pernas e corpo, e viveu alguns annos engelhado do rosto e sem barbas, e morreu depois de sua natural morte.
        
Fernão Lopes, Chronica de el-rei D. Pedro I, Capítulo VIII
«Como elrei mandou capar huum seu escudeiro por que dormio com huuma molher casada»
       
Beloved Prince, Vilela Valentin, 2016


       
Afonso Madeira (séc. XIV) foi um escudeiro do rei D. Pedro I de Portugal. Segundo a crónica de Fernão Lopes, era favorito do rei. Foi castrado por ter sido apanhado a dormir com Catarina Tosse, mulher casada com Lourenço Gonçalves, o corregedor da corte.
Esta passagem tem sido bastante discutida entre os historiadores portugueses, uma vez que sugere a homossexualidade do monarca.
        
Ricardo Cinalli - El Plato, 1997-8, 220 x 250 cm. Pastel on tissue paper layers:
   Ricardo Cinalli, O Prato, 1997-1998
       


          PODE TAMBÉM GOSTAR DE LER:
                                    
Reconfigurar o corpo : o fragmento nas poéticas de João Miguel Fernandes Jorge e Jorge Molder (tese de doutoramento, Margarida Maria Mendes Gil dos Reis Paulouro Neves, FLUL, 2007-2008).

       
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/10/01/AfonsoMadeira.aspx]

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

DONA URRACA (Jorge de Sena)


                                    
         
          
       
Dona Urraca tem um físico
que cura toda maleita.
Quando Dona Urraca geme,
logo o físico se deita.
            
Dona Urraca é boa dama
para as donzelas que tem.
Quando elas adoecem
logo o físico ali vem.

Dona Urraca tem um físico
que cura toda maleita.
Quando Dona Urraca geme,
logo o físico se deita.

Põe o gorro na cabeça,
não se vê como está nu.
Mas ao dar a medicina
é como tutano cru.

Dona Urraca tem um físico
que cura toda maleita.
Quando Dona Urraca geme,
logo o físico se deita.

Físico prodigioso,
que tudo cura por bem.
Mas doenças de donzela
el'cura como ninguém.

Dona Urraca tem um físico
que cura toda maleita.
Quando Dona Urraca geme,
logo o físico se deita.

E dor's de mal maridada,
Dona Urraca que o diga.
Pois antes que el'apareça
aqui se acaba a cantiga.

Dona Urraca tem um físico...
        
          
Do chão, Dona Urraca ergueu os olhos para ele, que continuava montado.
— Vem. Quero contar-te tudo primeiro.
Ele apeou-se, subiu as escadas um pouco atrás dela e, como que arrastado na aragem do vestido roçagante, seguiu-a até aos aposentos.
Dona Urraca encostou-se no vão da grande fresta, de costas para ele, e começou a falar. Mas o que ele ouvia dentro de si era diferente.
         
Eu era muito moça e muito inocente quando meu pai me casou com Gundisalvo.
         
Eu era muito moça, mas dia e noite sonhava com os homens, desde que uma vez vira meu pai nu.
        
Nesse tempo, não vivíamos aqui, mas na corte do Imperador, ou nos acampamentos da Ásia, ao serviço dele.
Gundisalvo era muito mais velho do que eu e enviuvara três vezes antes de casar comigo.
        
        
        
Quando meu pai me fez saber que aprasara casar-me com Gundisalvo, que era seu irmão de armas e se parecia com ele, nos modos e no porte, eu sonhava só com Gundisalvo, e a espada dele, que lhe pendia à cinta, entrava por mim dentro a rasgar-me, como eu não me atrevia a sonhar que meu pai fizesse comigo, e como eu vira que ele ia fazer a uma donzela que gritava.
          
         
Dizia-se que ele tinha matado as outras, e as minhas donzelas e a minha ama todas me avisaram disso. Eu, cheia de medo, atrevi-me a falar a meu pai. Estou ainda a vê-lo rir-se à gargalhada, respondendo que Gundisalvo era seu irmão de armas, que as donzelas e as amas solteironas não entendiam nada dos homens, nem do que podia matar as mulheres casadas. Eu tremia de medo. E disse-lhe que, se era assim, e eu tinha de ir-me para longe dele, não me queria casar. E mais disse que não entendia como ele me casava com um homem tão mais velho que eu, que já tinha tido tempo de, casando com elas, matar três mulheres. Queria ele que também me matasse a mim? Meu pai deixou de rir e, com muito carinho, sentou-me no seu colo.
        
E, quando me disseram que as três mulheres dele tinham morrido, eu tive muito medo, mas pensei que, para ser mulher de verdade e do meu pai, era preciso morrer assim. E outro medo eu tive que me fazia tremer. Eu seria de Gundisalvo, que me levaria para longe e me mataria, sem que meu pai ali estivesse para sentar-me no seu colo, o que era o maior prazer que eu tinha. Se as três mulheres de Gundisalvo não tinham resistido, era porque ele não seria irmão de armas dos pais delas.
        
        
        
        
        
        
E, fazendo-me festas, explicou-me que Gundisalvo não era velho, como ele também não era, e eu é que os julgava velhos porque as donzelas sempre acham velhos os pais. E que as três mulheres dele as conhecera: uma, morrera de parto (e eu jurei para mim que não teria filhos), outra, desvirgara um pajem e ele mandara matar os dois, cortando a cabeça a ela, e a ele tudo e a cabeça também (e eu jurei que nunca teria pajens ao meu serviço), e a outra morrera de doença nas entranhas, porque não era perfeita e não servia para Gundisalvo (e eu jurei que, se era perfeita para meu pai, o seria também para Gundisalvo).
        
Mas meu pai explicou-me de que elas tinham morrido. Uma de parto (e eu jurei que só teria filhos que não fossem, de Gundisalvo), outra por infiel com, um pajem ainda virgem (e eu que, como as outras meninas bem nascidas, mandava aos pajens que se mostrassem, e achava que eles não eram iguais a meu pai, jurei que não teria nunca ao meu serviço senão homens feitos, para ver se eram ou não iguais a ele e a Gundisalvo), e a outra por não servir a Gundisalvo (e, se eu não servisse, morreria contente como esperava morrer).
        
        
Logo que casámos, vi que Gundisalvo era muito diferente do que meu pai pensava, e chorei lágrimas amargas. E como podia eu confessar-me a meu pai e fugir para ele, se meu marido aceitara governar uma marca longínqua, e logo depois meu pai morreu numa batalha com os árabes? Eu não podia compreender como haviam morrido, do que se dizia que fora a morte delas, as duas mulheres que ele não matara. Mas que esta lhe tivesse sido infiel, e fazendo com um pajem o que ele me não fazia a mim e por certo não fizera a ela, isso eu compreendia. Gundisalvo deixava-me sozinha longas temporadas e, quando voltava, era como um terno pai para mim. Quantas noites, aconchegada nos seus braços, que era como ele queria que eu dormisse, eu tentei que ele o não fosse, mas o marido abençoado pela Santa Madre Igreja, a que eu tinha direito, e que meu pai me tinha dado. Até que um dia, em que ele mais terno era comigo, eu lhe perguntei como ele fizera com as outras esposas, e se não queria, como eu não queria, ter filhos. E ele respondeu-me que, morto meu pai, tudo morrera para ele, e que me guardaria como filha. Mas que, se eu não me sentisse feliz, ele iria para não mais voltar, e eu seria livre de viver como quisesse, e de procurar o homem que ele não era para mim. Eu fiquei calada, de lágrimas secas, e nessa mesma noite ele partiu para sempre.
        
        
        
Logo que casámos, no próprio dia do casamento Gundisalvo me levou para longe, à frente dos seus cavaleiros, para tomar posse da marca bem longínqua cujo governo pedira. E, na primeira noite em que acampámos, vi que ele e os seus cavaleiros eram muito outros do que eu imaginava que homens pudessem ser. Eram como dois pajens que uma vez eu surpreendera. E Gundisalvo, no meio deles e com eles, que riam, gritava-me que meu pai era seu irmão, sim, e por isso me guardara para ele, até eu ter idade de casar. E que seria um pai para mim. E todos riam às gargalhadas, pulando ou espojando-se diante de mim, com as túnicas arregaçadas. Quanto mais eu gritava, tapando os olhos com, as mãos, mais eles ficavam desvairados, e foi então que Gundisalvo chamou um deles e mandou que me desvirgasse, e agarraram-me, e esse desvirgou-me com o punho da espada. Todos os homens que conheci não me fizeram esquecer essa noite senão tu. Quando saia a combater, por meses e meses, deixava-me Gundisalvo no castelo, um castelo negro e escuro, perdido nas névoas de um pantanal sombrio, à guarda de umas mulheres que se vestiam como eles, e que dormiam umas com as outras, e que me obrigavam a dormir com elas. Quando vinha de seus fossados, Gundisalvo dormia comigo, e sempre connosco dormia um dos cavaleiros, às vezes mais do que um em cada noite. Mas nenhum deles, e eram homens muito belos, jamais dormia do meu lado.
        
Sozinha, no meu quarto, sabendo que ele não voltaria, fiquei desesperada. Chamei um dos seus escudeiros, moço gentil, e mandei que me possuísse. O medo dele era muito, mas fez de mim uma mulher. Depois, sempre que ele estava no castelo, eu arranjava modo de ele ficar comigo. E o medo e o respeito a Gundisalvo davam-nos um prazer dobrado.
        
Um deles, porém, uma tarde, ao cruzar-se comigo num corredor do castelo, como que hesitou, e eu voltei-me e agarrei-o, e arrastei-o para minha câmara, e fiz dele o homem que ele não era, para ter o homem que não tinha tido. Depois disso, e sempre que era vez de ele ficar connosco, esperávamos que Gundisalvo adormecesse... E era o que fazia mais ardente o amante que eu escolhera.
          
           
O Físico Prodigioso (novela)1966/1977
Jorge de Sena (1919-1978)
            

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/09/16/Urraca.aspx] 

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

O FÍSICO PRODIGIOSO (Jorge de Sena)

    
    
        
Ao rio perguntei por meu amigo
aquele que há tanto é partido,
e por quem morro, ai!
        
Ao rio perguntei por meu amado
e u será que ele se há banhado,
e por quem morro, ai!
        
Aquele que há tanto é partido
u lavou triste seu corpo velido,
e por quem morro, ai!
        
Aquele que há tanto é 'longado
e u será que se foi lavado,
e por quem morro, ai!
        
Ao rio perguntei por meu amigo
e u se lavou de dormir comigo,
e por quem morro, ai!
        
Ao rio perguntei por meu amado
e u se lavou de nosso pecado,
e por quem morro, ai!
        
E u se lavou de dormir comigo
e seu retrato foi nas águas vivo,
e por quem morro, ai!
        
E u se lavou de nosso pecado,
aquele que há tanto é 'longado,
e por quem morro, ai!
        

        
As três donzelas vinham cantando pela margem do rio uma cantiga que uma delas, de repente, começara de improvisar; e as vozes das três juntavam-se para repetir variada cada estrofe que a primeira primeiro cantava. Os passos delas mal se sentiam, não fora os vestidos que roçagavam leves a verdura, e elas seguravam na ponta dos dedos.
        
        
Num leve espadanar de nuvens pálidas que da verdura se elevavam com seus passos, as três deusas, pois se via que eram elas, vinham vindo nuas, de cabelos soltos, e os seios delas devagar dançavam rijos, enquanto as coxas alternavam de róseo brilho a cada lado dos negros triângulos, e os braços se erguiam, ondulantes, mostrando o doce côncavo sombrio.
        
Nisto, a primeira, que vinha um pouco adiantada, tremeu da voz, e calou-se num ciciado sopro e, silenciando as outras com um gesto, com outro gesto apontou. As três ficaram a olhar aquele jovem resplandecente, cuja pele era de mármore sombreado de pêlos que, na cabeça, eram uma suave cabeleira loira. E, vendo-o suspirar, entreolharam-se e desviaram de pudor os olhos ante maravilha tal, em que tudo era mais e maior que uma donzela se atrevia a imaginar.
        
De súbito, as deusas pararam e fitaram-no risonhas, e, com os olhos brilhando como fogo, mediam-no deitado, da cabeça aos pés. Um cálido tremor o percorreu, e um anseio opresso lhe ocupou o peito: suspirou.
        
        
        
        
        
        
        
Mas logo o pudor delas se lhes transformou num afogueado fascínio. E os olhos que se haviam desviado perscrutaram em volta, a ver se ele estava só. E aproximaram-se um pouco mais. O cavalo, que ficara fitando-as, sacudiu a cabeça e relinchou de leve.
        
As deusas, sorrindo do suspiro dele, avançaram mais. E era como que uma ardência o olhar delas, que pelo seu corpo se pregava, e a que o corpo, palpitando, correspondia pouco a pouco. Cupidinhos esvoaçaram tocando flautas.
        
        
Elas estremeceram, e pararam, como congeladas, no medo que ele despertasse. Mas ele apenas respirou mais fundo, entrecortadamente, como se outro respirar do sangue, convergindo, interferisse no exalar opresso.
E as deusas tremularam na neblina que as envolvia agora, com os olhos incitando-o a que se não movesse. E ele apenas se espreguiçou, para que o corpo se expusesse mais, no torpor violento que o invadia.
        
        
        
Foi quando à volta dele surgiu repentinamente um precipitado redemoinho que o envolvia, com regougos ciciados. As donzelas, de olhos esbugalhados, não ousavam entender o que se passava, nem a inocência delas o entenderia. As deusas sucediam-se num turbilhão por sobre ele, um turbilhão em que os seios saltavam, e era uma noite ardente que humidamente o cobria e em que ele se enterrava. Uma dolorida e prazeirosa cócega o percorreu num arranco. As donzelas recuaram aterradas para as árvores próximas, como se tivesse de repente chovido uma água em que as deusas se embebiam. E ele, estendendo os braços num abraço enclavinhado, abriu os olhos e imaginou que, satisfeita enfim a sede de tantos anos, o Demónio o deixaria para sempre.
        
O Físico Prodigioso (novela)1977
Jorge de Sena (1919-1978)



[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/09/09/FisicoProdigioso.aspx]