sexta-feira, 9 de setembro de 2011

O FÍSICO PRODIGIOSO (Jorge de Sena)

    
    
        
Ao rio perguntei por meu amigo
aquele que há tanto é partido,
e por quem morro, ai!
        
Ao rio perguntei por meu amado
e u será que ele se há banhado,
e por quem morro, ai!
        
Aquele que há tanto é partido
u lavou triste seu corpo velido,
e por quem morro, ai!
        
Aquele que há tanto é 'longado
e u será que se foi lavado,
e por quem morro, ai!
        
Ao rio perguntei por meu amigo
e u se lavou de dormir comigo,
e por quem morro, ai!
        
Ao rio perguntei por meu amado
e u se lavou de nosso pecado,
e por quem morro, ai!
        
E u se lavou de dormir comigo
e seu retrato foi nas águas vivo,
e por quem morro, ai!
        
E u se lavou de nosso pecado,
aquele que há tanto é 'longado,
e por quem morro, ai!
        

        
As três donzelas vinham cantando pela margem do rio uma cantiga que uma delas, de repente, começara de improvisar; e as vozes das três juntavam-se para repetir variada cada estrofe que a primeira primeiro cantava. Os passos delas mal se sentiam, não fora os vestidos que roçagavam leves a verdura, e elas seguravam na ponta dos dedos.
        
        
Num leve espadanar de nuvens pálidas que da verdura se elevavam com seus passos, as três deusas, pois se via que eram elas, vinham vindo nuas, de cabelos soltos, e os seios delas devagar dançavam rijos, enquanto as coxas alternavam de róseo brilho a cada lado dos negros triângulos, e os braços se erguiam, ondulantes, mostrando o doce côncavo sombrio.
        
Nisto, a primeira, que vinha um pouco adiantada, tremeu da voz, e calou-se num ciciado sopro e, silenciando as outras com um gesto, com outro gesto apontou. As três ficaram a olhar aquele jovem resplandecente, cuja pele era de mármore sombreado de pêlos que, na cabeça, eram uma suave cabeleira loira. E, vendo-o suspirar, entreolharam-se e desviaram de pudor os olhos ante maravilha tal, em que tudo era mais e maior que uma donzela se atrevia a imaginar.
        
De súbito, as deusas pararam e fitaram-no risonhas, e, com os olhos brilhando como fogo, mediam-no deitado, da cabeça aos pés. Um cálido tremor o percorreu, e um anseio opresso lhe ocupou o peito: suspirou.
        
        
        
        
        
        
        
Mas logo o pudor delas se lhes transformou num afogueado fascínio. E os olhos que se haviam desviado perscrutaram em volta, a ver se ele estava só. E aproximaram-se um pouco mais. O cavalo, que ficara fitando-as, sacudiu a cabeça e relinchou de leve.
        
As deusas, sorrindo do suspiro dele, avançaram mais. E era como que uma ardência o olhar delas, que pelo seu corpo se pregava, e a que o corpo, palpitando, correspondia pouco a pouco. Cupidinhos esvoaçaram tocando flautas.
        
        
Elas estremeceram, e pararam, como congeladas, no medo que ele despertasse. Mas ele apenas respirou mais fundo, entrecortadamente, como se outro respirar do sangue, convergindo, interferisse no exalar opresso.
E as deusas tremularam na neblina que as envolvia agora, com os olhos incitando-o a que se não movesse. E ele apenas se espreguiçou, para que o corpo se expusesse mais, no torpor violento que o invadia.
        
        
        
Foi quando à volta dele surgiu repentinamente um precipitado redemoinho que o envolvia, com regougos ciciados. As donzelas, de olhos esbugalhados, não ousavam entender o que se passava, nem a inocência delas o entenderia. As deusas sucediam-se num turbilhão por sobre ele, um turbilhão em que os seios saltavam, e era uma noite ardente que humidamente o cobria e em que ele se enterrava. Uma dolorida e prazeirosa cócega o percorreu num arranco. As donzelas recuaram aterradas para as árvores próximas, como se tivesse de repente chovido uma água em que as deusas se embebiam. E ele, estendendo os braços num abraço enclavinhado, abriu os olhos e imaginou que, satisfeita enfim a sede de tantos anos, o Demónio o deixaria para sempre.
        
O Físico Prodigioso (novela)1977
Jorge de Sena (1919-1978)



[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/09/09/FisicoProdigioso.aspx]        

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