Texto de apoio
A canção Trova
do Vento que Passa foi retirada de um poema de Manuel Alegre, escrita em
1963 e interpretada e por Adriano Correia de Oliveira no álbum Fados de Coimbra.
O poema de Manuel Alegre é mais extenso, contendo quinze quartetos, ao
passo que na versão interpretada por Adriano Correia de Oliveira contém apenas
três estrofes, que serão trabalhadas aqui72
Pergunto ao vento
que passa
Notícias do meu
país
E o vento
cala a desgraça
O vento nada
me diz
Mas há sempre uma
candeia
Dentro da própria desgraça
Há sempre
alguém que semeia
Canções no
vento que passa
Mesmo na noite mais
triste
Em tempo de
servidão
Há sempre
alguém que resiste
Há sempre
alguém que diz não
Essa canção
contesta o regime ditatorial em Portugal ao falar da "desgraça" que o
país vive. Quando fez estes versos, Manuel Alegre estava com Adriano Correia de
Oliveira, e desabafou "mesmo na noite mais triste, em tempo de servidão, há sempre alguém que resiste, há
sempre alguém que diz não". Ao ouvi-los, Adriano Correia de Oliveira profetizou que tais
versos durariam para sempre (RAPOSO, 2014) e Manuel Alegre logo finalizou o
poema e tentaram musicá-lo, com ajuda de António Portugal (músico e compositor que trabalhou
com cantores como Adriano Correria de Oliveira e Zeca Afonso). O sucesso dessa canção foi percebido
três dias depois, quando cantaram em uma festa de Calouros da Faculdade de
Medicina: "foi um delírio, [Adriano Correia de Oliveira] teve que repetir três ou quatro
vezes, [ ... ] Saímos todos para a rua a cantar. A "Trova do Vento Que
Passa" passou a ser um hino para aquele malta" (RAPOSO, 2014, p.194)
Ao analisar
a canção - veremos aqui apenas os três versos utilizados por Adriano Correia de
Oliveira - percebe-se que há uma regularidade em termos de métrica e rima. Todos os versos são classificados
como redondilha maior, e as rimas intercaladas em ABAB CACA DEDE. Na primeira e
terceira estrofes do poema, as rimas também são intercaladas em agudas (terminadas
em oxítonas) e graves (paroxítonas), ao passo que na segunda estrofe, há
apenas rimas graves. A maioria das rimas são consoantes, enquanto há
apenas duas toantes, vistas em cadeia/semeia e servidão/não. Outra característica do poema que chama a atenção é a questão da
sonoridade, com as repetições de vogais com sons parecidos, causando uma
assonância, além de poderem ser consideradas rimas internas e toantes,
como se pode ver nos substantivos "vento", "tempo", nos advérbios "sempre"
e "dentro" e do pronome "alguém'', repetindo
os sons "em":
Pergunto ao vento que passa |
Mas há sempre uma candeia |
Mesmo na noite mais triste |
Notícias do meu país |
Dentro da própria desgraça |
Em tempo de servidão |
E o vento cala a desgraça |
Há sempre alguém que semeia |
Há sempre
alguém que resiste |
O vento nada me diz |
|
Há sempre alguém que diz não |
Destaca-se
também no poema a prosopopeia, ao haver a personificação dos substantivos
"vento" - em que o sujeito faz uma "pergunta ao
vento" - e da "noite" em que é qualificada como
"triste'', adjetivo comumente utilizado para seres vivos. Há também casos
de anáfora - muito comuns em canções, na repetição "Há sempre", podendo ser vistas
no primeiro e terceiro versos da segunda estrofe e nos dois últimos versos da
terceira estrofe.
Essa canção
revela a situação drástica de Portugal por causa do regime ditatorial, em que a
censura ainda agia com muita repressão e violência e o país ainda continuava lutando
contra as dificuldades - desemprego, onda de protestos, Guerra Colonial. A primeira
quadra, mesmo sendo criada por Manuel Alegre enquanto ele já estava em Portugal
[ficou preso em Angola por um período], poderia claramente ter sido escrito por
alguém que estivesse fora e precisasse de notícias do que estaria ocorrendo no
país. Ao fazer a pergunta ao vento, o cantor sabe que não haverá resposta,
dando a ideia de que as coisas continuariam à sombra da ditadura. O vento também
poderia se referir a algo ou alguém que "escondesse" os fatos que
estejam ocorrendo no país. O vento "varre" a sujeira
(desgraça) que lá ocorre, mas não a tira do local. A primeira estrofe é
totalmente pessimista em relação aos fatos que vinham ocorrendo em Portugal, mostrando ser uma situação que ocorre há muito tempo e que virou
rotina, ao utilizar os verbos apenas no presente do indicativo nesta primeira
estrofe ''pergunto ao vento que
passa e o vento cala a desgraça/ o vento nada me diz ".
Na segunda
estrofe, altera-se o rumo da letra, indicando um otimismo ao utilizar a conjunção adversativa "mas",
em "Mas há sempre uma candeia", referindo-se às pequenas
coisas boas que ocorrem dentro dessa "desgraça": a utilização do substantivo "candeia", traz urna
conotação de "luz", "inspiração", e ainda que
"fraca" e "passageira" (como sugere urna luz de candeia), o
texto diz respeito às canções "semeadas" por alguém. O verbo
"semear" implica o ato de "plantar" ou "lançar",
e as pessoas farão com que as "canções" sejam 'divulgadas' . Nesses versos cabem o provérbio
bíblico "Quem semeia
vento, colhe tempestade"73, trazendo
para esse contexto, um sentido oposto ao pretendido pela Bíblia: enquanto
biblicamente, aquele que semeia vento, colhe resultados improdutivos, aos que "semeiam
canções no vento", esperam colher bons frutos:
Há sempre alguém
que semeia
Canções no
vento que passa
Se o "vento
que passa" pode levar notícias, aos que semeiam canções no vento podem
ter suas canções "levadas" por ele, isto é, divulgadas especialmente pela própria população, alcançando
popularidade. Ao mesmo tempo, o vento, por estar sempre em movimento, pode
também fazer com que a canção "semeada" nele passe e se distancie rapidamente, pois sendo ela muitas
vezes censurada pela PIDE, as pessoas poderiam perder o acesso à essas canções.
Na terceira
estrofe, novamente, o poeta utiliza outra conjunção para contornar a situação
de tristeza: "mesmo", suavizando todo o restante da estrofe, assim corno ocorrido na
quadra anterior. Nessa última estrofe o autor enfatiza a existência de pessoas
que resistem ao que lhes é imposto, sendo, nesse caso, todos aqueles que
combatem a ditadura que está em vigor no país, seja ela por meio de canções, da literatura, seja por meio daqueles
que utilizam sua influência para motivar o ativismo.
A principal
mensagem desse poema diz respeito à esperança que esses poetas e cantores
sentem quando percebem que suas obras estão sendo divulgadas e bem recebidas pelo público. É esse público que faz essa luta continuar, apesar de todo o clima
opressor e angustiante vividos.
Canto de intervenção em Portugal: "O povo é quem mais
ordena", Ludmila Arruda.
São Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2016
____________
Notas:
72 A cantora Amália Rodrigues também interpretou a
canção em 1970, lançada no álbum "Com
que Voz".
Na versão
dela, a única estrofe igual à versão
de Adriano Correia de Oliveira foi a primeira; no restante, ela
seguiu a segunda e terceira estrofes da ordem correta do poema de Manuel Alegre.
73 Conferir
Oseias 8. 7, Bíblia versão JF A.