BILHETE
POSTAL PARA MANUEL ALEGRE
1.
Esta crónica devia, portanto, começar assim: "Meu caro Manuel Alegre, há
muito tempo que não nos encontramos, seria boa altura, penso, para conversarmos."
O
pretexto é simples. Na contracapa do seu último livro, os "Sonetos do
Obscuro Quê", Manuel Alegre, ou as Publicações Dom Quixote, decidiram
incluir o extrato de um verbete que eu redigi já há bastante tempo para o "Grande
Dicionário da Literatura Portuguesa e da Teoria Literária", projeto
inacabado, que partiu de uma iniciativa de João José Cochofel. Que diz o meu
texto? Isto: "O poema não fica no papel: percorre as cidades e as aldeias,
os opressores e os oprimidos, circula, gira incessantemente entre as pessoas e
as coisas, o real e o possível. O poema, para Manuel Alegre, é um lugar, um espaço
vivo. É também um espaço em que se prolonga a história política e poética de um
povo."
A
gente percebe que este texto tem uma data. Que importa? É uma data bem viva,
estamos profundamente ligados a ela, e não tenho nesta matéria uma vírgula a
alterar.
2.
Mas gostaria, para já, de pegar nas coisas por outra ponta. Tive noutro dia
oportunidade de ver a participação de Manuel Alegre no programa televisivo de
Maria João Seixas, ao lado de AI Berto e David Mourão-Ferreira. Como lhe vem
sendo habitual, Manuel Alegre pegou no tema de "uma nova censura" que
se teria instalado em Portugal, que impediria que se falasse dos escritores
portugueses, ou que imporia que deles se dissesse mal sistematicamente. Ao
mesmo tempo referiu os malefícios de uma influência universitária no domínio da
crítica, e a moda de um neoacademismo formalista.
Era
sobre isto que para já gostaria de conversar. Primeiro, desagrada-me a
expressão "nova censura", e vou explicar porquê. O conceito de "censura"
está ligado a formas de silenciamento e opressão por motivos políticos,
ideológicos ou morais, isto é, por um elenco eventual de razões que são
exteriores à ordem especificamente artística. Se existem motivos de tipo
estético que levam a que se fale menos, ou nem mesmo se fale, de certas correntes,
isso pode ser lamentável, mas pertence a um outro registo da vida cultural: o
do confronto e alternância entre correntes de teoria e sensibilidade estética.
Ora esse confronto deve realizar-se no terreno do próprio combate estético. A
expressão “nova censura" é um pouco demagógica porque vai buscar a memória
magoada de outras situações e vai invocar motivações extraliterárias para
intervir num combate que deveria ser estritamente literário. Além disso, a
expressão "nova censura" parece supor uma espécie de
"complot" organizado de um modo metódico destinado a calar as vozes
incomodativas. Ora a ideia de "complot" é um truque um pouco
estafado, que por isso mesmo exige uma longa série de provas inequívocas, e tem
a "vantagem" fácil de impor no leitor, com custos reduzidos, a ideia
não provada de que as vozes silenciadas são por isso mesmo "vozes incomodativas".
Serão? Não estou certo.
Em
segundo lugar, julgo que Manuel Alegre confunde três coisas. A primeira tem da
minha parte um aplauso incondicional. Sim, estou plenamente de acordo com o
facto de que se fala muito pouco de poesia nos jornais portugueses. Não apenas
de poesia, mas de literatura em geral. O destino de um livro traça-se praticamente
entre as páginas do "Expresso", as do PUBLICO, as do “Jornal de
Letras", e as da revista "Ler", o resto quase não conta, ou tem
muito pouco peso. Devemos reconhecer que é pouco, que as rádios e as televisões
não ajudam, e que o panorama é desconsolador. Revistas como "Limiar"
ou "Hífen" (de que acaba de sair mais um esplêndido número) são
fenómenos raros. Julgo que a poesia em Portugal vai perdendo leitores dia após
dia. Neste ponto julgo que o combate a travar merece a plena concordância
daqueles que desde sempre se sentem ligados a estas coisas.
Já
não seguirei Manuel Alegre com a mesma desenvoltura na ideia de que existiria
uma má vontade generalizada contra a literatura portuguesa. Quem ler com
atenção as páginas culturais das publicações acima referidas verifica mesmo uma
atenção considerável em relação à literatura portuguesa, e o gosto em se
valorizar tudo o que de mais interessante se vai produzindo em Portugal. O que
importa é evitar as falsas alternativas: entre aqueles que abdicam de qualquer
posição crítica em relação a um texto apenas porque ele é português e aqueles
estilo Vasco Pulido Valente que acham que o único meio de que dispõem para
ultrapassarem a sua própria mediocridade em termos culturais é reduzirem toda a
literatura portuguesa à mediocridade que os caracteriza.
3.
E chegamos ao terceiro ponto, que é obviamente o mais delicado. Porque passa
por questões de gosto, sempre temporalmente condicionadas, mas que se alicerçam
em evidências que facilmente se generalizam. E neste plano devo reconhecer que os
gostos do tempo não levam à valorização de uma poesia como a de Manuel Alegre.
E compreendo que um autor que viveu o início do seu trabalho numa espécie de
sintonia mágica com os sentimentos do seu país (o que eu tentei dizer na frase
citada) se sinta profundamente atingido quanto verifica que as coisas mudaram,
e que nem sempre disponha dos instrumentos adequados para interpretar essa
mudança.
Para
mim, a poesia inicial de Manuel Alegre tinha a evidência de um tempo histórico.
Não sei hoje dizer se a sentia pelas razões políticas que nela existiam ou pelo
modo como ela as convertia em razões estéticas. A memória afetiva que tenho do
momento em que as li é algo que quero preservar na sua pureza e ambivalência. Faz
parte intrínseca do meu património emocional.
O
que gostaria de explicar demoradamente a Manuel Alegre é que se hoje tenho mais
dificuldade em escrever sobre a sua poesia é porque o mecanismo deixou pura e
simplesmente de funcionar. A poesia de Alegre, na minha opinião, vive agora
demasiado dos sinais exteriores de um momento mítico que já não existe senão na
memória afetiva de alguns de nós. E gostaria de dizer mais. Comparemos estes
"Sonetos do Obscuro Quê" com um dos mais espantosos livros de poesia
publicados em Portugal nos últimos tempos, "A Poeira Levada pelo
Vento" de Joaquim Manuel Magalhães. Neste encontro a vida escrita na sua
forma mais violenta e visceral. E é precisamente no livro de Alegre que descubro
os indícios de formalismo e neoacademismo. O indizível de Rilke não se diz,
mostra-se, e Alegre limita-se a dizê-lo. Uma poesia que diz o "obscuro
quê" tem de ser ela própria essa obscuridade que diz, e não a mera
exterioridade cantante desse dizer. O que sinto que me falta na atuaI poesia de
Manuel Alegre é precisamente a emoção, a raiva, o corpo, a luta renhida e
esfarrapada com as palavras, a vida como razão extrema.
“Bilhete
postal para Manuel Alegre”, crónica
de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do
jornal Público. Sábado,
2 de abril de 1994, p. 12.
“Bilhete postal para Manuel Alegre”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 2 de abril de 1994, p. 12. |
“Uma saudade de saudade, uma paixão”, crónica de Eduardo Prado Coelho
para o suplemento Leituras
do jornal Público.
Sábado, 3 de fevereiro de 1996, p. 12.
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CARREIRO, José. “Bilhete postal para Manuel Alegre - esta e outra crónica de Eduardo Prado Coelho”. Portugal, Folha de Poesia, 27-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/bilhete-postal-para-manuel-alegre-por.html
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