Os rimances têm, naturalmente, diversas versões, consoante a região ou a pessoa que os canta. Os próprios títulos variam, como é o caso de «Reginaldo» que, em Trás-os-Montes é «Gerineldo».
As versões atuais resultam quase sempre, da justaposição de excertos de vários rimances. A 7ª sequência de «Reginaldo» (Canção) é exemplo disso. Na verdade, trata-se da «Canção do Órfão» do rimance «O Prisioneiro». Tal é verificável, até, pela fuga à rima em -i.
REGINALDO
1
|
–
«Reginaldo, Reginaldo,
|
2
|
Pajem
del-rei tão querido,
|
3
|
Não sei
porquê, Reginaldo1
|
4
|
Te chamam
o atrevido.»
|
5
|
– «Porque
me atrevi, senhora,
|
6
|
A querer o
defendido.»2
|
7
|
– «Não
foras tu tão covarde
|
8
|
Que já
dormiras comigo.»
|
9
|
– «Senhora
zombais de mim
|
10
|
Porque sou
vosso cativo.»3
|
11
|
– «Eu não
no digo zombando,
|
12
|
Que
deveras te lo digo.»
|
13
|
– «Pois
quando o quereis, infanta,
|
14
|
Que vá
pelo prometido?»
|
15
|
– «Entre
las dez e las onze4
|
16
|
que el rei
não seja sentido.»5
|
17
|
Inda não
era sol posto,
|
18
|
Reginaldo
adormecido:
|
19
|
As dez não
eram bem dadas,
|
20
|
Reginaldo
já erguido.
|
21
|
Calçou
sapato de pano,
|
22
|
Que el rei
não fosse ouvido,
|
23
|
Foi-se à
câmara da infanta,
|
24
|
Deu-lhe um
ai, deu-lhe um gemido.
|
25
|
«Quem
suspira a essa porta,
|
26
|
Quem será
o atrevido?
|
27
|
– «É
Reginaldo, senhora
|
28
|
Que vem
pelo prometido.»
|
29
|
–
«Levantai-vos minhas aias,
|
30
|
Que assim
Deus vos dê marido!
|
31
|
E ide
abrir mansinho a porta
|
32
|
Que el-rei
não seja sentido.»
|
33
|
Vela o
pajem toda a noite...
|
34
|
Por manhã
é adormecido;
|
35
|
Chamava o
rei que chamava6
|
36
|
Que lhe
desse o seu vestido:
|
37
|
–
«Reginaldo não responde,
|
38
|
alguma tem
sucedido!
|
39
|
Ou está
morto o meu pajem
|
40
|
Ou grande
traição há sido.»7
|
41
|
Responderam
os vassalos8
|
42
|
Que tudo
tinham sentido:
|
43
|
– «Morto
não é Reginaldo,
|
44
|
de sono
estará perdido.»
|
45
|
Vestiu-se
el-rei muito à pressa,
|
46
|
E leva um
punhal consigo9
|
47
|
Vai correndo
sala e sala,
|
48
|
Abrindo
porta e postigo,
|
49
|
Chega ao
camarim da infanta,
|
50
|
Entrou sem
fazer ruído.
|
51
|
Dormiam
tão sossegados
|
52
|
Como
mulher e marido.
|
53
|
De nada do
que se passava
|
54
|
De nada
davam sentido.
|
55
|
Acudiram
os vassalos,
|
56
|
Que viram
a el-rei perdido:
|
57
|
– «Nunca
vossa majestade
|
58
|
Mate um
homem adormecido.»10
|
59
|
Tira
el-rei seu punhal de oiro,
|
60
|
Deixa-o
entre os dois metido,
|
61
|
O cabo
para a princesa.
|
62
|
Para o Reginaldo
o bico.
|
63
|
Ia-se a
virar o pajem,
|
64
|
Sentiu-se
cortar no fio:11
|
65
|
– «Acorda
já, bela infanta,
|
66
|
Triste
sono tens dormido!
|
67
|
Olha o
punhal de teu pai
|
68
|
Que entre
nós está metido.»
|
69
|
– «Cala-te
daí Reginaldo,12
|
70
|
Não sejas
tão dolorido;13
|
71
|
Vai já
deitar-se a seus pés,
|
72
|
Que el-rei
é bom e sofrido.14
|
73
|
Para o mal
que temos feito
|
74
|
Não há
senão um castigo;15
|
75
|
Mas se
el-rei mandar matar-me,
|
76
|
Eu hei-de
morrer contigo.»
|
77
|
– «Donde
vens, ó Reginaldo?»16
|
78
|
– «Senhor,
de caçar sou vindo.
|
79
|
– «Que é
da caça que caçaste,
|
80
|
Reginaldo
o atrevido?»
|
81
|
– «Senhor
rei, da caça venho,
|
82
|
Mas não a
trago comigo;
|
83
|
Que o
trazer caça real17
|
84
|
A vassalo
é defendido.
|
85
|
Só vos
trago uma cabeça,
|
86
|
A minha:
dai-lhe o castigo.»
|
87
|
– «Tua
sentença está dada,
|
88
|
Morrerás
por atrevido.»
|
89
|
Vedes hora
o bom do rei
|
90
|
Dando
voltas ao sentido:
|
91
|
– «Se mato
a bela infanta,
|
92
|
Fica o meu
reino perdido...
|
93
|
Para matar
Reginaldo,
|
94
|
Criei-o de
pequenino...
|
95
|
Metê-lo-ei
numa torre18
|
96
|
Por
princípio de castigo.»
|
97
|
–
«Dizei-me vós, meus vassalos,
|
98
|
Pois tudo
tendes ouvido,
|
99
|
Que mais
justiça faremos
|
100
|
Deste
pajem atrevido?»
|
101
|
Respondem
os condes todos,
|
102
|
E muito
bem respondido:
|
103
|
– «Pajem
de rei que tal faz,
|
104
|
Tem a
cabeça perdido.»19
|
105
|
Já o metem
numa torre,20
|
106
|
Já o vão
encarcerar.
|
107
|
Mas ano e
dia é passado,
|
108
|
E a
sentença por dar.
|
109
|
Veio a mãe
de Reginaldo
|
110
|
O seu
filho a visitar:
|
111
|
– «Filho,
quando te pari
|
112
|
Com tanta
dor e pesar,
|
113
|
Era um dia
como este,
|
114
|
Teu pai
estava a expirar.
|
115
|
Eu coas
lágrimas nos olhos,
|
116
|
Filho, te
estava a lavar;
|
117
|
Cabelos
desta cabeça
|
118
|
Com eles
te fui limpar.21
|
119
|
E teu pai
já na agonia,
|
120
|
Que me
estava a encomendar:22
|
121
|
Enquanto
fosses pequeno
|
122
|
De bom
ensino te dar,
|
123
|
E depois
que fosses grande
|
124
|
A bom
senhor te entregar.
|
125
|
Ai de mim,
triste viúva,
|
126
|
Que te não
soube criar!23
|
127
|
A el-rei
te dei por amo,
|
128
|
Que melhor
não pude achar:
|
129
|
Tu vais
dormir coa Infanta,
|
130
|
De teu
senhor natural!24
|
131
|
Perdeste a
cabeça, filho,
|
132
|
Que el-rei
ta manda cortar!...
|
133
|
Ai! meu filho,
antes que morras,
|
134
|
Quero
ouvir o teu cantar.»
|
135
|
– «Como
hei-de eu cantar, mi madre25
|
136
|
Se me
sinto já finar?»
|
137
|
– «Canta,
meu filhinho, canta,
|
138
|
Para haver
minha bênção,
|
139
|
Que me
estou lembrando agora
|
140
|
De teu pai
nesta prisão.
|
141
|
Canta-me o
que ele cantava
|
142
|
Na noite
de São João;
|
143
|
Que tantas
vezes mo ouviste
|
144
|
Cantar co
meu coração.»
|
145
|
– «Um dia
antes do dia
|
146
|
Que é dia
de São João,
|
147
|
Me
encerraram nestas grades
|
148
|
Para fazer
penação.26
|
149
|
E aqui
estou, pobre coitado,
|
150
|
Metido
nesta prisão,
|
151
|
Que não
sei quando o sol nasce,
|
152
|
Quando a
lua faz serão.»27
|
153
|
De suas
varandas altas
|
154
|
El-rei
estava a escutar;
|
155
|
Já se vai
onde a Princesa,
|
156
|
Pela mão a
foi buscar:
|
157
|
– «Anda
ouvir, ó minha filha,
|
158
|
Este tão
lindo cantar,
|
159
|
Que ou são
os anjos no céu,
|
160
|
Ou as
sereias no mar.»
|
161
|
– «Não são
os anjos no céu,
|
162
|
nem as sereias
no mar,
|
163
|
mas o
triste sem ventura
|
164
|
a quem
mandais degolar.»
|
165
|
– «Pois já
revogo a sentença
|
166
|
E já o
mando soltar;
|
167
|
Prende-o
tu, Infanta, agora,
|
168
|
Pois
contigo há-de casar.»
|
Romanceiro, volume II, 1852, Almeida Garrett
Mem-Martins, Europa-América, 1992, p, 107, s.
Mem-Martins, Europa-América, 1992, p, 107, s.
_____________________________
(1) A lição da Estremadura e muitas outras omitem estes seis versos, e completam a primeira cópia com estes outros dois:
Bem puderas, Reginaldo
Dormir um dia comigo.
Dormir um dia comigo.
A adotada no texto é do Alentejo.
(2) querer o defendido ‑ querer o proibido.
(3) vosso cativo – criado; preso de amor.
(4) Entre la uma e as duas
Quando el-rei esteja dormindo. – Alentejo.
Quando el-rei esteja dormindo. – Alentejo.
(5) seja sentido – sinta.
(6) Lá por sobre a madrugada
Pede el-rei o seu vestido. – Alentejo.
Pede el-rei o seu vestido. – Alentejo.
(7) Ou traição tem cometido. – Estremadura.
Ou traição me há cometido. – Beira Alta.
(8) Acode dali um pajem
Que é de Reginaldo amigo:
«Não é morto Reginaldo
Nem traição tem cometido.
Então está Reginaldo
Com a princesa dormindo». – Beira Baixa.
Que é de Reginaldo amigo:
«Não é morto Reginaldo
Nem traição tem cometido.
Então está Reginaldo
Com a princesa dormindo». – Beira Baixa.
(9) Leva um traçado consigo. – Estremadura.
(10) Dê num homem adormecido. – Minho.
(11) no fio – no gume do punhal.
(12) Vai-te deitar, Reginaldo,
A seus pés muito rendido:
Que el-rei tem bom coração
E te há-de casar comigo. – Beira Baixa, Estremadura.
A seus pés muito rendido:
Que el-rei tem bom coração
E te há-de casar comigo. – Beira Baixa, Estremadura.
(13) dolorido ‑ assustado
(14) sofrido – com experiência; compreensivo.
(15) um castigo. Mas – o casamento. Mas
(16) Estas três coplas são omissas em todas as lições, salvo na do Alentejo e em uma das do Porto.
(17) caça real – a princesa.
(18) A lição do Alentejo termina o romance aqui com esta copla.
– «Levanta-te, ó Reginaldo,
Reginaldo atrevido,
O castigo que te dou
É que seja seu marido.»
Reginaldo atrevido,
O castigo que te dou
É que seja seu marido.»
Quereria o pérfido menestrel pôr um epigrama na boca de sua real majestade?
Outra lição da mesma província continua ainda depois:
Responderam os vassalos,
Que Reginaldo tem tido!
Que tudo tinham sentido:
Até aqui pajem del-rei,
– «oh! Quem teria a fortuna
Agora filho querido! – Alentejo.
Que Reginaldo tem tido!
Que tudo tinham sentido:
Até aqui pajem del-rei,
– «oh! Quem teria a fortuna
Agora filho querido! – Alentejo.
(19) tem a cabeça perdido – perdeu a cabeça.
(20) Só as versões do Ribatejo trazem este episódio da torre.
(21) Pensamento favorito dos menestréis populares, que se encontra repetido em muitos dos nossos romances e xácaras.
(22) encomendar – recomendar.
(23) Ensinar. – Ribatejo.
(24) de teu senhor natural –filha do teu senhor.
(25) Mãe minha. – Ribatejo.
(26) sofrer penação – sofrer castigo.
(27) Em uma lição ultimamente vinda da Beira Alta vem o episódio da prisão com mais uma copla neste cantar do preso. Aqui ponho a dita copla por sua singularidade, apesar de se conhecer nela visível interpolação, e desarmonia de estilo e sentido. Imagino que será fragmento de outra xácara ou cantiga segundo tantos encontram em muitas delas:
Tenho aqui dois passarinhos
Que me trazem alcanfores;
Eles vão e eles vêm
Com novas dos meus amores,
Alcanfores? e trazer alcantores? quid?
Que me trazem alcanfores;
Eles vão e eles vêm
Com novas dos meus amores,
Alcanfores? e trazer alcantores? quid?
TEXTO DE APOIO
Será este Reginaldo ou Eginaldo, o galante Eginard francês que os nossos traduziram assim, bem como de Bernard fizeram Bernal e Bernaldo, de Gerard Giraldo? E é este o celebrado secretário do Imperador Carlos Magno, de cujos muito românticos, porém mui poucos platónicos, amores com a filha de seu augusto amo, estão cheias as histórias da Meia-Idade? Tema constante de trovadores e poetas até quase aos nossos dias em que a suave e melancólica musa de Millevoye ultimamente o remoçou no seu mais admirado poema.
Se deste é que aqui se trata – e eu creio que sim – vemos que o romance popular conta o caso mui diferente do que os poetas e escritores do norte o referem. É bem sabido que, segundo esses, a namorada princesa, quando o feliz Eginaldo saía da sua câmara, um dia de madrugada de inverno e com a neve alta e recém-geada pelos átrios e jardins do palácio, o tomara ela aos ombros para que não ficassem impressas na neve as delatoras pegadas do amante. O que descobrindo por acaso o Imperador, que se levantara antes do sol, por tal modo se enternecera com aquela prova de generosa dedicação, que logo lhes perdoara a ambos, casando o ditoso secretário com a namorada princesa.
Talvez o que primeiro contou a história ao nosso povo e lha rimou para seus cantares, omitiu a cena da neve por menos familiar e comum nestes climas do sul; ou talvez a ignorasse, ou porventura não era ainda tão popular por lá como depois veio a ser. Fosse como fosse, este Reginaldo parece ser o Eginard de Carlos Magno, esta infanta a princesa sua filha, este rei o Imperador seu pai. A troco da bela cena da neve que nos falta, temos a visita da mãe de Reginaldo à prisão, e o lindíssimo solau que lhe ele canta. O que tudo parece composto nos mais ternos e desgarrados modos de Bernardim Ribeiro, ou de Crisfal. E temos por fim o rei chamando a filha ao balcão para ouvir cantar o preso: cena verdadeiramente homérica e de uma graça tão simples e tocante como não há outra que o seja mais.
Estou que nos veio de França este romance: não se encontra nas coleções castelhanas; e entre nós é dos que andam mais desfigurados e corruptos. Eu tive de reunir vários fragmentos para o restituir. No Alentejo chamam-lhe Generaldo, no MinhoGirinaldo; Eginaldo diz uma cópia da Beira, e outra que me veio do Porto trazia por título – Girinaldo o atrevido.
As variantes não são muitas, porque não pude considerar como tais as ligaturas absurdas com que partes do romance andavam cosidas a partes igualmente desconjunta das de outros, dos quais tive de o estremar para reunir o que felizmente achei que acertava e quadrava num todo completo.
São infinitas e muito disparatadas as variantes que desprezei na maior parte ao emendar conjeturalmente o romance. Também não valia a pena de as mencionar em nota. Fiz somente exceção a favor de algumas que juntei por mais consideráveis.
Na citada coleção do bispo Percy* vem uma balada inglesa que tem por títuloLittle Musgrave and Lady Barnard, história bastante diferente desta, mas há no princípio uns dizeres tão semelhantes aos nossos, que mais me confirmam nesta crença em que estou de que o verdadeiro romance antigo era de todos os países, como a todos pertencia o menestrel, o trovador, o cavaleiro andante, cuja pátria era o mundo. Fosse onde fosse, era sua a terra ou o castelo onde havia façanhas que fazer ou celebrar – aventuras para correr ou cantar. O romance Inglês é dos que reconhecem por mais antigos os coletores daquela nação.
Almeida Garrett, Romanceiro, volume II, 1852,
Mem-Martins, Europa-América, 1992, p, 107, s.
Mem-Martins, Europa-América, 1992, p, 107, s.
______________
* Percy's Reliques, XL sece. III, book the first.
ANÁLISE DO RIMANCE
«Reginaldo»
Da responsabilidade de Almeida Garrett, 1852
Romanceiro, volume II, Mem-Martins, Europa-América, 1992, p, 107, s.
Da responsabilidade de Almeida Garrett, 1852
Romanceiro, volume II, Mem-Martins, Europa-América, 1992, p, 107, s.
Trata-se de um romance tradicional ou rimance, na versão trabalhada por Almeida Garrett.
Os rimances são poemas de características épico-líricas que se costumavam cantar, acompanhados de instrumentos de corda, ora em danças corais, ora em reuniões de recreio ou trabalho. Ficaram na tradição oral e cada um deles tem inúmeras versões, espalhadas pelas mais diversas zonas do país e da Península.
O tema Amor, tratado em «Reginaldo», desenvolve-se abordando as relações amorosas pré-matrimoniais e suas consequências:
Uma princesa convida um pajem a dormir com ela. Apanhados em flagrante pelo rei, o «atrevido» é preso numa masmorra. Mas, sensibilizado ao ouvir um diálogo (cantado) entre o cativo e a sua mãe ‑ que o visitara na prisão ‑, o rei liberta-o e dá-o em casamento à filha.
Vejamo-lo mais pormenorizadamente, através do resumo das várias sequências narrativas:
1. Sedução. A infanta, apaixonada por Reginaldo, convida-o a dormir com ela, provocando-o na sua valentia (v. 1 a 16).
2. Encontro. À hora combinada, Reginaldo vai ter ao quarto da princesa e passam a noite juntos (v. 17 a 34).
3. Descoberta. Desconfiado, o rei entra no quarto, verifica o que se passa e deixa um punhal entre eles (v. 35 a 62).
4. Despertar. Quando acordam, Reginaldo fica aterrorizado. Ela está disposta a tudo (v. 63 a 76).
5. Interrogatório. O rei interroga Reginaldo que lhe responde, ambiguamente, ter ido à caça (v. 77 a 78).
6. Dilema. O rei, perturbado, pede conselho e manda-o encerrar numa torre-prisão, como «princípio de castigo» (v. 89 a 104).
7. Canção. A mãe de Reginaldo vem visitá-lo e pede-lhe que cante, antes de morrer (v. 105 a 152).
8. Decisão. O rei, ouvida a canção, decide-se pelo casamento da princesa com o pajem (v. 153 a 168).
O espaço onde decorre a ação é referido sem preocupações descritivas. Trata-se de um palácio real com torres (v. 95) que servem de prisão gradeada e escura (v. 150 s.), «varandas altas» (v. 153), salas com «porta e postigo» (v. 47 s.) e aposentos diversos (da infanta ‑ v. 23 31; 49 ‑ e suas aias; do rei e seus vassalos -‑v. 35 s.).
Evidenciam-se, em termos de espaço social, os valores tradicionais da corte medieval, a harmonia e a fidelidade, aqui com esbatimento de barreiras hierárquicas, sugerindo, por exemplo na conduta do rei, uma certa vivência democrática.
A história, que se dá num período de poucos anos, contempla momentos de passagem lenta do tempo, em que predomina o psicológico (ansiedade de Reginaldo quando se apercebe de que foram descobertos (v. 65); do rei, que dá «voltas ao sentido» (v. 90); e da mãe, ao recordar as tristezas familiares (v. 111 s.), e de passagem rápida, ou melhor, dita em poucas palavras (elipse), «ano e dia é passado/ e a sentença por dar», igualmente com grande carga psicológica (v. 107 s.).
As personagens que dão vida a esta história são: umas, principais -‑ Infanta, Reginaldo e Rei; outras, secundárias -‑ mãe de Reginaldo – e simples figurantes -‑ aias e vassalos.
A sua caracterização física direta fica-se por referências mínimas, quase nulas: a infanta era «bela (v. 65), Reginaldo usa «sapato de pano» (v. 21). Deduz-se, no entanto, (caracterização física indireta) que a infanta e o pajem eram jovens saudáveis e que a mãe deste usava cabelos compridos (v. 117 s.).
Infanta. Sedutora, quebra os tabus, alicia o pajem (v. 7 s.) e «compra» cúmplices na figura das aias (v. 30). Lúcida, reconhece o mal feito (v. 73). Responsável, assume as consequências do ato realizado (v. 74). Decidida, dispõe-se a morrer, caso tal aconteça ao parceiro (v. 76), e enfrenta o pai, acusando-o de mandar «degolar» um «triste, sem ventura », o pajem da sua paixão (v. 166 s.).
Reginaldo. Pajem, querido do rei (v. 2), é conhecido como «atrevido » (v. 4). Voluntarioso, reconhece o facto (v. 5 s.) e aceita o desafio da infanta (v. 13 s.; 21; 33). Responsável, assume as consequências do ato praticado (v. 85 s.), embora lamentando a sua sorte (v. 135 s.; 145 s.).
Rei. Assumindo o seu papel de senhor (v. 35 s.), pai (v. 59 s.) e juiz (v. 88 s.), investiga e torna conhecimento direto do sucedido (v. 45 a 50), aceita a opinião dos vassalos (v. 57 s.) e decide com moderação, protelando (v. 59 s.). «Bom e sofrido» (v. 72), ouve o réu (v. 77 s.), decreta a sentença de morte (v. 88), mas, compenetrado do seu triplo papel, dá «voltas ao sentido» (v. 90), escuta de novo os conselheiros (v. 103 s.) e ordena, «por princípio de castigo» (v. 95 s.) a prisão do pajem. Por fim, rende-se às lamentações expressivas do réu (v. 145 s.) e ao posicionamento crítico da filha: «Prende-o tu, infanta, agora,/pois contigo há-de casar» (v. 167 s.).
A linguagem utilizada no texto, transcrito e retocado por Almeida Garrett, reflete bem as marcas do tempo da escrita, sem, no entanto, esconder a origem tradicional do rimance, com seus traços característicos. Por detrás desta roupagem romântica, é evidente uma mentalidade consentânea com o Humanismo Renascentista, a recordar, por exemplo, o Auto da Índia, de Gil Vicente, no que respeita à capacidade de iniciativa da mulher.
O efeito mágico do canto liberta Reginaldo, de acordo com o reconhecimento cultural da função estética e social da arte (vv. 152-167).
Este rimance, pertencendo, embora, ao género narrativo – conta uma história -‑, reúne num único texto os três géneros literários. O jogo conotativo dá-lhe, definitivamente, o tom e a melodia típicos e necessários ao prazer de ler.
António Moniz e Olegário Paz, Ler para ser. Percursos em Português B. 10º Ano. Lisboa, Editorial Presença, 1993, pp. 42-44
Pan-Hispanic Ballad ProjectProyecto sobre el Romancero pan-hispánicoArchivo Internacional del Romancero pan-hispánicoUna base de datos de versiones de romances antiguos y modernos
0023:129 Gerineldo (í-o) (ficha nº: 7194)
Versión de S. Miguel (isla de S. Miguel, Açores, Portugal). Recogido antes de 1869. Publicada en Braga 1869, (y Braga 1982), 265267. Reeditada en Hardung 1887, I. 103106; Soares de Sousa 1902, 323326; RGP I 1906, (reed. facs. 1982) 201-204; RTLH 6-8 (1975-1976), 53-54; Cortes-Rodrigues 1987, 175177 y Carinhas 1995, II. 57 y RºPortTOM 2003, vol. 3, nº 1244, pp. 461-462. © Fundação Calouste Gulbenkian. 082 hemist. Música no registrada.
Versión de S. Miguel (isla de S. Miguel, Açores, Portugal). Recogido antes de 1869. Publicada en Braga 1869, (y Braga 1982), 265267. Reeditada en Hardung 1887, I. 103106; Soares de Sousa 1902, 323326; RGP I 1906, (reed. facs. 1982) 201-204; RTLH 6-8 (1975-1976), 53-54; Cortes-Rodrigues 1987, 175177 y Carinhas 1995, II. 57 y RºPortTOM 2003, vol. 3, nº 1244, pp. 461-462. © Fundação Calouste Gulbenkian. 082 hemist. Música no registrada.
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--Gerenaldo, Gerenaldo, pajem do rei bem querido,
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porque não falas de amores que estás aqui só
comigo?
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--Por eu ser vosso vassalo, senhora, zombais
comigo?
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--Gerenaldo, eu não zombo, falo deveras contigo.
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--Vós quando quereis, senhora, que vá ao vosso
serviço?
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--Das dez horas para as onze, quando o rei `stiver
dormindo.--
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Ainda não eram dez horas, Gerenaldo já erguido,
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sapatinho descalçou, a fim de não ser sentido,
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foi à sala da infanta, deu um ai mui` dolorido.
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--Quem é esse cavaleiro, das armas tão atrevido?
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--É Gerenaldo, senhora, que vem ao vosso serviço.
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--Levanta os cortinados, vem-te aqui deitar
comigo,
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de beijinhos e abraços, hás-de ser mui` bem
servido,
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nada mais t` eu não prometo que entre nós será
sentido.--
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Dali mais a poucochinho, o rei andava erguido,
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chamando por Gerenaldo que lhe desse o seu
vestido.
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Andou de sala em sala, de postigo em postigo.
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--Gerenaldo não me fala, Gerenaldo é falecido,
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ou Gerenaldo é morto, ou traição tem cometido,
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ou me está com a infanta, a prenda que eu mais
estimo.--
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Alevantou-se o bom rei, o seu vestido vestiu,
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seus sapatos na mão, p`ra o passo não ser sentido.
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Fora de passo em passo, de castilo em castilo,
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foi à cama da princesa, aonde ele nunca ia,
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estavam cara com cara, como mulher com marido.
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--Para matar Gerenaldo, criei-o de pequenino,
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para matar a infanta, meu reino fica perdido.--
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Pegara do seu punhal, entre eles ficou metido.
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--Acordai, senhora infanta, que o nosso mal é
sabido,
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o punhal de vosso pai, entre nós está metido.
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--Cal`-te, cal`-te, Gerenaldo, que meu pai é meu
amigo,
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se ele te mandar matar, aplico que és meu marido,
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se ele te mandar prender, não hás-de ser mal
servido,
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se ele te perguntar, não lhe negues o partido.--
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--Donde vens, ó Gerenaldo que vens tão
descolorido?
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--Venho de regar a horta, pela manhã do rocio.
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--Não me mintas, Gerenaldo, que nunca me hás
mentido.
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--Venho de caçar a rola, da outra banda do rio.
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--A rola que tu caçaste, já ta tinha prometido,
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pois toma-a por tua mulher e ela a ti por marido,
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se queria outro mais alto, tivera ela juízo.--
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Variantes: -6b estiver (1906); -15a daí (1906).
INTERTEXTUALIDADE (PARÓDIA)
Gerinaldo, Meu Petiz
- Pajem do imperador,
Gerinaldo, meu petiz,
vem ter comigo esta noite, passar uma hora feliz,
o meu pai não estará cá, vai pra casa do juiz,
ficaremos só os dois, vou mostrar-te uns bikinis.
- Mas um dia sereis vós, a minha imperatriz?!
Fica mal dormir c'um pajem, vão chamar-te meretriz,
- Entre as dez e as onze, na casa da embaixatriz,
eu estarei lá no jardim, a ouvir os cris-cris.
Ainda não eram nove, já lá está o seu petiz:
- Oh pajem, que corpo lindo, foi o que eu sempre quis!
O rei, esse não andava a trabalhar com o juiz,
era desculpa mal dada, pra dormir com a embaixatriz.
Acorda a meio da noite, para fazer uns chichis,
desce abaixo ao jardim, vai regar uma raiz.
Mas espantado olha prò lado, para trás do chafariz,
está lá o seu Gerinaldo e a sua filha Beatriz.
- Que é que eu faço, Gerinaldo?! Vou cortar-te os kiwis!
Mas pensando bem melhor, ele tem modos tão gentis…
Vou deixar a minha espada, entre os dois corpos fabris,
amanhã quando acordarem, pomos os pontos nos is.
Gerinaldo acorda cedo, tem uma espada no nariz,
levanta-se com cuidado, não quer uma cicatriz.
- Olha, a espada de meu pai! Tem aqui a flor-de-lis.
Não fujas, vai ter com ele, vamos ver o que ele diz.
- Donde vens, ó Gerinaldo? Estás com cara infeliz?
- Venho da caça, senhor, apanhei uma perdiz.
-Gostas de caçar à noite, mas que mal é que eu te fiz?
Estou farto das tuas histórias, das desculpas infantis.
Vais casar com a minha filha, a futura imperatriz,
de pajem passas a genro, do Imperador Luís.
Romanceiro tradicional: versões
factícias / Nuno Neves ; rev.
Fernando Villas-Boas. – 1.ª ed. - Algés: Publicações Serrote, 2011. - 64 p.:
il. ; 21 cm. - ISBN 978-989-65745-3-3
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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/06/08/reginaldo.aspx
Última atualização: 2018-07-22]