Vida que às costas me levas Porque não dás um corpo às tuas trevas?
Porque não dás um som àquela voz que quer rasgar o teu silêncio em nós?
Porque não dás à pálpebra que pede aquele olhar que em ti se perde?
Porque não dás vestidos à nudez que só tu vês?
Natália Correia, Poemas, 1955
[…] quanto à relação entre a palavra e as coisas do mundo, à necessidade de dar forma às coisas, tem-se “Mãos feridas na porta dum silêncio” (1993, v. 1, p. 68), de Natália Correia […].
Natália constrói um poema em estrutura de vocativo, apresentando quatro estrofes interrogativas, nas quais o eu pergunta a um tu, a “vida”, o motivo de ela não dar forma às coisas. A segunda estrofe é a que mais se aproxima da problemática levantada em “Rosa” [poema da brasileira Orides Fontela], questionando o facto de a vida não atender ao desejo de uma voz interior desse eu, a qual anseia “rasgar” o silêncio arraigado nos seres pela vida.
A linguagem verbal não é tratada como algo capaz de afastar as pessoas da integração total com o mundo, mas como meio de expressar o que a natureza calou (a intermediação ou inter-relação entre os seres) e, deste modo, como meio de integrar o ser com o mundo. Na segunda estrofe, o eu lírico que se dirige à vida coloca-se, inclusive, como “nós”, assumindo a condição igualitária de todos os outros seres.
Por meio dos dois poemas, é possível refletir sobre o que seria das relações humanas se não existisse a linguagem verbal, a língua. Como se comunicar de maneira precisa? Somente por meio da naturalidade dos cinco sentidos, como os animais? “Mãos feridas na porta dum silêncio” mostra, portanto, que em Natália também está presente uma preocupação de ordem existencial, embora voltada um pouco mais para a relação com o poeta.
Essa relação pode ser melhor observada em “Poema limo” (1993, v. 1, p. 335) da obra O vinho e a lira (1966), que instiga a uma reflexão sobre o papel do homem-poeta no mundo.
Baile de corpos intermédios com luas mortas nos braços sem desenlace e sem consequência.
Dança da solidão de mim e de outros comigo no centro ignorada. Bailado das palavras com suportes de morte imediata.
Rio sem águas e sem fundo com margem numa boca emudecida. Silvo de serpentes que rastejam famintas para o vértice da vida onde me aparto de cansaços inúteis.
Natália Correia, “Biografia”, segunda parte de Poemas, 1955.
Compreendendo o poeta como um profeta ou um ser iluminado (“mosca iluminada”) na captura e configuração de um mundo particular, a maioria dos poemas da portuguesa [Natália Correia] tem uma linguagem ousada, por vezes fechada em seu hermetismo. Não é que se baste em si mesmo, mas um poema de Natália pode tornar-se incompreensível pela tendência a associações surreais e, sobretudo, pelo obscurecimento dos sentidos reforçado pela escolha lexical.
[…] em “O poeta e as víboras”, o ser, que é o próprio eu lírico, nesse caso, feminino, exprime em tom disfórico uma situação desfavorecida de solidão por encontrar-se ignorado no centro do “baile”, tentando lidar com as “víboras” que rastejam. Por revelar no terceiro verso da segunda estrofe uma relação com as palavras e, no começo da quarta estrofe, uma associação entre rio e margem, possivelmente espaço de criação literária e suporte (“boca emudecida”) que liga à concretude da criação (“vértice da vida”), o eu feminino sugere ser uma poeta e, as víboras, as palavras, que, por se apresentarem na posição horizontal, “rastejam”. Com esse poema, Natália expõe um certo hermetismo mais uma vez fixado na imagem do eu feminino […].
D’A República (1965) de Platão, Natália conserva a ideia de que o poeta é “coisa leve, alada e sagrada”, não a ideia de ser irresponsável ou nefasto à coisa pública. Uma das mais significativas dimensões de sua poesia é a sistemática reabilitação da mulher vidente e pacificadora, capaz de levar a sociedade à recuperação de valores esquecidos e junto dos quais vive, desde o princípio dos tempos. Ignorado pela conjunta nobreza do amor e do desejo, pela força geradora do feminismo profundo, o mundo (a Europa, o Ocidente, a Lusitânia) entrou em desequilíbrio, levado pela “masculina” embriaguez de uma cisão que só poderia ter conduzido ao olvido dos “nutrientes da vida”, à mutilação do corpo e dos sentidos, ao jugo da racionalidade, dos despotismos e da besta nuclear (a força do mal).
Natália critica o sonho papal de uma Europa reunificada pelo cristianismo, adotando uma atitude pluralista no pensar o regresso da religião. Ao elogiar o politeísmo, em nome de um sagrado remanescente, a proposta de Natália é ultrapassar a alternativa do ateísmo e do monoteísmo. Seu combate é contra o totalitarismo e o judeu-cristianismo. Para ela, o paganismo sacraliza a vida, o múltiplo, o segredo maternal da terra, o recomeço perpétuo do jogo do mundo que Heráclito, Proclo e Spinoza adivinhavam em suas reflexões metafísicas e teológicas.
José Augusto Mourão (“Literatura e cristianismo” in Jornal Letras & Letras. Lisboa, n.º 26, fevereiro de 1990. Dossier, p. 11) sustenta que o sonho da “casa comum europeia” passa pela relativização das ideologias e das religiões e pela aceitação de um “mínimo comum” não certamente religioso. Na opinião do crítico português, a poeta parece ser a única protagonista de um debate inexistente a respeito de qual é o ideal para a sociedade. Tentando justificar uma possível posição anacrónica de Natália, Mourão volta-se para a literatura, afirmando que o mundo das letras é um mundo possível, aberto, entreaberto a todos os milagres, partindo da radicalidade do desejo humano, do debate com inumeráveis cristalizações idolátricas de cultura. Estas questões serão retomadas em momento posterior do trabalho e, em especial, nas reflexões finais. […]. Em Natália, o questionamento de temas ligados à cultura histórico-literária, sobretudo portuguesa, é inevitável […].
A linguagem de Natália […] é caudal, com versos longos que variam em sua métrica e com uma oscilação na presença de rimas, dispostas alternadamente entre ricas e pobres, toantes e consoantes. […]
De um modo geral, a poesia de Natália apresenta muitas faces quanto ao posicionamento lírico, mas pode-se elencar como embasadores de sua obra alguns aspetos configuradores de uma pessoalidade ou subjetividade intensas na escrita poética. Há uma vocação lírica ou desejo de autoafirmar-se pela poesia, que, rememorando Os Lusíadas, é motivo de orgulho em relação à terra de origem, mas tensionando as imagens pelo viés sarcástico. O narcisismo com que se recorta a voz lírica é um sentimento de superioridade da poeta, mas também sua aguda ilusão.
O apego de Natália à terra de origem, apesar de ela não ser natural do continente, mas da Ilha de São Miguel, faz despontar um sentimento de “natalidade”, cuja ambiguidade mescla misticismos saudosistas e irreverência amarga. O sentimento doloroso da existência, gerando uma inquietação permanente voltada ao desejo de recriação da vida, faz brotar os poderes instituídos e os sistemas racionalistas enformadores do conhecimento do mundo.
A escrita que conduz a poesia de Natália (e não a voz lírica, de intuito semântico, estudo realizado por Melo e Castro, “O dom da poesia e a sua dona: a propósito da poesia de Natália Correia”. In: Voos da fénix crítica. Lisboa, Cosmos, 1995. p. 157-162) é compreendida pela crítica sob, pelo menos, três óticas: a que vê na ironia, no sarcasmo e nas associações fónicas e imagéticas traços do estilo surrealista; a que considera a recorrência a ambiguidades, passagens obscuras, antíteses e hipérboles e também ao perspetivismo (perceção multifacetada) como uma identificação com o barroco; e a que focaliza a tentativa de recriar a vida como uma preferência literária de base romântica.
[...]
Das três óticas apontadas pela crítica para caracterizar a escrita de Natália, a que se volta para o barroco é a mais coerente com a estrutura pela qual se arranja a obra da poeta, porque, atentando aos procedimentos semânticos de construção, como as associações criadas pela linguagem poética, eles mostram afinidade com a escrita barroca: antíteses, hipérboles, repetições, cultismo imagético, ambiguidades, perspetivismo. Destacam-se, também, aproximações com motivos temáticos: pessimismo, descontentamento cósmico, sentimento trágico referente à existência, exagero da individualidade e do engenho pessoal, refúgio na “torre de marfim” da arte obscura. Por outro lado, há ligações com o surrealismo, predominantemente no plano semântico. Mas não cabe identificar tais traços à luz dessas estéticas, pois não é essa a questão de que a presente dissertação se ocupa. O insulamento e o hermetismo da poesia de Natália não se explicam em função de seu engajamento em programas estéticos estabelecidos a priori. Seria mais adequado perceber os procedimentos estéticos como impulsos próprios de uma poética desafiadora de moldes e modelos. Falta à crítica, portanto, a capacidade de estabelecer distinções quanto à natureza da particularidade focalizada no objeto do estudo.
Com relação à lírica do século XX, sabe-se que, da modernidade até a contemporaneidade, ela tem como um dos traços principais a fragmentação do verso e o culto ao silêncio, iniciados por Stéphane Mallarmé (1842-1898). Apesar disso, tais direções de cunho experimental marcadas pela ousadia formal não interessam a Natália Correia, cuja poesia atende mais a necessidades internas (da própria linguagem e do próprio espaço cultural) para se fazer construir. […]
Se a presença de elementos culturais mistura-se à posição rebelde e transgressora do ser em Natália Correia, tal “subjetividade” ganha concretude graças ao tratamento crítico dado à linguagem.
*
[…] em Natália há um distanciamento entre o eu lírico (“o poeta”) e as palavras (“as víboras”), aspeto reforçado pela ideia de solidão no primeiro verso da segunda estrofe e, principalmente, pelo segundo verso, “comigo no centro ignorada” […].
Destaca-se um procedimento estratégico em Natália, para aumentar a sensação de distanciamento: o isolamento da expressão “comigo no centro isolada” em um só verso. O sentimento de desilusão pelo facto de que escrever resulta em “cansaços inúteis” é intensificado pelo adjetivo que fecha o poema, “inúteis” […]
[…] o eu lírico apresenta-se como poeta em uma relação tensiva (e intensa) com as palavras, em Natália […]
[…] em “O poeta e as víboras”, […] a “palavra” é considerada elemento disfórico, […] é excrescência quase desnecessária, mas fatal […].
DESTRUIÇÃO A coisa contra a coisa: a inútil crueldade da análise. O cruel saber que despedaça o ser sabido.
A vida contra a coisa: a violentação da forma, recriando-a em sínteses humanas sábias e inúteis.
A vida contra a vida: a estéril crueldade da luz que se consome desintegrando a essência inutilmente.
Orides Fontela (1940-1998)
Transposição, 1969
DO SENTIMENTO TRÁGICO DA VIDA Não há revolta no homem que se revolta calçado. O que nele se revolta é apenas um bocado que dentro fica agarrado à tábua da teoria.
Aquilo que nele mente e parte em filosofia é porventura a semente do fruto que nele nasce e a sede não lhe alivia.
Revolta é ter-se nascido sem descobrir o sentido do que nos há-de matar.
Rebeldia é o que põe na nossa mão um punhal para vibrar naquela morte que nos mata devagar.
E só depois de informado só depois de esclarecido rebelde nu e deitado ironia de saber o que só então se sabe e não se pode contar.
Natália Correia (1923-1993)
"Apontamentos", Poemas, 1955
ANÁLISE COMPARATIVA DOS POEMAS
As noções de apagamento do eu, inquietação existencial quanto à vida e à morte e equilíbrio semântico-formal encontram-se nos poemas “Destruição” (1988, p. 36), de Orides e “Do sentimento trágico da vida” (1993, v. 1, p. 100), de Natália, os quais, ao trazerem uma mesma questão lírica, um sentimento de destruição da vida, expõem um modo de escrita que reforça o projeto poético de cada autora.
O que permeia os dois textos é uma inquietação concernente à vida e ao seu fim, de maneira que, se por um lado a morte é explicitada como um momento almejado pelo homem para ele saciar sua curiosidade em relação ao que causa o fim da vida, por outro, ela é apenas sugerida ao longo do poema “Destruição”, alcançando uma maior indiciação nesse título, que lembra a cultura hebraica, para a qual “destruição” é uma metáfora da morte, conforme o “Livro das lamentações” da Bíblia sagrada cristã (1978, p. 911).
Em “Destruição”, não há um eu lírico manifesto explicitamente por meio de marcações da primeira pessoa e de gênero, mas uma voz que, ao não se mostrar, expressa diretamente as idEias referentes à temática enfocada. A impessoalidade contribui para intensificar uma construção sintática recorrente na poesia de Orides: a nominalização, que ocorre em expressões desprovidas de verbo e no emprego de orações subordinadas adjetivas. Nas três estrofes, não se fazem afirmações transparentes, mas apontamentos genéricos que retomam e renovam o embate entre duas forças desconhecidas: “a coisa contra a coisa”, “a vida contra a coisa” e “a vida contra a vida”.
“Do sentimento trágico da vida” apresenta construções mais específicas do que “Destruição”, deixando mais claro o facto de o adjetivo “trágico” do título corresponder à morte. A revolta e a rebeldia do homem para saber o que o mata justificam a especificidade mencionada porque, assim definidas, apresentam relações mais pontuais do que os elementos do poema de Orides. Nas cinco estrofes, a estrutura sintática em forma de períodos que, cortados, configuram os versos de toda uma estrofe, diminui a opacidade do texto se comparado com “Destruição”.
A diferença entre o posicionamento lírico do poema de Orides, mais enigmático, emblemático, metafórico, e o do poema de Natália, uma voz que se autoidentifica, leva ao reconhecimento de dois tipos coexistentes de textos: um no qual o problema é generalizado, outro em que é particularizado. No de Orides, mesmo no embate, há um distanciamento aparente da vida; no de Natália, uma inserção do eu lírico na problemática referente às etapas da vida.
Posicionamentos coexistentes refletem-se na linguagem poética: no primeiro poema, não se apresenta uma total delimitação precisa de diferentes sintagmas de um verso para o outro ou um em cada verso, como se observa na maior parte do poema da escritora portuguesa, em que se verificam oração constituinte (“que se revolta calçado”), no caso, subordinada adjetiva restritiva, separada de oração matriz (“Não há revolta no homem”), por exemplo, mas, assim como no distanciamento em relação à vida, em Orides, em que se nota, quanto ao conteúdo, a inevitabilidade do fim da vida e de circunstâncias desagradáveis para isso, na forma das estrofes da brasileira, de um verso para o outro, depreende-se uma quebra de sintagmas, como se, no próprio encadeamento visual do poema já se estivesse demonstrando a “quebra” da vida. Na primeira estrofe, “a inútil crueldade/ da análise. O cruel/ saber que despedaça/ o ser sabido”, o sintagma nominal “o cruel saber”, sujeito agente da oração, foi dividido em dois versos, figurativizando no texto escrito o “despedaçar” da vida, despedaçar este colocado entre aspas por advir de uma palavra do poema, a forma verbal conjugada “despedaça”, do quarto verso, a qual já marca a ideia de destruição, título do poema.
Em Orides, conforme observado, a posição de cada palavra nos versos tem um sentido específico correspondente à temática enfocada pelo texto. Ao longo das três estrofes, coincidências sonoras não ocorrem no fim dos versos, mas apenas sob a forma de aliterações, no interior de alguns desses versos. Na primeira estrofe, a aliteração se manifesta no primeiro verso com o fonema /k/ (“coisa”, “contra”, “coisa”); no quarto verso, o fonema é /s/ (“saber”, “despedaça”); e, no quinto verso, novamente /s/ (“ser”, “sabido”). Na segunda estrofe, a aliteração ocorre no primeiro verso, em /k/ (“contra”, “coisa”), e entre o primeiro e o segundo versos, em /v/ (“vida”, “violentação”). Na terceira, a recorrência encontra-se no primeiro verso, em /v/ (“vida”, “vida”), no terceiro verso, em /s/ (“se”, “consome”), e no quarto, em /s/ (“essência”). As marcações sonoras ocorrem, deste modo, ao longo de todas as cinco posições de versos, desde o primeiro até o quinto, o que significa, em relação aos outros versos sem aliterações, a existência de uma rutura com a sequência equilibrada de diferentes sons distribuídos ao longo do texto. Sugere-se a possibilidade de a quebra ou o fim da vida ocorrer também em qualquer momento do percurso.
No primeiro verso de cada estrofe, há a reiteração de dois extremos permeados pela preposição “contra”: a força maior a destruir a vida e o ser mortal. Na primeira estrofe, a força é vista como “coisa”, pois vem para provocar um acontecimento indesejado: a destruição. Também introduzido como “coisa”, o ser destruído é apenas uma matéria física passível de destruição. Na segunda estrofe, a força passa a ser identificada como “vida” e repete-se, assim, no último conjunto de versos, pois a partir do momento em que se chegou à essência da força, não é necessário sair dela, mas ao contrário, reforçá-la pela reiteração. Por outro lado, o ser mortal ainda é tratado como “coisa”, porque, no meio do caminho, insiste em não perder a matéria física (o corpo) e assumir apenas a forma da essência, a “vida”. Por fim, na terceira estrofe, o corpo é vencido, destruído e insurge-se como “vida”.
Considerando tais relações, entende-se que o “ser sabido” é o ser da coisa conhecida, resultado do ato de cognição analítica, pois saber equivale a matar, por meio da análise, o ser sabido. Nomear é mutilar e matar o ser porque, entre todas as escolhas (todos os seres), fez-se uma. Paradoxalmente, nomear é também dar vida.
Há, conforme o encadeamento textual, uma transformação das entidades configuradoras dos dois extremos que se embatem no poema. No último verso, por meio do advérbio “inutilmente”, a voz do poema manifesta um juízo de valor negativo em relação à transformação do ser mortal: a morte não é bem-vinda, pois a desintegração parece não melhorar a condição do ser. Repetidos no poema, os signos “inútil” e “inutilmente” vinculam-se à ideia de gratuidade da vida, revelada em sua condição absurda pela inteligência e pela morte.
À página 16 do livro Poesia e filosofia por poetas-filósofos em atuação no Brasil, de Alberto Pucheu (1998), quando reconhece haver muita poesia na filosofia, Orides faz uma referência a Heidegger, confessando tê-lo considerado como poesia. Estabelecendo uma aproximação com a filosofia, o poema “Destruição” leva a Heidegger, para quem o homem é um ser para a morte, a qual surge como uma conclusão da existência. O que o poema “Destruição” acrescenta a essa visão filosófica é que o conhecimento dos limites, das possibilidades e impossibilidades incita o homem à busca da essência da verdade, mesmo tendo consciência da inutilidade das descobertas para a mudança no ciclo vital.
A partir de tais correlações, é possível reconhecer, em “Destruição”, um posicionamento de base hegeliana referente ao embate entre a coisa e a vida e à consciência de que matar é dar a vida. Para Hegel, o que realmente existe é o verbo divino, chamado “Espírito”, e ele se realiza como um sujeito que se exterioriza no predicado Natureza, isto é, manifestando-se como “coisa” (substância, qualidade, relações de causa e efeito etc.). Ele é terra, água, ar, fogo, céu, astros, mares, minerais, vegetais, animais. Para conservar-se vivo, o ser natural (a coisa) precisa consumir os seres que o rodeiam: o espírito como Natureza nega-se a si mesmo consumindo-se a si próprio (os animais consomem água, plantas, outros animais, ar, calor, luz; as plantas consomem calor, água, luz; os astros consomem energia e matéria, etc).
Essa negação pelo consumo não é transformadora, pois ela se realiza para conservar as coisas. Entretanto, o Espírito se manifesta em outro predicado: a “Consciência”, que também busca conservar-se, porém o faz não pelo simples consumo das coisas naturais, mas pela negação da mera naturalidade delas. Um exemplo disso é que as apreciações humanas sobre uma árvore tornam-na não coisa, fazendo com que o Espírito negue-se como Natureza e afirme-se como Cultura. Negou-se o “ser-em-si”, tornando-o “ser-para-si”. A negação dialética não significa necessariamente a destruição empírica ou material de coisas empíricas ou materiais, mas a destruição de seu “sentido” imediato, que é “superado” por um sentido novo, posto pelo próprio Espírito.
“Destruição” admite essa leitura hegeliana, no entanto, apresenta uma visão da existência mais dura do que a do filósofo alemão, pois os signos “inúteis” e “inutilmente” transmitem não a idéia de um olhar que simplesmente supera um sentido anterior, conservando-lhe a vida, mas a de uma crítica intensa ao movimento dos seres, possivelmente crédulos na validade de seu esforço para superar uma força que age sobre eles. Para Orides, o importante é o conhecimento analítico (saber), e saber é nomear. A nomeação é, de acordo com Nietzsche (1953, p. 19-20), um “ato de autoridade”, portanto, incontestável. Mais do que isso, assim como as “sínteses humanas”, que, embora “sábias”, são “inúteis”, a “luz” consome-se, “desintegrando a essência”, mas “inutilmente”, o que revela um posicionamento poético cruel por parte de Orides, diferenciando sua poesia, neste ponto, da filosofia de Hegel. Identifica-se uma argúcia na poesia de Orides, na visão analítica da validade de todas essas relações.
Circle Of Life, Rob Herr Photography
Retomando o poema de Natália, também há uma particularidade quanto à forma no que concerne à temática focalizada: da primeira à última, as estrofes decrescem e depois crescem em número de versos. A primeira começa com seis, a segunda tem cinco e, a terceira, três; já a quarta recomeça o encadeamento, apresentando quatro versos, seguida pela quinta, que fechará o poema com seis versos. Trata-se, também, de um percurso desenhado no texto poético, já que, na primeira etapa, começa-se com a questão do que se revolta no homem, passa-se para a noção de nascimento (“fruto que nele nasce”) e chega-se ao meio do poema, justamente na questão do “fim da vida”; em seguida, tem-se o esclarecimento daquilo que passa da revolta à rebeldia, até a explicação da verdade sobre a morte (o que antes não se revelava), finalizando o texto. Portanto, a ideia central de curiosidade em relação à morte é posta na própria configuração das estrofes, cujo centro, a terceira, contém justamente o esclarecimento sobre tal curiosidade.
Nessa perspetiva, existem coincidências sonoras concernentes a rimas, tanto no fim como no interior de alguns versos, e as palavras daqueles que não rimam, unidas, formam o percurso da vida particularizado no poema: “homem”, “nasce”, “põe”, “punhal”, “morte”, “saber”, “sabe”. Isso quer dizer que o homem nasce, sente a curiosidade de saber o sentido do que o matará, toma um punhal, crava-o na morte, mas não consegue vencê-la, morre e “fica sabendo” de tudo. No entanto, o fim do poema é incisivo: já “não se pode contar”. Somente depois de morto é que o ser humano realmente sabe a causa da morte; entretanto, a partir desse momento, ele já não mais pode revelar o que passou a saber. É a “ironia de saber” de que trata a voz lírica de Natália.
As rimas apontam para o número de sílabas poéticas, sete em cada verso, formando, portanto, uma redondilha maior, com exceção do terceiro verso da quarta estrofe, que, com oito, é justamente o que apresenta a imagem mais forte do texto: “para vibrar naquela morte”. Assim como “Do sentimento trágico da vida”, “Destruição” também segue uma métrica e apresenta uma quebra específica de sílabas poéticas. Todos os versos têm seis sílabas, com exceção de três deles, o último de cada estrofe, os quais, diferentemente de trazerem uma imagem forte, exprimem, conforme observado anteriormente, a consciência sobre a inutilidade da descoberta do sentido da destruição, consciência essa por trás da qual está o “ser sabido”, objeto do conhecimento e não sujeito dele.
Em Natália, há, também, uma reiteração significativa: a palavra “revolta” liga-se, diretamente, ao título do texto, apresentando e reforçando o “sentimento trágico da vida”, transformado, na quarta estrofe, em “rebeldia”, e acrescentando uma ação ao que era apenas um sentimento: a de vibrar o punhal para saber o que é a morte. Outra reiteração há na última estrofe: “só depois de”, que marca a finalização de uma etapa no conhecimento do fim da vida. A repetição é irônica à insistência do homem, porque intensifica a inutilidade do conhecimento.
Dos dois sentimentos destacados no desejo do homem de conhecer o fim da vida, a revolta e a rebeldia, o primeiro deles liga-se à passividade da ignorância; o segundo, à ousadia da vontade de chegar ao conhecimento. Há uma condução de etapas: até a terceira estrofe, a ignorância que leva à revolta; a partir da quarta estrofe, a ousadia causadora da morte. Na segunda etapa do poema, o crescimento do número de versos entre os dois conjuntos acompanha a intensificação da consequência da ousadia.
Analogamente à ideia de um percurso na vida, com início e fim, o arranjo dos signos em ambos os poemas leva a concordar com Nunes (1986, p. 278) quanto ao facto de que “tudo começa e termina na linguagem, o topos por excelência do ser”. Em “Destruição”, os signos “vida” e “coisa” alternam-se de uma estrofe para a outra, dispondo-se “vida” no início do primeiro verso da segunda e terceira estrofes e no fim do primeiro verso da última, enquanto “coisa” está no início e no fim do primeiro verso da primeira e no fim do primeiro verso da segunda, construindo, assim, dois polos e reforçando a tensão entre as duas forças. Esses detalhes, ao revelarem, em cada poema, uma articulação entre o percurso configurado pelos signos e a constituição semântica dos poemas, levam-nos a concordar com o ponto de vista de Paul Verlaine de que “a forma deriva do conteúdo”.
Poema:
Natália Correia (de "Apontamentos", in "Poemas", Porto:
Edição de autor, 1955; "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I",
Lisboa: Projornal/Círculo de Leitores, 1993 – p. 100; "Poesia
Completa", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999 – p. 83-84). Música:
Teresa Gentil. Intérprete:
Teresa Gentil* (in CD "Natália Descalça", Descalças - Cooperativa
Cultural, 2006). Disponível em: http://nossaradio.blogspot.com/2013/09/celebrando-natalia-correia.html
Pássaro breve Rompendo a chuva caída Na minha melancolia.
Ave voando Na chuva que vai caindo Em mim sem cair no dia.
Pássaro leve Cantando o sol que amanhece Na noite que me entristece.
Natália Correia, Rio de Nuvens, 1947
Com uma linguagem concisa apoiada sobre a reiteração da imagem do pássaro no início das três estrofes, este poema aproxima-se de uma das maiores particularidades formais da poesia de Orides. A anáfora, juntamente com as rimas de fim de verso, cria uma insistência melódica e confere densidade à leveza das outras imagens associadas à do pássaro (chuva, voo, canto, amanhecer), construindo em torno do eu lírico uma “realidade” dura de solidão. Por outro lado, a leveza da “chuva” caindo mansamente não no dia, mas no eu lírico, ao canalizar-se no ser que chora, cria uma metáfora suave para a abundância melancólica das lágrimas. O equilíbrio entre euforia e disforia segue com a relação harmónica entre canto, sol e amanhecer e com a associação da noite à tristeza.
Como se pôde notar em “Que todos vivam a sua morte enquanto é tempo” que nem sempre a poesia de Natália apresenta uma sintaxe contínua entre os versos, em “Pássaro breve” verificou-se que nem sempre sua poesia é eloquente e composta por imagens fortes. A sintaxe contínua entre os versos de “Pássaro breve” articulada à sonoridade dos fonemas nasais, principalmente das formas verbais do gerúndio, contribui para o prosseguimento do ritmo suave presente em todo o poema: “rompendo”, “melancolia”, “voando”, “caindo”, “em”, “mim”, “sem”, “cantando”, “amanhece” e “entristece”. Portanto, ocorre um equilíbrio tanto semântico quanto formal, propiciando harmonia ao poema.