sábado, 21 de março de 2015

SETE CIDADES – POESIA E LENDA


As Sete Cidades na voz dos poetas e na tradição popular



GINETE!

Saímos ambos sem expectativas em relação ao futuro
a ideia de não pertencer a ninguém era-lhe frequente
e eu ouvia
não penses muito
traduzindo
não queiras – não desejes – não esperes –
não trates – não te desvies nem estejas longe.
Era sempre uma espera infrutífera
uma parte de verdade contida no meu silêncio.
Estás no meu encalço, hesitante,
deixemos que o tempo trabalhe sobre nós.
Trabalhou: o desejo foi-se tornando uma abstração
mesmo que periodicamente requisitado,
as mensagens recebidas passaram de mor a migo
e fui aceitando, perdedor,
rasurado na imprecação dos dias.

Antecipara por palavras o fim da nossa relação
sem que com isso tenha deixado de querer mansamente.
Apreensivo, noivo da errância,
sabia que me farias correr
ainda antes de trilhar cumeeiras
sete cidades
para te tomar
como se de um ginete tratasse.

“Ginete!” in Chuva de época,
José Maria deAguiar Carreiro, Ponta Delgada, 2005.





A PRINCESA E O PASTOR

Em época recuada, existia, no lugar onde fica hoje a freguesia de Sete Cidades, um reino próspero e aí vivia uma princesa muito jovem, bela e bondosa, que crescia cada dia em tamanho, gentileza e formosura. A princesa adorava a vida campestre e frequentemente passeava pelos campos, deliciando-se com o murmurar das ribeiras ou com a beleza verdejante dos montes e vales.
Um dia, a princesa de lindos olhos azuis, durante o seu passeio, foi dar a um prado viçoso onde pastava um rebanho. À sombra da ramagem de uma árvore deparou com o pastor de olhos verdes. Falaram dos animais e de outras coisas simples, mas belas e ficaram logo apaixonados.

Nos dias e semanas seguintes encontraram-se sempre no mesmo local, à sombra da velha árvore e o amor foi crescendo de tal forma que trocaram juras de amor eterno.
Porém, a notícia dos encontros entre a princesa e o pastor chegou ao conhecimento do rei, que desejava ver a filha casada com um dos príncipes dos reinos vizinhos e logo a proibiu de voltar a ver o pastor.
A princesa, sabendo que a palavra do rei não volta atrás, acatou a decisão, mas pediu que lhe permitisse mais um encontro com o pastor do vale. O rei acedeu ao pedido.
Encontraram-se pela última vez sob a sombra da velha árvore e falaram longamente do seu amor e da sua separação. Enquanto falavam, choravam e tanto choraram que as lágrimas dos olhos azuis da princesa foram caindo no chão e formaram uma lagoa azul. As lágrimas caídas dos olhos do pastor eram tantas e tão sentidas que formaram uma mansa lagoa de águas verdes, tão verdes como os seus olhos.
Separaram-se, mas as duas lagoas formadas por lágrimas ficaram para sempre unidas e são chamadas de Lagoas das Sete Cidades. Uma é a lagoa Azul, a outra é a lagoa Verde e em dias de sol as suas cores são mais intensas e refletem o olhar brilhante da princesa e do pastor enamorados.

Açores, lendas e outras histórias, recolha e arranjo de textos de Ângela Furtado Brum, Ponta Delgada, Ribeiro & Caravana Editores, dezembro de 1999 (2ª edição).





DENTRO DUMA CRATERA ESCARPADA

Dentro duma cratera escarpada
um lago se espalha placidamente
envolto por uma bruma desmaiada
vai batendo na areia suavemente.

Águas de cor verde e azulada
cheias duma melancolia dormente
teu brilho nasce de madrugada
à noite se oculta com o poente.

Tremores duma ilha tão dorida
se estendem à lagoa comovida
e num rumor ao longe desfalece.

Criada por vulcões e encantos
perduras entre risos e prantos
e uma lenda que não se esquece.





https://www.instagram.com/p/BN4C6ZGjK8A/

PALETA PARA AS SETE CIDADES

1.
Nas entranhas do abismo
no centro do globo
um deus maldito
forja no fogo
as pedras - e cria
rubras em brasa
as formas da errada harmonia

2.
Na crosta o magma
percorre já negro as linhas
que profanam essa perfeição
dos deuses transgressores

3.
O branco é o nulo que se escoa
no silêncio que acaricia
cúmplice
o olhar na lagoa

4.
O cinzento coroa
o repouso
a calma lassa
de um éden outro

5.
Inquieto louco
o amarelo solto
rebelde confuso
na dissonância divina:
pecado sublime
do deus da Luz

6.
O azul é o puro vértice
dos raios que retêm a sombra
e um véu navega
erra
na viagem dos olhos

7.
O verde são verdes
irisados da dita de quem
deste cume se deita
a julgar dos deuses
a obra imperfeita

Vasco Pereira da Costa, Ilhíada antes e depois (poesia 1972-2012)
Vila Nova de Gaia, Calendário das Letras, setembro 2012
ISBN: 978-972-8985-63-9


Baía do Silêncio (parte da lagoa das Sete Cidades)



BAÍA DO SILÊNCIO

Ó baía do silêncio
Na voz dos mal amados
Nos veios que a lonjura desenhou
Ó baía do silêncio
Do pranto das cidades
Anseios que a tristeza ensombrou

Rosa negra tatuada
Nesta sorte tão magoada
Na voragem desta noite um arrepio
Neste amargo cativeiro
Um lamento derradeiro
Coração a latejar, um desvario

Quem se perdeu nos labirintos do amor
Quem se queimou nesta fogueira, nesta dor
Quem se perdeu nos labirintos da paixão
Quem se rasgou nesta navalha, neste arpão

Dança de sombra e de luz
Neste jogo de espelhos
Teatro nesta imensa solidão

7 cidades - A Lenda do Arcebispo, RTP-Açores. Letra de José Medeiros baseada na lenda “O arcebispo Genádio e as Sete Cidades” (recolha e arranjo textual por Ângela Furtado-Brum em Açores, lendas e outras histórias. Ponta Delgada, Ribeiro & Caravana Editores, dezembro de 1999, 2ª edição).


Audição da letra da canção “Baía do Silêncio” nas versões de Dulce Pontes e Helena.



A baía do silêncio, na lagoa das Sete cidades, é um lugar mítico. Ali o silêncio sente-se, respira-se o ar fresco e suave do arvoredo, contempla-se a massa verde das águas tranquilas, refletindo as vertentes da lagoa, onde a vegetação é uma nota compacta de milhentas tonalidades, todo o ambiente é sereno e contemplativo.

Um passeio às Sete Cidades”, Soares de Sousa. Açoriano Oriental, 2012-05-30








O ARCEBISPO GENÁDIO E AS SETE CIDADES

Há muitos, muitos anos, havia um rico fidalgo que tinha um filho mimado e conhecedor da arte de nigromancia, através da qual conseguia facilmente seduzir todas as donzelas que desejava. Passados os momentos de paixão, Genádio esquecia a jovem e partia à procura de novas aventuras. Levava uma vida de loucura e amores passageiros.
Certo dia, porém, Genádio foi ferido por uma arma na mão de um homem que quis lavar a honra de uma donzela enganada. Entre a vida e a morte, o jovem fidalgo prometeu renunciar à vida degradante que levava e tornar-se padre e anacoreta se Deus o livrasse da morte.
Assim aconteceu. Curou-se, consagrou-se ao Senhor e passou a levar vida santa, começando a dar-se milagres por sua intercessão. A sua fama galgou montanhas e chegou ao conhecimento do Papa que o nomeou bispo e pouco tempo depois arcebispo.
Por este tempo vieram pôr-lhe à porta da igreja da Sé uma linda menina recém-nascida, que foi acolhida e criada pelo arcebispo Genádio como se fosse uma princesa.
Estava-se na época em que os mouros, atravessando o Estreito de Gibraltar, invadiram a Península Ibérica e a dominaram política e religiosamente. O arcebispo Genádio não esperou muito. Reuniu os seus seis bispos, as suas gentes, preparou uma numerosa frota e fez-se ao mar, levando também a menina sua protegida para outra terra, onde pudesse manter viva a fé cristã.
Ao fim de algum tempo de viagem, por mares turbulentos, foram ter a uma ilha muito fértil, onde o arcebispo e os seis bispos fundaram cada qual a sua cidade. Nessa ilha de clima ameno, de solo fértil e campos verdejantes, iniciaram uma vida de prosperidade e desenvolveram-se sete ricas cidades.
Paz, a menina criada e adorada pelo arcebispo, tinha crescido no entretanto. Era bela, meiga, sonhava com jovens cavaleiros e esperava um que a amasse. Alguns destes sonhos e esperanças eram balbuciados só em segredo às suas 'aias, mas mesmo assim o arcebispo soube dessas confidências. Cioso da pureza da jovem, relembrando talvez as indignidades que cometera em novo, decidiu defendê-la com todas as suas forças e poderes. O excesso de zelo ou de ciúme fez com que decidisse recorrer aos antigos conhecimentos em artes mágicas que possuía, se necessário fosse, para conseguir que a ilha se ocultasse a quem dela se aproximasse.
Certa manhã, em que os sacerdotes oravam nos templos e a vida corria com harmonia nas cidades, surgiu uma caravela coma cruz de Cristo desenhada nas vela que se dirigiu para a ilha. Genádio, prevendo que a bordo vinha aquele por quem D. Paz se poderia apaixonar, recorreu a todos os seus poderes nigromantes. Então a formosa ilha transformou-se num enorme vulcão, as Sete Cidades precipitaram-se no abismo e ficaram submersas.
No seu lugar apenas ficou uma cratera coberta em parte por uma linda lagoa. A essa zona da ilha de S. Miguel continuou a chamar-se Sete Cidades, embora apenas lá exista agora uma pequena freguesia nas margens da lagoa.

Açores, lendas e outras histórias, recolha e arranjo de textos de Ângela Furtado Brum, Ponta Delgada, Ribeiro & Caravana Editores, dezembro de 1999 (2ª edição).








O REI BRANCO PARDO E A LAGOA DAS SETE CIDADES

Há muitos, muitos anos atrás, havia um reino tão grande e florescente que o seu soberano, Brancopardo, não sabia ao certo o número dos seus vassalos, dos castelos, cidades e aldeias. Era a Atlântida. Apesar desta riqueza, o rei e a rainha Branca Rosa, que tinham sido muito felizes em tempos passados, viviam então muito tristes por não terem filhos. Brancopardo tornava-se cada dia mais vingativo e tratava muito mal os seus vassalos.
Uma noite em que o rei vagueava pelos jardins do palácio com a rainha teve uma visão que lhe falou assim:
‑ Rei da Atlântida, venho trazer-te a alegria. Em breve serás pai de uma filha linda e virtuosa, mas para que tenha fim a tua maldade, é preciso que nem tu nem homem nenhum se aproxime da princesa. Viverá dentro dos muros de sete maravilhosas cidades que eu erguerei no mais lindo recanto do teu reino e só donzelas a servirão. Presta atenção! Se antes dos vinte anos ousares transpor as muralhas das sete cidades, serás morto e um cataclismo arrasará o teu reino.
O rei, cheio de alegria, prometeu fazer tudo o que o anjo dissera e, passados nove meses, nasceu uma linda princesinha. Sem sequer a ter visto, o rei enviou-a para as Sete Cidades, cumprindo a exigência da visão. Os anos começaram a arrastar-se lentos e dolorosos para os pais separados da filha querida. A princesa Verde-Azul, rindo e cantando pelos jardins da cidade, rodeada de um cortejo de virgens, ia crescendo formosa e boa.
Brancopardo consumia-se de saudades, tornava-se cada vez mais colérico e a ansiedade de ver a filha chegou ao ponto de não lhe caber no peito. Mandou aprontar um exército com os seus mais valorosos guerreiros e pôs-se a caminho para as Sete Cidades.
A viagem foi longa e, à medida que se aproximavam, o céu ia enegrecendo e ruídos estranhos iam saindo da terra. Mas o rei caminhava sempre, desvairado, até que surgiram, na escuridão trágica do dia, os muros das Sete Cidades.
Branco Pardo, sombrio e perturbado, levantou a espada e com ela bateu pesadamente numa das portas. No momento em que o portão principal  se abria, uma espécie de trovão roncou, um fogo intenso elevou-se da terra fendida e os muros abateram-se imediatamente sobre o rei, os seus vassalos e todas as virgens que viviam nas Sete Cidades. Um tremendo cataclismo vulcânico destruiu toda a Atlântica. Por fim veio o silêncio, o sol brilhou outra vez e no mar viam-se nove pequenas ilhas. As Sete Cidades, onde a princesa vivia, transformaram-se numa cratera coberta por duas calmas lagoas: uma é verde porque no fundo ficaram os sapatinhos verdes da princesa; a outra é azul e reflete a cor do chapeuzinho que a princesa usava no seu passeio, quando foi morta pelo mau tino do pai, o rei da Atlântida.

Açores, lendas e outras histórias, recolha e arranjo de textos de Ângela Furtado Brum, Ponta Delgada, Ribeiro & Caravana Editores, dezembro de 1999 (2ª edição).






AS ILHAS MÍTICAS DO ATLÂNTICO


ILHA DAS SETE CIDADES


Parte do mapa Desceliers de 1546 mostrando a Ilha das Sete Cidades
 e outras ilhas imaginárias.


Martin Behaim, no seu famoso mapa-múndi de Nuremberga, datado de 1492, desenhava sobre a ilha das Sete Cidades a seguinte legenda: "Quando corria o ano 714 depois de Cristo, a Ilha das Sete Cidades, acima figurada, foi povoada por um arcebispo do Porto em Portugal, com outros seis bispos e cristãos, homens e mulheres, os quais, tinham fugido de Espanha em barcos, e vieram com os seus animais e fortunas. Foi por acaso que no ano de 1414 um navio castelhano dela se aproximou" (63). Mesmo depois da descoberta da América, Fernando Colombo, na sua "Vida do Almirante" acreditava na existência dessa ilha, e torna a contar a história em termos quase idênticos. "Contam que no oitavo século da era cristã, sete bispos portugueses, seguidos dos seus crentes, embarcaram para essa ilha, onde construíram sete cidades, e que não quiseram mais deixar, tendo queimado os seus navios para eliminar a possibilidade de regresso" (65). Sem discutir a falsidade ou veracidade desta lenda, reconhecemos contudo que o instinto de todos os povos conquistados e de sonhar com a restauração, os bretões não sonhavam com o seu Artur, os judeus não sonhavam com um Messias? Do mesmo modo, segundo Gaffarel, na Hispânia estes godos teriam fugido a ocupação muçulmana para um refúgio atlântico de onde se esperava que viessem para restaurar o reino cristão da Hispânia.
Em 1447 um português, empurrado por uma tempestade no Atlântico, teria desembarcado (1) numa ilha desconhecida, onde encontra sete cidades, nas quais os seus habitantes falavam o português (2). Estes últimos teriam querido retê-lo, uma vez que não queriam manter nenhuns contactos com a sua antiga pátria, mas teria conseguido escapar, e regressado a Portugal, onde conta a D. Henrique as suas aventuras. O Navegador critica fortemente o capitão por ter fugido sem ter obtido mais informações, e o marinheiro assustado nunca mais foi visto. Esta história causou polémica na altura em que foi publicada. Alguns eruditos identificaram esta ilha com a ilha fenícia identificada por Aristóteles(3) e por Diodoro da Sicilia(4) e em numerosas cartas, onde surge com o nome de Ilha das Sete Cidades(5).


Parte do mapa conhecido como Egerton 2803, 
que mostra Sete Cidades na América do Norte e "Antiglia"
 na América do Sul.


AS SETE CIDADES DE SÃO MIGUEL


Gaffarel lançou a hipótese de a Ilha de São Miguel nos Açores ser essa ilha mítica. Sem dúvida que os tremores de terra são aí frequentes. Um só ou uma sucessão deles poderiam ter destruído as cidades, mas teriam restado algumas ruínas que ainda hoje fossem visíveis. Somente o nome de Lagoa das Sete Cidades poderá ser uma leve reminiscência, isto a crer nesta hipótese.
Como escrevemos o nome de Sete Cidades sobrevive hoje no arquipélago açoriano. Buache(68) crê ser esta a genuína Sete Cidades. Humbolt(69) tem outra opinião, defendendo a associação desta lenda com a das Sete Cidades de Cibola. Esta última tese não é contudo muito credível - apesar do renome do autor - pois não parece provável que navegantes visigóticos tenham alcançado o México em 711.
Existem relatos antigos de algumas ruínas perto da Lagoa das Sete Cidades, mas, ao que sabemos, não existem atualmente vestígios dessa ordem. (70)




ASSOCIAÇÃO ENTRE AS ANTILHAS E SETE CIDADES

A história da fuga dos sete bispos é-nos contada por Las Casas (90), mas António Galvão relata-nos uma outra ligeiramente diferente no seu Tratado (Lisboa, 1563), concluindo: "E alguns pretendem que estas terras e ilhas que os Portugueses tocaram são aquelas a que agora se chama Antilhas e Nova Espanha, e avançam muitas razões para tal, as quais não menciono porque não quero ser responsável por elas, tal como as pessoas terem o hábito de dizer, de qualquer terra de que nada soubessem, tratar-se da Nova Espanha."(91) No mapa Ruysch de 1508 existe uma grande ilha na Latitude N 37o e 40o. Chamada "Antilia Insula" tem uma grande legenda que afirma ter sido descoberta há muito tempo pelos espanhóis, cujo último rei godo, Roderico, que aqui se havia refugiado da invasão bárbara(64).

10.3. SETE CIDADES NO CONTINENTE AMERICANO

No século XVI muitos julgaram encontrar as Sete Cidades no continente americano. Um padre franciscano, Marcos de Niza(6), com base em lendas, infiltra-se em 1539 na América do Norte, mais especificamente na Califórnia, com a esperança de encontrar um país, chamado Cibola pelos indígenas, as sete cidades da lenda. Acompanhado por três franciscanos e de um negro que dizia conhecer o território. A expedição atinge regiões inexploradas, e narra no seu regresso que havia visto ao longe sete cidades brilhantes, das quais havia tomado posse em nome do rei de Espanha. A sua narrativa entusiasta decide o envio de uma expedição considerável, comandada por um nobre de mérito, F. Vasquez de Coronado(7); mas o pequeno exército, depois de ter passado por grandes sofrimentos, chegou ao sopé de um rochedo árido, sobre o qual se erguia com efeito Cibola, mas não a rica Cibola da lenda, e sim uma pobre aldeia índia.
Não se descobriram nem sete cidades cristãs, nem um povo guardando as velhas tradições visigóticas, mas um país nos arredores do Rio Gila, perto da fonte do Rio Del Norte. Curiosamente, a região compreendia 70 burgos repartidos por sete províncias. Parece mesmo que, hoje em dia, em Zuni, a cidade principal da antiga Cibole, se encontram índios de cabelos brancos e de rosto claro. Sobre o seu aspeto escrevia um viajante contemporâneo:(8) "Não são índios! Há muitos entre eles que tem feições tão claras como as dos mestiços. Entre as mulheres, particularmente, muitas tem a pele quase branca, os olhos cinzentos ou azuis". Por outro lado, uma história contada por Sahagun(9), escrevia sobre a origem dos Nahuatl: "A história que contam os antigos é que eles vieram por mar do lado do norte... Conjetura-se que estes naturais terão saído de sete grutas, e que estas sete grutas são os sete navios ou galeras nas quais chegaram os primeiros colonos." Este primeiros colonos seriam os sete bispos visigodos e os seus seguidores?

LIGAÇÃO ENTRE A ILHA IMAGINÁRIA DE ANTILIA E SETE CIDADES

M. d'Avezc conta que Antília era conhecida, marcada e visitada no século XV; Toscanelli, segundo ele, tinha escrito à corte de Portugal as seguintes palavras: "Esta ilha de que tendes conhecimento e que vós chamais das Sete Cidades"...
O filho de Cristóvão Colombo, Fernando, na "Vida de Meu Pai", precisa por seu lado: "Alguns portugueses inscreviam-na nas suas cartas com o nome de Antília, embora não coincidisse com a posição dada por Aristóteles; nenhum a situava a mais de 200 léguas, aproximadamente, a Ocidente das Canárias e dos Açores. Tem por certo que é a Ilha das Sete Cidades, povoada por portugueses no tempo em que a Hispânia foi conquistada, ao rei Rodrigo, pelos Mouros, isto é, no ano 714 depois de Cristo". Fernando Colombo assegura que, ainda em vida do Infante Dom Henrique, um navio atracou em Antília/Sete Cidades; os marinheiros foram a igreja e verificaram que aí se praticava o culto romano.
Talvez seja como reflexo destas histórias que circulavam entre os marinheiros que teve início a iniciativa referenciada por Las Casas: "Alguns partiram de Portugal para encontrar esta mesma ilha [das Sete Cidades] que em linguagem vulgar se chama Antilla, e entre os que partiram estava um Diogo Detiene, cujo piloto, chamado Pedro de Velasco, natural de Palos, declarou ao dito Cristóvão Colombo, no mosteiro de Santa Maria da Arrábida, que, tendo partido da ilha do Faial e prosseguindo 150 léguas com o vento lebechio (NW), descobriram, no regresso, a ilha das Flores, guiados por muitas aves que viram voando para lá, e reconheceram que eram aves terrestres e não marítimas, e assim pensaram que iam dormir a alguma terra. Em seguida, e dito que navegaram tanto para NE que tinham o Cabo Claro (na Irlanda) para E (94), onde acharam que os ventos eram muito fortes, e os ventos de oeste e para o mar muito suaves, o que acreditavam que devia ser por causa da terra que devia ali existir, a qual lhes oferecia abrigo a Ocidente; a qual não persistiram em explorar, porque já era Agosto e recearam [a aproximação do] Inverno. Ele disse que isto aconteceu 40 anos antes de Cristóvão Colombo descobrir as nossas Índias"(95).

RELAÇÃO COM A ILHA BRAZIL

Pedro de Ayala, embaixador espanhol na Grã-Bretanha, em 1498, relatando as navegações inglesas a Fernando e Isabel, escreveu, conforme menciona Babcock, as seguintes linhas: "The people of Bristol have, for the last seven years, sent out every year two, three, of four light ships in search of the island of Brasil and the seven cities"(62). E, com efeito, ao que tudo parece indicar, realizou-se pelo menos uma expedição em busca da ilha Brazil.
A primeira aparição da ilha Brazil é a do mapa de Dalorto (de 1325), onde surge como uma ilha de forma discoide. No mapa Catalão de 1375 este disco transformou-se num anel rodeando um conjunto de ilhas, para Nordenskiold nove, para Kretschmer sete. Este último número pode representar um fenómeno não raro em diversas ilhas míticas, o cruzamento entre lendas.

FERNÃO DULMO DA TERCEIRA PROCURA A ILHA DAS SETE CIDADES

Existe uma carta de doação, emitida por D. João II a Fernão Dulmo da Terceira, no ano de 1486. Este Fernão Dulmo era na verdade Ferdinand van Olm, um dos flamengos que se haviam estabelecido nos Açores. Dulmo declarara ao monarca que se propunha "procurar e achar uma grande ilha ou ilhas ou terra firme per costa(114), que se presume ser a ylha das Sete Cidades, e tudo isto as suas próprias custas e despesas". Uma cláusula revela a importância que o monarca atribuía ao descobrimento da dita ilha: " No caso de ele não conseguir conquistar as ditas ilhas ou terras. Nós enviaremos, com o dito Fernão Dulmo, homens e esquadras de barcos com poder Nosso para efetuar o mesmo, e o dito Fernão Dulmo será sempre Capitão General das ditas esquadras e está por Nós sempre autorizado, porque seu Rei, como Nosso súbdito"(115).
Fernão Dulmo iniciou os preparativos para a expedição chamando para o ajudar João Afonso do Estreito e pedindo que o rei o admitisse na partilha da empresa e dos lucros. Estreito forneceria duas caravelas, aprovisionadas para navegar durante seis meses, que deveriam zarpar no dia 1 de Março de 1487, Dulmo contrataria pilotos e marinheiros e pagar-lhes-ia os salários. Durante quarenta dias Dulmo seria o comandante-general, estabelecendo o rumo para as duas caravelas, e tomando para si todas as terras descobertas, depois do que Estreito seria, por sua vez, capitão-general e se apoderaria de todas as terras avistadas. Tudo isto, o monarca confirmou a 24 de Julho e 4 de Agosto de 1486.(116) Las Casas poderia referir este empreendimento, quando escrevia as seguintes linhas: "Mais adiante, um marinheiro chamado Pedro de Velasco, um galego, contou a Cristóvão Colombo em Múrcia que, seguindo numa certa viagem a Irlanda, estavam a navegar e a afastar-se tanto para NW, que viram terra a oeste da Irlanda, a qual eles pensaram que devia ser a que um Hernan Dolinos procurou descobrir, tal como agora se deve dizer"(117). A referência a quarenta dias previstos é curiosa, porque bastaram trinta e seis para fazer Colombo chegar ao Novo Mundo. Mas, se não mais se ouviu falar destes navegadores e porque a sua expedição foi frustrada, provavelmente pelas difíceis condições existentes no mês de Março para quem se propõe navegar na direção Oeste, conforme nota Samuel Eliot Morison na sua obra "As Viagens Portuguesas à América".

COLONOS PORTUGUESES NO BRASIL ANTES DE 1500?

A lenda de emigrados portugueses numa ilha Atlântica poderá ter algo a ver com repetidos relatos, embora não merecedores de muita confiança, da presença de colonos portugueses no Brasil ainda antes da chegada da armada de Pedro Álvares Cabral. O primeiro relato refere que o mais velho habitante vivo do Brasil teria declarado, no seu leito de morte em 1580, que vivera naquele país "cerca de noventa anos". Outro relato é o de um certo Estevão Fróis, encarregado de um barco capturado pelos espanhóis: "Tinham má vontade em receber da nossa parte a prova do que alegávamos; nomeadamente, que Vossa Alteza tivera a posse destas terras [Brasil] durante vinte anos e mais, e que já João Coelho da Porta da Cruz habitante de Lisboa ali viera com outros para descobrir"(119) Estas histórias são pouco credíveis uma vez que a primeira colónia, nem sequer foi portuguesa mas francesa, fundada por Christophe Jacques, por volta de 1516. A primeira colónia nacional só se instalaria em Olinda em 1530, sob o comando de Duarte Coelho Pereira.

EM BUSCA DE ANTÍLIA/SETE CIDADES

Como vimos Fernando Colombo relata como "no tempo do Infante Henrique de Portugal (+-1430), um navio português foi empurrado pelo mar para esta ilha Antilla." A tripulação foi à igreja com os ilhéus mas receou ficar detida na ilha e fugiu assim que pôde. O Príncipe ouviu a sua história e ordenou-lhes que voltassem à ilha, mas os marinheiros largaram e não tornaram mais a ser vistos. Fernando relata que a areia de Antillia era composta de um terço de ouro puro. Galvão relata uma outra visita mais tardia, ou então uma outra versão da primeira:
"In this yeere also, 1447, it happened that there came a Portugall ship through the streight of Gibraltar; and being taken with a great tempest, was forced to runne westwards more then willingly the men would, and at last they fell upon an Island which had seven cities, and the people spake the Portugall toong, and they demanded if the Moors did yet trouble Spaine, whence they had fled for the losse which they received by the death of the king of Spaine, Don Roderigo.
"The boateswaine of the ship brought home a little of the sand, and sold it unto a goldsmith of Lisbon, out of the which he had a good quantitie of gold."
"Dom Pedro understanding this, being then governour of the realme, caused all the things thus brought home, and made knowne, to be recorded in the house of justice."
"There be some that thinke, that those Islands whereunto the Portugals were thus driven, were the Antiles, or Newe Spaine."(66)
Um outro relato nos chega através de Faria e Sousa, traduzido pelo Capitão John Stevens:
"Depois da derrota de Roderico os mouros espalharam-se pela província, cometendo barbáries inumanas. A maior resistência era em Mérida. Os defensores, muitos dos quais eram portugueses, que pertenciam ao Supremo Tribunal da Lusitânia, eram comandados por Sacaru, um nobre godo. Muitas ações corajosas decorreram neste cerco, mas como não apareciam reforços e as provisões começavam a escassear a cidade rendeu-se sem condições. O comandante da Lusitânia, atravessando Portugal, chegou a uma cidade costeira, onde, reunindo um bom número de navios, lançou-se ao mar, mas ignora-se a que parte do mundo eles foram. Existe uma antiga lenda de uma ilha chamada Antilla no oceano ocidental, habitada por portugueses, mas que ainda não pôde ser descoberta."(67)
A versão do capitão Stevens acrescenta bastante à versão original. O texto original refere que os fugitivos fizeram-se ao mar para as Ilhas Afortunadas (Canárias?), a fim de aí poderem preservar a sua raça. O texto menciona igualmente que essa ilha havia já sido alcançada pelos portugueses, sendo habitada por eles nas sete cidades que aí haviam construído: "tiene siete cividades".
Este último relato menciona uma movimentação a partir de Mérida, o que é perfeitamente credível, e o comando por um militar também seria admissível natural numa deslocação efetuada em tais condições. Existem portanto algumas provas factuais que podem apoiar esta versão da lenda.

“Ilha das Sete Cidades”, Rui P. Martins. In: As Ilhas Míticas do Atlântico
Versão 1.2 criada em 1998-04-26. Disponível em http://ruipmartins.tripod.com/ilhasete.html
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Notas:

(1) Horn. "De originibus americanis", p. 7 "Anno MCCCXLVII Portugallus quidam navigans extra fretum heracleum adversis ventis in remotam insulam occidentem versus abreptus fuit, et in ea invenit septem civitates, quae Portugallorum lingua loquebantur, et interrogabant an Mauri adhuc vexarent Hispaniam, unde amisso Roderico fugati sint."

(2) Fernando Colombo escreve o seguinte: "O capitão e os marinheiros retomaram o mar e fizeram vela para Portugal, certos que o Infante os louvaria. O príncipe, pelo contrário, reprimiu-os severamente, e ordenou-lhes que regressassem à ilha, e de regressarem reportando aquilo que vissem. Este homens, tomados pelo temor, partiram com o seu navio e nunca mais regressaram a Portugal. Entre outros detalhes, eles tinham dito que as madeiras do navio, quando o levaram para a areia para limpar os seus utensílios reconheceram que esta areia tinha duas partes de ouro fino". Refira-se contudo que Ilaria L. Caraci refere que o filho do almirante trata-se de mais um autor ficticio, artifício tão vulgar nessa época, usado frequentes vezes para sustentar a veracidade das obras na reputação do autor que lhes era atribuido. Caraci indica que neste caso se trata de uma compilação de textos de vários autores colocados sob o signo comum de Fernando Colombo.

(3) Aristóteles. "De mirabilibus auscultationes". & 8.

(4) Diodoro da Sicilia, Livro V, & 19-20.

(5) Planisfério de Henrique II (Atlas Jomard) e a Carta de Mercator de 1569.

(6) A relação da sua viagem consta na coleção Ternaux-Compans. Vol. X, p. 256- 284. Ver também Pedro de Castanheda (p. 1-255) no mesmo volume com o seu "Viagem a Cibola" de 1510.

(7) Coleção Ternaux-Compans. Tomo IX, p. 349-363 - J.-H. Simpson. "Coronado's march in search of the Seven Cities of Cibola, and discussion of their probable location." (Smithsonian Institution, 1869, p. 209-340. - Vivien de Saint-Martin. "Annee gegraphgique", 1872, p. 239.)

(8) Gatlin. "Letters ans notes an the manners customs and conditions of the north American Indians", I, 93.

(9) Sahagun. "Historia de las casas de Nueva Espana". Liv. I, p. 18.
  
(62) G. E. Weare: "Cabot's Discovery of North America", London, 1897, p. 19.

(63) E. G. Ravenstein: "Martin Behain: His Life and His Globe", Londres, 1908, p. 77

(64) A. E. Nordenskiold: Facsimile-Atlas to the Early History of Cartography, trad. J. A. Ekelof e C. R. Markham, Estocolmo, 1889, p. 65 e Pl. 32.

(65) Fernando Colombo, p. 514.

(66) Antonio Galvano: "The Discoveries of the World from Their First Original unto the Year of Our Lord 1555", Hakluyst Soc. Publs. 1st Series, Vol. 30, Londres, 1862, p. 72.

(67) Manuel Faria e Sousa: "A História de Portugal".

(68) N. Buache: "Recherches sur l'ile Antillia et sur l'epoque de découverte d'Amerique", Memoires de l'Institut des Sciences, Lettres, et Arts, Vol. 6, 1806, pp. 1-29.

(69) Alexander von Humboldt: "Examen critique de l'histoire de la geographie du nouveau continent et des progres de l'astronomie nautique aux quinzieme et seizieme siecles", 5 vols., Paris, 1836-39. Referência no Vol. 2, p. 281.

(70) Joseph Bullar e Henry Bullar: "A Winter in the Azores and a Summer in the Baths of the Furnas", 2 vols., Londres, 1841. Referência no Vol. 2, pp. 242-247.
  
(90) Lib. i, cap. 13 (ed. 1927, I, 69); tradução em J. A. Williamson, "Voyages of the Cabots", pp. 11-15. Alguns historiadores afirmam que esta história é o registo da chegada dos portugueses a Hispaniola, antes de 1460, mas não isto confere com o facto de a lenda completa das Sete idades ter sido encontrada, pela primeira vez, no Globo de Behaim, datado de 1492.

(91) A. Batalha Reis, in Geogr. Jour., IX, 197, corrigindo a tradução adulterada deste excerto, da autoria de Richard Hakluyt, que está reimpressa, com texto, em "The Discoveries of the World by António Galvano", Hakluyt Society pubs., XXX, 1862, pp. 72-73.
  
(95) Las Casas, "Historia de las Indias", lib. i, cap. 13; ed. 1927, I, 70. Ferdinand Columbus segue-o quase exactamente na sua "Historie della vita e dei fatti di Cristoforo Colombo", cap., ix (pp. 34-35 da ed. de Londres, 1867). Ambos os autores atribuem a origem das suas informações ao "Libros de memórias" do almirante, que, infelizmente, se perderam.








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  • “Um passeio a Sete Cidades na ilha de São Miguel, Açores, 1897”, manuscrito de Eliza Cunha inserido na coletânea “Lazeres – contos e descrições” publicado na Revista INSVLANA - Órgão do Instituto Cultural de Ponta Delgada, n.º XLVII, 2011.

Sete Cidades, fotografia de Pescantini, https://www.instagram.com/p/B1y5vVconNg/





CARREIRO, José. “Sete Cidades – Poesia e Lenda”. Portugal, Folha de Poesia, 21-03-2015. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2015/03/sete-cidades-poesia-e-lenda.html


sexta-feira, 20 de março de 2015

QUANDO VIER A PRIMAVERA, Alberto Caeiro

Laara Cerman, Canada, Commended, Open, Arts and Culture, 2016 Sony World Photography Awards


Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.
7-11-1915
“Poemas Inconjuntos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).
  - 87.
1ª publ. in “Poemas Inconjuntos”. In Athena, nº 5. Lisboa: Fev. 1925.





Audição de “Quando vier a primavera” de Alberto Caeiro por Pedro Lamares:



O eu poético de Alberto Caeiro prefere lidar com a objetividade e a certeza. As coisas são – são como são, e tudo está bem: o ciclo da natureza é uma prova da inexorabilidade do mundo real. Compara homem e natureza, aponta a perenidade desta, não afetada pela mortalidade humana. E lança seu olhar sereno para a inevitabilidade dos acontecimentos, cada qual a seu tempo.

"A Primavera é a estação...", Lilian Arradi. In: Em busca da autoria, 2014-10-06. Url: http://www.embuscadaautoria.com/2014/10/a-primavera-e-estacao.html


*

As primeiras duas estrofes introduzem-nos ao poema e a uma temática bem cara a Alberto Caeiro, nomeadamente a sua posição face à natureza. A maior ambição de Caeiro era deixar de pensar e ele acreditava mais que nada nessa necessidade de simplificar a vida. Deixar de pensar seria a maneira eficaz de deixar de sofrer, porque o pensamento é a busca de significados, de respostas, que nunca verdadeiramente podem ser alcançadas. 
Ao descrever a chegada da Primavera e ao colocar-se, imaginariamente, já morto, o sujeito poético pretende transmitir essa mesma sensação de naturalidade. A natureza não pensa e por isso todos os seus processos são conjuntos e não individuais. No seio da natureza a ausência de um elemento não para a evolução contínua dos restantes. É por isso que um pensamento aparentemente triste - a morte - gera uma alegria tão grande em Caeiro. Se a natureza ignora a sua morte, é porque ele faz parte da natureza e é aceite por ela como seu constituinte. […]
A aceitação do destino é um outro ponto fundamental na visão do mundo de Alberto Caeiro. Na sua visão do mundo o homem não luta contra o destino, antes o aceita sem discussão, na sua inevitabilidade. Não aceitar o destino seria pensar na vida e não aceitá-la tal como ela é. Este objetivismo absoluto de Caeiro é por vezes difícil de compreender, mas é, também, imensamente simples. 




*

A poesia retrata as reflexões referentes sobre a morte. O eu lírico afirma que depois da morte a vida continua e a natureza seguindo seu ciclo. É como se após a nossa morte nada se alterasse na vida. Tudo segue seu ritmo natural, de certa forma, quis o poeta afirmar que não fazemos falta, no sentido de que o real, que é aquilo que existe e tem vida, sempre continuará. No final, a consciência de que não adiantam preces em cima do caixão de quem já perdeu a consciência, o que denota a descrença de uma vida espiritual após a morte. 

Scarlet Allef, https://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20101129143802AAknkR4, 2011




Em seu Poema, “Quando vier à primavera” é possível perceber uma tranquilidade em lidar com o tema da morte. Como dissemos acima, a morte é o momento onde temos a certeza completa da perda do eu e que o indivíduo só sai do estado de angústia que ela causa por meio da coragem de Aceitar a Aceitação. Acreditamos que essa coragem está presente em Caeiro e o poema abaixo demonstra isso. […]
Acreditamos que o tema da morte é central no poema. Apesar dela não estar presente em seu estado final, apenas a ameaça da morte que se faz presente “em cada momento dentro da existência” (TILLICH, Paul. A coragem de ser. Tradução de Egle Malheiros. 6ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976., p. 35) se apresenta claramente. É necessário lembrar que isso já é capaz de confrontar o ser com o não-ser e despertar a angústia. Podemos perceber isso logo nos primeiros versos:

“Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto”

É interessante lembrar que a angústia provocada pela morte só pode ser subjugada pela coragem quando o individuo tem consciência da potência de seu ser. Sócrates teve consciência de si como ser indestrutível, pertencente a duas realidades, sendo uma transtemporal. Caeiro não é diferente, acreditamos que ele faz o mesmo. Ele subjuga a angústia pela potência do seu ser, mas essa “potência” (se podemos chamá-la assim) demonstrada por ele é diferente. Caeiro se vê e tem consciência de si como um ser humano finito que no encontro com a morte não pode fazer nada. Acreditamos que essa ideia de se conformar com a morte e reconhecê-la como algo que não tem como escapar aparece nos versos onde ele se refere à primavera:

“Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.”

Entendemos assim porque Caeiro demonstra que não tem como escapar da realidade e de seu curso e a morte faz parte disso.

“Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?”

A característica que diferencia Alberto Caeiro das outras personalidades é a de não enxergar nenhum sentido oculto nas coisas, “Porque o único sentido oculto das cousas É elas não terem sentido nenhum”. (Fernando Pessoa – Alberto Caeiro).

A coragem em Alberto Caeiro: Uma leitura do poema de Alberto Caeiro a partir do pensamento de Paul Tillich”, Wanderson Salvador Francisco de Andrade Campos. Revista Eletrônica Correlatio v. 12, n. 23 - Junho de 2013.





Analise as afirmações que se seguem e escolha a alternativa correta sobre o poema “Quando vier a Primavera”:

(A) o poema revela a subtil visão da natureza que transpõe a concretude das coisas.
(B) Alberto Caeiro choca os olhares metafísicos que enxergam na morte uma simbólica significação.
(C) os versos de Caeiro são uma negação de que “as coisas não têm significado: têm existência.”
(D) neste poema, a certeza/incerteza da estação das flores está entrelaçada à condição do eu lírico.
(E) o verso “o que for, quando for, é que será o que é” coaduna-se com a frase: ”o homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, e das coisas que não são, enquanto não são”.

Vestibular 2014.1 Língua Portuguesa. Teresina-PI – 10/11/2013. URL: http://www.favip.edu.br/arquivos/PROVA_DE_DIREITO_VEST_2014_1.pdf





 

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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

 

                        

segunda-feira, 16 de março de 2015

O Estranho Mundo de Jack | The nightmare before Christmas





O ESTRANHO MUNDO DE JACK

Caía o outono em Halloween, a noite enregelava...
Contra a Lua, só, num monte, um esqueleto cismava.
Era esguio e comprido e um laço-morcego trazia;
Jack Esquelético, o nosso protagonista,
Aborrecia-se de morte na cidade de Halloween,
Onde tudo decorria de forma prevista.

«Já me cansa meter medo, sustos e pavor.
Estou farto de ser algo que enche a noite de terror,
Farto de maus-olhados, de infundir alvoroço,
E os meus pés agonizam com a dança dos ossos.
Não gosto de cemitérios, quero mudar de ares!
Deve haver mais na vida que caretas e esgares!»

Durante toda essa noite e todo o dia a seguir,
Jack andou sem parar, sem saber por onde ir.

Até que no coração da floresta, a noite caía,
Jack teve uma visão de intensa magia:
Ali, a escassos metros... mesmo à sua beira...
Três portas esculpidas de maciça madeira.
Ficou estupefacto, sem tirar o olhar
De uma porta, entre todas, a mais singular.
Atraído, excitado, mas também ansioso,
Jack abriu-a e entrou num mundo branco e ventoso.

Jack nem calculava, mas tinha ido parar
À cidade do Natal- o nome desse lugar.
E, banhado em tal luz, já não se inquietava,
Pois enfim encontrara o que mais lhe faltava.
Para os amigos não julgarem que ele mentia,
Tirou as prendas e os doces que por lá havia:
Levou lembranças das meias junto à chaminé
E uma foto do Pai Natal com os duendes ao pé.
Pegou nas luzes, nas fitas e bolas do pinheiro,
E roubou o N grande que viu num letreiro.

Arrecadou aquilo que achou cintilante
E até uma bola de neve gigante,
Limpou tudo num ápice e, muito apressado,
Voltou à sua terra sem ser apanhado.

Tim Burton, O estranho mundo de Jack. Lisboa, Orfeu Negro, 2010. Coleção: Orfeu Mini.
Título original: The nightmare before Christmas
Tradução de Margarida Vale de Gato


Filme de animação norte-americano realizado em 1993 por Henry Selick, The Nightmare Before Christmas tem por verdadeiro mentor Tim Burton, o autor da história e das respetivas personagens. O argumento foi adaptado por Caroline Thompson, a produção esteve a cargo de Tim Burton e Denise DiNovi, e a fabulosa banda sonora foi composta por Danny Elfman, que também interpretou a voz da personagem principal. Para além de Elfman, as restantes vozes são de Chris Sarandon, Catherine O'Hara, William Hickey e Ed Ivory.
Animação, dirigida tanto ao público infantil como ao adulto, foi feita em stop motion, uma técnica utilizada para dar movimento a bonecos filmando-os pacientemente com pequenas variações das suas posições, da qual este filme se tornou uma verdadeira referência. O resultado final é mágico e fantástico.
A história, em jeito de fábula, começa na cidade de Halloween, um mundo repleto de criaturas fantásticas que vivem durante todo o ano com o objetivo de preparar a noite de Halloween (Dia das Bruxas). Num ano, após a festa do Halloween, o rei da cidade Jack Skellington (voz de Danny Elfman), fica deprimido e cansado da rotina anual. Ao descobrir por acaso a cidade do Natal, tem uma ideia insólita: tomar o lugar do Pai Natal e organizar com os seus vizinhos um Natal inesquecível, festejando esta quadra de uma forma alegre. Contudo, apesar da sua boa vontade, Jack não consegue captar inteiramente o espírito natalício e os seus preparativos tomam um tom demasiado macabro. Sally (voz de Catherine O'Hara), uma boneca de trapos fascinada por Jack, prevê um terrível destino como consequência da extravagância do seu amigo. E, nesse seguimento, as crianças de todo o mundo acabam tristes e desiludidas com o novo Pai Natal.
A produção do filme reuniu os melhores animadores de stop motion, tornando-se o primeiro filme realizado com esta técnica a ser distribuído no mundo inteiro. A construção das assustadoras personagens foi planeada detalhadamente para que realmente se parecessem com os rascunhos feitos por Burton. Os cenários foram construídos com grotescas construções criando um mundo surreal, repleto de texturas estranhas. Foram feitos mais de duzentos bonecos, incluindo vampiros, fantasmas, lobisomens, múmias e outros. Muitos deles com várias cabeças ou faces para serem substituídas durante o processo de animação.
O filme fez um sucesso imenso e foi nomeado para o Óscar de Melhor Efeitos Visuais e para o Globo de Ouro na categoria de Melhor Banda Sonora.

in Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2015. Disponível na Internet: http://www.infopedia.pt/$o-estranho-mundo-de-jack





Com a produção do segundo Batman em 1992, Burton decidiu levar outro trabalho simultaneamente. Inspirado na obra de outro ídolo de infância: Como o Grinch Roubou o Natal, de Dr. Seuss, Tim Burton’s Nightmare Before Christmas (1993), traduzido para português como O Estranho Mundo de Jack, une os dois feriados favoritos de Burton e descreve os mundos paralelos de Christmastown e Halloweentown. Para a realização do projeto, Burton optou novamente pelo estilo de animação em stop-motion e, para a direção, fez parceria com Henry Selick, conhecido de longa data do diretor e especialista em animação com bonecos, assinando apenas como produtor do filme. Pela primeira vez, um filme em animação seria feito em longa-metragem, quebrando a tradição de utilização do estilo apenas para comerciais de TV e vinhetas da MTV.

Além da profunda complexidade dos personagens de criação própria, o diretor inovou mais uma vez ao quebrar as expectativas visuais. Ao criar a cidade de Halloweentown e povoá-la com os mais diversos tipos macabros, o diretor inverte valores mostrando um mundo onde o normal é ser diferente, mostrando mais uma vez que o público é capaz de lidar com o macabro e o sombrio, como fez em Os Fantasmas se Divertem. Essa inversão de valores é vista por Mimi Avins, em artigo para a Premiere (1993), como a ideia de que “it’s okay to be different, it’s okay to be screw up, and it’s okay to be miserable.” (FRAGA, Kristian (org.). Tim Burton: Interviews. 1.ª ed. Jackson: University Press of Mississippi, 2005. Coleção Conversations with Filmmakers, p. 101).

Em seu processo de criação, o personagem parece ter atravessado as três instâncias de criação do diretor: em um primeiro momento, Jack é personagem do poema escrito pelo próprio Burton, que deu origem à produção fílmica; depois, ganha forma e cor ao ser transformado em gravura pelo diretor; mais tarde, ganha vida em forma de animação gráfica. Ao fim deste percurso, chegamos a um protagonista que carrega características típicas do herói burtoniano: é atormentado por dúvidas e angústias. No entanto, ainda segundo Avins, em uma arte em que a primeira regra é dar ao personagem olhos expressivos, a caracterização de Jack representou um enorme desafio, uma vez que seu rosto é uma caveira e, portanto, sem olhos (Ibid. p. 100).

Jack não é um personagem “feliz”, mesmo vivendo em um mundo em que não só é parte integrante da sociedade, mas é tido como ídolo. O esqueleto sente uma angústia, sem saber ao certo por quê. Para suprimir essa inquietação, o simpático Rei das Abóboras precisa sair em busca de algo que, na verdade, também não sabe bem o que é, mas mesmo assim o quer apaixonadamente. Essa “doença da alma”, que tortura o herói, é descrita pelo próprio personagem no poema que deu origem à longa-metragem:

“I'm sick of the scaring, the terror, the fright.
I'm tired of being something that goes bump in the night.
I'm bored with leering my horrible glances,
And my feet hurt from dancing those skeleton dances.
I don't like graveyards, and I need something new.
There must be more to life than just yelling, 'Boo!'”

(THOMPSON, Frank. Tim Burton’s The Nightmare Before Christmas. New York: Disney Press, 2009.).
“Estou cansado de sustos, medo e terror.
Cansado de causar tantos gritos de horror.
Cansado de vestir apenas branco e preto,
meus pés já não aguentam a dança do esqueleto.
Odeio o cemitério e seus tons cinza e azul.
A vida deve ser mais que só gritar: “Buuu!”

(Tradução de Francine Fabiana Ozaki).

As angústias de Jack o levam a se isolar da cidade, pois seu humor depressivo não combina com a cidade em festa. Portanto, o protagonista já ocupa o status de outsider dentro do próprio ambiente. A descoberta de Christmastown coloca Jack novamente no papel de estrangeiro, em uma terra totalmente diferente da sua. Mais uma vez, temos um protagonista deslumbrado por um mundo oposto ao seu, cores e luzes contra escuridão e sombras, como em Edward. 

Em O Estranho Mundo de Jack, Burton dá seus primeiros passos na direção da subjetivação dos personagens femininos, que começou a ser desenvolvido na Mulher Gato, embora com menos destaque, e que culminará em A Noiva Cadáver (2005). Sally, o par romântico de Jack, é visualmente muito parecida com a vilã de Batman o Retorno (1992). Em mais uma referência ao clássico Frankenstein, Sally foi construída para servir de companhia a seu inventor. Embora não esteja presente no poema original, ela tem grande destaque no enredo da longa-metragem. Sally é quem tem o pressentimento de que algo pode dar errado caso os integrantes de um feriado resolvam assumir o controlo de outro. No entanto, ninguém lhe dá ouvidos. Com o corpo todo revestido por costuras que se soltam constantemente, a heroína se torna peça-chave no filme ao evitar que o temido Bicho Papão mate o Pai Natal e ao protegê-lo até que Jack volte do mundo real.

Segundo Burton, as costuras de Sally e da Mulher Gato representariam:

(...) that whole psychological thing of being pieced together. Again, these are all symbols for the way that you feel. The feeling of not being together and of being loosely stitched together and constantly trying to pull yourself together, so to speak. (BURTON, Tim; SALISBURY, Mark (org.). Burton on Burton. 2.ª ed. Londres: Faber and Faber, 2006, p. 123).

Mais uma vez, Burton dá dimensão visual e física aos conflitos internos do personagem, como fez em seus dois personagens de criação anteriores, Vincent e Edward.

Progressivamente, os personagens femininos de Burton passarão a ganhar destaque em seus filmes. Desde Kathy O’Hara, a esposa dedicada de Ed Wood (1994), passando pelas heroínas Katrina Van Tassel, personagem de Christina Ricci em A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça (1999), e a rebelde chimpanzé Ari, personagem de Helena Bonham Carter em Planeta dos Macacos (2001), até a protagonista de seu segundo filme de animação, A Noiva Cadáver (2005).

Francine Fabiana Ozaki, The melancholy death of oyster boy & other stories’, de Tim Burton: crítica e tradução. Curitiba, Universidade Federal do Paraná - Sector de Ciências Humanas, Letras e Artes, 2013.

sábado, 14 de março de 2015

O Zero que sofria de doença poética





 A TRISTE HISTÓRIA DO ZERO POETA

A si mesmo se dedica

Numa certa conta havia
um zero dado à poesia
que tinha um sonho secreto:
fugir para o alfabeto.

Sonhava tornar-se um O
nem que fosse um dia só,
ou ainda menos: só
o tempo de dizer: «Oh!»

(Nos livros e nas seletas
o que mais o comovia
eram os «Ohs!» que os poetas
metiam nas poesias!)

Um «Oh!» lírico & profundo,
um só «Oh!» lhe bastaria
para ele dizer ao mundo
o que na alma lhe ia!

E o que na alma lhe ia!
Sonhos de glórias, esperanças,
ânsias, melancolia,
recordações de criança;

além de um grande vazio
de tipo existencial
e de uma caixa que o tio
lhe pedira para guardar;

e ainda as chaves do carro
e uma máscara de entrudo...
Não tinha bolsos, coitado,
guardava na alma tudo!

A alma! Como queria
gritá-la num «Oh!» sincero!
Mas não passava de um zero
que, oh!, não se pronuncia...

Daí que andasse doente
de grave doença poética
e em estado permanente
de ansiedade alfabética.

E se indignasse & etc.
contra o destino severo
que fizera dele um zero
com uma alma de letra!

Tanta ambição desmedida,
tanto sonho feito pó!
E aquele zero dava a vida
para poder dizer «Oh!»...

Manuel António Pina, O Pequeno Livro da Desmatemática



Audição do poema: aqui e aqui.

No poema «A triste história do zero poeta» o protagonista é o algarismo Zero, que revela uma densidade psicológica e afetiva muito distante da objetividade numérica, mas muito perto da vivência humana.
A manifestação do forte desejo de realização de «um sonho secreto» (Pina, 2001: 18), «fugir para o alfabeto» e tornar-se um «O» (note-se, aqui, a aproximação expressiva entre a forma do algarismo «0» e da letra maiúscula «O»), bem como a vontade de «dizer ao mundo» quer os «sonhos de glória, esperanças, / ânsias, melancolia, / recordações de criança», quer «um grande vazio de tipo existencial / e de uma caixa que um tio / lhe pedira para guardar; // e ainda as chaves do carro / e uma máscara de entrudo…» – porque «Não tinha bolsos, coitado, / guardava na alma tudo!» – fazem deste «zero dado à poesia» uma figura simultaneamente dramática e cómica.

Sara Reis Silva, “Coisas que não há que há: a escrita poética para a infância de Manuel António Pina” in Actas do 6º Encontro Nacional (4º Internacional) de Investigação em Leitura, Literatura Infantil e Ilustração. Braga, Universidade do Minho, outubro 2006.










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