sábado, 23 de julho de 2016

Poemas de amor do antigo Egipto


CONVERSAS NA CORTE

DIZ ELE:

Amada, és única, de ti não se fez duplicado,
Com mais encanto do que todas as mulheres,
luminosa, perfeita,
Uma estrela que desce sobre o horizonte pelo novo ano,
um bom ano,
Esplêndida nas cores que traz
e de sedução a cada olhar.
Os seus lábios são encantamento,
o seu pescoço tem o tamanho certo e os seios uma maravilha;
O seu cabelo lápis-lazúli a brilhar,
os seus braços de mais esplendor que o oiro.
Os seus dedos fazem-me ver pétalas,
as do lótus são assim.
As suas ancas foram modeladas como deve ser,
as suas pernas acima de outra beleza qualquer.
Nobre a forma como anda
(vera incessu)
Meu coração seu escravo ficaria se a mim se abrisse.
As cabeças voltam-se — por culpa sua
para a seguirem com o olhar.
Afortunado o que a puder abraçar plenamente;
será o número um entre todos os jovens amantes.
Deo mi par esse
Todo o olhar a vai seguindo mesmo quando desapareceu fora do alcance.
Singular deusa, sem igual.

[…]

DIZ ELA:

O meu coração rebenta quando penso em como o amo,
Não sou capaz de me comportar como outra pessoa qualquer.
Ele, o coração, está em desordem
Não me deixa escolher um vestido
ou esconder-me atrás de um leque.
Não consigo pôr pintura nos olhos nem optar por um perfume.
«Não páres, entra dentro da casa
Foi o que disse o coração uma vez,
E ainda diz sempre que penso no amado.
Não me faças fazer figuras, coração meu. Por que és tão idiota?
Aquieta-te! Mantém-te calmo
e ele há-de vir ter contigo.
A minha cautela não permitirá que as pessoas digam:
A rapariga está perturbada de amor.
Quando te lembrares dele
firme e forte, não me abandones.

Conversas na corte in Poemas de amor do antigo Egipto
Lisboa, Assírio Alvim, 1998, Tradução de Hélder Moura Pereira


Flor de Lotus (National Papyrus Center, Giza, Egipto)


CANÇÕES DE ALEGRIA DA AMADA QUE SE VAI ENCONTRAR CONTIGO NOS CAMPOS

I

Tu, minha és, meu amor,
O meu coração esforça-se para alcançar o cimo do teu amor.

, encanto, a armadilha que montei com as minhas
próprias mãos.

os pássaros de Punt,
Perfume de asas
Como chuva de mirra
Caindo sobre o Egipto.

Vamos ver o trabalho que as minhas mãos fizeram,
Vamos os dois, juntos por esses campos.

II

O guincho do ganso selvagem
Incapaz de resistir
À tentação do meu isco.

Enquanto eu, na confusão do amor,
Incapaz de o apanhar, Fico a ver a ave levar as redes com ela.

E quando a minha mãe voltar, carregada de aves,
E me vir de mãos vazias,
Que lhe vou dizer?

Que não apanhei ave alguma?
Que fui eu a ficar apanhada nas tuas redes?

III

Mesmo quando as aves levantam voo
Em ondas e ondas de grande debandada
Eu nada vejo, fico cega
Apanhada como estou e ausente
Dois corações obedientes no seu bater
A minha vida ligada à tua
A tua beleza o elo.

IV

Sem o teu amor, o meu coração não bateria mais;
Sem o teu amor, um bolo doce parece salgado;
Sem o teu amor, o doce «shedeh» sabe a fel.
Ó, amado, a vida do meu coração precisa do teu amor.
Pois quando respiras, meu é o coração que bate.

V

Com sinceridade confesso o meu amor;
Amo-te, sim, e desejo amar-te ainda mais de perto;
Como dona da tua casa,
O teu braço posto sobre os meus.

Ai de mim por teus olhos vagos.
Digo ao meu coração: «O meu amo
Partiu. Durante
A noite partiu
E deixou-me. Sinto-me um túmulo».
E a mim própria pergunto: Não fica nenhuma sensação,
quando vens até mim?
Mesmo nenhuma?

Ai de mim por esses olhos que te afastaram do caminho,
Sempre tão vagos.
E apesar disso confesso com sinceridade
Que andem eles por onde andarem
Se vierem ter comigo
Eu reentro na vida.

VI

A andorinha canta: «Aurora,
Para onde se foi a aurora

Assim se vai também a minha noite feliz
O meu amor na cama ao meu lado.

Imagine-se a minha alegria ouvindo o seu murmúrio:
«Jamais te deixarei», disse-me.
«Com a tua mão na minha passearemos
Por todos os mais belos caminhos».

Demais a mais ele quer que o mundo saiba
Que de entre todas as mulheres sou a primeira
E que o meu coração nunca mais há-de ficar triste.

VII

A cabeça assomando à porta
Será ele que vem?

Ouvidos à escuta dos seus passos,
E um coração que nunca pára de falar dele.

Um mensageiro:
«Não me sinto bem...»
Porque não vem ter comigo
E me diz
Que encontrou outra rapariga?
Outro coração que há-de sofrer.

VIII

Assim sofro pelo amor perdido
O desgosto fez-me perder metade do cabelo.

Vou pô-lo aos caracóis e arranjá-lo,
Pronta para o que der e vier...

Canções de alegria da amada que se vai encontrar contigo nos campos
 in Poemas de amor do antigo Egipto
Lisboa, Assírio Alvim, 1998, Tradução de Hélder Moura Pereira


CANÇÕES ALEGRES

Ó flores de Mekhmekh, dai-nos a paz!
Por ti seguirei o que o coração ditar.

Quando me abraças
A luz que de ti vem brilha tanto
Que até preciso de bálsamo nos olhos.

Tendo a certeza que me amas
Aconchego-me junto a ti.

O meu coração está seguro de que entre todos
Os homens tu és o mais importante.

O mundo todo brilha
O meu desejo é podermos dormir juntos,
Como agora, até ao fim da eternidade.

II

São tão pequenas as flores de Seanu
Que quem as olha se sente um gigante.

Sou a primeira entre os teus amores,
Como jardimpouco regado de ervas e perfumadas flores.

Ameno é o canal que tu cavaste
Pela frescura do vento norte.

Tranquilos os nossos caminhos
Quando a tua mão descansa na minha em alegria.

A tua vozvida, como o néctar.

Ver-te é mais do que alimento e bebida.

III

flores de Zait no jardim.
Corto e junto flores para ti,
Faço-te uma grinalda,
E quando ficares ébrio
E te deitares com esse sono,
Sou eu quem te lava os pés para lhes tirar o .

Canções alegres”,  in Poemas de amor do antigo Egipto
Lisboa, Assírio Alvim, 1998, Tradução de Hélder Moura Pereira



CANÇÕES DO JARDIM

I

Fala a romãzeira:
As minhas folhas são como os teus dentes
Os meus frutos como os teus seios.
Eu, o mais belo dos frutos,
Estou presente em cada tempo que fizer, em todas as estações.

Tal como o amante junto da amada para sempre,
Ébrio de «shedeh» e vinho.

Todas as árvores perdem as folhas, todas
Excepto a romãzeira.
Eu sozinha em todo o jardim não perco a beleza,
Permaneço firme.
Quando as minhas folhas caem,
outras folhas nascem dos botões.

Sendo a primeira entre os frutos
Exijo que essa posição seja reconhecida,
Não aceitarei um segundo lugar.

E se houver de novo algum insulto
Não haveis de ouvir dele o seu final.

……………….........
Com os lótus em flor
E os lótus em botão,
E óleos e doce mirra de toda a espécie,
Estarás entre os mais contentes
Poisquem se lembre do pavilhão das rosas
E cuide bem dele.

..................
está ele!
Subamos para o abraçar
E fazer com que aqui fique o dia todo.

II

Ouve a voz da figueira:
Saudações à minha amada.
Quem mais digno do que eu?
Porque não eu teu servo, se não tens nenhum?
Trouxeram-me da Síria
Para prémio dos amantes.

Bebo todo o dia, não água do odre, mas beleza.

III

O pequeno sicômoro que com as tuas próprias mãos plantaste
Move a boca para falar.

Como são graciosos os seus ramos, graciosos
Quando abanam e, ao abanar, murmuram
Um murmúrio tão doce como o mel.

Os ramos dobram-se pesados de frutos
Mais vermelhos do que o jaspe de vermelho-sangue,
De folhas como a malaquite.

Trazem-tos de muito longe
Para ti que não estás ainda em tua fresca sombra.
Recebes a sedutora carta de amor
Das mãos daquela jovem rapariga,
Filha do chefe dos jardineiros,
Vai a correr ter com o amado, diz-lhe
«Vamos para um sítio mais sossegado».

O jardim está em pleno esplendor,
Com os seus pavilhões de tendas;
E tudo para ti.

Os meus jardineiros ficam contentes por te ver.

Manda aos teus escravos que tragam os instrumentos musicais,
Prepara-te para a festa.

Ir a correr ao teu encontro é água fresca
Para um homem que está com sede.

Os teus servos estão a chegar com cerveja de todas as qualidades,
Bolos, pastéis, flores frescas a extravasar
dos cestos, e fruta fresca acabada de colher.

Fica um dia, um dia de felicidade,
E amanhã, e depois de amanhã,
Três dias inteiros à minha sombra.

O que foi escolhido senta-se à sua direita,
Enche-a de licores
Até estar pronta para o que ele lhe disser.

Com toda a gente ébria, aos tombos,
Ninguém suspeitando do que se está a passar,
Ele prossegue com zelo o caminho que traçou.

E é tudo o que posso dizer:
A minha discrição é tal
Que do que se passou a seguir
Nem uma sugestão deixarei.

Canções do jardim”,  in Poemas de amor do antigo Egipto
Lisboa, Assírio Alvim, 1998, Tradução de Hélder Moura Pereira




sexta-feira, 22 de julho de 2016

Amor é fogo

Javier Calleja

Amor é um fogo que arde sem se ver,
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente,
É dor que desatina sem dor.
É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário por entre a gente;
É um nunca contentar-se de contente;
É cuidar que ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanas amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
Luís de Camões


Audição do poema:


Amor é  fogo que arde sem se ver (Luís Represas & João Gil)




Linhas de leitura:
  • A utilização da forma verbal «é», ao longo do soneto, revela que o sujeito poético procura definir o Amor. A repetição dessa forma verbal indica que o Amor é um conceito difícil de definir, obrigando-o a recomeçar.
  • O Amor desperta no sujeito poético sentimentos contraditórios, bons e maus («é contentamento descontente»; «é dor que desatina sem doer»).
  • A metáfora é usada para definir expressivamente o Amor («Amor é um fogo»).
  • O oximoro é o recurso expressivo dominante no poema, sendo usado para mostrar as contradições que o Amor provoca («é ter com quem nos mata, lealdade»).
  • A expressão «fogo que arde» é um pleonasmo porque a palavra «arde» repete uma ideia já presente na palavra «fogo».
  • O último terceto tem uma estrutura diferente das estrofes anteriores, pois o sujeito poético interrompe as tentativas de definição do Amor, não entendendo como pode ser um sentimento tão bom, presente nos nossos corações, sendo tão contraditório.

Questionário:

Apresente, de forma estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem sobre a leitura do soneto “Amor é um fogo que arde sem se ver”, de Luís de Camões.

1. Explicite, baseando-se nas duas quadras do soneto, três dos aspectos com que o sujeito poético procura definir o «Amor».

2. Caracterize três das atitudes do amador face ao ser amado, tendo em conta o primeiro terceto.

3. Descreva dois dos efeitos de sentido produzidos pela anáfora presente no soneto.

4. Comente a importância do último terceto na construção do sentido global do poema.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. Nas duas quadras do soneto, o «Amor» é definido, entre outros, pelos seguintes aspetos:

– sofrimento invisível, mas devastador («fogo» – v. 1);

– dor similar à dor física, apesar de não ser percebida pelos sentidos (vv. 1, 2 e 4);

– fixação no ato de amar (v. 5);

– insatisfação constante, num desejo crescente de plenitude (v. 7);

– dificuldade de avaliação das situações por parte do amador (v. 8);

– ...

 

2. De acordo com o primeiro terceto, o amador toma, entre outras, as seguintes atitudes face ao ser amado:

– aceitação do estado de privação de liberdade relativamente a quem ama (v. 9);

– submissão voluntária ao ser amado, assumindo o papel de seu servidor (v. 10);

– fidelidade absoluta ao objeto de amor, apesar de o amador poder não ser correspondido no seu sentimento (v. 11);

– aceitação do sofrimento, causado pelo próprio excesso do amor («quem [...] mata» – v. 11);

– ...

 

3. A anáfora produz, entre outros, os seguintes efeitos de sentido:

– dá conta do processo de busca – por tentativas sucessivas – da definição de «Amor»;

– revela a complexidade do conceito de «Amor», pelo amplo leque de definições apresentadas;

– demonstra a impossibilidade de definir o conceito de «Amor», dada a sua natureza intrinsecamente paradoxal;

– …

 

4. A última estrofe (chave do soneto) estabelece uma relação de contraposição com as anteriores, na medida em que, pelo recurso à adversativa «Mas» e pela interrogação retórica, nela se opera uma inflexão no discurso do «eu», problematizando a relação dos indivíduos com um sentimento tão contraditório. Com efeito, a relação que o terceto final estabelece com as estrofes anteriores acentua a ideia de que a dimensão paradoxal, inerente ao estado de amorosa paixão, não minimiza o poder do «Amor», dada a predisposição natural dos «corações humanos» para a vivência desse sentimento. Na verdade, a interrogação enfática do último terceto não passa de uma aparente perplexidade do sujeito lírico, o qual sublinha, por este processo retórico, a última das contradições que o amor revela.

 

(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário (Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março) - Prova Escrita de Literatura Portuguesa n.º 734 e respetivos critérios de classificação - 11.º ou 12.º anos de Escolaridade. Portugal, GAVE, 2008, 1.ª Fase)

 


"No te puedo sacar de mi mente", Andrea Salvatori, 2016




Sugestão de escrita expressiva e lúdica:
  • Escreve uma quadra em que continues a definir o amor, utilizando metáforas e oxímoros, à semelhança de Luís de Camões. Mantém a estrutura utilizada pelo poeta, iniciando o primeiro verso por «Amor é» e os restantes por «é». Tenta igualmente respeitar o esquema rimático abba. 
(Adaptado de P8 Português – 8.º Ano, Ana Santiago e Sofia Paixão, Texto Editora, 2012)


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 (Repassado por correio eletrónico em 2003-02-24)