Gilbert Garcin, "Le funambule", 2002 |
quinta-feira, 11 de janeiro de 2018
No meio do caminho da nossa vida ou o valioso tempo dos maduros (Mário de Andrade)
sábado, 16 de dezembro de 2017
Arquivo Digital do “Livro do Desassossego”
O Arquivo Digital do “Livro do Desassossego” já está online. E tem muitas histórias para contar
Depois de seis anos de trabalho, o Arquivo Digital Colaborativo do "Livro do Desassossego" está pronto e permite consultar e comparar as quatro principais edições da obra de Bernardo Soares.
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Fernando Pessoa
- Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da
obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha
de Poesia, 17-05-2018.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html
sexta-feira, 15 de dezembro de 2017
Como nasce a poesia, nas palavras de Edgar Allan Poe
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.
Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
"É o vento, e nada mais."
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigos, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".
Disse o corvo, "Nunca mais".
A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este "Nunca mais".
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele "Nunca mais".
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!
Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".
"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
E a minhalma dessa sombra que no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!
sexta-feira, 8 de dezembro de 2017
Ary dos Santos
Um transgressor à conquista dos reinos da poesia.
Chegam uns meninos de mota,
Com a china na bota e o papá na algibeira
São pescada marmota que não vende na lota
Que apodrece no tempo e não cheira
Porque o tempo
É a derrota
Chegam criaturas fatais
Muito intelectuais tal como a fava-rica
Sabem sempre de mais,
Escrevem para os jornais com canetas molhadas na bica
E a inveja (sim, a inveja!)
É quanto fica
Como quem está num chá dançante
Duas velhas de penante depenicam uma intriga
Debicando bolinhos vários
Dizem mal dos operários que são a espécie inimiga
Chegam depois boas maneiras
Com anéis e pulseiras e sapatos de salto
São as bichas matreiras que só dizem asneiras
São rapazes pescado do alto
E o que resta
É pó de talco
Chegam depois os vagabundos
Que por falta de fundos não ocupam a mesa
Têm olhos profundos,
Vão atrás de outros mundos que pagaram com sono e beleza
Mas o troco
É a pobreza
Chegam finalmente os cantores
Os que fazem as flores neste mundo de gente
São os modernos trovadores
Que adormecem as dores numa bica bem quente
Como quem está num chá dançante
Duas velhas de penante depenicam uma intriga
Debicando bolinhos vários
Dizem mal dos operários que são a espécie inimiga
Chegam depois boas maneiras
Com anéis e pulseiras e sapatos de salto
São raposas matreiras que só dizem asneiras
Sâo rapazes pescado do alto
E que resta
(Evidentemente que é) Pó de talco
Chegam depois os vagabundos
Que por falta de fundos não ocupam a mesa
Têm olhos profundos,
Vão atrás de outros mundos que pagaram com sono e beleza
Mas o troco
É sempre a pobreza
Chegam finalmente os cantores
Os que fazem as flores neste mundo de gente
São os modernos trovadores
Que adormecem as dores numa bica bem quente
A veia
criadora e declamadora de Ary dos Santos
por Lucas Brandão, 2020-03-26
José Carlos Ary dos Santos fez história em Portugal. Deu
a voz a muita poesia portuguesa mas, e acima de tudo, compôs imensas canções que
fizeram do fado ser quem é atualmente. Acima de tudo, um género musical
identitário, com um repertório relativamente amplo e bem conseguido. Para este,
contribuiu muito o génio criativo, que, para além de proporcionar quatro
canções que representaram Portugal no Festival Eurovisão da Canção, deu o mote
para o sucesso da carreira de fadistas consagrados atualmente, como Amália Rodrigues ou
Carlos do Carmo. Esquecido por via da sua morte precoce, é portador de um
legado que importa ser relembrado e bem louvado.
José Carlos Pereira Ary
dos Santos nasceu em Lisboa, no dia 7 de dezembro de 1937. Seria nesta mesma
cidade que viria a partir, aos 46 anos de idade, no dia 18 de janeiro de 1984.
Nasceu numa família de raiz aristocrata, descendentes do Conde de Palmela e do
Visconde de Manique, importantes figuras nobiliárquicas no século XIX. Começou
a sua formação no Colégio Infante Sagres, mas o seu comportamento irrequieto e
rebelde levá-lo-ia a ser expulso. Um breve período num colégio jesuíta a norte,
em Santo Tirso, permitiu que regressasse a Lisboa, onde estou no Colégio São
João de Brito. A morte da sua mãe e a relação distante com o pai – saiu de casa
ainda adolescente – obrigou-o a procurar o seu sustento como escriturário no
Casino Estoril e no ramo das vendas e da publicidade, onde usufruiu de algum
sucesso criativo. Ainda chegaria a ingressar na Faculdade, em Direito e, algum
tempo depois, em Letras, mas deixaria por terra os seus intentos académicos.
Lançaria, porém, o seu primeiro livro em 1963, com pouco mais de vinte anos,
com a coletânea de poesia “A Liturgia do Sangue”, assim como a peça “Tempo da
Lenda das Amendoeiras” no ano seguinte. A poesia seria algo incentivado pela
sua família desde cedo mas Ary não gostava do que escrevia, tanto que se
chateou quando a sua família publicou “Asas” (1953) quando este tinha somente
14 anos. Seis anos depois, a sua vida conheceria um novo contributo ao seu
caráter irascível quando se juntou à Comissão Democrática Eleitoral e ao
Partido Comunista, com quem pôde usufruir de sessões de poesia que cativaram o
seu gosto pela escrita e declamação.
A poesia e, a
juntar a esta, a música seriam as vias pelas quais chegaria a um público cada
vez mais amplo, ajudando a renovar o panorama da música portuguesa. Em muito
contribuiu ter composto quatro canções bem-sucedidas para o Festival da Canção.
“Desfolhada Portuguesa” (1969, interpretada por Simone de Oliveira), “Menina do
Alto da Serra” (1971, na voz de Tonicha), “Tourada” (1973, cantada por Fernando
Tordo), e “Portugal no Coração” (1977, dada a conhecer pela banda Os Amigos,
que juntou nomes como Fernando Tordo, Paulo de Carvalho e Ana Bola) foram os
quatro êxitos que compôs, com um tom ousado para então, que tocava em temas
sensíveis e até tabu então. A estes, juntou-se uma relação de colaboração com
Tordo que ascendeu a mais de 100 poemas para músicas. “Estrela da Tarde”,
“Lisboa Menina e Moça” ou “Cavalo à Solta” são algumas das canções que viriam a
advir dessa frutífera parceria, às quais se juntaram outras, como “Os Putos” ou
“Quando um Homem Quiser”, aqui com a voz de Paulo de Carvalho.
Músicas como “Fado do
Campo Grande”, “Um Homem na Cidade”, “Namorados de Lisboa” ou “Fado Varina”
dariam um contributo forte para a consolidação do fado como género musical e
fariam parte de uma compilação de outra voz bem conhecida, a do fadista Carlos
do Carmo, num álbum de seu nome “Um Homem na Cidade” (1977, toda ela com
composições de Ary dos Santos). A particularidade da sua composição passava por
um registo leve mas cuidado, atento àquilo que seria, para si, a voz de um povo
e o que este merecia. “Ary Por Si Próprio” (1970) e, já depois da queda do
Estado Novo, “Poesia Política (1974) e “Ary por Ary” (1979) exemplificam essa
voracidade. A sua criação fora da música também merecia alguma atenção por
parte da televisão, como a representação de “Azul Existe” no Teatro Tivoli a
ser transmitida na RTP. A notoriedade que conseguiu fez com que se movimentasse
muito dentro do país, recitando poesia e envolvendo-se em eventos
protagonizados com outros cantores de intervenção, como Zeca Afonso ou José Mário Branco.
Nesta fase, já
havia chegado o 25 de abril, que marcou o fim do regime ditatorial e o início
da democracia, que abriu portas à afirmação da esquerda, à qual Ary dos Santos
procurou emprestar a sua voz e, por vezes, a sua presença em manifestações e
até assaltos de forças mais radicais. Tinha sido visado pela Censura,
nomeadamente com a publicação de livros de poesia como “Adereços, Endereços”
(1965), “Insofrimento in Sofrimento” (1969) e “Fotos-grafias” (1971), revendo
os ganhos de abril com “As Portas que Abril Ganhou” (1975). Cada vez mais
se foi tornando numa figura incontornável da cultura portuguesa enquanto foi
redigindo mais centenas de poemas e gravando inúmeras declamações, tanto de
prosa como de poesia, com nomes consagrados da música nacional, como José Mário Branco ou
até António Victorino d’Almeida, e os intérpretes Amália Rodrigues (destaque
para “Cantigas de Amigos, álbum de 1971 que também contou com a participação da
autora Natália Correia) e Tony de
Matos. Um dos destaques a solo desta senda discográfica foi a leitura de “O
Sermão de Santo António aos Peixes”, do Padre António Vieira, uma das obras de
referência do barroco português. Antes da sua morte se fazer chegar, prepararia
uma antologia dos últimos quinze anos da sua carreira lírica com “As Palavras
das Cantigas” (lançado postumamente em 1984) e não chegaria a concluir a sua
autobiografia, mais romanceada que meramente fictícia, em “Estrada da Luz – Rua
da Saudade”.
Seria vítima dos seus
vícios, do tabaco e, especialmente, do álcool e de gim, tendo sido vítima de
uma cirrose no início do ano de 1984. Foi uma perda inconsolável para a cidade
de Lisboa e para Portugal, mas a capital do país sentiu-a como ninguém deste
seu filho, que, mesmo sendo um choque para a falange mais conservadora do país
– era homossexual -, granjeou um estatuto marcante para a cultura popular. Em
Alfama, foi dado o seu nome a um largo e foi homenageada a sua residência de
longa data, na Rua da Saudade – rua que iria dar nome ao seu retrato literário.
As homenagens por parte de ex-colegas seus tornaram-se incontáveis, sendo
vários os discos de homenagem ao seu trabalho e à sua pessoa, nomeadamente de
Fernando Tordo ou de Carlos do Carmo. O “poeta do povo” chegaria à honra de
grande-oficial da Ordem do Infante D. Henrique em 2004, no meio de todas essas
considerações.
Ary dos Santos
permanece, ainda hoje, como uma referência na composição musical em Portugal
nos meados do século XX. Influenciou a música popular, desde as típicas baladas
até ao fado, para além de se esforçar por aproximar a poesia do povo. O seu
envolvimento político e social é disso exemplo, socorrendo-se dos seus dotes
criativos para criar e entoar a poesia como música, com uma pujança que
ressoava na voz estridente de Ary. A sua memória, por mais que esquecido seja o
seu nome, permanece bem viva, ainda ao som dos atuais fadistas, mas também de
outros artistas lusófonos, admiradores da sua veia lírica. Uma veia que criou e
declamou com a força de poucos e com a virtude de ainda menos.
Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/a-veia-criadora-e-declamadora-de-ary-dos-santos/