Em
Lixboa, sobre lo mar | Joan Zorro
A cantiga de amigo “Em
Lixboa, sobre lo mar” (texto que a seguir transcreve, integrado num
poema do século XX) encontra-se registada nos cancioneiros B (Biblioteca Nacional,
nº 1157) e V (Vaticana, nº 759).
Trata-se de uma cantiga
de amigo (marinha), de dístico de rima toante (í-o e á-o), com refrão composto
de duas partes (uma intercalada entre o 1º e o 2º verso do dístico e a outra no
final da estrofe): fala a donzela (namorada) da sua decisão ou desejo de ir ver
o barco / navio, que o rei mandou preparar para uma missão e nela deseja partir
com o seu amigo. É seu autor João Zorro, o jogral de Lisboa e do Tejo (viveu
certamente durante o reinado de D. Dinis), e sobretudo das suas barcas, tão bem
evocadas no século XX por Fiama Hasse Pais Brandão. https://estrolabio.blogs.sapo.pt/394297.html
Em Lixboa, sobre lo mar,
barcas novas mandei lavrar,
ai mia senhor veelida!
Em Lixboa, sobre lo lez,
barcas novas mandei fazer,
ai mia senhor veelida!
Barcas novas mandei lavrar
e no mar as mandei deitar,
ai mia senhor veelida!
Barcas novas mandei fazer
e no mar as mandei meter,
ai mia senhor veelida!
João Zorro
Lisboa tem suas barcas
agora lavradas de armas
Lisboa tem barcas novas
agora lavradas de homens
Barcas novas levam guerra
as armas não lavram terra
São de guerra as barcas novas
no mar deitadas com homens
Barcas novas são mandadas
sobre o mar com suas armas
Não lavram terra com elas
os homens com sua guerra
Nelas mandaram meter
os homens com sua guerra
Ao mar mandaram as barcas
novas lavradas de armas
Em Lisboa sobre o mar
armas novas são mandadas.
Fiama Hasse Pais Brandão, Barcas
Novas, Lisboa: Editora
Ulisseia, 1967, p.9.
Tópicos
de análise:
- Estrutura formal do poema e sua relação com o conteúdo;
- Poema de intervenção;
- Relações intratextuais com a lírica trovadoresca;
- Atualidade do tema.
Sobre o
poema “Barcas novas”, de FHPB:
Este poema
é constituído por
dois poemas para mostrar o próprio
processo de recriação:
o segundo poema retoma a forma da Cantiga de Amigo e canta o sentimento de dor
e tristeza causado pela partida dos soldados para a guerra colonial. O
ritmo e a repetição das
palavras produzem um jogo de sentidos que mostram que a Guerra não tem sentido. Este poema faz referência a uma fase dolorosa da história de Portugal: a Guerra Colonial.
Fiama Hasse
Pais Brandão toma como
epígrafe um poema antigo – mais especificamente uma cantiga de amor de João
Zorro (B
1151ª-1152ª, V 754) –
que, citado integralmente, se incorpora ao texto do presente como parte
essencial dele.
Inicialmente,
somos levados a ler esse poema a partir dos conceitos de dialogismo e
bivocalidade propostos por Bakhtin (2008). Em um movimento paródico, o poema de
Fiama toma o texto de João Zorro como ponto de partida, e, usando o mesmo
vocabulário e o mesmo estilo da Cantiga de Amor original, cria com ela um
diálogo no qual se contrapõem perspectivas passadas e presentes. Na epígrafe,
é dado um tema, o do trabalho humano ligado ao mar que se materializa na forma
de barcas; no desenvolvimento feito por Fiama, as barcas são qualificadas, não
são barcas quaisquer, mas barcas lavradas de armas que partem para destruir.
Assim, o segundo texto propõe em relação ao primeiro uma mudança significativa:
nele o lavrar do poema base – que tem o teor de sacrifício, trabalho e
também de oferenda (afinal as barcas parecem estar sendo ofertadas à bela
senhora aludida no refrão) – se faz presente, mas ganha por complemento uma
série de novos objetos perversos e malignos. Em um movimento de contínuas
substituições, que mimetiza em parte a estrutura paralelística da cantiga de
Zorro,5 a autora termina por fazer
com que todos esses termos – a saber, homens, armas, barcas e guerra – se
equivalham ao final. O resultado é um suplemento de sentido que subverte a
integridade do poema original: o que está aqui em questão não é mais um
trabalho que gera valor (barcas), mas um trabalho que produz só perda e morte,
uma vez que é um trabalho de guerra.
O contexto
português, no qual ambas as produções se inserem, torna essa contraposição
particularmente significativa. Lembremos que o trabalho com o mar é uma das
tradições mais fortes desse país que é rico em litoral e pobre em terras
agricultáveis. Assim, ao se colocarem frente a frente, os dois poemas mostram
dois lados (ou ainda, dois momentos) de uma discussão maior que toca questões
relativas a história e a identidade nacional portuguesa. No primeiro desses
momentos, teríamos representado o mundo da tradição: um mundo no qual os
objetos são produzidos a partir de saberes e técnicas aprendidas com os
antepassados, carregam uma experiência humana e comunitária, inserindo-se de
maneira integrada na vida daqueles que os fabricam e utilizam. Nesse mundo, o
poeta, que naturalmente se vincula ao seu meio, aos costumes orais do seu povo
e à memória herdada do passado, lembra muito o próprio artesão em seu fazer
(BENJAMIN, 1980, p. 63). Em oposição direta e contrária a isso, temos, no
segundo momento, o mundo moderno do trabalho reificante e alienado. Aqui, não
está em questão a manufatura de um novo objeto que se integra a seu meio (como
a barca, que depois de pronta ganha o mar e toca o coração da bela dama do
refrão); o lavrar invocado por Fiama não indica um fazer real, mas é
metáfora de um antitrabalho (o trabalho de destruição que já mencionamos
acima).
O que Fiama
Hasse Paes Brandão nos mostra – e a disposição dos dois blocos de texto na
página sugere justamente isso – é que os gestos encenados por ela e por Zorro
em seus respectivos poemas são equivalentes e complementares. No momento em que
o povo português coloca seus barcos no mar, descobre o caminho para as Índias e
posteriormente para a América, ele inaugura a empresa colonial. Com ela tem
início um grande movimento socioeconômico que culminará não só na subversão de
todo um modo de produção tradicional,6 mas,
em última instância, na própria guerra.
O que temos
aqui, ao final das contas, é um modo único de invocar poeticamente uma obra do
cânone. Segundo nossa interpretação, o texto de João Zorro não entra aqui como
simples ponto de diálogo, ou como referência a ser ratificada ou desconstruída.
Ao citar na integralidade a cantiga e dar a ela um espaço na página equivalente
a do seu próprio texto, Fiama a conclama, com toda a sua força, a vir integrar
o tempo presente. O resultado é que ela passa a ter, dentro do poema, o mesmo
estatuto que os versos da poeta portuguesa, com os quais se conjuga então para
formar algo novo. Opostas e espelhadas, a Cantiga de João Zorro e as estrofes
de Fiama se unem como as duas metades de um mesmo problema para formar então o
texto maior que é “Barcas novas”.
“O mar, a nau,
a batalha: a sobrevivência das formas na Antologia da memória poética da
Guerra Colonial”, Lisa
Carvalho Vasconcellos. ABRIL
– Revista do NEPA/UFF, Niterói, v.10, n.20, p. 79-90, jan.-jun. 2018
Atentemos, agora, noutra variação contemporânea a partir da cantiga do jogral medieval.
EM LISBOA, SOBRE O MAR
Cantiga à maneira de Joan Zorro
Em Lisboa, sobre o mar,
Cantiga à maneira de Joan Zorro
Em Lisboa, sobre o mar,
minha
senhora tão linda,
barcas
novas vou lavrar
e
dentro delas cantar
uma
canção que não finda.
Nessas
barcas, sobre o mar,
esta
cantiga tão linda
em
Lisboa vou cantar,
Senhora,
por te louvar
Queria
uma vida infinda.
Barcas
novas vou levar,
senhora
minha, tão linda,
e
nessas águas cantar
em
teu louvor, sobre o mar,
uma
canção de atafinda.
Uma
canção sobre 0 mar,
minha
senhora tão linda,
Em
Lisboa vou cantar
Apenas
por te louvar
Meu
coração pulsa ainda.
José Rodrigues de Paiva, O breve fulgor do tempo: poesia
reunida
Companhia Editora de Pernambuco - Cepe, 2019
A cantiga é, na verdade, uma forma medieva "equivalente à cansó provençal ou à chanson francesa", uma estrutura poética tradicionalmente destinada ao canto e à instrumentação. À maneira de Joan Zorro — trovador que viveu entre o final do século XIII e o início do século XIV —, José Rodrigues de Paiva utiliza a quintilha com o esquema rimático ABAAB e o verso heptassilábico, a redondilha maior, medida que, como leciona Amorim de Carvalho (1904-1976) em Teoria geral da versificação, é o verso "[...] por excelência das canções populares e dos nossos romanceiros. De grande maleabilidade, pela sua acentuação incerta, presta-se a todas as expressões emocionais e a todos os temas." A composição evoca o mar lisboeta com as suas barcas. Enquanto trovador, o sujeito lírico louva a beleza da senhora. Mas exalta, também, como num metapoema moderno, o seu próprio canto.
Partindo da cantiga medieva de João Zorro, organizada em dois pares de dísticos de paralelismo semântico — anafóricos e intercomunicantes (o 2º v. do 1º é o 1º do 3º e o 2º do 2º é o 1º v. do 3º), unificados pelo refrão, José Rodrigues de Paiva cria o seu poema — Em Lisboa sobre o mar.
Mantém um verso tradicional, a redondilha maior, mas amplia a estrofe e o seu número. Opta, assim, pela quintilha, elaborando quatro, e funda a intertextualidade, prendendo-se de imediato ao 1.9 verso e disseminando vocábulos que configuram uma ordem lexemática de marinha ou barcarola: barcas novas.
O sujeito poético entra num discurso dialógico mitigado: distribui pelo poema uma série de apóstrofes que, recorrentemente, constroem uma cantiga de amor: minha senhora tão linda, Senhora, senhora minha, minha senhora tão linda. De notar que é na circularidade da 1.ª, na força expressiva da sua função emotiva, que o texto se conclui. O movimento de adoração é verdadeiramente em anábase, uma vez que ao ritmo contínuo dos três versos finais se soma a declaração do trovador moderno:
Apenas por te louvar
Meu coração pulsa ainda
Misto de cantiga de amor e
de barcarola ou marinha, o poema de José Rodrigues sugere o fluxo e refluxo das
águas, o seu movimento dual, não só por meio do isomorfismo, mas também do
esquema rimático regular, igualmente dual: a / ῖ. A rima predominante é em vogal oral
aberta, seguida de consoante líquida, em palavras oxítonas, e sugere liberdade,
ausência de fronteiras, vontade ilimitada de cantar, de louvar, de unir ao mar
o amor. A rima em vogal nasal in , muito mais intimista, frui a beleza da amada
cujo louvor quer levar até ao fim, usando o nome do artifício poético medieval
da atafinda. Cria-se um ritmo encantatório.
O trovador do século XX,
cônscio da função especular da sua poesia, do seu amor nela refletido, inscreve
na trama textual fios de metalinguagem, desde cantar — presença nas quatro quintilhas
— até canção e cantiga como seu objeto interno. A sua hipervalorização
prolonga-se sucessivamente — que não finda; tão linda; de atafinda. Bem no
coração do poema, o eu lírico aspira a uma vida infinda, reencontrando, talvez,
a expressiva sabedoria camoniana — para tão grande amor, tão curta a vida.
A poesia
da Geração 65, Marcos Alexandre Faber.
Companhia Editora de
Pernambuco - Cepe, 2019
CARREIRO, José. “Barcas novas - variações de uma cantiga de Joan Zorro”. Portugal, Folha de Poesia, 08-05-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/05/barcas-novas-variacoes-de-uma-cantiga.html