Manuel
Frias Martins.
"Os académicos afastaram os leitores da crítica
literária"
Foi um
dos fundadores desse grupo irrepetível que foram os Quatro Elementos Editores.
Doutorado em Teoria da Literatura, é ensaísta, professor (aposentado) da
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e presidente da Associação
Portuguesa dos Críticos Literários. Nasceu em 1949, não para escrever poemas e romances
– e faz questão de o repetir a cada livro publicado – mas para marcar o campo
dos estudos literários. Livros como Herberto Helder, um Silêncio de Bronze
(1983), Matéria Negra (1993), ou A Espiritualidade Clandestina de
José Saramago (2014) constituem pontos altos do nosso ensaísmo. Manuel
Frias Martins define-se como um homem sem grandes convencimentos, com mais
dúvidas que certezas.
O título do seu mais recente livro de ensaios, “A lágrima de
Ulisses”, assume-se como a metáfora d' “O regresso da percepção do humano
como princípio estruturante da literatura”. A desdita do herói de Homero parece
uma tremenda conta de somar. As parcelas, essas, há-de Ulisses contá-las,
tim-tim por tim-tim, no país dos Feaces. Faltava ainda a desgraça do seu fiel
amigo, Argos, o cão que o reconhece após vinte arrastados anos de ausência, que
o faz soltar uma lágrima que logo procura esconder. É neste lance da Odisseia
que o título deste volume de ensaios se inspirou.
Além da boa forma, no caso ensaística, Frias Martins partilha
com Ulisses o espírito aberto às curiosidades e às mutações do mundo, a
coragem, que o leva a transformar nomes grandes da nossa literatura em sujeitos
de culpa daquilo que é hoje reconhecido como o abandono da leitura, mas também
a arte de prender pela palavra. O modo múltiplo como o consegue vai ao encontro
do que a tradicional cautela universitária tem por costume desaconselhar –
a intensidade apaixonada da razão, comunicada com a naturalidade de um
estilo fluente, o impacto de boas ideias, executadas sem infestações de
notas de rodapé, mas também uma certa desformalização da dicção, que toma por
vezes direcções coloquiais sem nunca perder a elegância da formulação. Junte-se
ainda uma bolsa de dúvidas, sem as quais não é possível avançar. “A Lágrima de
Ulisses – Regimes da Cultura Literária” passa ao largo das velhas certezas
académicas.¶¶
Os seus começos literários remontam aos Quatro Elementos
Editores. Como é que surgiu este grupo?¶
Os meus começos, como crítico literário, os começos do Mário de
Carvalho, que tinha regressado há pouco da Suécia, os do António Guerreiro, do
Paulo Varela Gomes. Mas o pai de toda esta gente – estava também o Manuel
Gusmão – foi o Fernando Guerreiro, a quem eu chamei o protector dos sem abrigo
da cultura, e que gastou boa parte do dinheiro da sua herança na edição das
plaquetes e revistas que publicámos. Era uma editora completamente contrafeita.
Mas
como é que tudo começou?¶
Estávamos em 1978/79 e tudo se passa em Lisboa. Havia um
conjunto de assistentes da Faculdade de Letras, mas também gente que vinha do
Porto, como o José Emílio Nelson, o Paulo Tunhas. Íamo-nos conhecendo uns aos
outros graças a essa espécie de abrigo cultural gerado pelo Fernando Guerreiro,
em casa de quem começámos a reunir. Queríamos transformar o mundo e a
literatura. Trazíamos para as reuniões textos que avaliávamos e comentávamos.
Em 1980, começámos a publicar a revistar “Mar”, onde o Mário de Carvalho
publica o primeiro conto, “Expedição ao interior do navio”. Lembro-me de ter
dito: “este tipo já é escritor”, porque aquilo que identificamos como sendo o
traço literário, estava lá. No ano seguinte, publicámos, no mesmo quadro, uma
outra revista temática, a “Peste”. O único texto criativo que escrevi em toda a
minha vida está na “Peste”. Entretanto, o Mário de Carvalho publica os “Contos
da Sétima Esfera”. Eu já tinha começado a escrever crítica literária no Diário,
que tinha um suplemento cultural muito interessante. Em 1983, publicamos outra
revista, o Eldourado. Pelo meio, o Fernando Guerreiro ia publicando
plaquetes - com Francis Bacon, com coisas francesas que ele traduzia. Em
1985, quando saiu o último número da revista “Ruínas”, cujo lançamento, ou
espécie de lançamento, foi feito nas Ruínas do Carmo, o Mário de Carvalho
escreveu o “Tanto Pessoa já enjoa”, uma espécie de manifesto, quando se
assinalava o cinquentenário da morte do Pessoa.
Em
todos os seus livros, na nota biográfica, vem dito que “não escreve poesia nem
romances”. É uma afirmação ou uma demarcação?¶
Sempre fiquei um tanto de pé atrás em relação aos autores que se
desmultiplicam em géneros. Mas não é só por isso. Todos nós, numa altura
qualquer da nossa vida, sobretudo na juventude, tentamos fazer poesia ou escrever
uma narrativa, e por vezes isso não resulta, porque o nosso pendor crítico, a
nossa inclinação vai mais para a compreensão do literário, aquilo que vai ser
ou a teoria ou o exercício da crítica. Quando temos esta fundamentação em nós
próprios, de que a compreensão é mais importante que a produção de um poema ou
de um romance, então isto torna-se sufocante quando tentamos escrevê-los,
ficamos hiper-críticos. Desconfio muito dos autores que se desdobram em poesia,
romance, ensaio. Parece-me que dificilmente podem compatibilizar tudo isto.
Tomando-me como exemplo, acho que a nossa disposição analítica pode tornar-se
tão sufocante que o poema só surge de uma maneira quase artificial, a narrativa
só acontece de uma maneira forçada. Há quem idealmente possa compatibilizar
tudo isto. Eu, como não consegui, entreguei-me ao ensaio e é nele que
faço a minha poesia e os meus romances.
Está
a afirmar, portanto, que o bom ensaio não pode prescindir do elemento literário?
¶Eu defendo que o ensaio é um género literário, vive muito das
imagens, das metáforas, da linguagem. Está associado à poesia mas é também a
construção de uma narrativa. O ensaio, em certa medida, conta uma história, nem
que seja a história de uma ideia. O ensaio não anda muito longe da congeminação
interpretativa, que é uma possibilidade de criar um mundo à volta de um
determinado texto. Outro crítico cria outro mundo. Neste sentido, o próprio
ensaísta vive um pouco no universo da ficção. Há interpretações diferentes dos
textos, não só pela dependência que essa interpretação tem do sujeito que
observa, mas também pelo universo criado, que pode não ser assim, mas
poderia ser. Este poder ser é o elemento que estimula a ficção.
Parece-lhe
que muito do que hoje se publica como ensaio é interessante ou, pelo contrário,
poderia ser facilmente atirado para as margens da irrelevância?¶
Tal como há maus poetas – porque lêem pouco os outros poetas –,
assim há maus ensaístas. Um ensaísta tem de ler outros ensaístas para
compreender a estrutura mental de aproximação do seu objecto. Mas não chega: é
necessário haver um sedimento de linguagem e de relação da linguagem com as
ideias, tem que dominar a linguagem e isso só acontece lendo poetas,
romancistas e ensaístas. Um ensaísta, mais ainda que um poeta ou um romancista,
tem de ser um leitor contínuo, um leitor compulsivo que apreende, absorve
registos linguísticos, modos de relacionamento com a linguagem que associamos
ao poeta ou ao romancista, mas que o ensaísta também tem dentro de si, em
termos de enciclopédia privada. Os melhores ensaístas não são necessariamente
aqueles que têm as melhores ideias (as ideias circulam, vão surgindo...), mas
se não houver depois um impulso de organizar essas ideias através da linguagem,
torná-las apetecíveis como possibilidades de entendimento do mundo, nada feito.
Se não houver esta estratégia, que é acima de tudo uma estratégia de construção
de linguagem, na representação das ideias, então o ensaísta pode ser o mais
inteligente dos ensaístas mas vale pouco, por não conseguir estabelecer pontes
de ligação com os seus leitores. O melhor ensaísta é portanto um leitor
compulsivo que aprendeu na poesia, no romance, a dominar a expressão das ideias
através do domínio da linguagem.
Ruy
Belo dizia que, ao contrário de um advogado ou de um médico, que podem falhar
sem que isso implique a perda do 'título', “não se pode impunemente ser mau
poeta sem por isso se perder a qualidade de poeta”. Acha que poderíamos
transpor para o campo do ensaio?¶
Eu admiro muito o Ruy Belo mas não gosto muito dessas
designações gerais O impulso para o poema tem na sua origem o impulso
linguístico e o impulso ficcional, que é a possibilidade de construir um mundo
possível. O mau poeta, neste sentido, é aquele que não consegue conciliar estes
dois universos. Veja-se, por exemplo, os concursos literários camarários ou
outros, habitualmente sob pseudónimo. 99% dos que concorrem são maus poetas. A
linguagem é pobre, as metáforas e as imagens ou não existem ou estão gastas.
Aquele universo ficcional de reconstruir uma qualquer experiência é
pobre, a relação das palavras com as ideias falha. Faltam leituras mas
também o estímulo individual. Quer queiramos que não, já o Horácio dizia “poeta
nascitur no fit” [nasce-se poeta, não se faz poeta]. É que fazer poesia não é
juntar palavras.
A
verdade é que são cada vez mais – e basta observar as redes sociais – os que,
até com alguma pompa, se intitulam “poetas” ou “escritores”. Existir
nunca parecer ter sido tão fácil. Haverá, hoje, uma grande confusão à volta das
coisas da poesia?¶
É mais um exemplo de uma falha pessoal. Uma falha naquilo que
culturalmente é visto como poeta. Quem é médico, na sua actividade
gravita por uma série de circunstâncias que o definem como médico. Quando
alguém tem de dizer: “olhem para mim que eu sou poeta”, algo vai mal.
Voltando
ao campo do ensaio. Considera que, entre nós, é excessiva a publicação de teses
académicas? Haverá algum modo de controlar a febre editorial?¶
Uma boa parte dos ensaios publicados em Portugal nos últimos 15
anos, tiveram de facto origem em teses académicas ou em comunicações
apresentadas em congressos e depois reunidas. Mas há uma diferença entre o
interesse que um ensaio pode ter, quando publicado e divulgado por uma editora
comercial, e as teses académicas. A diferença está no facto de a academia ainda
hoje gostar muito das bibliografias, das citações, da confirmação do já
dito - essas teses confirmam um saber. Isto acaba por ficar condenado ao
arquivo; cumpriu o seu papel (até pode ser uma investigação de altíssimo nível),
mas não tem interesse, no sentido em que se entende o circuito comercial ou de
divulgação ensaística das ideias. Acontece, no entanto, que alguns desses
trabalhos acabam por ser publicados porque os centros de investigação têm
verbas para também financiar a publicação dessas teses. Ora o mercado onde são
colocadas não é o das ideias tal como elas são equacionadas no mundo académico.
Resultado: o autor fica feliz, o editor fica com papel que nunca
mais acaba mas não perde dinheiro porque os custos de produção foram
assegurados, a universidade pouco ganha com isso, antes pelo contrário. O mundo
comercial e intelectual ficou saturado com essas publicações.
E a
que se deve o apego, por parte das universidades, ao já dito e redito?¶
É um mecanismo de auto-defesa. A universidade exige e insiste na
originalidade, só que a originalidade académica é um conceito perigoso. Os
orientadores de tese querem defender o seu próprio estatuto e fazem um tipo de
exigência que vai no sentido de confirmarem constantemente o que estão a dizer
com alguém que já disse antes. Trata-se de arriscar alguma ideia, mas ao mesmo
tempo tentar suportá-la no já dito da respectiva área. É uma originalidade
controlada. As teses que saem deste panorama têm de ser sólidas do ponto de
vista da bibliografia. Não se diz que amanhã vai chover sem citar o senhor do
boletim meteorológico [risos]. E mesmo quando se cita alguém, esse alguém tem
de estar com os créditos bem firmados no próprio universo académico.
Podemos
pois concluir que muito do que se publica, saído da academia, é uma encenação
de ensaio, mesmo porque o verdadeiro ensaio talvez seja a antítese do trabalho
académico? ¶
É, e é uma encenação académica, que é a pior de todas as
encenações... Aceita-se que seja uma situação difícil de resolver, sobretudo se
virmos o que se passa em algumas editoras universitárias estrangeiras. Toda a
universidade deveria ter a sua imprensa própria. Coimbra e Lisboa têm, mas é
como os comboios espanhóis: umas vezes sai, outras não sai, e quando sai não
circula. Se virmos certas edições francesas, inglesas e sobretudo
norte-americanas, são publicadas por imprensas universitárias e vão circular
pelo mercado dos interessados numa determinada área. Mas aqui houve um comité
rigoroso de selecção, com grandes especialistas, a quem são entregues alguns
textos para avaliação. Aquele peso da erudição académica, da investigação
bibliográfica não bastam, tem de haver algo mais. É preciso um critério
relativamente sólido para separar as águas. Ora em Portugal isto nunca existiu
e duvido que venha a existir.
E
porquê?¶
Porque Portugal tem características muito próprias... É como se
fosse uma junta de freguesia onde toda a gente conhece o regedor. O Alexandre
O'Neill dizia, a propósito do tamanho do país, que corremos o risco de
dizer mal de alguém nos jornais e no dia seguinte encontrarmos esse alguém no
elevador.
Por
vezes, fica a ideia de que a moeda da comunicabilidade parece ter deixado de
ter valor de circulação quando nos movemos em campo académico...¶
Isso é típico da velha universidade, do velho espírito
universitário caduco, que existe mas começa a ser ultrapassado. A mentalidade
era essa: rebuscar, ofuscar, tornar o discurso tão denso e nebuloso que ninguém
lhe conseguisse pôr o dente. E isto normalmente mascarava defeitos próprios,
carências, falhas, e portanto ignorância. Houve uma altura em que tive de me
confrontar com a questão da legibilidade do discurso ensaístico e encontrei uma
frase muito curiosa de um autor inglês, John Ruskin. Ele dizia que “o
direito de ser obscuro só pode ser alcançado depois de um longo esforço para se
ser inteligível”. Esta afirmação funcionou sempre para mim como um farol: ser
tanto quanto possível legível, excepto quando surgia a necessidade de me tornar
deliberadamente obscuro, sobretudo quando o pensamento quer jogar com duas
ideias contrárias ao mesmo tempo, em que achamos que o paradoxo é o elemento
mais disponível para transmitir a complexidade. Mas ao mesmo tempo aquilo que
pode obscurecer o discurso. Quando comecei a fazer crítica literária tinha a
tendência para ser obscuro: era medo que não me levassem a sério. E então
dificultava a leitura através de um rebuscamento da linguagem. Se o leitor não
perceber é porque eu sou muito bom [risos]. É a maneira que temos de nos
sentirmos elevados para sermos levados a sério
A
clareza é para si uma preocupação? Procurou-a quando escreveu os ensaios que
compõem “A Lágrima de Ulisses”?¶
Tornou-se uma preocupação e começou com o meu livro sobre o
Saramago [“A Espiritualidade Clandestina de José Saramago], que inicia com uma
comunicação que apresentei na Croácia. Sentindo que avançava em terreno
inexplorado e sabendo que ia ser uma coisa polémica, senti-me na
necessidade de ser claro, legível na posição que estava a querer colocar. E isso
deu-me simultaneamente o lastro para uma nova atitude em relação ao
ensaio que também está neste novo livro. A ideia de que se eu não conseguir ser
claro é porque as minhas ideias não são suficientemente amadurecidas para
poderem ser divulgadas. Este novo livro decorre já nesse regime de
legibilidade em que procuro situar-me num plano de comunicação que seja
simultaneamente profundo e que resulte de um conhecimento também profundo das
matérias que abordo.
A
comunicabilidade é justamente abordada num dos textos deste livro.¶
No último texto, intitulado “A pertinência pública da
literatura”, corro o risco de culpar dois monstros famosos da literatura
portuguesa daquilo que é hoje reconhecido como o abandono da leitura: António
Ramos Rosa e Maria Velho da Costa. A partir do início do séc. XX, a pouco e
pouco, a literatura ficou fechada em si mesma e na ideologia da linguagem de
que se compõe. E isto vai culminar, nos anos 60, naquilo que conhecemos como
sendo a autonomia total do texto. Barthes vai dizer que o texto propõe e o
leitor dispõe, sim, mas vai matar o autor para sobreviver o texto. Genette vai
fazer a mesma coisa. Diz ele que fora do texto não há cá conversa. Esta
ideologia do texto é transferida para Portugal por António Ramos Rosa, quer
pela teoria, quer pela prática, a dar-nos uma poesia sem alma, que vive de um
exercício racional da selecção das palavras.Os textos teóricos dele são
“traduções”daquilo que se ia publicando em França, sobretudo do Genette e do
Blanchot, que eram o arco em que se entendia a literatura como mero trabalho da
linguagem. E com a Maria Velho da Costa, a palavra soltava-se e podia aparecer
sem contexto, era o puro prazer da palavra. Resultado: isto afastou os
leitores.
Este
seu livro é também uma espécie de manifesto?¶
Não, manifesto já tive um - do Paulo da Costa Domingos.
Este livro é uma afirmação pessoal de um estilo, e evidentemente de algumas
ideias.
Não é preciso ter de si a imagem do retrato falado do académico, para ficar
surpreendido com o acolhimento que este livro dá a questões como os meios
digitais, a tecnologia, ou a realidade virtual. Sempre se interessou por estas
questões?¶
Nós não queremos que o futuro nos abandone. Gostaríamos que os
nossos valores actuais continuassem no futuro, mas não é assim que as coisas
funcionam. Então, tenho de perceber no presente quais são os sinais que me
mostram o futuro possível: o avanço tecnológico espantoso e a realidade
virtual, a possibilidade de um texto ser vivido. Podemos escolher viver uma
personagem, com outras personagens à volta, uma determinada história. Quem é
que se encarrega disto? Os tecnólogos, que muitos do que são agora escritores,
no futuro, hão-de reencarnar em tecnólogos para escrever esses quadros virtuais
em que nós iremos existir. Nós, enquanto leitores, seremos actores.
Como
este livro refere, é verdade que as redes sociais acabaram por colocar a
literatura “num novo patamar de atenção”. Mas se é verdade que nunca terá sido
tão fácil existir, também é verdade que nunca o provisório e o inane tiveram
tanta força.¶
Nós vivemos na sobremodernidade (Marc Augé), que é o tempo em
que a aceleração das coisas é de tal forma grande que aquilo que agora é neste
momento estabelecido tem uma vida muito curta. E é de tal maneira, que a nossa
mente já está formatada para acreditar que a tecnologia soluciona imediatamente
situações que podem acontecer. De tal modo é grande a aceleração mas também a
potência criativa da tecnologia.
E a
insatisfação. E a frustração. ¶
As redes sociais vieram introduzir um elemento completamente
novo: a consciência e a vivência do efémero, do provisório. A consciência é
importante para dominarmos melhor as angústias que resultam dessa mesma
efemeridade. As redes sociais criaram uma espécie de bola de neve do
efémero e do transitório que nos transforma em moscas que andam a esvoaçar a
ver se encontram um poiso, e normalmente o poiso não é recomendável. É o mundo
da artificialidade.
Como
presidente da Associação Portuguesa dos Críticos Literários, qual lhe parece
ser o estado actual da nossa crítica?¶
O que nós temos é uma destruição da crítica por parte dos
académicos, que aconteceu a partir dos anos 70 e 80, em que os académicos
ocuparam o lugar da crítica culta, daquilo que era o protagonismo do homem
culto que fazia crítica literária, que não tinha de ser necessariamente um
académico, normalmente não o era. Mas também estávamos numa época em que a
literatura fazia sentido para a generalidade das pessoas e as polémicas, quando
aconteciam, tinham uma ressonância, uma audiência justificada. Quando os
académicos transferem para os jornais o jargão teórico universitário e tentam,
por aí, legitimar um pensamento crítico, estão necessariamente a afastar
leitores cuja preparação teórica e crítica não pode ser equivalente à dessas
pessoas. Ao fazerem isto, os académicos afastaram os leitores da crítica
literária, contribuíram para a desmobilização dos leitores em relação à crítica
literária. Quando hoje nós protestamos contra as estrelinhas, esquecemos que de
facto também por parte do público já não há uma apetência para acompanhar e
compreender o discurso crítico acerca de uma obra. A estrelinha é suficiente.
Há um traço médio que une críticos e leitores.
E
quanto à literatura, propriamente dita, em que momento estamos?
¶Ao contrário do que muitos pensam, eu acho que estamos numa
fase de grande mediania na literatura portuguesa. Não há grandes autores que
possamos reconhecer como grandes autores. Evidentemente, temos dois ou três
Ronaldos, que talvez também sufoquem um quadro literário que poderia ser melhor.
Mas neste momento, está num plano de mediania. Houve gente, como um Augusto
Abelaira, um Alexandre Pinheiro Torres, com obras de altíssimo nível, que sabia
o que deveria fazer para elevar a literatura portuguesa, que escrevia sabendo o
que estava a fazer em termos de exigência de qualidade. Hoje, perdeu-se essa
exigência. Os editores publicam aquilo que a máquina financeira em que estão
inseridos lhes pede que publiquem.
A sua
tradução d'“O Cânone Ocidental”, publicada em 1997, tem mais de duas décadas.
Em que pé estão as suas relações com Harold Bloom?¶
Eu continuo a admirá-lo imenso. Gosto muito do Steiner que, como
teórico, talvez tenha mais fôlego, mas o Bloom é o grande crítico literário do
século XX, no sentido da tradição da língua inglesa da crítica literária, que
começa com Samuel Johnson. É um homem cujo mundo interior existe através de
personagens de romances, de poemas, de fragmentos de poesia... A profundidade
analítica e a capacidade de juntar, em termos de erudição, autores e obras,
faz dele, não tenhamos dúvidas, o grande crítico do século XX. Mas como ele
próprio disse uma vez a propósito do politicamente correcto, se fosse hoje não
seria contratado para uma universidade norte-americana. Ele tem uma percepção
excelente do que estava a acontecer, e continua a acontecer, no domínio da
literatura, dos estudos humanísticos. Por causa da ideia do cânone ocidental e
de posições que geraram imensa hostilidade, os alunos boicotam-lhe uma vez uma
conferência e ele, a quem interessa apenas o estético, sai da sala com
uma afirmação exemplar: se tivessem um problema que precisasse de uma
intervenção cirúrgica de um neuro-cirurgião, queriam um excelente
neuro-cirurgião ou um que fosse gay, mulher, nativo americano, negro ou índio?
Esta é a posicão central dele, a predominância do estético. Já eu penso que o
estético, como valor absoluto, não existe.¶¶
Harold Bloom disse numa entrevista que cedo percebeu que o mundo
literário e a academia (não achava que existisse realmente uma distinção entre
os dois) “são sempre dominados por tolos, patifes, charlatães e
burocratas”. E sendo assim, os que tenham voz própria não são apreciados, a
menos que a sua voz se misture com a de toda a gente. Concorda com ele?
Estou completamente de acordo. Infelizmente, quem tem o poder é
o tolo. O ser humano, na sua essência, não muda. E o fascínio do humano está em
perceber que é assim. Eu prezo muito o chamado princípio de Peter: à medida que
vamos subindo na hierarquia das coisas começamos a perder qualidades e quando
chegamos ao topo da pirâmide transformamo-nos em incompetentes. Não me
ponho de fora, mas tenho a percepção que devo afastar-me quando as coisas se
tornarem mais perigosas, quando achar que estou a mais.
Teresa Carvalho, https://ionline.sapo.pt/artigo/754749/manuel-frias-martins-os-academicos-afastaram-os-leitores-da-critica-literaria,
2021-12-02
CARREIRO, José. “Crítica
literária”. Portugal, Folha de Poesia, 26-09-2021 (Última atualização: 2022-08-01). Disponível em:
https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/09/critica-literaria.html