sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Antero de Quental tem inimigos

 


 

Antero de Quental tem inimigos. E merece tê-los. O horror seria se os não tivesse. Declarados, não são muitos. Em filigrana, são mais do que se imagina e, entre eles, vários candidatos a heróis que suportam mal que Antero tenha sido o primeiro deles nos tempos modernos.” 

Esta citação pertence a A Noite Intacta – (I)recuperável Antero, um daqueles títulos subversivos com que Eduardo Lourenço costuma batizar muitos dos seus ensaios. Mas este título, o mais indisciplinado de todos, traduz, só por si, sem recorrer a imagens estafadas (“o noturno e luminoso” de repetida e malfadada memória) a dualidades normalmente associadas ao nome do autor de Odes Modernas.

E como não teria e não tem Antero ainda inimigos tendo ele sido um temível polemista? Foi precisamente pela porta de uma polémica, Bom Senso e Bom Gosto ou Questão Coimbrã, que se deu a sua ruidosa e triunfal entrada na literatura portuguesa. Tinha 23 anos quando, no dia 2 de novembro de 1865, escreveu a célebre carta-folheto a António Feliciano de Castilho, verdadeira carta premonitória de finados pela poesia ultrarromântica e piegas que teimosamente continuava a florir no nosso jardim quando no jardim dos outros já há muito havia murchado.

O então autoproclamado pontífice das letras lusas não lhe respondeu em público “pois tinha mais que fazer”.1 Entregou essa tarefa aos aficionados que pululavam à sua volta. Em privado, porém, referia-se ao seu antigo aluno de Ponta Delgada e do Colégio do Pórtico, em Lisboa, como “pantero do quintal no seu antro de Celas, tolo e doido, parvo, zaranza, asno, javardo, bácoro que chafurda por Coimbra e, por fim, até espadachim velhaco, após o duelo de Antero/Ramalho.2

Dos numerosos folhetos que a polémica produziu, mais de quarenta, uns contra (de longe a maioria) outros a favor da chamada “Escola de Coimbra”, apenas dois ou três merecerão algum parco interesse, tão culturalmente ignorantes e retrógrados eles se apresentam nos seus ataques. Menciono apenas, de entre eles, o de Júlio de Castilho que, em socorro do pai, produziu um argumento, na sua ótica decisivo e arrasador, ao crismar de Lutero de Quental o seu “mais antigo amigo e companheiro de folguedos naquela abençoada ilha”. (São Miguel)3, insulto recebido pelo visado como um mais do que merecido elogio. Afinal tratava-se mesmo de uma Reforma triunfante e a força da razão literária e histórica da carta detonadora enviou praticamente para o esquecimento toda a restante papelada. E aqui convém, muito a propósito, recordar Manuel Bandeira: “Costuma apontar-se Eça de Queiroz como o modernizador da prosa lusa. Basta, porém, a carta Bom Senso e Bom Gosto para se provar que se houve reforma da prosa portuguesa ela já estava evidente no famoso escrito de Antero”.4

Seis anos passados, em 1871, a biografia de Antero de Quental regista outra polémica nascida no interior do Casino Lisbonense. A sua conferência, Causas da decadência dos Povos Peninsulares, foi alvo de provocações de toda a espécie, com destaque para os jornais católicos e legitimistas A Nação e o Bem Público que viam nas conferências ramificações da Comuna de Paris e nos conferencistas, agentes da Internacional, o que levou Antero a publicar a Resposta aos Jornais Católicos, considerada por Camilo Castelo Branco “uma das mais belas coisas e eloquentes que ainda lera em língua portuguesa”.5

Também a prepotência do encerramento compulsivo das conferências mereceu ao seu principal impulsionador uma violenta carta publicamente dirigida a António José d’Ávila, futuro duque d’Ávila, presidente do Conselho de Ministros. Violenta e merecida. Antero não ambicionava entrar na imortalidade, ou na glória efémera de quinze minutos, à custa de insultos gratuitos a um Primeiro Ministro, mas o encerramento foi muito mais do que uma injustiça, tratou-se de uma ilegalidade, até porque em Portugal registar-se-ia então “uma fenomenal liberdade de pensamento...somente ninguém se lembrava de pensar”.6

Mas em todas as polémicas onde deliberadamente entrou ou se viu envolvido, por vezes contra sua vontade, (bem mais das que aqui vão brevemente indicadas) Antero contou sempre com adversários que, bem ou mal, quase sempre mal, o contestaram publicamente e por escrito sem se esconderem sob qualquer anonimato. Nas palavras de Fidelino de Figueiredo, os textos das polémicas anterianas tinham o calor da convicção lutadora e assentavam sobre um fundo de ideias. Antero era um polemista que tinha sempre razão, ainda que pudesse alguma vez exagerar a sua própria razão.”7

E razão teve ainda, sem exagero algum, quando, ao escrever sobre a Teoria da História da Literatura Portuguesa, de Teófilo Braga, num ensaio que intitulou Considerações sobre a Filosofia da História Literária Portuguesa, (Porto, Livraria Internacional, 1872) por ele próprio qualificado como sendo o que de melhor fizera ou pelo menos de mais razoável em prosa, (na carta autobiográfica a Wilhem Storck, em 1887) foi miseravelmente insultado pelo seu antigo colega de Coimbra. A análise de Antero, serena, objetiva e muito bem argumentada, que aplaudia mas também desaprovava algumas passagens, divergindo assim do espírito de compadrio da época, provocou da parte do despeitado Teófilo a edição do folheto “Os críticos da História da Literatura Portuguesa” escrito bem ao estilo de José Agostinho de Macedo. “Duas palavras a propósito do folheto do Sr. Teófilo Braga mas não em resposta ao Sr. Teófilo Braga nem ao seu folheto”, foi a resposta de Antero, para Eduardo Lourenço “uma das mais desapiedadas que o nosso génio polémico tem suscitado”.8

 

Ana Maria Almeida Martins, “Antero De Quental e Eduardo Lourenço: textos de polémica”

in Colóquio/Letras, n.º 170, Jan. 2009, p. 84-94

Disponível em: https://xdata.bookmarc.pt/gulbenkian/cl/pdfs/170/PT.FCG.RCL.8820.pdf

 

 

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1 “Carta ao editor António Maria Pereira” in Poema da Mocidade, de Manuel Pinheiro Chagas, Livraria de A. M. Pereira, 1865

2 Castilho e Camilo – Correspondência trocada entre os dois escritores, pref. e notas de João Costa, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1924

3 Júlio de Castilho, O Senhor António Feliciano de Castilho e o Sr. Antero de Quental, Lisboa, Imp. De J.C. de Sousa Neves, novembro, 1865

4 Manuel Bandeira, “Antero de Quental”, prefácio a Sonetos Completos e Poemas Escolhidos de Antero de Quental, Rio de Janeiro, Livros de Portugal, 1942, incluídos em Poesia e Prosa, Rio de Janeiro, José Aguilar, 1958

5 Carta de Joaquim de Araújo a Rodrigo Veloso, na edição de Resposta aos Jornais Católicos, Barcelos, Tip. Aurora do Cavado, 1895

6 Carta ao Exmo Sr. António José d’Ávila, marquês de Ávila, Presidente do Conselho de Ministros, Lisboa, Tip. do Futuro, 1871

7 Fidelino de Figueiredo, “A prosa de um grande poeta”, in Antero, São Paulo, Dep. Municipal de Cultura, 1942. (pág. 126)

8 O Labirinto da Saudade, Lisboa, Gradiva, 2004. (pág. 137)




CARREIRO, José. “Antero de Quental tem inimigos”. Portugal, Folha de Poesia, 01-10-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/10/antero-de-quental-tem-inimigos.html



domingo, 26 de setembro de 2021

Crítica literária


Petição de princípio

 

I - A crítica é um trabalho de violência: coloca as obras diante daquilo que elas não são, impondo-lhes um critério que lhes é exterior.

 

II - A crítica é comprometida: responde por uma imagem de mundo e de literatura. Nesta estrita medida, a crítica é sempre programática — confronta aquilo que as obras são com aquilo que elas poderiam ser.

 

III - A crítica é o lugar de uma experiência tanto afectiva quanto racional. O distanciamento e a proximidade são, na mesma proporção, a sua condição.

 

I - A crítica é um produto do risco. A possibilidade de erro é directamente proporcional ao risco assumido.

 

V - A crítica é um trabalho contra o mundo, contra a literatura. Se esta é um movimento de produção do mundo através da modelação de representações, a crítica é um trabalho de subtracção do mundo a si mesmo.

 

VI - A crítica é um exercício sobre a linguagem. Na literatura, como em todas as artes, o mundo tem tamanho da linguagem na qual se produz. O sentido de uma representação é função da linguagem com que se realiza. As suas potenciais riqueza experiencial, densidade semântica, e valor, estão-lhe indexados.

 

VII - A crítica não é um instrumento de mediação: é parte do processo de constituição da coisa em representação.

 

VIII - Enquanto instituição, a crítica é sempre supletiva. Enquanto olhar interior à produção e à recepção, é constituinte.

 

Helder Gomes Cancela, “Petição de princípio”, blogue Contra Mundum Crítica, 2012-09-18

 



 

Crítica literária

 

Por "crítica literária" pode-se entender a produção de um discurso acerca de um texto literário individual ou da obra global de um autor, independentemente da situação de comunicação que desencadeia e/ou particulariza esse discurso. Este entendimento da noção de "crítica literária" permite conjugar quatro vectores fundamentais. Em primeiro lugar, e na linha construtivista de autores como René Wellek (veja-se sobretudo R. Wellek, 1963 e 1981) e J. W. Atkins (veja-se Atkins 1934), salvaguarda a possibilidade de se identificar uma narrativa interna da crítica literária que, desde a Antiguidade até aos nossos dias, se orientou para a visibilidade relevante do crítico enquanto protagonista de um comentário acerca de textos considerados artísticos. Em segundo lugar, e na linha de autores como Northrop Frye (veja-se sobretudo N. Frye, 1970), aquele entendimento não desvincula a situação de ensino da literatura do exercício da crítica literária. Em terceiro lugar, afasta a noção de crítica literária da disputa estéril (desconstrucionista vs. Formalista) acerca do seu estatuto de "arte" ou de "ciência". Em quarto lugar, permite contemplar realidades no exercício moderno da crítica literária como as que decorrem do protagonismo assumido pelo crítico nos meios de comunicação, e que, no essencial, assentam em convicções como a de Albert Thibaudet quando assegurava que «a crítica tal como a conhecemos e praticamos é um produto do século XIX» (ª Thibaudet, 1930: 7).

A crítica literária tem um papel relevante na dinâmica interna de qualquer cultura nacional, na medida em que é por ela que se articula o diálogo entre as propriedades das obras e as exigências literárias de um determinado período. É através das apreciações críticas que melhor se pode discernir os dispositivos de recepção e as configurações de valor estético em jogo numa determinada situação histórico-literária. Esta irrecusável historicidade da crítica torna-a um dos instrumentos mais vivos de que se pode dispor para compreender as tensões actuantes num tempo político, num lugar social e numa tradição cultural.

Dependente como está dos quadros de referência, de conhecimento e de experiência do próprio crítico, a crítica literária está condenada à interpretação e, consequentemente, nunca pode ser neutra nem inocente. Mesmo as pretensas virtudes de uma crítica académica fundada em critérios de cientificidade e/ou articulada por uma linguagem universalizante e objectiva estão hoje em dia despidas de credibilidade, tanto teórica como prática. Porque invariavelmente se confunde o que é científico com algo que é meramente tecnológico, misturando nesse processo rigor com tecnicidade, essas virtudes são meras ilusões que só encontram eco numa outra piedosa ilusão: a de uma epistemologia inocente da investigação universitária.

Porque não é inocente o seu olhar, o crítico literário, seja qual for o plano institucional em que se coloque (académico ou jornalístico) relaciona-se com a literatura, sobretudo com aquela que é sua contemporânea, através de um certo grau de cegueira, como bem observou Paul de Man (P. de Man, 1971), ou através de uma espécie de cegueira interessada que leva o crítico a unicamente ver aquilo que quer ou pode ver. No domínio da crítica literária, faz plenamente sentido a afirmação de M. Merlau-Ponty de que "só encontramos nos textos aquilo que colocamos neles" (1962: viii). Esta é uma realidade inexorável, embora de aceitação difícil quando somos (e nos sentimos) actores culturais coetâneos de uma qualquer prática crítica. No entanto, é ela que agencia a heterogeneidade litigante do conhecimento, e com ela o pulsar agonístico por que uma cultura nacional vive internamente cada um dos seus tempos próprios numa intensa conversação entre diferentes comunidades interpretativas, recorrendo ao conceito de Stanley Fish (S. Fish, 1980), isto é, entre diferentes crenças, diferentes interesses ideológicos, políticos, sociais, sexuais, estéticos; em suma, entre diferentes feixes de estratégias e de normas culturalmente institucionalizadas que coexistem numa relação reciprocamente definidora.

Ao actuar em sinédoque no interior de um quadro literário nacional, o crítico literário torna-se o protagonista mais visível de uma comunidade interpretativa que nele se reconhece por oposição a outros olhares (outras sinédoques) de outros críticos (outras comunidades). Neste sentido, os discursos de todos esses críticos, quando vistos na sua relação contraditória, tornam-se uma espécie de erros necessários que, por si mesmos, não traçam o perfil de uma época. Contudo, na medida em que não emergem de indivíduos isolados, embora por eles se revelem, mas de um ponto de vista público e convencional, esses erros contribuem decididamente para a configuração do perfil de verdade de uma época, pois, na sua contingência, representam (reforçam) horizontes intersubjectivos de crenças e de valores actuantes no seio de uma sociedade. É por isso que os conflitos mais ou menos apaixonados que ciclicamente surgem no seio da comunidade literária (portuguesa ou qualquer outra) ultrapassam em muito as questões consideradas especificamente artísticas, incorporando no debate, de um modo mais ou menos explícito, argumentos (isto é, crenças e valores) de carácter ideológico, político, filosófico ou religioso.

A importância de que a literatura ainda se reveste nos nossos dias decorre do facto de que ela, através da sua capacidade intrínseca de representação, continua a conter em si as possibilidades de um conhecimento insubstituível do homem e do mundo. Nada existe no mundo que a literatura não possa exprimir. Por outro lado, é ainda através da literatura que melhor podemos ter acesso à experiência de vida de uma época ou à interioridade do seu tempo social e cultural.

Esta dimensão fascinante do literário impõe a prioridade inescapável da vinculação do texto a uma realidade que, ao lhe preexistir, estabelece as condições de inteligibilidade solidária através da qual o texto literário oferece o seu dizer no seio de uma cultura. E é exactamente por essa mesma dimensão que o gesto crítico também ganha relevo intelectual e significado cultural. Ao se constituir inevitavelmente em interpretação de um texto literário, a crítica outra coisa não faz que reconhecer a construção e a permanência da literatura como interpretação (interpelação) de estratos do conflito humano nela representado. Cada uma nutre-se da interpretação da outra num diálogo intelectual nem sempre pacífico, mas inexoravelmente dinâmico e activo, ou tão dinâmico e tão activo quanto as circunstâncias culturais e históricas o permitem ou exigem. Em suma, pode-se afirmar que é pelo cruzamento da literatura com a crítica, numa representatividade mútua feita de encontros e desencontros com a verdade de cada uma delas, que a vivacidade do rosto de uma época se torna mais nítida nos seus contornos culturais.

 

{bibliografia}

J. W. Atkins: Literary Criticism in Antiquity (2 vols.), London, 1934; Maurice Merlau-Ponty: Phenomenology of Perception, London, 1962; Northrop Frye: The Stubborn Structure, London, 1970; Paul de Man: Blindness and Insight. Essays in the Rhetoric of Contemporary Criticism, Minneapolis, 1971; René Wellek: (a) "The Term and Concept of Literary Criticism", in Concepts of Criticism, New Haven, 1963; (b) "Literary Criticism –A Historical Perspective", in What is Criticism, Paul Hernadi (org.), Bloomington, 1981; Stanley Fish: Is There a Text in This Class? The Authority of Interpretative Communities, Cambridge (Mass.), 1980.

 

“Crítica Literária”, verbete de Manuel Frias Martins,

in: E-Dicionário de Termos Literários, de Carlos Ceia, 2009-12-30.

Disponível em: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/critica-literaria/

 

Manuel Frias Martins (ionline.sapo.pt 2021-12-02)



Manuel Frias Martins.
"Os académicos afastaram os leitores da crítica literária"

 

Foi um dos fundadores desse grupo irrepetível que foram os Quatro Elementos Editores. Doutorado em Teoria da Literatura, é ensaísta, professor (aposentado) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e presidente da Associação Portuguesa dos Críticos Literários. Nasceu em 1949, não para escrever poemas e romances – e faz questão de o repetir a cada livro publicado – mas para marcar o campo dos estudos literários. Livros como Herberto Helder, um Silêncio de Bronze (1983), Matéria Negra (1993), ou A Espiritualidade Clandestina de José Saramago (2014) constituem pontos altos do nosso ensaísmo. Manuel Frias Martins define-se como um homem sem grandes convencimentos, com mais dúvidas que certezas.

 

O título do seu mais recente livro de ensaios, “A lágrima de Ulisses”, assume-se como a metáfora d' “O regresso da percepção do humano como princípio estruturante da literatura”. A desdita do herói de Homero parece uma tremenda conta de somar. As parcelas, essas, há-de Ulisses contá-las, tim-tim por tim-tim, no país dos Feaces. Faltava ainda a desgraça do seu fiel amigo, Argos, o cão que o reconhece após vinte arrastados anos de ausência, que o faz soltar uma lágrima que logo procura esconder. É neste lance da Odisseia que o título deste volume de ensaios se inspirou.

Além da boa forma, no caso ensaística, Frias Martins partilha com Ulisses o espírito aberto às curiosidades e às mutações do mundo, a coragem, que o leva a transformar nomes grandes da nossa literatura em sujeitos de culpa daquilo que é hoje reconhecido como o abandono da leitura, mas também a arte de prender pela palavra. O modo múltiplo como o consegue vai ao encontro do que a tradicional cautela universitária tem por costume desaconselhar – a  intensidade apaixonada da razão, comunicada com a naturalidade de um estilo fluente, o impacto de boas ideias, executadas sem  infestações de notas de rodapé, mas também uma certa desformalização da dicção, que toma por vezes direcções coloquiais sem nunca perder a elegância da formulação. Junte-se ainda uma bolsa de dúvidas, sem as quais não é possível avançar. “A Lágrima de Ulisses – Regimes da Cultura Literária” passa ao largo das velhas certezas académicas.¶¶

 

Os seus começos literários remontam aos Quatro Elementos Editores. Como é que surgiu este grupo?

Os meus começos, como crítico literário, os começos do Mário de Carvalho, que tinha regressado há pouco da Suécia, os do António Guerreiro, do Paulo Varela Gomes. Mas o pai de toda esta gente – estava também o Manuel Gusmão – foi o Fernando Guerreiro, a quem eu chamei o protector dos sem abrigo da cultura, e que gastou boa parte do dinheiro da sua herança na edição das plaquetes e revistas que publicámos. Era uma editora completamente contrafeita.

 

Mas como é que tudo começou?

Estávamos em 1978/79 e tudo se passa em Lisboa. Havia um conjunto de assistentes da Faculdade de Letras, mas também gente que vinha do Porto, como o José Emílio Nelson, o Paulo Tunhas. Íamo-nos conhecendo uns aos outros graças a essa espécie de abrigo cultural gerado pelo Fernando Guerreiro, em casa de quem começámos a reunir. Queríamos transformar o mundo e a literatura. Trazíamos para as reuniões textos que avaliávamos e comentávamos. Em 1980, começámos a publicar a revistar “Mar”, onde o Mário de Carvalho publica o primeiro conto, “Expedição ao interior do navio”. Lembro-me de ter dito: “este tipo já é escritor”, porque aquilo que identificamos como sendo o traço literário, estava lá. No ano seguinte, publicámos, no mesmo quadro, uma outra revista temática, a “Peste”. O único texto criativo que escrevi em toda a minha vida está na “Peste”. Entretanto, o Mário de Carvalho publica os “Contos da Sétima Esfera”. Eu já tinha começado a escrever crítica literária no Diário, que tinha um suplemento cultural muito interessante. Em 1983, publicamos outra revista, o Eldourado. Pelo meio, o Fernando Guerreiro ia publicando plaquetes  - com Francis Bacon, com coisas francesas que ele traduzia. Em 1985, quando saiu o último número da revista “Ruínas”, cujo lançamento, ou espécie de lançamento, foi feito nas Ruínas do Carmo, o Mário de Carvalho escreveu o “Tanto Pessoa já enjoa”, uma espécie de manifesto, quando se assinalava o cinquentenário da morte do Pessoa.

 

Em todos os seus livros, na nota biográfica, vem dito que “não escreve poesia nem romances”. É uma afirmação ou uma demarcação?

Sempre fiquei um tanto de pé atrás em relação aos autores que se desmultiplicam em géneros. Mas não é só por isso. Todos nós, numa altura qualquer da nossa vida, sobretudo na juventude, tentamos fazer poesia ou escrever uma narrativa, e por vezes isso não resulta, porque o nosso pendor crítico, a nossa inclinação vai mais para a compreensão do literário, aquilo que vai ser ou a teoria ou o exercício da crítica. Quando temos esta fundamentação em nós próprios, de que a compreensão é mais importante que a produção de um poema ou de um romance, então isto torna-se sufocante quando tentamos escrevê-los, ficamos hiper-críticos. Desconfio muito dos autores que se desdobram em poesia, romance, ensaio. Parece-me que dificilmente podem compatibilizar tudo isto. Tomando-me como exemplo, acho que a nossa disposição analítica pode tornar-se tão sufocante que o poema só surge de uma maneira quase artificial, a narrativa só acontece de uma maneira forçada. Há quem idealmente possa compatibilizar tudo isto.  Eu, como não consegui, entreguei-me ao ensaio e é nele que faço a minha poesia e os meus romances.

 

Está a afirmar, portanto, que o bom ensaio não pode prescindir do elemento literário?

¶Eu defendo que o ensaio é um género literário, vive muito das imagens, das metáforas, da linguagem. Está associado à poesia mas é também a construção de uma narrativa. O ensaio, em certa medida, conta uma história, nem que seja a história de uma ideia. O ensaio não anda muito longe da congeminação interpretativa, que é uma possibilidade de criar um mundo à volta de um determinado texto. Outro crítico cria outro mundo. Neste sentido, o próprio ensaísta vive um pouco no universo da ficção. Há interpretações diferentes dos textos, não só pela dependência que essa interpretação tem do sujeito que observa, mas também pelo universo criado,  que pode não ser assim, mas poderia ser. Este poder ser é o elemento que estimula a ficção.

 

Parece-lhe que muito do que hoje se publica como ensaio é interessante ou, pelo contrário, poderia ser facilmente atirado para as margens da irrelevância?

Tal como há maus poetas – porque lêem pouco os outros poetas –, assim há maus ensaístas. Um ensaísta tem de ler outros ensaístas para compreender a estrutura mental de aproximação do seu objecto. Mas não chega: é necessário haver um sedimento de linguagem e de relação da linguagem com as ideias, tem que dominar a linguagem e isso só acontece lendo poetas, romancistas e ensaístas.  Um ensaísta, mais ainda que um poeta ou um romancista, tem de ser um leitor contínuo,  um leitor compulsivo que apreende, absorve registos linguísticos, modos de relacionamento com a linguagem que associamos ao poeta ou ao romancista, mas que o ensaísta também tem dentro de si, em termos de enciclopédia privada. Os melhores ensaístas não são necessariamente aqueles que têm as melhores ideias (as ideias circulam, vão surgindo...), mas se não houver depois um impulso de organizar essas ideias através da linguagem, torná-las apetecíveis como possibilidades de entendimento do mundo, nada feito. Se não houver esta estratégia, que é acima de tudo uma estratégia de construção de linguagem, na representação das ideias, então o ensaísta pode ser o mais inteligente dos ensaístas mas vale pouco, por não conseguir estabelecer pontes de ligação com os seus leitores. O melhor ensaísta é portanto  um leitor compulsivo que aprendeu na poesia, no romance, a dominar a expressão das ideias através do domínio da linguagem.

 

Ruy Belo dizia que, ao contrário de um advogado ou de um médico, que podem falhar sem que isso implique a perda do 'título', “não se pode impunemente ser mau poeta sem por isso se perder a qualidade de poeta”. Acha que poderíamos transpor para o campo do ensaio?

Eu admiro muito o Ruy Belo mas não gosto muito dessas designações gerais O impulso para o poema tem na sua origem o impulso linguístico e o impulso ficcional, que é a possibilidade de construir um mundo possível. O mau poeta, neste sentido, é aquele que não consegue conciliar estes dois universos. Veja-se, por exemplo, os concursos literários camarários ou outros, habitualmente sob pseudónimo. 99% dos que concorrem são maus poetas. A linguagem é pobre, as metáforas e as imagens ou não existem ou estão gastas. Aquele universo ficcional de reconstruir uma qualquer experiência é pobre,  a relação das palavras com as ideias falha. Faltam leituras mas também o estímulo individual. Quer queiramos que não, já o Horácio dizia “poeta nascitur no fit” [nasce-se poeta, não se faz poeta]. É que fazer poesia não é juntar palavras.

 

A verdade é que são cada vez mais – e basta observar as redes sociais – os que, até com alguma pompa,  se intitulam “poetas” ou “escritores”. Existir nunca parecer ter sido tão fácil. Haverá, hoje, uma grande confusão à volta das coisas da poesia?

É mais um exemplo de uma falha pessoal. Uma falha naquilo que culturalmente é visto como poeta.  Quem é médico, na sua actividade gravita por uma série de circunstâncias que o definem como médico. Quando alguém tem de dizer: “olhem para mim que eu sou poeta”, algo vai mal.

 

Voltando ao campo do ensaio. Considera que, entre nós, é excessiva a publicação de teses académicas? Haverá algum modo de controlar a febre editorial?

Uma boa parte dos ensaios publicados em Portugal nos últimos 15 anos, tiveram de facto origem em teses académicas ou em comunicações apresentadas em congressos e depois reunidas. Mas há uma diferença entre o interesse que um ensaio pode ter, quando publicado e divulgado por uma editora comercial, e as teses académicas. A diferença está no facto de a academia ainda hoje gostar muito das bibliografias, das citações, da confirmação do já dito  - essas teses confirmam um saber. Isto acaba por ficar condenado ao arquivo; cumpriu o seu papel (até pode ser uma investigação de altíssimo nível), mas não tem interesse, no sentido em que se entende o circuito comercial ou de divulgação ensaística das ideias. Acontece, no entanto, que alguns desses trabalhos acabam por ser publicados porque os centros de investigação têm verbas para também financiar a publicação dessas teses. Ora o mercado onde são colocadas não é o das ideias tal como elas são equacionadas no mundo académico. Resultado: o autor fica feliz,  o editor  fica com papel que nunca mais acaba mas não perde dinheiro porque os custos de produção foram assegurados, a universidade pouco ganha com isso, antes pelo contrário. O mundo comercial e intelectual ficou saturado com essas publicações.

 

E a que se deve o apego, por parte das universidades, ao já dito e redito?

É um mecanismo de auto-defesa. A universidade exige e insiste na originalidade, só que a originalidade académica é um conceito perigoso. Os orientadores de tese querem defender o seu próprio estatuto e fazem um tipo de exigência que vai no sentido de confirmarem constantemente o que estão a dizer com alguém que já disse antes. Trata-se de arriscar alguma ideia, mas ao mesmo tempo tentar suportá-la no já dito da respectiva área. É uma originalidade controlada. As teses que saem deste panorama têm de ser sólidas do ponto de vista da bibliografia. Não se diz que amanhã vai chover sem citar o senhor do boletim meteorológico [risos]. E mesmo quando se cita alguém, esse alguém tem de estar com os créditos bem firmados no próprio universo académico.

 

Podemos pois concluir que muito do que se publica, saído da academia, é uma encenação de ensaio, mesmo porque o verdadeiro ensaio talvez seja a antítese do trabalho académico?   ¶

É, e é uma encenação académica, que é a pior de todas as encenações... Aceita-se que seja uma situação difícil de resolver, sobretudo se virmos o que se passa em algumas editoras universitárias estrangeiras. Toda a universidade deveria ter a sua imprensa própria. Coimbra e Lisboa têm, mas é como os comboios espanhóis: umas vezes sai, outras não sai, e quando sai não circula. Se virmos certas edições francesas, inglesas e sobretudo norte-americanas, são publicadas por imprensas universitárias e vão circular pelo mercado dos interessados numa determinada área. Mas aqui houve um comité rigoroso de selecção, com grandes especialistas, a quem são entregues alguns textos para avaliação. Aquele peso da erudição académica, da investigação bibliográfica não bastam, tem de haver algo mais. É preciso um critério relativamente sólido para separar as águas. Ora em Portugal isto nunca existiu e duvido que venha a existir.  

 

E porquê?

Porque Portugal tem características muito próprias... É como se fosse uma junta de freguesia onde toda a gente conhece o regedor. O Alexandre O'Neill dizia, a propósito do tamanho do país,  que corremos o risco de dizer mal de alguém nos jornais e no dia seguinte encontrarmos esse alguém no elevador.

 

Por vezes, fica a ideia de que a moeda da comunicabilidade parece ter deixado de ter valor de circulação quando nos movemos em campo académico...

Isso é típico da velha universidade, do velho espírito universitário caduco, que existe mas começa a ser ultrapassado. A mentalidade era essa: rebuscar, ofuscar, tornar o discurso tão denso e nebuloso que ninguém lhe conseguisse pôr o dente. E isto normalmente mascarava defeitos próprios, carências, falhas, e portanto ignorância. Houve uma altura em que tive de me confrontar com a questão da legibilidade do discurso ensaístico e encontrei uma frase muito curiosa de um autor inglês, John Ruskin. Ele dizia que  “o direito de ser obscuro só pode ser alcançado depois de um longo esforço para se ser inteligível”. Esta afirmação funcionou sempre para mim como um farol: ser tanto quanto possível legível, excepto quando surgia a necessidade de me tornar deliberadamente obscuro, sobretudo quando o pensamento quer jogar com duas ideias contrárias ao mesmo tempo, em que achamos que o paradoxo é o elemento mais disponível para transmitir a complexidade. Mas ao mesmo tempo aquilo que pode obscurecer o discurso. Quando comecei a fazer crítica literária tinha a tendência para ser obscuro: era medo que não me levassem a sério. E então dificultava a leitura através de um rebuscamento da linguagem. Se o leitor não perceber é porque eu sou muito bom [risos]. É a maneira que temos de nos sentirmos elevados para sermos levados a sério

 

A clareza é para si uma preocupação? Procurou-a quando escreveu os ensaios que compõem “A Lágrima de Ulisses”?

Tornou-se uma preocupação e começou com o meu livro sobre o Saramago [“A Espiritualidade Clandestina de José Saramago], que inicia com uma comunicação que apresentei na Croácia. Sentindo que avançava em terreno inexplorado e sabendo que ia ser uma coisa polémica,  senti-me na necessidade de ser claro, legível na posição que estava a querer colocar. E isso deu-me simultaneamente o lastro para uma nova atitude  em relação ao ensaio que também está neste novo livro. A ideia de que se eu não conseguir ser claro é porque as minhas ideias não são suficientemente amadurecidas para poderem ser divulgadas. Este novo livro decorre já nesse regime  de legibilidade em que procuro situar-me num plano de comunicação que seja simultaneamente profundo e que resulte de um conhecimento também profundo das matérias que abordo.

 

A comunicabilidade é justamente abordada num dos textos deste livro.

No último texto, intitulado “A pertinência pública da literatura”, corro o risco de culpar dois monstros famosos da literatura portuguesa daquilo que é hoje reconhecido como o abandono da leitura: António Ramos Rosa e Maria Velho da Costa. A partir do início do séc. XX, a pouco e pouco, a literatura ficou fechada em si mesma e na ideologia da linguagem de que se compõe. E isto vai culminar, nos anos 60, naquilo que conhecemos como sendo a autonomia total do texto. Barthes vai dizer que o texto propõe e o leitor dispõe, sim, mas vai matar o autor para sobreviver o texto. Genette vai fazer a mesma coisa. Diz ele que fora do texto não há cá conversa. Esta ideologia do texto é transferida para Portugal por António Ramos Rosa, quer pela teoria, quer pela prática, a dar-nos uma poesia sem alma, que vive de um exercício racional da selecção das palavras.Os textos teóricos dele são “traduções”daquilo que se ia publicando em França, sobretudo do Genette e do Blanchot, que eram o arco em que se entendia a literatura como mero trabalho da linguagem. E com a Maria Velho da Costa, a palavra soltava-se e podia aparecer sem contexto, era o puro prazer da palavra. Resultado: isto afastou os leitores.

 

Este seu livro é também uma espécie de manifesto?

Não, manifesto já tive um - do Paulo da Costa Domingos. Este livro é uma afirmação pessoal de um estilo, e evidentemente de algumas ideias.

 

Não é preciso ter de si a imagem do retrato falado do académico, para ficar surpreendido com o acolhimento que este livro dá a questões como os meios digitais, a tecnologia, ou a realidade virtual. Sempre se interessou por estas questões?

Nós não queremos que o futuro nos abandone. Gostaríamos que os nossos valores actuais continuassem no futuro, mas não é assim que as coisas funcionam. Então, tenho de perceber no presente quais são os sinais que me mostram o futuro possível: o avanço tecnológico espantoso e a realidade virtual, a possibilidade de um texto ser vivido. Podemos escolher viver uma personagem, com outras personagens à volta, uma determinada história. Quem é que se encarrega disto? Os tecnólogos, que muitos do que são agora escritores, no futuro, hão-de reencarnar em tecnólogos para escrever esses quadros virtuais em que nós iremos existir. Nós, enquanto leitores, seremos actores.  

 

Como este livro refere, é verdade que as redes sociais acabaram por colocar a literatura “num novo patamar de atenção”. Mas se é verdade que nunca terá sido tão fácil existir, também é verdade que nunca o provisório e o inane tiveram tanta força.

Nós vivemos na sobremodernidade (Marc Augé), que é o tempo em que a aceleração das coisas é de tal forma grande que aquilo que agora é neste momento estabelecido tem uma vida muito curta. E é de tal maneira, que a nossa mente já está formatada para acreditar que a tecnologia soluciona imediatamente situações que podem acontecer. De tal modo é grande a aceleração mas também a potência criativa da tecnologia.  

 

E a insatisfação. E a frustração.  ¶

As redes sociais vieram introduzir um elemento completamente novo: a consciência e a vivência do efémero, do provisório. A consciência é importante para dominarmos melhor as angústias que resultam dessa mesma efemeridade.  As redes sociais criaram uma espécie de bola de neve do efémero e do transitório que nos transforma em moscas que andam a esvoaçar a ver se encontram um poiso, e normalmente o poiso não é recomendável. É o mundo da artificialidade.

 

Como presidente da Associação Portuguesa dos Críticos Literários, qual lhe parece ser o estado actual da nossa crítica?

O que nós temos é uma destruição da crítica por parte dos académicos, que aconteceu a partir dos anos 70 e 80, em que os académicos ocuparam o lugar da crítica culta, daquilo que era o protagonismo do homem culto que fazia crítica literária, que não tinha de ser necessariamente um académico, normalmente não o era. Mas também estávamos numa época em que a literatura fazia sentido para a generalidade das pessoas e as polémicas, quando aconteciam, tinham uma ressonância, uma audiência justificada. Quando os académicos transferem para os jornais o jargão teórico universitário e tentam, por aí, legitimar um pensamento crítico, estão necessariamente a afastar leitores cuja preparação teórica e crítica não pode ser equivalente à dessas pessoas. Ao fazerem isto, os académicos afastaram os leitores da crítica literária, contribuíram para a desmobilização dos leitores em relação à crítica literária. Quando hoje nós protestamos contra as estrelinhas, esquecemos que de facto também por parte do público já não há uma apetência para acompanhar e compreender o discurso crítico acerca de uma obra. A estrelinha é suficiente. Há um traço médio que une críticos  e leitores.

 

E quanto à literatura, propriamente dita, em que momento estamos?  

¶Ao contrário do que muitos pensam, eu acho que estamos numa fase de grande mediania na literatura portuguesa. Não há grandes autores que possamos reconhecer como grandes autores. Evidentemente, temos dois ou três Ronaldos, que talvez também sufoquem um quadro literário que poderia ser melhor. Mas neste momento, está num plano de mediania. Houve gente, como um Augusto Abelaira, um Alexandre Pinheiro Torres, com obras de altíssimo nível, que sabia o que deveria fazer para elevar a literatura portuguesa, que escrevia sabendo o que estava a fazer em termos de exigência de qualidade. Hoje, perdeu-se essa exigência. Os editores publicam aquilo que a máquina financeira em que estão inseridos lhes pede que publiquem. 

 

A sua tradução d'“O Cânone Ocidental”, publicada em 1997, tem mais de duas décadas. Em que pé estão as suas relações com Harold Bloom?

Eu continuo a admirá-lo imenso. Gosto muito do Steiner que, como teórico, talvez tenha mais fôlego, mas o Bloom é o grande crítico literário do século XX, no sentido da tradição da língua inglesa da crítica literária, que começa com Samuel Johnson. É um homem cujo mundo interior existe através de personagens de romances, de poemas, de fragmentos de poesia... A profundidade analítica e a capacidade de juntar, em termos de erudição,  autores e obras, faz dele, não tenhamos dúvidas, o grande crítico do século XX. Mas como ele próprio disse uma vez a propósito do politicamente correcto, se fosse hoje não seria contratado para uma universidade norte-americana. Ele tem uma percepção excelente do que estava a acontecer, e continua a acontecer, no domínio da literatura, dos estudos humanísticos. Por causa da ideia do cânone ocidental e de posições que geraram imensa hostilidade, os alunos boicotam-lhe uma vez uma conferência  e ele, a quem interessa apenas o estético, sai da sala com uma afirmação exemplar:  se tivessem um problema que precisasse de uma intervenção cirúrgica de um neuro-cirurgião, queriam um excelente neuro-cirurgião ou um que fosse gay, mulher, nativo americano, negro ou índio? Esta é a posicão central dele, a predominância do estético. Já eu penso que o estético, como valor absoluto, não existe.¶¶

 

Harold Bloom disse numa entrevista que cedo percebeu que o mundo literário e a academia (não achava que existisse realmente uma distinção entre os dois)  “são sempre dominados por tolos, patifes, charlatães e burocratas”. E sendo assim, os que tenham voz própria não são apreciados, a menos que a sua voz se misture com a de toda a gente. Concorda com ele?

Estou completamente de acordo. Infelizmente, quem tem o poder é o tolo. O ser humano, na sua essência, não muda. E o fascínio do humano está em perceber que é assim. Eu prezo muito o chamado princípio de Peter: à medida que vamos subindo na hierarquia das coisas começamos a perder qualidades e quando chegamos ao topo da pirâmide transformamo-nos em incompetentes. Não me ponho de fora, mas tenho a percepção que devo afastar-me quando as coisas se tornarem mais perigosas, quando achar que estou a mais.

 

Teresa Carvalho, https://ionline.sapo.pt/artigo/754749/manuel-frias-martins-os-academicos-afastaram-os-leitores-da-critica-literaria, 2021-12-02

 


CARREIRO, José. “Crítica literária”. Portugal, Folha de Poesia, 26-09-2021 (Última atualização: 2022-08-01). Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/09/critica-literaria.html