“Antero de Quental tem inimigos. E merece tê-los. O horror seria se os não tivesse. Declarados, não são muitos. Em filigrana, são mais do que se imagina e, entre eles, vários candidatos a heróis que suportam mal que Antero tenha sido o primeiro deles nos tempos modernos.”
Esta citação pertence a A Noite Intacta – (I)recuperável Antero, um daqueles títulos subversivos com que Eduardo Lourenço costuma batizar muitos dos seus ensaios. Mas este título, o mais indisciplinado de todos, traduz, só por si, sem recorrer a imagens estafadas (“o noturno e luminoso” de repetida e malfadada memória) a dualidades normalmente associadas ao nome do autor de Odes Modernas.
E
como não teria e não tem Antero ainda inimigos tendo ele sido um temível polemista?
Foi precisamente pela porta de uma polémica, Bom Senso e Bom Gosto ou Questão
Coimbrã, que se deu a sua ruidosa e triunfal entrada na literatura
portuguesa. Tinha 23 anos quando, no dia 2 de novembro de 1865, escreveu a
célebre carta-folheto a António Feliciano de Castilho, verdadeira carta
premonitória de finados pela poesia ultrarromântica e piegas que teimosamente
continuava a florir no nosso jardim quando no jardim dos outros já há muito
havia murchado.
O
então autoproclamado pontífice das letras lusas não lhe respondeu em público
“pois tinha mais que fazer”.1 Entregou essa tarefa aos aficionados que
pululavam à sua volta. Em privado, porém, referia-se ao seu antigo aluno de
Ponta Delgada e do Colégio do Pórtico, em Lisboa, como “pantero do quintal no
seu antro de Celas, tolo e doido, parvo, zaranza, asno, javardo, bácoro que
chafurda por Coimbra e, por fim, até espadachim velhaco, após o duelo de
Antero/Ramalho.2
Dos
numerosos folhetos que a polémica produziu, mais de quarenta, uns contra (de
longe a maioria) outros a favor da chamada “Escola de Coimbra”, apenas dois ou
três merecerão algum parco interesse, tão culturalmente ignorantes e
retrógrados eles se apresentam nos seus ataques. Menciono apenas, de entre
eles, o de Júlio de Castilho que, em socorro do pai, produziu um argumento, na
sua ótica decisivo e arrasador, ao crismar de Lutero de Quental o seu “mais
antigo amigo e companheiro de folguedos naquela abençoada ilha”. (São Miguel)3,
insulto recebido pelo visado como um mais do que merecido elogio. Afinal
tratava-se mesmo de uma Reforma triunfante e a força da razão literária e
histórica da carta detonadora enviou praticamente para o esquecimento toda a
restante papelada. E aqui convém, muito a propósito, recordar Manuel Bandeira:
“Costuma apontar-se Eça de Queiroz como o modernizador da prosa lusa. Basta,
porém, a carta Bom Senso e Bom Gosto para se provar que se houve reforma
da prosa portuguesa ela já estava evidente no famoso escrito de Antero”.4
Seis
anos passados, em 1871, a biografia de Antero de Quental regista outra polémica
nascida no interior do Casino Lisbonense. A sua conferência, Causas da
decadência dos Povos Peninsulares, foi alvo de provocações de toda a
espécie, com destaque para os jornais católicos e legitimistas A Nação e
o Bem Público que viam nas conferências ramificações da Comuna de Paris
e nos conferencistas, agentes da Internacional, o que levou Antero a publicar a
Resposta aos Jornais Católicos, considerada por Camilo Castelo Branco “uma das
mais belas coisas e eloquentes que ainda lera em língua portuguesa”.5
Também
a prepotência do encerramento compulsivo das conferências mereceu ao seu
principal impulsionador uma violenta carta publicamente dirigida a António José
d’Ávila, futuro duque d’Ávila, presidente do Conselho de Ministros. Violenta e
merecida. Antero não ambicionava entrar na imortalidade, ou na glória efémera
de quinze minutos, à custa de insultos gratuitos a um Primeiro Ministro, mas o
encerramento foi muito mais do que uma injustiça, tratou-se de uma ilegalidade,
até porque em Portugal registar-se-ia então “uma fenomenal liberdade de
pensamento...somente ninguém se lembrava de pensar”.6
Mas
em todas as polémicas onde deliberadamente entrou ou se viu envolvido, por
vezes contra sua vontade, (bem mais das que aqui vão brevemente indicadas)
Antero contou sempre com adversários que, bem ou mal, quase sempre mal, o
contestaram publicamente e por escrito sem se esconderem sob qualquer
anonimato. Nas palavras de Fidelino de Figueiredo, os textos das polémicas
anterianas tinham o calor da convicção lutadora e assentavam sobre um fundo de
ideias. Antero era um polemista que tinha sempre razão, ainda que pudesse
alguma vez exagerar a sua própria razão.”7
E
razão teve ainda, sem exagero algum, quando, ao escrever sobre a Teoria da
História da Literatura Portuguesa, de Teófilo Braga, num ensaio que intitulou
Considerações sobre a Filosofia da História Literária Portuguesa, (Porto,
Livraria Internacional, 1872) por ele próprio qualificado como sendo o que de
melhor fizera ou pelo menos de mais razoável em prosa, (na carta autobiográfica
a Wilhem Storck, em 1887) foi miseravelmente insultado pelo seu antigo colega
de Coimbra. A análise de Antero, serena, objetiva e muito bem argumentada, que
aplaudia mas também desaprovava algumas passagens, divergindo assim do espírito
de compadrio da época, provocou da parte do despeitado Teófilo a edição do
folheto “Os críticos da História da Literatura Portuguesa” escrito bem
ao estilo de José Agostinho de Macedo. “Duas palavras a propósito do folheto do
Sr. Teófilo Braga mas não em resposta ao Sr. Teófilo Braga nem ao seu folheto”,
foi a resposta de Antero, para Eduardo Lourenço “uma das mais desapiedadas que
o nosso génio polémico tem suscitado”.8
Ana
Maria Almeida Martins, “Antero De Quental e Eduardo Lourenço: textos de polémica”
in
Colóquio/Letras, n.º 170, Jan. 2009, p. 84-94
Disponível
em: https://xdata.bookmarc.pt/gulbenkian/cl/pdfs/170/PT.FCG.RCL.8820.pdf
____________
1 “Carta ao editor António Maria Pereira” in Poema
da Mocidade, de Manuel Pinheiro Chagas, Livraria de A. M. Pereira, 1865
2 Castilho e Camilo – Correspondência trocada
entre os dois escritores, pref. e notas de João Costa, Coimbra, Imprensa da
Universidade, 1924
3 Júlio de Castilho, O Senhor António Feliciano
de Castilho e o Sr. Antero de Quental, Lisboa, Imp. De J.C. de Sousa Neves,
novembro, 1865
4 Manuel Bandeira, “Antero de Quental”, prefácio a
Sonetos Completos e Poemas Escolhidos de Antero de Quental, Rio de
Janeiro, Livros de Portugal, 1942, incluídos em Poesia e Prosa, Rio de Janeiro,
José Aguilar, 1958
5 Carta de Joaquim de Araújo a Rodrigo Veloso, na
edição de Resposta aos Jornais Católicos, Barcelos, Tip. Aurora do
Cavado, 1895
6 Carta ao Exmo Sr. António José d’Ávila,
marquês de Ávila, Presidente do Conselho de Ministros, Lisboa, Tip. do
Futuro, 1871
7 Fidelino de Figueiredo, “A prosa de um grande
poeta”, in Antero, São Paulo, Dep. Municipal de Cultura, 1942. (pág.
126)
8 O Labirinto da Saudade, Lisboa, Gradiva,
2004. (pág. 137)
CARREIRO, José. “Antero
de Quental tem inimigos”. Portugal, Folha de Poesia, 01-10-2021. Disponível
em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/10/antero-de-quental-tem-inimigos.html
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