Green man inspired, upload by ingrid newman |
Green god
Trazia
consigo a graça
das
fontes, quando anoitece.
Era
o corpo como um rio
em
sereno desafio
com
as margens, quando desce.
Andava
como quem passa,
sem
ter tempo de parar.
Ervas
nasciam dos passos,
cresciam
troncos dos braços
quando
os erguia do ar.
Sorria
como quem dança.
E
desfolhava ao dançar
o
corpo, que lhe tremia
num
ritmo que ele sabia
que
os deuses devem usar.
E
seguia o seu caminho,
porque
era um deus que passava.
Alheio
a tudo o que via,
enleado
na melodia
de
uma flauta que tocava.
Eugénio de Andrade, As
mãos e os frutos (1948)
Textos de apoio
Ake Art |
Correntes neomodernistas em Portugal - Eugénio de Andrade
Neste [primeiro] ciclo, em que
aquisições neorrealistas e surrealistas, ou heranças de cancioneiro ancestral e
de neobarrorroquismo hispânico, se sobrepõem aos influxos estéticos do Modernismo,
emergem os veios fundamentais da poesia de Eugénio de Andrade: o amor e
o desejo, a sensibilidade à terra, sua configuração e seus frutos, o metaforismo
produzido a partir dos motivos elementais, sobretudo os da água e do ar, a
limpidez de uma expressão que se articula com a perfeição imagística e com o
apurado sentido da musicalidade, a euforia de uma vivência das coisas e dos
seres em termos vibrantemente sensuais. Sublinhe-se, todavia, que esse ciclo
lírico já combinava o potencial insurgente com o aprofundamento estético do
trabalho na linguagem, remodernizada pela imbricação de ritmo e metáfora. Com
sua extraordinária unidade poemática, As Mãos e os Frutos permanecerá o
livro mais emblemático - pela forma de exaltação do corpo amoroso e do desejo e
pela transfusão da comunhão erótica para todo o entorno natural, qual «Green
God» justamente celebrizado, mas também pela derrogação de costumeiros
escapismos («Não canto porque sonho. Canto porque és real.») e pela consequente
tensão da euforia libidinal com fatores disfóricos figurados em «noite», em «sombra»,
em «morte», geradores de melancolia e de tonalidades elegíacas do canto.
José Carlos Seabra Pereira, As Literaturas
em Língua Portuguesa (Das origens aos nossos dias). Lisboa, Gradiva, dezembro de 2019 (1.ª edição),
pp. 427-429.
Fauno dançante, jardim do Museu Sorolla, Madrid |
Uma leitura de As Mãos e os Frutos
O
deus ― Green God, que passa sorrindo e dançando, que se vem aproximando mas
―alheio a tudo o que o rodeia, divino no seu andar musical, na vida que emana e
que gera, passos fazem nascer a erva e saem-lhe troncos dos braços, é
essencialmente ritmo e dança. O deus passa pelo meio das coisas e, tal como o
ser amado ou o próprio amor, altera aquilo que toca.
Graciosidade,
vida, dança ou música emergem deste melodioso poema em que o jovem deus,
personagem principal e única, faz parte integrante do cenário que transforma à
sua passagem. […]
Torna-se
aqui particularmente visível a articulação dos planos semântico e formal na
construção da mensagem poética. Este é o único poema que apresenta uma métrica
(quatro quintilhas heptassilábicas) e rima (abccb) regulares, o que contribui para
o seu ritmo ―dançante‖ e musical, ao que se alia o
campo semântico evocativo da arte
dos sons: dança, dançar, ritmo, melodia, flauta, tocava. Também o
aspecto fónico, com a recorrência às consoantes líquidas e sibilantes, introduz
no poema uma sensação de fluidez, de melodia que acompanha o dançar do jovem
deus e que sugere o som da flauta que tocava.
Esta
naturalidade musical anuncia-se logo nos versos iniciais, associando o corpo à
―graça/ das fontes quando anoitece‖ e ao rio
que, serenamente, segue o seu curso. É significativa a referência temporal, já
que a beleza das fontes sobressai no momento em que a vida se silencia e
adormece. E, tal como uma flor, o corpo, tremendo ao ritmo dos deuses,
desfolha-se graciosamente na sua passagem.
‘As
Mãos e os Frutos’ de Eugénio de Andrade e de Lopes-Graça, Ana Oliveira.
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2010
Fauno dançante, Pompeia, casa do Fauno (100 a. C.) |
Eugénio de Andrade - um eu lírico entre o uno e múltiplo
Já
sobre «Green God», Eduardo Prado Coelho notara que «O amor é ator: o que faz
crescer» (COELHO, E. P., 2006: 34); e, ainda em «Green God», esse deus que
passa pelo meio das coisas e as fecunda à sua passagem é para esse autor um
aspeto nuclear da poesia de Eugénio de Andrade: «Essa ideia de que é preciso ir
pelo meio das coisas é nuclear.
Aquele
que vai pelo meio das coisas pertence às próprias coisas. As coisas estão
dentro dele» (ibid.). O sujeito
passa pelo meio das coisas para as poder contagiar e se deixar contagiar por
elas, o que de certa forma define a maneira como a sensação de plenitude é
elaborada na poesia de Eugénio.
Eugénio de Andrade: uma proposta de plenitude, Maria
de Fátima Cordeiro. Universidade Aberta, 2010, pp. 41-42
Chris Hemsworth, Ego Rodriguez Illustration, 2020 |
Eugénio de Andrade: um dizer rente à turbulência
Algumas reflexões sobre a presença do
corpo, a ambiguidade sexual e o afeto na produção poética de Eugênio de
Andrade.
A
construção de um corpo masculino sedutor e atraente, movendo-se entre o dinamismo
e a fluidez, o natural e o ideal, realidades aparentemente dispersas,
articula-se a uma ideologia de valorização do masculino na sociedade ocidental
desde o século XIX.
A
novidade para a cena portuguesa era, sem dúvida, falar do corpo masculino com
uma desenvoltura erótica inusitada, realçando de forma agressiva uma certa
fixação em elementos fálicos (no caso, a “flauta que tocava”, em outros poemas,
os braços (do parceiro) “deslumbrados”, “nus e suados”; em Obscuro domínio,
alude-se à “sombra de um lírio entre as pernas”). A fortuna crítica deste poema
é notável. Jorge de Sena refere-se, entre outras coisas, à última estrofe:
Note-se
que o ele ir “enleado na melodia/ de uma flauta que tocava” pode aludir falicamente,
de uma maneira notavelmente transposta, à sexualidade não-disponível da jovem
personagem masculina deificada no poema: vai embebido em tocar-se o sexo (...),
sem que isso signifique que o faz deliberadamente para atrair a atenção dos circunstantes
para a sua virilidade.2
Eduardo
Lourenço, fundamentado em convicções filosóficas e essencialistas, preferiu ver
no poema a “imersão do divino no natural e do natural no divino”.3
Convincente como elaboração filosófica, a análise de Lourenço hoje cheira a
mofo, tendo em vista o crescente desenvolvimento dos estudos de homocultura,
ainda mais em face de um texto paradigmático de uma concepção vincadamente gay. A comparação do corpo do outro
(o parceiro) a um rio retorna no poema XVIII, acentuando a idéia de integração
de dois corpos:
“Impetuoso,
o teu corpo é como um rio/ onde o meu se perde. / Se escuto, só oiço o teu rumor.
/ De mim, nem o sinal mais breve”. Símbolo antigo da fertilidade, o rio
relaciona-se a música, sugerindo não apenas a união de dois rios (os dois
corpos), mas a união harmoniosa. Alexandre Pinheiro Torres comenta:
Curioso
é verificar que ambos os corpos são comparados a rios, pelo que haverá que concluir
que um rio desaguará noutro rio. Este ponto não é tão irrelevante
como poderá parecer. Recordem-se que os rios em Lorca não vão dar ao mar.
Acabam em tanques. E o tanque é, por sua vez, símbolo da esterilidade.4
(grifos do autor)
A
idéia de esterilidade, em As mãos e
os frutos, inscreve-se
na metáfora da folha, se relacionada a flor e fruto. No poema 24, num cenário
de “silêncio e solidão”, somos comparados a “folhas breves”, uma vez que frágil
e passageira é toda vida; somos ainda identificados a folhas “incapazes de ser
flor”, portanto estéreis:
Somos
folhas breves onde dormem
aves
de silêncio e solidão.
Somos
só folhas ou o seu rumor.
Inseguros,
incapazes de ser flor,
até
a brisa nos perturba e faz tremer.
Importa
observar que nesse mundo de esterilidade passa o amado “entre as folhas”, operando
uma geral transformação, fazendo tudo nascer ou renascer: “Quando em silêncio passas
entre as folhas, / uma ave renasce da sua morte/ e agita as asas de repente”.
Um atributo, entretanto, é próprio da folha, a sensibilidade. De acordo com
Torres: “A folha simboliza certamente, na sua fragilidade, na facilidade com
que estremece, a capacidade humana para a emoção, talvez para o terror,
qualquer coisa que apenas uma brisa bastará para
perturbar”.5
Desde
então esta poesia, aparentemente frágil em termos de militância gay, instaura-se
como espaço de ambigüidade sexual, na medida em que intersecciona a celebração
de uma experiência erótica interdita à melancólica expressão desta interdição.
Ao construir uma escrita poética visceralmente ligada ao corpo, o sujeito de
enunciação tem-se marcado por insistir nos traços reveladores “da melancolia
face às repressões”, de acordo com a análise de Joaquim Manuel Magalhães,6 uma
melancolia quase sempre articulada a uma luminosa perspectiva de desejo e de
prazer. Desde esse livro de fulgurantes claridades, entretanto, os olhos surgem
“carregados de sombra”, para um sujeito consciente de que “Só as tuas mãos
trazem os frutos”, como se afirma num dos poemas, sugerindo a idéia de que a
produção e a fertilidade (as mãos e os frutos) são atributos do outro, aquele
que impedirá a desertificação do corpo. A tônica dos poemas constitui a idéia
de que a existência é transformada pela oferta simbólica dos frutos realizada
pelo outro. As palavras interditas (1951) é
um livro marcado pela experiência da guerra, o que não significa afastamento da
temática amorosa:
(...)
As
palavras que te envio são interditas
até,
meu amor, pelo halo das searas;
se
alguma regressasse, nem já reconhecia
o
teu nome nas suas curvas claras.
Dói-me
esta água, este ar que se respira,
dói-me
esta solidão de pedra escura,
estas
mãos nocturnas onde aperto
os
meus dias quebrados na cintura.
E
a noite cresce apaixonadamente.
Nas
suas margens nuas, desoladas,
cada
homem tem apenas para dar
um
horizonte de cidades bombardeadas.7
As
marcas da guerra (“este ar que se respira”, “cidades bombardeadas”) não conseguem
eliminar a rigorosa articulação entre poesia (“as palavras que te envio”) e vivência
amorosa (“a noite cresce apaixonadamente”).
Tem
sido muito debatida a rasura da nomeação explícita do referente amoroso na poesia
de Eugênio de Andrade. A ocultação do gênero sexual do parceiro é uma constante
nesta poesia. As inspiradas relações amorosas se ressentem de uma explicitação
da opção sexual, ou o parceiro é referido através de uma zona vazia ou um
pronome neutro. A excessiva cobrança de uma visibilidade homoerótica nem sempre
leva em conta, entretanto, o contexto repressivo da sociedade portuguesa dos
anos 50 aos 70. Joaquim Manuel Magalhães tem discutido essa rasura da
visibilidade homoerótica com argumentos que variam da irritação à tentativa de
inserção da poesia de Eugênio de Andrade num projeto político.
....[os
livros subseqüentes a Limiar dos pássaros] afirmam uma linha de
tristeza, mesmo que face a circundantes esplendores, que é simultaneamente
pessoal e política. E política não apenas por se inscrever numa história
colectiva de quotidiano reprimido pela organização totalitária do Estado, mas
por ter de calar uma história pessoal reprimida pela moral maioritária: “As
palavras que te envio são interditas”.8
Um
aspecto decisivo nesta poesia é sua gradual evolução no sentido de incorporar a
inclinação homoerótica. Além de se tornarem mais constantes, as alusões à
cultura gay revestem-se por vezes de um tom sombrio e negativo, como
possibilitam alterações lexicais ou de imagens. Um dos poemas de As mãos e os frutos sofreu importantes modificações
na edição subseqüente. Para acompanhar o que se segue, é necessário uma
remissão ao poema VIII daquele livro:
Foi
para ti que criei as rosas.
Foi
para ti que lhes dei perfume.
Para
ti rasguei ribeiros
e
dei às romãs a cor do lume.
Foi
para ti que pus no céu a lua
e
o verde mais verde nos pinhais.
Foi
para ti que deitei no chão
um
corpo aberto como os animais.
O
último verso na edição de 1948 dizia: “uma mulher pura como os animais”. Esta variante
– “um corpo aberto como os animais” - passa a circular a partir de 1968 (Poemas)
quando
cinco poemas sofrem profundas modificações. Mesmo reconhecendo que nenhuma delas
tenha afetado “o arranjo estrófico dos versos”, Jorge de Sena considera-as
reveladoras de mudanças da “personalidade do poeta”,9 complementando algumas
observações sobre a “curiosíssima” alteração:
Na
primeira forma, “mulher pura” era uma sugestão violenta mas corrente (a
violência vinha do contraste com “animais”, antes de o leitor se aperceber de
que “pura” significava “livre de pecado”, logo não-humana, ou seja não restringida
pelas convenções morais e sexuais que limitam e deformam o humano, ou o impedem
de ser, sem pecado, natural, um natural em que se inclui qualquer
“contra-natura”, definida por aquelas convenções). “Corpo aberto”, na
experiência, é-o muito menos [violento], mas implica generalidade e ambigüidade
quanto ao sexo da personagem que o poeta declara haver deitado no chão para a
pessoa desejada; e é sem dúvida uma imagem (ou metáfora) mais incisiva.10
Mais
do que curiosíssima, a variante definitiva afasta-se de juízos morais presentes
em “mulher pura”, eliminando também a notação de gênero (mulher), ainda que
mantenha a “generalidade” referida por Sena (um corpo aberto tanto pode ser de
homem como de mulher). Não deixa também de ser enriquecedora a nota de rodapé
no texto de Jorge de Sena:
Corpo
aberto significará ou sugerirá “corpo que se abre”, “corpo
que se entrega”, “corpo que não resiste à posse”, “corpo sensualmente
apaixonado” - o que é reforçado por como os animais: “corpo sem
inibições de ordem moral”, “corpo de que nenhuma parte se fecha ou retrai ante
as mais diversas formas do contacto erótico”.11 (grifos do autor)
Sena
reclamava no mesmo texto da “irregularidade lógica” da variante “corpo aberto como
os animais” (para ele, deveria ser “corpo aberto como os dos animais”). Não
seria ocioso mencionar a aliança homem/natureza como retificadora da fórmula
preferida pelo poeta, destacando o fato de o corpo
aberto e
desejante ser incapturável pelo pensamento lógico. A variante evidencia ainda as
intensidades e as desproporções que assolam as sensações do corpo – esse grande
ausente dos debates filosóficos do Ocidente.
O
corpo (...) perdurou “ausente” nos pares categoriais (morais e disciplinares)
das ficções do humano e da animalidade, da cultura e da barbárie, do real e do
simbólico, e assim sucessivamente na história das filosofias e nas crenças
humanas e sociais.12
O
corpo passa a ser visto na moderna masculinidade como elemento aglutinador de valores
extraídos pela classe média de vários estratos socioeconômicos (a ética do
trabalho e da família, herança da burguesia; a solidez, a coragem e a
generosidade, herança da aristocracia; a beleza e a harmonia de formas, herança
da antiguidade clássica). Nomeando o corpo desejante, dionisíaco, aquele que
não se deixa domesticar pela filosofia e pelos aparelhos de controle ou de
vigilância estatal, o poema de Eugênio de Andrade distancia-se ainda do senso
de culpa e de qualquer contaminação edipiana, apagando as ressonâncias e formas
de tirania e opressão, mesmo as pequenas, de que nem nos damos conta, de tal forma
a elas nos habituamos. O “corpo aberto como os animais”, corpo sem cérebro e à deriva,
sela o poema com uma chave alegre e inusitada, sugerindo a fruição do prazer vivido
intensamente, em direção a uma experiência e a uma tecnologia do desejo não
mais freudiana e sim de tendência deleuziana. Além das formas colossais de
fascismo, existem as “formas pequenas que fazem a amarga tirania de nossas
vidas cotidianas”,13 de que fala Foucault a respeito do livro O anti-Édipo, de
Gilles Deleuze. Nesse mesmo texto, Foucault afirma que o livro referido “não
concebe oposição entre o homem e a natureza, a natureza e a indústria, mas
simbiose e aliança”, tal como ocorre em “corpo aberto como os animais”.
É
desagradável ter que dizer coisas tão rudimentares: o desejo não ameaça uma sociedade
porque é desejo de deitar com a mãe, mas porque é revolucionário. E isto quer
dizer, não que o desejo é outra coisa diferente da sexualidade, mas que a sexualidade
e o amor não vivem no quarto de dormir de Édipo, eles sonham mais com uma
grande amplidão, e fazem passar estranhos fluxos que não se deixam estocar em uma
ordem estabelecida. O desejo não “quer” a revolução, ele é revolucionário por
si mesmo e como que involuntariamente, querendo o que quer.14
Data
de fins do séc. XIX, mais precisamente do processo de Wilde (1885), a crise em torno
do masculino, com o deslizamento semântico (ou melhor, confusão) provocado
pelas identidades de gênero e identidades sexuais (heterossexual e efeminado,
homossexual e efeminado, homossexual e viril) com profundas conseqüências no
pensamento e ciência modernos.
...muitas
das mais importantes articulações do pensamento e do conhecimento na cultura
ocidental do séc. XX como um todo estão estruturadas – na realidade, fraturadas,
– por uma crise crônica, agora endêmica, de definição homo/heterossexual, nomeadamente
masculina, que data do fim do séc. XIX.15
A
partir da primeira década do século XX começa-se a falar de homossexualidade para
definir a sexualidade das pessoas cujo objeto de amor preferencial era uma
pessoa do mesmo sexo. A psicanálise freudiana revela dificuldade em reconhecer
a opção sexual calcada na diferença, corroborando uma milenar exclusão moral.
Vista como exceção ao desenvolvimento paradigmático da libido, a
homossexualidade é tratada como patologia no romance realista. Até meados do
século XX, em geral, as relações homossexuais aparecem na literatura de forma
sombria e carregadas de senso de culpa (Proust, Gide, Wilde, Thomas Mann),
quase sempre como o amor que não ousa declarar-se. A partir dos anos 70 do século
passado, o homoerotismo passa a ser visto como uma vertente específica de uma cultura
minoritária, diante de um grupo heterossexual majoritário, mais ou menos
opressivo.
Uma
evidência se impõe, o controle da sociedade burguesa patriarcal sobre grupos minoritários,
o que leva Georges Chauncey a afirmar que “o controle da homossexualidade não é
senão um aspecto do controle da heterossexualidade”.16 Outra evidência incontornável:
o papel destacado que o homoerotismo masculino ocupa no cânone literário ocidental.
Os gay and lesbian studies tentam provar que as opções
sexuais seriam conseqüências de uma construção cultural, implicando escolhas e
estratégias diferentes.
A
poesia de Eugênio de Andrade, visceralmente ligada ao corpo, ele próprio atravessado
pelas astúcias da sedução e do desejo, apresenta uma evolução no trato com o homoerotismo,
Se nos damos ao cuidado de verificar que As
mãos e os frutos é de
1948, em pleno contexto de repressão moral e política, cumpre reconhecer as
estratégias de ocultação de uma sensibilidade gay, apesar
de jamais apagadas. As variantes aplicadas aos poemas apontam não limitações de
linguagem, mas estratégias mediadoras de visibilidade homoerótica, a se revelar
entre o sinal de mais e o de menos. Cumpre mencionar, noutra modificação
efetuada em outro poema à edição original, cujo universo semântico se aproxima
ao do verso que se está comentando (corpo aberto/ corpo que se abre; mulher pura,
madrugada pura), que a variante dada como definitiva (de 1968) representa um retrocesso
em termos de visibilidade homoerótica. Trata-se do verso “O teu corpo,
completo, abre na madrugada”, modificado para “Que palavra/ abre a noite à mais
pura madrugada?” Diante dessa variante empobrecedora insurge-se, perplexo,
Jorge de Sena:
Mas
qual a razão, por certo fortíssima, de ser substituído um verso lindíssimo como
O teu corpo completo, abre na madrugada, com a sua sugestão de corpo que
se abre, para a entrega amorosa, e se abre completo, dando-se inteiro,
tal como as flores que abrem no amanhecer?17
Desde
As mãos e os frutos (1948), Os amantes sem dinheiro (1950), As palavras interditas (1951), Mar de setembro (1961), Véspera da água (1973), Limiar dos pássaros (1976), Rente ao dizer (1992), entre muitos outros
títulos, Eugênio de Andrade vem construindo uma obra densa de alusões a Eros na
vida cotidiana. A simplicidade dos recursos, a proximidade do afeto, a
descrição maliciosa, a integração com os elementos naturais, o discurso ciciado
nas margens e fronteiras da fruição amorosa, a ambigüidade sexual transparecem
nos seus poemas. Referência tutelar na expressão mítica do homoerotismo, quase
sempre caudatária de um grito libertário, mais sugerido que enunciado, sua
poesia influencia sobremaneira uma sensibilidade poética que vai surgir nos
anos setenta, com a celebração do corpo e de uma sexualidade terrivelmente
dispersa.
Para
concluir esta incursão por alguma poesia de Eugênio de Andrade, como subsídio, trago
depoimentos do próprio poeta, em vários momentos manifestando circunstâncias ligadas
à sexualidade em sua aproximação com a Espanha. Os testemunhos, de grande valia
biográfica para a compreensão da sexualidade nesta poesia, dispensam
comentários. O primeiro depoimento vem em Os
afluentes do silêncio: “aconteceu-me
o que tinha que acontecer para que Espanha se tornasse em mito: o amor e a
poesia iam encontrar-se e reconhecer-se”. (“Com Angel Crespo por vários
caminhos”). Outro depoimento aparece em Rosto
precário: “(...)
por razões que quero calar, a partir de 1961, após umas férias no País Basco,
onde escrevi em grande parte Mar
de setembro (eis a
dívida maior com a Espanha: uma paixão e um livro)”. O terceiro depoimento é
uma entrevista escrita pelo poeta a Joaquim Manuel Magalhães. À pergunta: Como
foi sua relação com Espanha?, responde Eugênio de Andrade:
Foi,
antes de mais, afectiva. E ligação de juventude, que atingiu o seu zênite nos anos
50. Mas começa com uma avó materna, de Valverde del Fresno (eu nasci perto da fronteira),
e com idas freqüentes, ainda menino de colo, a Cória, onde meu avô se encarregava
de obras de construção civil. Em casa dizia-se que foi em Espanha que me nasceram
os primeiros dentes. A relação afectiva prossegue em Lisboa, teria eu onze/ doze
anos, com um rapazito das bandas de Compostela, três ou quatro anos mais velho,
que se hospedara na nossa casa. Além de uns rudimentos de sexualidade, devo-lhe
a leitura do Quixote, coisas ambas que tiveram para mim a sua importância.18
Notas:
1
ANDRADE. Antologia breve, p.19.
2 SENA. Observações
sobre As mãos e os frutos, p.
273-274.
3
LOURENÇO. AAVV. 21
ensaios sobre Eugênio de Andrade.
4 TORRES.
O conflito entre o instinto e a sociedade em As mãos e os frutos de
Eugênio de Andrade, p. 6.
5 TORRES.
O conflito entre o instinto e a sociedade em As mãos e os frutos de
Eugênio de Andrade, p. 8.
6
MAGALHÃES. Os dois crepúsculos, p. 107.
7 ANDRADE.
Antologia breve, p.
39-40.
8
MAGALHÃES. Os dois crepúsculos, p.
109-110.
9 SENA. Observações
sobre As mãos e os frutos, p. 251.
10 SENA. Observações
sobre As mãos e os frutos, p.
272-273.
11 SENA. Observações
sobre As mãos e os frutos, p. 273.
12
ESCOBAR. Dossier Deleuze, p. 151.
13
ESCOBAR. Dossier Deleuze, p. 84.
14
DELEUZE e GUATTARI. O anti-Édipo, p.
151-152.
15
SEDGWICK. Epistemology of the Closet, p. 1.
16
CHAUNCEY. Genres, identités sexuelles et conscience homosexuelle dans
l’Amérique du XX siècle, p. 107.
17 SENA. Observações
sobre As mãos e os frutos, p.
281-282.
18
MAGALHÃES. Rima pobre - poesia
portuguesa de agora, p. 284-285.
“Eugênio de Andrade: um dizer rente à turbulência”, Edgard
Pereira. Aletria: Revista De Estudos De Literatura, n.º 9, 2002, pp. 117–125
Pan, Joe Phillips, 2021 |
Outros textos de apoio
- “A metáfora em Eugénio de Andrade” - apresentação crítica,
seleção, notas e sugestões para análise literária da lírica de Eugénio de
Andrade, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 2018-04-23.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/04/a-metafora-em-eugenio-de-andrade.html
- A palavra-imagem em poemas de Eugênio de Andrade: uma leitura dos elementos míticos: o fogo, a água, o ar e a terra como produção de sentido, Amanda Mantovani. Universidade Estadual de Maringá, 2006, pp. 82-84.
- “Era um Deus que Passava: Mitologia Celta e Romantismo Inglês no Poema ‘Green God’, de Eugénio de Andrade”, João de Mancelos. In: Letras & Ciências: As Duas Culturas de Filipe Furtado. Org. Carlos Ceia, Miguel Alarcão, e Iolanda Ramos. Lisboa: Caleidoscópio, 2009. 117-128. ISBN: 978-989-658-031-5
- Português - 12.º Ano | A poesia de Eugénio de Andrade: os poemas "Green God" e "Canção". |Aula 36| 29 min| 12 Abr. 2021 In: #EstudoEmCasa. Disponível em: https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7907/e536555/portugues-12-ano
Il Fauno, Vilela Valentin, 2017 |
Fauno, Gianpiero Averna |
CARREIRO, José. “Green
god, Eugénio de Andrade”. Portugal, Folha de Poesia, 07-12-2021. Disponível
em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/12/green-god-eugenio-de-andrade.html