terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Green god, Eugénio de Andrade


Green man inspired, upload by ingrid newman



Green god

 

Trazia consigo a graça

das fontes, quando anoitece.

Era o corpo como um rio

em sereno desafio

com as margens, quando desce.

 

Andava como quem passa,

sem ter tempo de parar.

Ervas nasciam dos passos,

cresciam troncos dos braços

quando os erguia do ar.

 

Sorria como quem dança.

E desfolhava ao dançar

o corpo, que lhe tremia

num ritmo que ele sabia

que os deuses devem usar.

 

E seguia o seu caminho,

porque era um deus que passava.

Alheio a tudo o que via,

enleado na melodia

de uma flauta que tocava.


Eugénio de Andrade, As mãos e os frutos (1948)

 




Textos de apoio

 

Ake Art


Correntes neomodernistas em Portugal - Eugénio de Andrade

 

Neste [primeiro] ciclo, em que aquisições neorrealistas e surrealistas, ou heranças de cancioneiro ancestral e de neobarrorroquismo hispânico, se sobrepõem aos influxos estéticos do Modernismo, emergem os veios fundamentais da poesia de Eugénio de Andrade: o amor e o desejo, a sensibilidade à terra, sua configuração e seus frutos, o metaforismo produzido a partir dos motivos elementais, sobretudo os da água e do ar, a limpidez de uma expressão que se articula com a perfeição imagística e com o apurado sentido da musicalidade, a euforia de uma vivência das coisas e dos seres em termos vibrantemente sensuais. Sublinhe-se, todavia, que esse ciclo lírico já combinava o potencial insurgente com o aprofundamento estético do trabalho na linguagem, remodernizada pela imbricação de ritmo e metáfora. Com sua extraordinária unidade poemática, As Mãos e os Frutos permanecerá o livro mais emblemático - pela forma de exaltação do corpo amoroso e do desejo e pela transfusão da comunhão erótica para todo o entorno natural, qual «Green God» justamente celebrizado, mas também pela derrogação de costumeiros escapismos («Não canto porque sonho. Canto porque és real.») e pela consequente tensão da euforia libidinal com fatores disfóricos figurados em «noite», em «sombra», em «morte», geradores de melancolia e de tonalidades elegíacas do canto.

José Carlos Seabra Pereira, As Literaturas em Língua Portuguesa (Das origens aos nossos dias). Lisboa, Gradiva, dezembro de 2019 (1.ª edição), pp. 427-429.

 


Fauno dançante, jardim do Museu Sorolla, Madrid


Uma leitura de As Mãos e os Frutos

 

O deus ― Green God, que passa sorrindo e dançando, que se vem aproximando mas ―alheio a tudo o que o rodeia, divino no seu andar musical, na vida que emana e que gera, passos fazem nascer a erva e saem-lhe troncos dos braços, é essencialmente ritmo e dança. O deus passa pelo meio das coisas e, tal como o ser amado ou o próprio amor, altera aquilo que toca.

Graciosidade, vida, dança ou música emergem deste melodioso poema em que o jovem deus, personagem principal e única, faz parte integrante do cenário que transforma à sua passagem. […]

Torna-se aqui particularmente visível a articulação dos planos semântico e formal na construção da mensagem poética. Este é o único poema que apresenta uma métrica (quatro quintilhas heptassilábicas) e rima (abccb) regulares, o que contribui para o seu ritmo ―dançante e musical, ao que se alia o campo semântico evocativo da arte dos sons: dança, dançar, ritmo, melodia, flauta, tocava. Também o aspecto fónico, com a recorrência às consoantes líquidas e sibilantes, introduz no poema uma sensação de fluidez, de melodia que acompanha o dançar do jovem deus e que sugere o som da flauta que tocava.

Esta naturalidade musical anuncia-se logo nos versos iniciais, associando o corpo à ―graça/ das fontes quando anoitece e ao rio que, serenamente, segue o seu curso. É significativa a referência temporal, já que a beleza das fontes sobressai no momento em que a vida se silencia e adormece. E, tal como uma flor, o corpo, tremendo ao ritmo dos deuses, desfolha-se graciosamente na sua passagem.

 

‘As Mãos e os Frutos’ de Eugénio de Andrade e de Lopes-Graça, Ana Oliveira. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2010

 

Fauno dançante, Pompeia, casa do Fauno (100 a. C.)


 

Eugénio de Andrade - um eu lírico entre o uno e múltiplo

 

Já sobre «Green God», Eduardo Prado Coelho notara que «O amor é ator: o que faz crescer» (COELHO, E. P., 2006: 34); e, ainda em «Green God», esse deus que passa pelo meio das coisas e as fecunda à sua passagem é para esse autor um aspeto nuclear da poesia de Eugénio de Andrade: «Essa ideia de que é preciso ir pelo meio das coisas é nuclear.

Aquele que vai pelo meio das coisas pertence às próprias coisas. As coisas estão dentro dele» (ibid.). O sujeito passa pelo meio das coisas para as poder contagiar e se deixar contagiar por elas, o que de certa forma define a maneira como a sensação de plenitude é elaborada na poesia de Eugénio.

 

Eugénio de Andrade: uma proposta de plenitude, Maria de Fátima Cordeiro. Universidade Aberta, 2010, pp. 41-42

 

Chris Hemsworth, Ego Rodriguez Illustration, 2020


 

Eugénio de Andrade: um dizer rente à turbulência

 

Algumas reflexões sobre a presença do corpo, a ambiguidade sexual e o afeto na produção poética de Eugênio de Andrade.

 

A construção de um corpo masculino sedutor e atraente, movendo-se entre o dinamismo e a fluidez, o natural e o ideal, realidades aparentemente dispersas, articula-se a uma ideologia de valorização do masculino na sociedade ocidental desde o século XIX.

A novidade para a cena portuguesa era, sem dúvida, falar do corpo masculino com uma desenvoltura erótica inusitada, realçando de forma agressiva uma certa fixação em elementos fálicos (no caso, a “flauta que tocava”, em outros poemas, os braços (do parceiro) “deslumbrados”, “nus e suados”; em Obscuro domínio, alude-se à “sombra de um lírio entre as pernas”). A fortuna crítica deste poema é notável. Jorge de Sena refere-se, entre outras coisas, à última estrofe:

 

Note-se que o ele ir “enleado na melodia/ de uma flauta que tocava” pode aludir falicamente, de uma maneira notavelmente transposta, à sexualidade não-disponível da jovem personagem masculina deificada no poema: vai embebido em tocar-se o sexo (...), sem que isso signifique que o faz deliberadamente para atrair a atenção dos circunstantes para a sua virilidade.2

 

Eduardo Lourenço, fundamentado em convicções filosóficas e essencialistas, preferiu ver no poema a “imersão do divino no natural e do natural no divino”.3 Convincente como elaboração filosófica, a análise de Lourenço hoje cheira a mofo, tendo em vista o crescente desenvolvimento dos estudos de homocultura, ainda mais em face de um texto paradigmático de uma concepção vincadamente gay. A comparação do corpo do outro (o parceiro) a um rio retorna no poema XVIII, acentuando a idéia de integração de dois corpos:

“Impetuoso, o teu corpo é como um rio/ onde o meu se perde. / Se escuto, só oiço o teu rumor. / De mim, nem o sinal mais breve”. Símbolo antigo da fertilidade, o rio relaciona-se a música, sugerindo não apenas a união de dois rios (os dois corpos), mas a união harmoniosa. Alexandre Pinheiro Torres comenta:

 

Curioso é verificar que ambos os corpos são comparados a rios, pelo que haverá que concluir que um rio desaguará noutro rio. Este ponto não é tão irrelevante como poderá parecer. Recordem-se que os rios em Lorca não vão dar ao mar. Acabam em tanques. E o tanque é, por sua vez, símbolo da esterilidade.4 (grifos do autor)

 

A idéia de esterilidade, em As mãos e os frutos, inscreve-se na metáfora da folha, se relacionada a flor e fruto. No poema 24, num cenário de “silêncio e solidão”, somos comparados a “folhas breves”, uma vez que frágil e passageira é toda vida; somos ainda identificados a folhas “incapazes de ser flor”, portanto estéreis:

 

Somos folhas breves onde dormem

aves de silêncio e solidão.

Somos só folhas ou o seu rumor.

Inseguros, incapazes de ser flor,

até a brisa nos perturba e faz tremer.

 

Importa observar que nesse mundo de esterilidade passa o amado “entre as folhas”, operando uma geral transformação, fazendo tudo nascer ou renascer: “Quando em silêncio passas entre as folhas, / uma ave renasce da sua morte/ e agita as asas de repente”. Um atributo, entretanto, é próprio da folha, a sensibilidade. De acordo com Torres: “A folha simboliza certamente, na sua fragilidade, na facilidade com que estremece, a capacidade humana para a emoção, talvez para o terror, qualquer coisa que apenas uma brisa bastará para perturbar”.5

Desde então esta poesia, aparentemente frágil em termos de militância gay, instaura-se como espaço de ambigüidade sexual, na medida em que intersecciona a celebração de uma experiência erótica interdita à melancólica expressão desta interdição. Ao construir uma escrita poética visceralmente ligada ao corpo, o sujeito de enunciação tem-se marcado por insistir nos traços reveladores “da melancolia face às repressões”, de acordo com a análise de Joaquim Manuel Magalhães,6 uma melancolia quase sempre articulada a uma luminosa perspectiva de desejo e de prazer. Desde esse livro de fulgurantes claridades, entretanto, os olhos surgem “carregados de sombra”, para um sujeito consciente de que “Só as tuas mãos trazem os frutos”, como se afirma num dos poemas, sugerindo a idéia de que a produção e a fertilidade (as mãos e os frutos) são atributos do outro, aquele que impedirá a desertificação do corpo. A tônica dos poemas constitui a idéia de que a existência é transformada pela oferta simbólica dos frutos realizada pelo outro. As palavras interditas (1951) é um livro marcado pela experiência da guerra, o que não significa afastamento da temática amorosa:

(...)

As palavras que te envio são interditas

até, meu amor, pelo halo das searas;

se alguma regressasse, nem já reconhecia

o teu nome nas suas curvas claras.

 

Dói-me esta água, este ar que se respira,

dói-me esta solidão de pedra escura,

estas mãos nocturnas onde aperto

os meus dias quebrados na cintura.

 

E a noite cresce apaixonadamente.

Nas suas margens nuas, desoladas,

cada homem tem apenas para dar

um horizonte de cidades bombardeadas.7

 

As marcas da guerra (“este ar que se respira”, “cidades bombardeadas”) não conseguem eliminar a rigorosa articulação entre poesia (“as palavras que te envio”) e vivência amorosa (“a noite cresce apaixonadamente”).

Tem sido muito debatida a rasura da nomeação explícita do referente amoroso na poesia de Eugênio de Andrade. A ocultação do gênero sexual do parceiro é uma constante nesta poesia. As inspiradas relações amorosas se ressentem de uma explicitação da opção sexual, ou o parceiro é referido através de uma zona vazia ou um pronome neutro. A excessiva cobrança de uma visibilidade homoerótica nem sempre leva em conta, entretanto, o contexto repressivo da sociedade portuguesa dos anos 50 aos 70. Joaquim Manuel Magalhães tem discutido essa rasura da visibilidade homoerótica com argumentos que variam da irritação à tentativa de inserção da poesia de Eugênio de Andrade num projeto político.

 

....[os livros subseqüentes a Limiar dos pássaros] afirmam uma linha de tristeza, mesmo que face a circundantes esplendores, que é simultaneamente pessoal e política. E política não apenas por se inscrever numa história colectiva de quotidiano reprimido pela organização totalitária do Estado, mas por ter de calar uma história pessoal reprimida pela moral maioritária: “As palavras que te envio são interditas”.8

 

Um aspecto decisivo nesta poesia é sua gradual evolução no sentido de incorporar a inclinação homoerótica. Além de se tornarem mais constantes, as alusões à cultura gay revestem-se por vezes de um tom sombrio e negativo, como possibilitam alterações lexicais ou de imagens. Um dos poemas de As mãos e os frutos sofreu importantes modificações na edição subseqüente. Para acompanhar o que se segue, é necessário uma remissão ao poema VIII daquele livro:

 

Foi para ti que criei as rosas.

Foi para ti que lhes dei perfume.

Para ti rasguei ribeiros

e dei às romãs a cor do lume.

 

Foi para ti que pus no céu a lua

e o verde mais verde nos pinhais.

Foi para ti que deitei no chão

um corpo aberto como os animais.

 

O último verso na edição de 1948 dizia: “uma mulher pura como os animais”. Esta variante – “um corpo aberto como os animais” - passa a circular a partir de 1968 (Poemas) quando cinco poemas sofrem profundas modificações. Mesmo reconhecendo que nenhuma delas tenha afetado “o arranjo estrófico dos versos”, Jorge de Sena considera-as reveladoras de mudanças da “personalidade do poeta”,9 complementando algumas observações sobre a “curiosíssima” alteração:

 

Na primeira forma, “mulher pura” era uma sugestão violenta mas corrente (a violência vinha do contraste com “animais”, antes de o leitor se aperceber de que “pura” significava “livre de pecado”, logo não-humana, ou seja não restringida pelas convenções morais e sexuais que limitam e deformam o humano, ou o impedem de ser, sem pecado, natural, um natural em que se inclui qualquer “contra-natura”, definida por aquelas convenções). “Corpo aberto”, na experiência, é-o muito menos [violento], mas implica generalidade e ambigüidade quanto ao sexo da personagem que o poeta declara haver deitado no chão para a pessoa desejada; e é sem dúvida uma imagem (ou metáfora) mais incisiva.10

 

Mais do que curiosíssima, a variante definitiva afasta-se de juízos morais presentes em “mulher pura”, eliminando também a notação de gênero (mulher), ainda que mantenha a “generalidade” referida por Sena (um corpo aberto tanto pode ser de homem como de mulher). Não deixa também de ser enriquecedora a nota de rodapé no texto de Jorge de Sena:

 

Corpo aberto significará ou sugerirá “corpo que se abre”, “corpo que se entrega”, “corpo que não resiste à posse”, “corpo sensualmente apaixonado” - o que é reforçado por como os animais: “corpo sem inibições de ordem moral”, “corpo de que nenhuma parte se fecha ou retrai ante as mais diversas formas do contacto erótico”.11 (grifos do autor)

 

Sena reclamava no mesmo texto da “irregularidade lógica” da variante “corpo aberto como os animais” (para ele, deveria ser “corpo aberto como os dos animais”). Não seria ocioso mencionar a aliança homem/natureza como retificadora da fórmula preferida pelo poeta, destacando o fato de o corpo aberto e desejante ser incapturável pelo pensamento lógico. A variante evidencia ainda as intensidades e as desproporções que assolam as sensações do corpo – esse grande ausente dos debates filosóficos do Ocidente.

 

O corpo (...) perdurou “ausente” nos pares categoriais (morais e disciplinares) das ficções do humano e da animalidade, da cultura e da barbárie, do real e do simbólico, e assim sucessivamente na história das filosofias e nas crenças humanas e sociais.12

 

O corpo passa a ser visto na moderna masculinidade como elemento aglutinador de valores extraídos pela classe média de vários estratos socioeconômicos (a ética do trabalho e da família, herança da burguesia; a solidez, a coragem e a generosidade, herança da aristocracia; a beleza e a harmonia de formas, herança da antiguidade clássica). Nomeando o corpo desejante, dionisíaco, aquele que não se deixa domesticar pela filosofia e pelos aparelhos de controle ou de vigilância estatal, o poema de Eugênio de Andrade distancia-se ainda do senso de culpa e de qualquer contaminação edipiana, apagando as ressonâncias e formas de tirania e opressão, mesmo as pequenas, de que nem nos damos conta, de tal forma a elas nos habituamos. O “corpo aberto como os animais”, corpo sem cérebro e à deriva, sela o poema com uma chave alegre e inusitada, sugerindo a fruição do prazer vivido intensamente, em direção a uma experiência e a uma tecnologia do desejo não mais freudiana e sim de tendência deleuziana. Além das formas colossais de fascismo, existem as “formas pequenas que fazem a amarga tirania de nossas vidas cotidianas”,13 de que fala Foucault a respeito do livro O anti-Édipo, de Gilles Deleuze. Nesse mesmo texto, Foucault afirma que o livro referido “não concebe oposição entre o homem e a natureza, a natureza e a indústria, mas simbiose e aliança”, tal como ocorre em “corpo aberto como os animais”.

 

É desagradável ter que dizer coisas tão rudimentares: o desejo não ameaça uma sociedade porque é desejo de deitar com a mãe, mas porque é revolucionário. E isto quer dizer, não que o desejo é outra coisa diferente da sexualidade, mas que a sexualidade e o amor não vivem no quarto de dormir de Édipo, eles sonham mais com uma grande amplidão, e fazem passar estranhos fluxos que não se deixam estocar em uma ordem estabelecida. O desejo não “quer” a revolução, ele é revolucionário por si mesmo e como que involuntariamente, querendo o que quer.14

 

Data de fins do séc. XIX, mais precisamente do processo de Wilde (1885), a crise em torno do masculino, com o deslizamento semântico (ou melhor, confusão) provocado pelas identidades de gênero e identidades sexuais (heterossexual e efeminado, homossexual e efeminado, homossexual e viril) com profundas conseqüências no pensamento e ciência modernos.

 

...muitas das mais importantes articulações do pensamento e do conhecimento na cultura ocidental do séc. XX como um todo estão estruturadas – na realidade, fraturadas, – por uma crise crônica, agora endêmica, de definição homo/heterossexual, nomeadamente masculina, que data do fim do séc. XIX.15

 

A partir da primeira década do século XX começa-se a falar de homossexualidade para definir a sexualidade das pessoas cujo objeto de amor preferencial era uma pessoa do mesmo sexo. A psicanálise freudiana revela dificuldade em reconhecer a opção sexual calcada na diferença, corroborando uma milenar exclusão moral. Vista como exceção ao desenvolvimento paradigmático da libido, a homossexualidade é tratada como patologia no romance realista. Até meados do século XX, em geral, as relações homossexuais aparecem na literatura de forma sombria e carregadas de senso de culpa (Proust, Gide, Wilde, Thomas Mann), quase sempre como o amor que não ousa declarar-se. A partir dos anos 70 do século passado, o homoerotismo passa a ser visto como uma vertente específica de uma cultura minoritária, diante de um grupo heterossexual majoritário, mais ou menos opressivo.

Uma evidência se impõe, o controle da sociedade burguesa patriarcal sobre grupos minoritários, o que leva Georges Chauncey a afirmar que “o controle da homossexualidade não é senão um aspecto do controle da heterossexualidade”.16 Outra evidência incontornável: o papel destacado que o homoerotismo masculino ocupa no cânone literário ocidental. Os gay and lesbian studies tentam provar que as opções sexuais seriam conseqüências de uma construção cultural, implicando escolhas e estratégias diferentes.

A poesia de Eugênio de Andrade, visceralmente ligada ao corpo, ele próprio atravessado pelas astúcias da sedução e do desejo, apresenta uma evolução no trato com o homoerotismo, Se nos damos ao cuidado de verificar que As mãos e os frutos é de 1948, em pleno contexto de repressão moral e política, cumpre reconhecer as estratégias de ocultação de uma sensibilidade gay, apesar de jamais apagadas. As variantes aplicadas aos poemas apontam não limitações de linguagem, mas estratégias mediadoras de visibilidade homoerótica, a se revelar entre o sinal de mais e o de menos. Cumpre mencionar, noutra modificação efetuada em outro poema à edição original, cujo universo semântico se aproxima ao do verso que se está comentando (corpo aberto/ corpo que se abre; mulher pura, madrugada pura), que a variante dada como definitiva (de 1968) representa um retrocesso em termos de visibilidade homoerótica. Trata-se do verso “O teu corpo, completo, abre na madrugada”, modificado para “Que palavra/ abre a noite à mais pura madrugada?” Diante dessa variante empobrecedora insurge-se, perplexo, Jorge de Sena:

 

Mas qual a razão, por certo fortíssima, de ser substituído um verso lindíssimo como O teu corpo completo, abre na madrugada, com a sua sugestão de corpo que se abre, para a entrega amorosa, e se abre completo, dando-se inteiro, tal como as flores que abrem no amanhecer?17

 

Desde As mãos e os frutos (1948), Os amantes sem dinheiro (1950), As palavras interditas (1951), Mar de setembro (1961), Véspera da água (1973), Limiar dos pássaros (1976), Rente ao dizer (1992), entre muitos outros títulos, Eugênio de Andrade vem construindo uma obra densa de alusões a Eros na vida cotidiana. A simplicidade dos recursos, a proximidade do afeto, a descrição maliciosa, a integração com os elementos naturais, o discurso ciciado nas margens e fronteiras da fruição amorosa, a ambigüidade sexual transparecem nos seus poemas. Referência tutelar na expressão mítica do homoerotismo, quase sempre caudatária de um grito libertário, mais sugerido que enunciado, sua poesia influencia sobremaneira uma sensibilidade poética que vai surgir nos anos setenta, com a celebração do corpo e de uma sexualidade terrivelmente dispersa.

Para concluir esta incursão por alguma poesia de Eugênio de Andrade, como subsídio, trago depoimentos do próprio poeta, em vários momentos manifestando circunstâncias ligadas à sexualidade em sua aproximação com a Espanha. Os testemunhos, de grande valia biográfica para a compreensão da sexualidade nesta poesia, dispensam comentários. O primeiro depoimento vem em Os afluentes do silêncio: “aconteceu-me o que tinha que acontecer para que Espanha se tornasse em mito: o amor e a poesia iam encontrar-se e reconhecer-se”. (“Com Angel Crespo por vários caminhos”). Outro depoimento aparece em Rosto precário: “(...) por razões que quero calar, a partir de 1961, após umas férias no País Basco, onde escrevi em grande parte Mar de setembro (eis a dívida maior com a Espanha: uma paixão e um livro)”. O terceiro depoimento é uma entrevista escrita pelo poeta a Joaquim Manuel Magalhães. À pergunta: Como foi sua relação com Espanha?, responde Eugênio de Andrade:

 

Foi, antes de mais, afectiva. E ligação de juventude, que atingiu o seu zênite nos anos 50. Mas começa com uma avó materna, de Valverde del Fresno (eu nasci perto da fronteira), e com idas freqüentes, ainda menino de colo, a Cória, onde meu avô se encarregava de obras de construção civil. Em casa dizia-se que foi em Espanha que me nasceram os primeiros dentes. A relação afectiva prossegue em Lisboa, teria eu onze/ doze anos, com um rapazito das bandas de Compostela, três ou quatro anos mais velho, que se hospedara na nossa casa. Além de uns rudimentos de sexualidade, devo-lhe a leitura do Quixote, coisas ambas que tiveram para mim a sua importância.18

 

Notas:

1 ANDRADE. Antologia breve, p.19.

2 SENA. Observações sobre As mãos e os frutos, p. 273-274.

3 LOURENÇO. AAVV. 21 ensaios sobre Eugênio de Andrade.

4 TORRES. O conflito entre o instinto e a sociedade em As mãos e os frutos de Eugênio de Andrade, p. 6.

5 TORRES. O conflito entre o instinto e a sociedade em As mãos e os frutos de Eugênio de Andrade, p. 8.

6 MAGALHÃES. Os dois crepúsculos, p. 107.

7 ANDRADE. Antologia breve, p. 39-40.

8 MAGALHÃES. Os dois crepúsculos, p. 109-110.

9 SENA. Observações sobre As mãos e os frutos, p. 251.

10 SENA. Observações sobre As mãos e os frutos, p. 272-273.

11 SENA. Observações sobre As mãos e os frutos, p. 273.

12 ESCOBAR. Dossier Deleuze, p. 151.

13 ESCOBAR. Dossier Deleuze, p. 84.

14 DELEUZE e GUATTARI. O anti-Édipo, p. 151-152.

15 SEDGWICK. Epistemology of the Closet, p. 1.

16 CHAUNCEY. Genres, identités sexuelles et conscience homosexuelle dans l’Amérique du XX siècle, p. 107.

17 SENA. Observações sobre As mãos e os frutos, p. 281-282.

18 MAGALHÃES. Rima pobre - poesia portuguesa de agora, p. 284-285.

 

Eugênio de Andrade: um dizer rente à turbulência”, Edgard Pereira. Aletria: Revista De Estudos De Literatura, n.º 9, 2002, pp. 117–125



Pan, Joe Phillips, 2021

 


Outros textos de apoio

 

 

 

 

  



Il Fauno, Vilela Valentin, 2017






Fauno, Gianpiero Averna



CARREIRO, José. “Green god, Eugénio de Andrade”. Portugal, Folha de Poesia, 07-12-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/12/green-god-eugenio-de-andrade.html



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