segunda-feira, 1 de julho de 2024

A língua do nhem, Cecília Meireles


 

A LÍNGUA DO NHEM

 

Havia uma velhinha
que andava aborrecida
pois dava a sua vida
para falar com alguém.

E estava sempre em casa
a boa velhinha
resmungando sozinha:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

O gato que dormia
no canto da cozinha
escutando a velhinha,
principiou também

a miar nessa língua
e se ela resmungava,
o gatinho a acompanhava:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

Depois veio o cachorro
da casa da vizinha,
pato, cabra e galinha
de cá, de lá, de além,

e todos aprenderam
a falar noite e dia
naquela melodia
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

De modo que a velhinha
que muito padecia
por não ter companhia
nem falar com ninguém,

ficou toda contente,
pois mal a boca abria
tudo lhe respondia:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

 

Cecília Meireles, Ou Isto ou Aquilo, 1964

 



Questionário 

Classifica as afirmações em falsas (F) ou verdadeiras (V). Corrige as falsas. 

1. O poema "A Língua do Nhem" é predominantemente descritivo.

2. As primeiras estrofes do poema apresentam a solidão como um problema sem solução.

3. A partir da terceira estrofe, os animais começam a imitar a velhinha, modificando o cenário de solidão.

4. A velhinha permanece triste mesmo com a companhia dos animais.

5. O poema é composto por seis quadras com versos de sete sílabas métricas.

6. A onomatopeia "nhem" é repetida seis vezes em várias estrofes do poema.

7. O uso de diminutivos como “gatinho” no poema expressa afetividade e intimidade.

8. Os artigos definidos e os diminutivos no poema indicam a proximidade e importância da relação entre a velhinha e o gato.

9. A onomatopeia “nhem” no poema representa a fala dos jovens.

10. Cecília Meireles utiliza os animais no poema para destacar a falta de comunicação e o descaso com os idosos.

11. Termos como “aborrecida”, “sozinha” e “ninguém” no poema reforçam a temática da solidão.

12. O poema não utiliza a personificação como recurso estilístico.

13. A repetição de sons e rimas no poema não tem importância estilística.

14. O poema apresenta influências da literatura oral.

15. O final do poema, com a velhinha contente, se assemelha ao "final feliz" dos contos de fada.

16. "A Língua do Nhem" é um poema que não se relaciona com o público juvenil.

 

Correção do questionário

1. Falso. O poema é narrativo, embora o título sugira uma ênfase descritiva.

2. Verdadeiro.

3. Verdadeiro.

4. Falso. A velhinha fica contente porque os animais a acompanham no "nhem-nhem-nhem".

5. Falso. O poema é composto por oito quadras com versos de seis sílabas métricas.

6. Verdadeiro.

7. Verdadeiro.

8. Verdadeiro.

9. Falso. “Nhem” representa a fala dos idosos e a solidão resultante da falta de interação.

10. Verdadeiro.

11. Verdadeiro.

12. Falso. A personificação é um dos expoentes do texto poético, mudando a língua dos animais.

13. Falso. A repetição é um recurso estilístico utilizado para criar ritmo e reforçar o tema.

14. Verdadeiro.

15. Verdadeiro.

16. Falso. A temática e a forma do poema capturam o interesse do público jovem, ligando-se a tradições populares.

 


Texto de apoio - análise literária do poema “A língua do nhem”

O poema intitulado “A língua do nhem” versa sobre a solidão e, simultaneamente, sobre a necessidade inerente ao ser humano de relacionar-se com outro ser vivo.

Trata-se de um poema narrativo, embora o título sugira que a ênfase se dará no plano descritivo. Portador de uma estrutura do tipo começo-meio-fim, a história apresenta uma sucessão de momentos encadeados entre si, deixando-nos informados do passado, do presente e do futuro. E, segundo Tavares (2005, p. 65), essa é uma das estruturas mais elementares que aprendemos na infância, e é de acordo com ela que interpretamos nossa vida e tudo que acontece à nossa volta.

A problemática da solidão é apresentada nas duas primeiras estrofes, como se não houvesse solução. Entretanto, na terceira estrofe, o quadro começa a se modificar. O gato começa a imitar a velhinha e os demais animais da história fazem o mesmo.

Embora a rotina se instale novamente, minimizando, de certa forma, a solidão, a velhinha fica contente por que todos os a acompanham no “nhem-nhem-nhem” (na última estrofe).

“A língua do nhem” se constitui de oito quartetos constituídos por versos com seis sílabas métricas. O número de sílabas, coincidentemente ou não, corresponde a seis vozes expressas em uma linguagem onomatopaica “nhem” (reiterada também seis vezes) por todos os seres animados no texto. A velhinha, o gato e os outros animais como cachorro, pato, cabra e galinha interagem por meio do monossílabo “nhem” que finaliza quatro estrofes, alternando com os oxítonos terminados em “ém” – “alguém”, “também”, “além”, “ninguém”.

Essa seqüência dos animais talvez represente uma gradação no tocante ao grau de aproximação existente entre o ser humano e os bichos mencionados.

O uso dos artigos definidos a em “a boa da velhinha” (segundo verso da segunda estrofe) e o em “ O gato que dormia” (primeiro verso da terceira estrofe) e “ o gatinho a acompanhava” (terceiro verso da quarta estrofe) denotam o facto de que a velhinha e o gato pareciam se mais próximos ou então considerados os sujeitos mais importantes na comunicação que se estabeleceu.

O diminutivo em “gatinho” expressa a afetividade e a intimidade que se desenvolveu na relação velhinha-gatinho. Acrescenta-se o respeito às pessoas de maior idade se expressa no uso do diminutivo “velhinha” na primeira, segunda, terceira e sétima estrofes.

O “nhem”, onomatopéia bastante utilizada pelos idosos, resultante, biologicamente explicitando, de uma espécie de destruição progressiva e contínua dos neurônios, compõe o título como uma constatação de uma seqüela dos vários anos vividos e da ausência de maior interação humana.

Impressiona-nos a maneira em que Cecília desnuda essa realidade dessa fase da vida, a gravada pelo desuso da fala ou por não ter com quem falar, ou por ter sua fala ignorada ou reprimida pelos mais jovens.

A autora envolve os animais (os bichos) na “comunicação” com a velhinha, na tentativa, talvez, de minimizar o estado de aborrecimento desta e de, ao mesmo tempo, protestar contra o descaso ao idoso, que se inicia no âmbito familiar.

A solidão em que se encontra a velhinha vai sendo descrita através da relação paradigmática marcada pela associação semântica entre a temática solidão e termos presentes no poema que denotam esse estado. Vocábulos como “aborrecida” (primeira estrofe), “resmungando” e “sozinha” (segunda estrofe), “canto” (terceira estrofe), “resmungava” (quarta estrofe), “padecia” e “ninguém” (sétima estrofe).

Os termos em destaque associados à situação de solidão são representados por noções de estado como em “aborrecida”, “sozinha”, de ação como em de companhia, no caso de “ninguém”.

Estilisticamente, a personificação é um dos expoentes desse texto poético, chegando a mudar a língua dos animais. Como se tivessem se divertindo com a nova língua – “a do nhem” – o gato, o cachorro, o pato, a cabra e a galinha passaram “noite e dia/naquela melodia/nhem, nhem, nhem, nhem, nhem, nhem”.

Excetuando o gato, os outros bichos vieram “de cá, de lá, de além” (último verso da quinta estrofe), do mesmo modo que vêm nossos costumes, tradições, comportamentos, por meio, também, da literatura oral a qual tem como significativo elemento a memória, que vai sendo preservada pelo recontar o que ouviu – agregar histórias de outros – considerada uma das necessidades do ser humano por Araújo (2005).

Para evidenciar a relevância da memória, Tavares (2005, p.106) traça um paralelo entre o mundo da cultura escrita e o mundo da cultura oral, ao qual vai ao encontro da permanência da Literatura Oral. Cecília, em Problemas da literatura infantil, afirma: (...) é a Literatura Tradicional a primeira a instalar-se na memória da criança. Ela representa o seu primeiro livro, antes mesmo da alfabetização, e o único, nos grupos sociais carecidos de letras.

Se visualizando de fora se vê “mesmice”, reprodução, repetição, de dentro (como se fôssemos um deles) parecia haver prazer naquele comportamento reiterado.

A repetição é um outro recurso estilístico utilizado por Cecília. Essa, por sua vez, neste contexto se dá no plano sonoro e vocabular. Os sons das rimas aborrecida/vida (primeira estrofe), velhinha/sozinha (segunda estrofe), cozinha/velhinha (terceira estrofe), resmungava/acompanhava (quarta estrofe), vizinha/galinha (quinta estrofe), dia/melodia (sexta estrofe), padecia/companhia (sétima estrofe), abria/respondia (oitava estrofe) e em estrofes, a partir de palavras que estão na mesma estrofe e em estrofes diferentes (último verso de todas as estrofes) “alguém / nhem / também / nhem / além / nhem / ninguém / nhem” somado ao termo “nhem” repetido seis vezes consecutivas em quatro dos oito versos, de forma alternada.

O tempo passado típico das narrativas, tendo o imperfeito do indicativo do verbo haver” no início do poema indica uma situação que se sustenta há certo tempo e nos remete a “Era uma vez...”, “Há muito tempo atrás...” Esse brincar com outros tipos de texto promove o diálogo entre os tempos e conseqüentemente com o sócio-cultural. A brincadeira com a linguagem associada ao se evidencia em outros textos Especificamente, é possível estabelecer uma relação entre “A língua do nhem” e a história “Os músicos de Bremen” e a canção “ A velha debaixo da cama” do cancioneiro popular.

Os músicos de Bremen, do original The Bremen Town – Musicians, dos Irmãos Grim, Jacob e Wilhelm, trata da desvalorização de um asno, quando este chega à velhice. Seu dono o destrata e o animal resolve abandonar a casa, em busca de dignidade, por meio da sua liberdade.

Talvez o nome dado pelos autores a esse clássico da literatura infantil “Bremen” seja atribuído à Cidade Hanseática Livre de Bremen, cidade alemã, localizada após San Marino, sendo a mais antiga cidade-república do mundo. Conquistou sua emancipação política em 1646, por ter demonstrado já em 1405 sua pretensão de autonomia.

Assim como os animais chegaram à casa da “velhinha do nhem”, com exceção do gato por que já vivia com ela, talvez por não forem respeitados e amados em suas próprias casas, os animais (o asno, o cão, o gato e o galo) também buscaram um ao outro, como forma de combaterem o desrespeito, a ingratidão e a solidão.

O enredo dessa estória estrangeira é semelhante ao poema nacional – “A língua do nhem” e que merece um estudo comparativo mais aprofundado.

O final do poema, assemelhando-se ao clássico “final feliz” dos contos de fada, só aparece depois de um certo suspense na penúltima estrofe com o uso do conectivo com a idéia de consecução “De modo que...”, iniciando a estrofe, põe em dúvida o desfecho do que está sendo narrado poeticamente, como um tom de ameaça. Esse suspense é explicitado por Tavares (2005, p.67) ao discorrer sobre poema narrativo.

O diálogo entre esses dois gêneros literários – o conto e o poema – um europeu e o outro nacional serve para ilustrar, talvez, a influência européia que Cecília Meireles recebeu, já mencionada no Capítulo II deste texto.

“A Língua do Nhem” remete também ao cancioneiro popular “A velha a fiar” – um dos maiores clássicos que retrata, de forma simples e recreativa, o interminável ciclo vicioso no qual estamos presos. Ele funciona bem como jogo de memória.

Segundo o blog de Juliana (www. Marmota.org/blog/2005/07/01/1315), surgiu a primeira vez em 1964, em um curta metragem dirigido pelo cineasta Humberto Mauro. No blog há menção de ter sido veiculado no programa Rá-Tim-Bum (TV cultura) e no Programa Os Trapalhões, com outra versão e intitulado “A velha debaixo da cama”.

Tais ligações a essas raízes foram possíveis devido a memória e a oportunidade que tivemos de nos depararmos, quando criança, dessas criações.

Esses dois veículos midiáticos, portanto, já revelam a viabilidade de poemas com a temática e a forma de “A Língua do Nhem” interessarem ao público juvenil.

 

A ludicidade em Cecília Meireles como sensibilização para a leitura na educação fundamental, Walkíria Carvalho. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2006



domingo, 30 de junho de 2024

O menino da avó, Cecília Meireles

 


 

A AVÓ DO MENINO

A avó
vive só
Na casa da avó
o galo liró
faz “cocorocó!”
A avó bate pão-de-ló
e anda um vento t – o – tó
na cortina de filó.
A avó
vive só.
Mas se o neto meninó
mas se o neto Ricardó
mas se o neto travessó
vai a casa da avó,
os dois jogam dominó.

 

Cecília Meireles, Isto ou aquilo, 1964

 

No poema “A avó do menino”, de Cecília Meireles, o sujeito poético utiliza a simplicidade e a musicalidade para retratar a relação entre uma avó e o seu neto. A estrutura do poema é marcada pela rima constante, em que cada verso termina com o som do “ó” acentuado, criando um ritmo que remete para as cantigas infantis e para a oralidade da língua portuguesa.

A repetição dos versos “A avó” e “vive só” sugere uma solidão não absoluta, mas pontuada pela presença ocasional do neto. Essa solidão é relativa, pois é interrompida pela visita do neto, que traz vida e movimento à casa da avó, simbolizada pelo jogo de dominó.

A metáfora do vento que “anda” na cortina de filó sugere algo invisível e subtil que, no entanto, tem presença e movimento, assim como a solidão da avó que é palpável mesmo não sendo permanentemente visível.

A escolha de palavras com o som do “ó” acentuado, mesmo quando não é gramaticalmente necessário, enfatiza a sonoridade e a intenção em destacar a musicalidade do poema. Isso também pode ser visto como uma forma de dar ênfase à presença do neto, cuja chegada muda o tom da casa e da vida da avó.

O poema retrata, assim, a realidade afetiva de muitos lares, celebrando a alegria trazida pelo convívio intergeracional.


sábado, 29 de junho de 2024

A avó, Olavo Bilac


 

A AVÓ

A avó, que tem oitenta anos,
Está tão fraca e velhinha!…
Teve tantos desenganos!
Ficou branquinha, branquinha,
Com os desgostos humanos.

Hoje, na sua cadeira,
Repousa, pálida e fria,
Depois de tanta canseira:
E cochila todo o dia,
E cochila a noite inteira.

Às vezes, porém, o bando
Dos netos invade a sala…
Entram rindo e papagueando:
Este briga, aquele fala,
Aquele dança, pulando…

A velha acorda sorrindo.
E a alegria a transfigura;
Seu rosto fica mais lindo,
Vendo tanta travessura,
E tanto barulho ouvindo.

Chama os netos adorados,
Beija-os, e, tremulamente,
Passa os dedos engelhados,
Lentamente, lentamente,
Por seus cabelos doirados.

Fica mais moça, e palpita,
E recupera a memória,
Quando um dos netinhos grita:
“Ó vovó! conte uma história!
Conte uma história bonita!”

Então, com frases pausadas,
Conta histórias de quimeras,
Em que há palácios de fadas,
E feiticeiras, e feras,
E princesas encantadas…

E os netinhos estremecem,
Os contos acompanhando,
E as travessuras esquecem,
— Até que, a fronte inclinando
Sobre o seu colo, adormecem…

 

Olavo Bilac (1865-1918), Poesias Infantis.
Rio de Janeiro, Livraria Clássica de Francisco Alves & C.ª, 1904, pp. 7-9

 

fragmento da pág. 7 de Poesias Infantis, 1904

 

O poema “A Avó” de Olavo Bilac é uma homenagem à figura da avó e ao seu papel na família. Através de uma linguagem doce e imagens ternas, o sujeito poético descreve a avó como um pilar de força e amor, apesar da sua fragilidade física.

A mensagem do poema é dupla: por um lado, destaca a inevitabilidade do envelhecimento e da passagem do tempo; por outro, celebra a capacidade dos mais velhos de encontrar alegria e propósito na companhia dos mais jovens. A avó, através das histórias que conta, passa adiante a cultura e os valores da família, garantindo que a sua sabedoria e o seu amor perdurem através das gerações.


sexta-feira, 28 de junho de 2024

Dia de anos, João de Deus


 

DIA DE ANOS

 

Com que então caiu na asneira
De fazer na quinta-feira
Vinte e seis anos! Que tolo!
Ainda se os desfizesse…
Mas fazê-los não parece
De quem tem muito miolo!

Não sei quem foi que me disse
Que fez a mesma tolice
Aqui o ano passado…
Agora, o que vem, aposto,
Como lhe tomou o gosto,
Que faz o mesmo. Coitado!

Não faça tal; porque os anos
Que nos trazem? Desenganos
Que fazem a gente velho:
Faça outra coisa; que, em suma,
Não fazer coisa nenhuma
Também lhe não aconselho.

Mas anos, não caia nessa!
Olhe que a gente começa
Às vezes por brincadeira,
Mas depois se se habitua,
Já não tem vontade sua
E fá-los queira ou não queira!

 

João de Deus, Campo de Flores (1830-1896)

 

O poema "Dia de Anos" de João de Deus oferece uma visão satírica sobre a celebração dos aniversários.

Através de um tom jocoso e familiar, o sujeito poético questiona a racionalidade de comemorar o passar dos anos, associando essa prática a tolices e desenganos que apenas evidenciam o envelhecimento.

A estrutura do poema, com as suas rimas emparelhadas e redondilhas maiores, contribui para o tom leve e humorístico, tornando a crítica mais acessível e envolvente.

Em última análise, o poema convida os leitores a refletirem sobre o valor das tradições e a inevitabilidade do tempo, sugerindo que há outras formas mais significativas de aproveitar a vida sem se prender a convenções que podem trazer mais desânimo do que alegria.

 


quinta-feira, 27 de junho de 2024

No comboio descendente, Fernando Pessoa


 

No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada,
Uns por verem rir os outros
E os outros sem ser por nada —
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada...

No comboio descendente
Vinham todos à janela,
Uns calados para os outros
E os outros a dar-lhes trela —
No comboio descendente
Da Cruz Quebrada a Palmela...

No comboio descendente
Mas que grande reinação!
Uns dormindo, outros com sono,
E os outros nem sim nem não —
No comboio descendente
De Palmela a Portimão...

 

s.d.

Quadras ao Gosto Popular. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido e prefaciado por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1965. (6ª ed., 1973).  - 117.

Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/4240

 



Análise do poema "No comboio descendente" de Fernando Pessoa

Estrutura e forma

O poema "No comboio descendente" de Fernando Pessoa é estruturado em três estrofes, cada uma com seis versos. A forma fixa do poema destaca-se pela ênfase na sonoridade das rimas, incluindo as internas. A repetição é um elemento crucial, visível na métrica, no ritmo, na estrutura sintática e nos recursos sonoros, como assonâncias e aliterações.

Função da repetição

A repetição no poema tem o propósito de induzir um estado de sonolência, semelhante às canções de ninar. A repetição sintática e semântica cria um efeito de relaxamento, que acalma e adormece os leitores, como se fossem crianças.

Primeira estrofe: De Queluz à Cruz Quebrada

Na primeira estrofe, o tom é de alegria e animação:

  • Sonoridade vibrante: A aliteração com a consoante /k/ e os encontros consonantais /kr/ e /br/ no verso "De Queluz à Cruz Quebrada" evocam o som e a confusão típicos de uma viagem animada de comboio.
  • Rima interna: A rima entre "Queluz" e "Cruz" reforça a ideia de repetição e alegria entre os passageiros.

Segunda Estrofe: De Cruz Quebrada a Palmela

Na segunda estrofe, a atmosfera começa a se acalmar:

  • Transição para a calma: A sonoridade indica uma diminuição na agitação, sugerindo que os passageiros estão se acalmando à medida que a viagem continua.

Terceira Estrofe: De Palmela a Portimão

Na terceira estrofe, há uma mudança de tom:

  • Quebra da repetição: A estrutura paralela dos versos é interrompida pela expressão "Mas que grande reinação!", usada de forma irónica para indicar que, apesar da frase, a atmosfera agora é de sono.
  • Sonoridade nasal: O último verso "De Palmela a Portimão" destaca sons nasais, que sugerem um ambiente tranquilo e os passageiros adormecidos.

Análise Alegórica

O poema não descreve apenas uma viagem de comboio animada e barulhenta, mas também representa alegoricamente o processo de adormecimento:

  • Transição de animação para sonolência: A sonoridade e a escolha das palavras ao longo do poema ilustram a transição da vivacidade para a calma e, finalmente, para o sono dos passageiros.
  • Linguagem infantil: Expressões coloquiais como "reinação" e "dar-lhes trela" evocam uma linguagem simples e infantil, reforçando a sensação de uma canção de ninar.

Conclusão

Fernando Pessoa, no poema "No comboio descendente", utiliza a repetição em múltiplos níveis para criar um efeito hipnótico e tranquilizante. O poema leva o leitor de um estado de alegria e excitação para uma serenidade sonolenta, refletindo o processo de adormecimento. A estrutura sonora e a escolha das palavras contribuem para essa transformação gradual, fazendo do poema uma rica alegoria do cair no sono.

 

Adaptado de: “Fernando Pessoa e Cecília Meireles: o encontro entre poesia e criança”, Alice Martha. Actas do IV Congresso Internacional da Associação Portuguesa de Literatura Comparada – Estudos Literários/Estudos Culturais. Universidade de Évora, maio 2001

 



quarta-feira, 26 de junho de 2024

Eu nasci de ti como a flor da Terra, Matilde Rosa Araújo

Ilustração de Madalena Matoso para O livro da Tila. Editorial Caminho, 2010

 

Nascer

 

Mãe!

Que verdade linda

O nascer encerra:

Eu nasci de ti,

Como a flor da Terra!

 

Matilde Rosa Araújo, O livro da Tila. Lisboa, Livros Horizonte, 1957

 


 

O ato de nascer é um milagre que transcende o físico. É a passagem da escuridão para a luz, do silêncio para o som da vida. A mãe é a guardiã desse segredo, a criadora que nos molda com amor e nos permite florescer. Que bela jornada é essa, a do nascer!

 

Escreve um texto criativo inspirado no poema "Nascer" de Matilde Rosa Araújo. Podes optar por um conto, uma carta, um diário ou até mesmo um poema. Aqui estão algumas ideias para te ajudar a começar:

 

Uma carta à tua mãe: Imagina que estás a escrever uma carta à tua mãe, expressando os teus sentimentos sobre o poema. Fala sobre a relação especial que tens com ela e como o nascimento é uma metáfora para a vossa ligação.

 

Um conto sobre o nascimento: Cria uma história onde o nascimento de uma criança é descrito como um acontecimento mágico e poético. Podes personificar a Terra, as flores, e outros elementos naturais para enriquecer a tua narrativa.

 

Diário de uma flor: Escreve uma entrada de diário do ponto de vista de uma flor que acabou de nascer da terra. Descreve as suas primeiras impressões do mundo, a relação com a "mãe Terra", e as suas esperanças e sonhos.

 

Um poema sobre o nascimento: Inspira-te no poema de Matilde Rosa Araújo para escrever o teu próprio poema sobre o ato de nascer, sobre a conexão profunda entre mãe e filho.

Se necessário, segue as seguintes instruções:

·         O Silêncio da Origem: Descreve a escuridão do útero, onde o bebé se desenvolve. Usa metáforas para expressar essa sensação de proteção e mistério. Explora a ideia de que o silêncio é a primeira linguagem que o bebé conhece.

·         O Despertar: Fala sobre o momento em que o bebé começa a sentir os primeiros movimentos, como se estivesse a despertar para a vida. Usa imagens sensoriais para descrever essa transição do escuro para a luz.

·         A Mãe como Criadora: Compara a mãe à Terra, que nutre e faz brotar a flor. Ela é a origem, o solo fértil onde a vida floresce. Destaca a beleza desse processo de criação, como se a mãe fosse uma artista que molda o filho com amor e cuidado.

·         O Laço Inquebrável: Aborda a ligação entre mãe e filho. Como o poema sugere, o filho nasce “de” sua mãe, mas também “como” a flor da Terra. Usa metáforas para expressar essa conexão profunda e inquebrável.

 

Lembra-te de ser criativo e pessoal na tua escrita. Usa as tuas próprias experiências e emoções para dar vida ao teu texto. Bom trabalho!

 


terça-feira, 25 de junho de 2024

A Arca de Noé, Vinicius de Moraes

Arca de Noé, ilustração de Marta Madureira (2012) 

 

 

A ARCA DE NOÉ

Sete em cores, de repente
O arco-íris se desata
Na água límpida e contente
Do ribeirinho da mata.

O sol, ao véu transparente
Da chuva de ouro e de prata
Resplandece resplendente
No céu, no chão, na cascata.





E abre-se a porta da Arca
De par em par: surgem francas
A alegria e as barbas brancas
Do prudente patriarca

Noé, o inventor da uva
E que, por justo e temente
Jeová, clementemente
Salvou da praga da chuva.

Tão verde se alteia a serra
Pelas planuras vizinhas
Que diz Noé: "Boa terra
Para plantar minhas vinhas!"

E sai levando a família
A ver; enquanto, em bonança
Colorida maravilha
Brilha o arco da aliança.

Ora vai, na porta aberta
De repente, vacilante
Surge lenta, longa e incerta
Uma tromba de elefante.

E logo após, no buraco
De uma janela, aparece
Uma cara de macaco
Que espia e desaparece.

Enquanto, entre as altas vigas
Das janelinhas do sótão
Duas girafas amigas
De fora as cabeças botam.

Grita uma arara, e se escuta
De dentro um miado e um zurro
Late um cachorro em disputa
Com um gato, escouceia um burro.

A Arca desconjuntada
Parece que vai ruir
Aos pulos da bicharada
Toda querendo sair.

Vai! Não vai! Quem vai primeiro?
As aves, por mais espertas
Saem voando ligeiro
Pelas janelas abertas.

Enquanto, em grande atropelo
Junto à porta de saída
Lutam os bichos de pêlo
Pela terra prometida.

"Os bosques são todos meus!"
Ruge soberbo o leão
"Também sou filho de Deus!"
Um protesta; e o tigre - "Não!"

Afinal, e não sem custo
Em longa fila, aos casais
Uns com raiva, outros com susto
Vão saindo os animais.

Os maiores vêm à frente
Trazendo a cabeça erguida
E os fracos, humildemente
Vêm atrás, como na vida.

Conduzidos por Noé
Ei-los em terra benquista
Que passam, passam até
Onde a vista não avista.

Na serra o arco-íris se esvai...
E... desde que houve essa história
Quando o véu da noite cai
Na terra, e os astros em glória

Enchem o céu de seus caprichos
É doce ouvir na calada
A fala mansa dos bichos
Na terra repovoada.

 

Vinicius de Moraes, A Arca de Noé. Rio de Janeiro, 1970

Disponível em: https://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/poesia/poesias-avulsas/arca-de-noe

 

A arca de Noé, Editora Sabiá

Divisão interna do texto 

O poema “A Arca de Noé” de Vinicius de Moraes pode ser dividido em momentos lógicos que refletem a sequência de eventos e as imagens criadas pelo autor. Aqui está uma possível divisão:

Momento 1: O Cenário Pós-Dilúvio

Descrição do arco-íris e da natureza que se revela após a chuva.

  • A água límpida e a luz do sol criam um ambiente de renovação e esperança.


Momento 2: A Abertura da Arca

Noé abre a arca, e a descrição foca na sua figura como patriarca e inventor da uva.

  • A terra é vista como fértil e promissora para o cultivo de vinhas.


Momento 3: A Saída dos Animais

Os animais começam a sair da arca, cada um com as suas características distintas.

  • A descrição dos animais é feita com humor e leveza, destacando a diversidade da vida.


Momento 4: O Conflito e a Ordem

Há um momento de disputa entre os animais, simbolizando a luta pela vida e pelo espaço.

  • Eventualmente, os animais saem em pares, estabelecendo uma nova ordem no mundo.


Momento 5: A Nova Vida na Terra

Os animais são conduzidos por Noé para a terra prometida, onde a vida recomeça.

  • O poema termina com uma imagem pacífica da natureza e dos animais em harmonia.

Cada um desses momentos captura uma fase diferente da narrativa, desde a devastação inicial até a promessa de um novo começo para a humanidade e para o mundo natural.


***

Reconto

Reconta, em prosa, a história narrada no poema “A Arca de Noé”, de Vinicius de Moraes.

 

segunda-feira, 24 de junho de 2024

É tão bom uma amizade assim, Sérgio Godinho

 


É TÃO BOM

Vale a pena ver
castelos no mar alto
Vale a pena dar o salto
p’ra dentro do barco
rumo à maravilha
e pé ante pé desembarcar na ilha
Pássaros com cores que nunca vi
que o arco-íris queria para si
eu vi o que quis ver afinal

É tão bom uma amizade assim
Ai, faz tão bem saber com quem contar
Eu quero ir ver quem me quer assim
É bom para mim e é bom p’ra quem tão bem me quer

Vale a pena ver
o mundo aqui do alto
vale a pena dar o salto
Daqui vê-se tudo
às mil maravilhas
na terra as montanhas e no mar as ilhas
Queremos ir à lua mas voltar
convém dar a curva
sem se derrapar
na avenida do luar

É tão bom uma amizade assim
Ai, faz tão bem saber com quem contar
Eu quero ir ver quem me quer assim
É bom para mim e é bom p’ra quem tão bem me quer

“É tão bom”, letra de Sérgio Godinho, do álbum Sérgio Godinho canta com os amigos do Gaspar, 1988


domingo, 16 de junho de 2024

Depus a máscara e vi-me ao espelho, Álvaro de Campos


 

Depus a máscara e vi-me ao espelho...
Era a criança de há quantos anos...
Não tinha mudado nada...

É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que fica,
A criança.

Depus a máscara, e tornei a pô-la.
Assim é melhor.
Assim sou a máscara.

E volto à normalidade como a um términus de linha.

 

Álvaro de Campos, Poesia, edição de Teresa Rita Lopes,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, p. 514.

 

QUESTIONÁRIO

1. Explique a importância da máscara na construção da dualidade do sujeito poético, tal como é apresentada ao longo do poema.

2. Depois de tirar a máscara, o sujeito poético opta por tornar a pô-la.

Justifique essa opção, com base em dois aspetos significativos.

3. Considere as afirmações seguintes sobre o poema.

I. O ato de se ver ao espelho sugere o desejo de autoconhecimento por parte do sujeito poético.

II. O sujeito poético anseia voltar a viver o seu tempo de infância.

III. A coexistência de versos longos e de versos curtos contribui para o ritmo do poema.

IV. O recurso às reticências, no verso 3, indicia a frustração sentida pelo sujeito poético.

V. No texto, evidenciam-se características da linguagem poética de Álvaro de Campos, como a liberdade formal e o uso de anáforas.

Identifique as três afirmações verdadeiras.

 

CRITÉRIOS DE CORREÇÃO

1. Explica a importância da máscara na construção da dualidade do sujeito poético, abordando, adequadamente, os dois tópicos de resposta.

- a máscara esconde o Eu associado à infância, num jogo entre ser e parecer/passado e presente, no qual a permanência do Eu passado surge quando a máscara é retirada;

- a duplicidade permite que o sujeito poético mantenha o seu ser autêntico e, simultaneamente, que desempenhe o papel social associado à máscara (optando pela identidade adquirida pela máscara).

 

2. Justifica a opção do sujeito poético por tornar a pôr a máscara, abordando, adequadamente, dois dos tópicos de resposta.

 

- a criança que a máscara oculta representa a vulnerabilidade do sujeito poético associada à infância;

- o Eu sente-se mais confortável quando coloca a máscara, na medida em que a imagem que dá a ver aos outros é a de alguém normal («E volto à normalidade» v. 11);

- a normalidade (o «términus de linha» v. 11) é construída através do recurso à máscara na viagem de autoconhecimento que o sujeito poético realiza, o que implica viver o presente, aceitando as convenções sociais.

 

3. I, III e V.


Fonte: Exame Final Nacional de Português | Prova 639 | 1.ª Fase | Ensino Secundário | 2024 | 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho; Decreto-Lei n.º 62/2023, de 25 de julho) – VERSÃO 1

 ***

A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL AO SERVIÇO DA EDUCAÇÃO: explicação sistematizada do poema de Álvaro de Campos que saiu no exame 12.º ano.

1. **Tirar a máscara**

- O autor tira a máscara.

- Olha-se ao espelho.

- Vê-se como era em criança.

- A essência dele não mudou.

2. **Vantagem de tirar a máscara**

- Ao tirar a máscara, redescobre-se a criança interior.

- A verdadeira identidade, pura e intocada, permanece.

3. **Voltar a pôr a máscara**

- O autor decide voltar a pôr a máscara.

- Sente-se mais confortável e seguro assim.

- A máscara torna-se a sua personalidade.

4. **Aceitação**

- Aceita que vai continuar a usar a máscara.

- É assim que consegue viver e funcionar na sociedade.

 

Partilhado por Lúcia Vaz Pedro, in Pulsações Escritas - Facebook, 22/06/2024

segunda-feira, 10 de junho de 2024

A língua que falas e escreves


 

A língua que falas e escreves
é uma árvore de sons
que tem nos ramos as letras,
nas folhas os acentos
e nos frutos o sentido
de cada coisa que dizes.

É uma língua tão antiga
como isto de ser português.
Teve o latim por avô,
que primeiro foi romano,
depois bárbaro,
mais tarde monge medieval
ou copista do Renascimento.

A língua cresceu com o país,
que se alongou até ao sul
e depois chegou às ilhas,
vencendo os tormentos do mar.
O país ganhou a forma
de uma língua de terra
capaz de usar palavras
como “lonjura” e “saudade”.

Foi a língua da viagem,
do assombro e da aventura,
usada para relatar
descobertas e naufrágios,
triunfos e derrotas
nas mais remotas paragens,
enquanto os porões se enchiam
com as raras especiarias
que tanta fortuna fizeram.

É uma língua que se veste
de baiana no brasil,
ganhando feitiços de som
em Angola e Moçambique
e novos significados
lá para as bandas de Timor.
É uma língua que ajudou
a fazer o comércio e a guerra
mas que hoje prefere
usar os verbos da paz.

Esta é a língua dos escritores,
de Eça e de Camilo,
e de muitos outros mais,
dos semeadores de sons,
dos povoadores de versos
de todos os que dizem a quem começa:
Tratem bem a nossa língua,
pois se a tratam mal
nem imaginam o mal que fazem
a este Portugal.

Esta é a língua dos meninos
que brincam com as palavras
e fazem delas brinquedos
para alegrarem o recreio
das histórias mais bonitas
que alguém pode contar.

E o orgulho que temos
nesta língua portuguesa
irá do berço para a escola
e da escola para a rua,
pondo em cada palavra
uma pepita de ouro
e uma centelha de lua,
pois afinal esta língua
será sempre minha e tua.

 

José Jorge Letria, Esta Língua Portuguesa, Porto, Ambar, 2007