uma arte de sentir
OS ÚLTIMOS TRÊS DIAS DE FERNANDO PESSOA
Novembro de 1935. Fernando Pessoa encontra-se no seu leito de morte no Hospital de S. Luís dos Franceses. Três dias de agonia, durante os quais, como num delírio, o grande poeta recebe os seus heterónimos, fala com eles, dita as suas últimas vontades, dialoga com os fantasmas que o acompanharam durante toda a vida.
Uma narração romanceada e ao mesmo tempo biográfica (embora se trate de uma biografia imaginária), em que Antonio Tabucchi evoca, com ternura e paixão, a vida de um dos maiores escritores do século XX.
28 de Novembro de 1935
A MINHA VIDA FOI MAIS FORTE DO QUE EU
Primeiro tenho de fazer a barba, disse ele, não quero ir para o hospital com uma barba de três dias, faça-me o favor de chamar o barbeiro, é o senhor Manacés, que mora na esquina.
Mas não temos tempo, senhor Pessoa, replicou a porteira, o táxi já ali está, os seus amigos já chegaram e estão à sua espera na entrada.
Não tem importância, respondeu ele, há sempre tempo.
Instalou-se no pequeno sofá onde habitualmente o senhor Manacés lhe fazia a barba e pôs-se a ler as poesias de Sá-Carneiro.
*
O senhor Manacés entrou e cumprimentou-o. Boa tarde, senhor Pessoa, disse ele, disseram-me que não estava bem, espero que não seja nada de grave.
Pôs-lhe uma toalha à volta do pescoço e começou a ensaboá-lo.
Conte-me qualquer coisa, senhor Manacés, o senhor sabe tantas histórias interessantes e fala com tanta gente no seu estabelecimento, conte-me qualquer coisa.
*
O quarto era uma pequena divisão modesta, com uma cama de ferro, um armário branco e uma mesinha. Pessoa meteu-se na cama, acendeu a luz na mesinha de cabeceira, pousou a cabeça na almofada e passou a mão pelo lado direito. Felizmente as dores tinham-se atenuado, a enfermeira trouxe-lhe um copo de água e um comprimido e depois disse: Tenha paciência, mas vou dar-lhe uma injecção, foi o médico que mandou.
Pessoa pediu uma poção de láudano, era um sonífero que se tinha habituado a tomar quando, enquanto Bernardo Soares, não conseguia adormecer. A enfermeira trouxe-lha e Pessoa bebeu-a.
Chamo-me Catarina, disse a enfermeira, se precisar de mim, toque que eu venho imediatamente.
*
A HORA DOS FANTASMAS
Que horas são?, perguntou Pessoa.
É quase meia-noite, respondeu Álvaro de Campos, a melhor hora para te encontrar, é a hora dos fantasmas.
Porque é que vieste?, perguntou Pessoa.
Porque se tu te vais, temos um certo número de coisas a dizer um ao outro, respondeu Álvaro de Campos, eu não te sobreviverei, partirei contigo, e antes de mergulhar na obscuridade temos um certo número de coisas a dizer um ao outro.
Pessoa ergueu-se na almofada, bebeu um gole de água e perguntou: que mais fizeste tu?
Meu caro, respondeu Álvaro de Campos, vejo com prazer que não me chamas engenheiro nem me tratas por você, que me tratas com familiaridade.
É evidente, respondeu Pessoa, tu entraste na minha vida, substituíste-te a mim, foste tu que fizeste com que a minha relação com Ophélia acabasse.
Fi-lo para teu bem, replicou Álvaro de Campos, essa miúda emancipada não convinha a um homem da tua idade, teria sido um casamento falhado. E depois, sabes, todas aquelas cartas de amor que lhe escreveste são ridículas, em suma salvei-te do ridículo, espero que me estejas agradecido.
Eu amei-a, murmurou Pessoa.
Com um amor ridículo, replicou Álvaro de Campos.
Sim, é possível, pode ser que sim, respondeu Pessoa, e tu?
Eu?, perguntou Campos. Eu, ora, eu tenho o sentido da ironia, escrevi um soneto que nunca te mostrei, fala de um amor que te vai embaraçar, porque é dedicado a um jovem, um jovem que amei e que me amou em Inglaterra. Em suma, é depois deste soneto que vai nascer a lenda dos teus amores recalcados, vai fazer a felicidade de certos críticos.
Amaste verdadeiramente alguém?, perguntou Pessoa.
Amei verdadeiramente alguém, respondeu Campos em voz baixa.
Então, absolvo-te, disse Pessoa, absolvo-te, julgava que na tua vida só tinhas amado a teoria.
Não, disse Campos aproximando-se da cama, também amei a vida, e se as minhas odes futuristas e furibundas foram blague, se nas minhas poesias niilistas destruí tudo, até eu mesmo, fica a saber que também eu amei na minha vida, com uma dor consciente.
Pessoa levantou a mão e fez um gesto esotérico. Disse: absolvo-te, Álvaro, vai com os deuses eternos, se tiveste amores, se tiveste um só amor; estás absolvido, porque és uma pessoa humana, é a tua humanidade que te absolve.
Posso fumar?, perguntou Campos.
Pessoa fez um gesto afirmativo com a cabeça. Campos tirou do bolso uma cigarreira de prata e pegou num cigarro, enfiou-o numa comprida boquilha de marfim e acendeu-o.
Sabes, Fernando, tenho saudades de quando era um poeta decadente, da época em que fiz aquela viagem de paquete nos mares do Oriente, sim, então teria sido capaz de escrever versos à lua, garanto-te, à noite, no convés, quando havia baile a bordo, a lua era tão teatral, era de tal modo minha. Mas nesse tempo eu era estúpido, fazia ironia com a vida, não sabia aproveitar a vida que me era dada, e foi assim que perdi a oportunidade e a vida me escapou.
E depois?, perguntou Pessoa.
Depois, comecei a querer decifrar a realidade, como se a realidade fosse decifrável, e veio o desencorajamento. E com o desencorajamento, o niilismo. Em seguida, já não acreditei em nada, nem mesmo em mim. E hoje aqui estou à tua cabeceira, como um farrapo inútil, fiz as malas para lado nenhum, e o meu coração é um balde despejado.
Campos dirigiu-se para a mesa de cabeceira e apagou o morrão do cigarro num pratinho de loiça.
Bem, meu caro Fernando, acrescentou, precisava de te dizer tudo isto agora que vamos talvez deixar-nos, tenho de ir, sei que os outros também virão ver-te e já não te resta muito tempo, adeus.
Campos pôs o sobretudo pelos ombros, ajustou o monóculo no olho direito, fez um rápido gesto de despedida com a mão, abriu a porta, deteve-se um instante e repetiu: adeus Fernando. Depois disse: as cartas de amor talvez não sejam todas ridículas. E fechou a porta.
Antonio Tabucchi, in Os Últimos Três Dias de Fernando Pessoa,
Quetzal Editores, 1994 (texto com supressões)
Cruzou por mim, veio ter
comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(Excepto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...).
Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
E' estar ao lado da escala social,
E' não ser adaptável às normas da vida,
'As normas reais ou sentimentais da vida -
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque tem razão para chorar lágrimas,
E se revoltam contra a vida social porque tem razão para isso supor.
Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-se com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se há uma razão exterior a ela?
Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
E' ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
E' ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.
Tudo o mais é estúpido como um Dostoiewski ou um Gorki.
Tudo o mais é ter fome ou não ter o que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.
Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.
Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lágrimas (autenticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco aquele pobre que não era pobre que tinha olhos tristes por profissão.
Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!
E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.
Eu é que sei. Coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.
Não me queiram converter a convicção: sou lúcido!
Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
M erda! Sou lúcido.
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(Excepto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...).
Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
E' estar ao lado da escala social,
E' não ser adaptável às normas da vida,
'As normas reais ou sentimentais da vida -
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque tem razão para chorar lágrimas,
E se revoltam contra a vida social porque tem razão para isso supor.
Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-se com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se há uma razão exterior a ela?
Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
E' ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
E' ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.
Tudo o mais é estúpido como um Dostoiewski ou um Gorki.
Tudo o mais é ter fome ou não ter o que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.
Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.
Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lágrimas (autenticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco aquele pobre que não era pobre que tinha olhos tristes por profissão.
Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!
E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.
Eu é que sei. Coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.
Não me queiram converter a convicção: sou lúcido!
Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
M erda! Sou lúcido.
Álvaro de Campos
…………………………………………………………..
Muito querido Pessoa, saberias agora
que não basta ser lúcido, m erda, que
não basta
a gente coser-se com as paredes
e cercar de grandes muros quem se sonha,
que não basta dizer basta de
provincianos !
Alexandre O'Neill,
in Feira Cabisbaixa, Ulisseia, 1965
Aquando das celebrações do cinquentenário da morte de Fernando Pessoa, em 1985, os seus restos mortais foram trasladados do Cemitério dos Prazeres para o Mosteiro dos Jerónimos em Belém. Como explica Fernando Pinto do Amaral, o título de Cesariny O Virgem Negra provém “do curioso facto de o cadáver de Pessoa ter sido encontrado incorrupto e enegrecido aquando da sua trasladação” (1990: 208). Sobre este facto, Lídia Jorge comenta num artigo publicado no Jornal de Letras, Artes e Ideias:
“que se ponha a correr que o seu corpo jaz incorruptível é artefacto banal em terra de santos” (1985: 5).
A partir deste acontecimento, sob a imagem de um Pessoa negro, aparece, em 1989, o livro de Mário Cesariny de Vasconcelos intitulado: O Virgem Negra. Fernando Pessoa explicado às criancinhas naturais& estrangeiras por M. C. V. Who Knows Enough About It seguido de Louvor e Desratização de Álvaro de Campos pelo Mesmo no mesmo lugar. Com 2 Cartas de Raul Leal (Henoch) ao Heterónomo; e a Gravura da universidade. Escrito & Compilado de Jun. 1987 a Set. 1988.
Como podemos apreciar pela ironia e pelo engenho do título, o humor tem um papel central neste livro, que exige ser lido com a sabedoria do riso. Entramos numa leitura ao mesmo tempo afastada de Pessoa, num sentido emocional (digamos: sem compaixão) mas também uma leitura próxima, de poeta a poeta, onde as palavras de um são reescritas pelo outro: as palavras de Pessoa são reinventadas por Cesariny.
[…]
Finalmente, destacaremos a única estrofe de Cesariny que se repete duas vezes:
Desvestidos de seus nus,
De pernas muito afastadas
(Duas formas co-irmãs)
Masturbam homens de as-Pecto decente nos
Vãos de escadas. (1989: 15)
De pernas muito afastadas
(Duas formas co-irmãs)
Masturbam homens de as-Pecto decente nos
Vãos de escadas. (1989: 15)
Cesariny cita um dos versos mais sexualmente explícitos de Álvaro de Campos: “Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma, / (…) E cujas filhas aos oito anos – e eu acho isto belo e amo-o! – / Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada” (1915: 87). No entanto, Cesariny transfere a acção sexual, antes feita pelas “filhas”, para os heterónimos, ideia coerente com o resto do livro: toda a acção “dramática” conduz nestes poemas a encontros sexuais.
No poema seguinte, “Eu, sempre…”, Cesariny parodia a filiação pessoana em Platão, descrevendo-a como insuficiente, semelhante à de “um romano da decadência total”(1989: 17). O terceiro poema intitula-se “Alheio” e, como o nome indica, versa sobre o que a voz poética não possui:
Alheio ao céu e à luz
De Seth e de Rimbaud
No Antinoo depuz
O paneleiro que sou (ibidem: 21)
De Seth e de Rimbaud
No Antinoo depuz
O paneleiro que sou (ibidem: 21)
Depois de se declarar “paneleiro”, o sujeito poético afirma só ter sido capaz de evidenciar esta tendência sexual em inglês, referindo o poema “Antinous”, que forma parte dos poemas ingleses de Fernando Pessoa. Também faz referência ao poema “Epithalamium”,escrito nesta língua:
E no Epithalamium fiz
Que pudessem saber
Que feliz ou infeliz
O sou como mulher
As costas do meu ser
Deixei em inglês
Porque isso em português
Não o podia escrever (ibidem)
Que pudessem saber
Que feliz ou infeliz
O sou como mulher
As costas do meu ser
Deixei em inglês
Porque isso em português
Não o podia escrever (ibidem)
A voz poética resume depois a sua educação literária: “De Shakespeare e de Marlowe / Mas também (ainda não disse) de Donne/ De Milton, de Mcpherson, de Coleridge, / De Chatterton, de Carlyle, de Wordsworth, de Browning” (ibidem), continuando com outros escritores ingleses canónicos. No entanto, da influência anglo-saxónica confessa-se “um tanto grogue” (ibidem). Narra também dados biográficos coincidentes com os de Pessoa, sobre a mudança para Lisboa, a passagem pela Faculdade de Letras. Alude ainda à falta de filiação na poesia francesa:
A francesia de maior cariz
Não a pronunciei. Não conhecia. Ou não quiz.
Talvez a não houvesse na biblioteca de Durban (24)
Não a pronunciei. Não conhecia. Ou não quiz.
Talvez a não houvesse na biblioteca de Durban (24)
Depois do quadragésimo verso, o poema, que começa com quadras ao estilo de Pessoa-ortónimo, muda estilisticamente, lembrando as formas mais comuns a Álvaro de Campos, incluindo onomatopeias como: “– Ã-ã-ã-ã…” (ibidem: 25), à semelhança do heterónimo de Ode Marítima. Aparecem julgamentos sobre a poesia portuguesa, classificando Camões de “italiano” (23), alusões a Teixeira de Pascoaes: “eu disse / Que ele sofria de pouca arte” (ibidem), e a Antero de Quental: “seria especial / Não fora o / Entre filosofal e sensorial (oriental ocidental) / Que ele não resolveu / Porque o resolvi eu” (27).
O quarto poema desta primeira parte é uma resposta ao livro de Mário Sacramento, Fernando Pessoa, Poeta da Hora Absurda, de 1958, onde Sacramento usa o adjectivo“anti-génio” para descrever Pessoa. O poema de Cesariny questiona este termo:
O Mário de Sacramento é que há um ano disse
Uma palavra de desengano felice.
Que eu era um anti-génio, disse o rapaz
Em livro eugénio e invulgarmente lilás. (31)
Uma palavra de desengano felice.
Que eu era um anti-génio, disse o rapaz
Em livro eugénio e invulgarmente lilás. (31)
Sacramento expõe no seu livro a tese de um Pessoa anti-génio, entendendo por génio “um excepcional adequamento do homem à realidade do seu tempo” (1958: 77). Afirma Sacramento que Pessoa teria fracassado no seu plano de fazer da heteronímia um drama-em-gente: “muito embora possamos admitir que Fernando Pessoa contivesse em si elementos susceptíveis de transfiguração dramática (…) a verdade é que não chegou a realizar-se nesses termos. E porquê? Necessariamente, porque lhe faltou… génio dramático” (ibidem: 58).
O Pessoa apócrifo que Cesariny cria responde assim no seu poema:
Mas voltando ao escritório
Do Mário Sacramento,
Este belo parlório
Sito à casa de banho
Saberá que para se ser um antigénio
Tem de se ter muitíssimo talento? (1989: 33)
Do Mário Sacramento,
Este belo parlório
Sito à casa de banho
Saberá que para se ser um antigénio
Tem de se ter muitíssimo talento? (1989: 33)
O poema cita também três dos mais famosos versos de Campos, acrescentando uma pergunta: “Não sou nada / Nunca serei nada / Não posso querer ser nada… lembram-se?” (ibidem: 34) confirmando a sua insignificância, pedindo depois para que o retirem dos Jerónimos, ou, ao contrário, que retirem o monumento e o deixem aí ficar. Descreve pejorativamente o seu sepulcro:
E antes de mais tirem de mim os Jerónimos
Que é clausura demais para um homem só
E se tal não puderem (souberem, quiserem, temerem)
Digam lá ao escultor venha tirar a mó
Da m erda da coluna que me pôs em cima a fingir que estou dentro. (ibidem)
Que é clausura demais para um homem só
E se tal não puderem (souberem, quiserem, temerem)
Digam lá ao escultor venha tirar a mó
Da m erda da coluna que me pôs em cima a fingir que estou dentro. (ibidem)
O facto real da sepultura de Pessoa no Mosteiro dos Jerónimos é um dos eixos do livro. Devemos pensar no significado desta recusa, que questiona a estatização da figura do poeta. Pedir que seja o monumento removido, e não o poeta, é exagerar humoristicamente a importância de Pessoa, superior às honras de estados ou governos.
A segunda parte do livro é composta por dezanove poemas. Começamos por recorrer às palavras de Cláudio Willer, que descreve esta segunda parte de O Virgem Negraassim: “consiste em pastiches e adulterações dos poemas de Pessoa: entre eles, alguns dos mais conhecidos. Há uma interpretação, no sentido da dessublimação, de revelar um conteúdo sexual latente, reproduzindo o poema na forma e ritmo, mas com substituições” (2003: s/p). Mesmo que na primeira secção tal já acontecesse, agora os poemas servem menos de apresentação e mais de confissão da personagem. Utilizam, em geral, textos de Pessoa-ortónimo (tanto em prosa, como em verso) e de Álvaro de Campos.
O primeiro poema foi elaborado a partir de versos do poema “Dorme enquanto eu velo…” de Pessoa ortónimo (1924a: 66), publicado pela primeira vez na revistaAthena. Em Cesariny repetem-se textualmente versos de Pessoa como “Dorme que eu velo (…) Nada em mim é risonho” (Cesariny, 1989: 45), mas intercalados por outros que não correspondem ao poema de Pessoa, tais como “Sedutora imagem/ Terna Miragem”(ibidem), transformando o sentido do hipotexto. No segundo poema da secção II, parodia o conhecido poema de Fernando Pessoa “O menino de sua mãe”, publicado em vida do poeta na revista Contemporânea (1926: 82), mudando versos chave de Pessoa, como: “Que volte cedo, e bem / (Malhas que o Império tece!) / Jaz morto, e apodrece / O menino da sua mãe” (ibidem: 83), por “Que morra cêdo, e bem! / Malhas que o Império tece! / Ainda vive e parece / O menino de sua mãe”(Cesariny, 1989: 48). No poema de Cesariny, a morte está trocada pela vida, referindo-se, ao que nos parece, à presença pessoana no mundo cultural, como também ao imperialismo português e à guerra colonial.
Entre outros poemas intertextuais, podemos destacar “Ó tocadora de harpa, se eu beijasse”(Cesariny, 1989: 57), que parodia o poema de Pessoa que começa da mesma maneira, publicado em 1916 na revista Centauro, e que é, no caso pessoano, uma afirmação platónica. Enquanto Pessoa escreve, depois deste primeiro verso: “Teu gesto, sem beijar as tuas mãos” (ibidem), negando-se à materialidade do tacto pela abstracção gestual, no poema de Cesariny lemos: “Teu corpo sem beijar a tua poma / E beijando-o me unisse pela soma / Aos quatro sexos meus e te enterrasse / Tão fundo o meu caralho que gravasse / em soberba medalha de cristãos (…) A forma que submete e extasia” (1989: 57). Cesariny usa a palavra “forma” em lugar de “teu gesto”; e enquanto o poema de Pessoa termina em “Não poder eu prendê-lo, fazer mais / Que vê-lo e perdê-lo!… e o sonho é o resto” (1916: 39), em Cesariny perde-se e vê-se “na retina” (1989: 57), afirmando-se dentro do sensível, do visível, do táctil.
Encontramos nesta parte alusões ao dado histórico da trasladação do cadáver de Fernando Pessoa e o estado em que se encontrava: “O Virgem Negra, tal me descobriram / Cincoenta anos depois, / Em minha infusão estou. Tombam, deliram / Em vão quantos seguiram” (1989: 67). A palavra Virgem tem duplo sentido remetendo, tanto para a castidade sexual, como para a Mãe de Cristo, Maria. Muitas vezes o facto de um cadáver estar incorrupto tem sido interpretado pela Igreja Católica como evidência de santidade. Assim, com a palavra “virgem”, Cesariny não destaca apenas a sexualidade de Pessoa, mas também a santificação ou deificação do poeta. Portanto, a sua crítica está dirigida tanto contra a obra ou a vida de Pessoa, quanto contra o tratamento crítico a que posteriormente foi sujeito. Ao mesmo tempo interessante e ridícula, a exumação de Pessoa serve como metáfora perfeita para esta dupla aproximação. Segundo Claudio Willer, a crítica estaria dirigida aos que fizeram “a oficialização de Pessoa e sua conseqüente normalização (…) Portanto, João Gaspar Simões e Adolfo Casais Monteiro seriam, mantido o paralelo com o surrealismo francês, os Anatole France e Paul Claudel de Cesariny” (2003: s/p). Embora partilhemos da opinião de Willer, e uma vez que O Virgem Negra foi publicado em 1989, pensamos que a crítica cesarinyana vai para além dos poetas da revista Presença, estendendo-se ao clima geral de mistificação e popularização que as comemorações do cinquentenário e a explosão editorial de e sobre Pessoa extremaram.
O poema que começa com “Vem Vulva antiquíssima” é exemplar tanto pelo aberto tom paródico, como pela sexualização dos elementos que, na poesia de Pessoa, costumam ser abstractos. Através de um quadro comparativo, em anexo a este ensaio, podemos ver os poemas lado a lado, comprovando semelhanças e mudanças feitas por Cesariny.
O substantivo usado por Campos, “Noite”, em maiúsculas, referindo não uma noite singular e específica, mas a Noite como abstracção – a ideia de noite, a súmula de todas as noites – é substituído no poema de Cesariny por “Vulva”. Numa interpretação dos impulsos reprimidos por Pessoa, Cesariny subverte todo o sentido do poema, que termina por ser um canto à cópula ou junção, ao encontro efectivo e positivo dos contrários. Os últimos versos substituem Cristo por“Çiva-Parvati”, deuses indianos que formam, como casal, uma família sagrada (pais de Ganesha, deus da escrita); Deus é substituído pela figura andrógina de Ardhanarishwar, metade homem, metade mulher, composto por Shiva e a sua consorte Shakti (1993: 45). Sobre esta incapacidade amorosa e sexual de Fernando Pessoa com o “outro” Yvette Centeno escreve um ensaio intitulado“ophélia-bébézinho ou o horror do sexo”. Afirma que “Ophélia, aliás logo Ophelinha, reduzida, depressa passa a Bébé (de valor neutro, e já não feminino) a Bébézinho (neutro na mesma e ainda mais reduzido), a Bébé-anjinho, em que a des-sexualização mais se afirma” (1985: 18). Cláudio Willer sugere que Cesariny conhecia este ensaio e se baseia nele para a escrita do livro O Virgem Negra. O décimo poema da segunda parte copia por inteiro o poema de Pessoa ortónimo“Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar” (2005: 63) mas interrompido por citações de diversas cartas escritas por Pessoa a Ophélia como: “A Nini Bèbèzinho / Do Ibi” (Cesariny, 1989: 63). Descontextualizadas, e portanto ridicularizadas. Estão, no entanto, tecidas significativamente com o poema de Pessoa, não tanto para mostrar a escrita poética e a epistolar como duas formas de fingimento, mas para evidenciar como em duas formas expressivas transparece uma mesma carência.
Outro dos poemas a salientar da segunda parte do livro é aquele que começa por “O Álvaro de Campos gosta muito de levar no cu” (ibidem: 89), porque os heterónimos e Pessoa ortónimo protagonizam aqui diferentes cenas eróticas, concluindo com a chegada de Aleister Crowley, célebre mago e ocultista inglês que Pessoa conheceu em vida. No poema, os heterónimos protagonizam um teatro sado-masoquista concebido por Cesariny, que encena um drama-em-gente (neste caso, é mais uma comédia-emgente, transformando a gravidade dos temas pessoanos em jogos sensuais).
A terceira parte do livro é composta por cartas apócrifas de Raúl Leal, poeta e colaborador da revista Orpheu, supostamente dirigidas a Pessoa. Numa primeira carta, a voz poética estende-se na explicação pormenorizada e hiperbólica do seu estado de ânimo, descrito como “de dissolução mental em que me esfarrapo ao capricho do Acaso” (ibidem), para finalmente anotar aquilo a que aspira:“essa ambição estonteante de arrebatar divinamente o Universo, de me sentir Tudo, de me sentir Deus, essa Ânsia, essa Ambição você jamais sofreu e mal poderá avaliar a grandêsa da Minha Dor” (ibidem: 102). É interessante verificarmos como acusa Pessoa de ser incapaz de entender o seu sofrimento e a sua ambição. Willer destaca a sátira efectuada por Cesariny “aos maneirismos de vocabulário e repertório associados ao espiritualismo e esoterismo na passagem dos séculos XIX para XX, que tanto influenciou a geração de Orfeu [sic]” (2003: s/p). Da passagem citada, destacamos também a denúncia da incapacidade de Pessoa perante as dores de Leal, que “mal poderá avaliar”, por não as ter experimentado (julgamento contra um Pessoa sedentário?).
A segunda carta é mais breve, e interroga directamente o destinatário sobre o futuro: a carta que Raúl Leal alegadamente recebeu não trazia todas os dados de um horóscopo que Pessoa lhe teria lido. A dúvida deste Leal apócrifo quanto à possível morte, que via próxima, não parece atemorizá-lo por completo. Uma espécie de transfiguração, descrita como “atracção hipnótica” (porque “o Vácuo-Fantasma e eu tornávamo-nos um só Eu” (1989: 109)) alivia seu estado físico de sifilítico. Uma terceira carta, aparecida só na segunda edição do livro de Cesariny, é escrita por, supostamente, Pessoa. Desta vez dirige-se a João Gaspar Simões para refutar alguns dos ensaios que este escrevera sobre Aleister Crowley e, em geral, sobre a relação pessoana com o ocultismo e as práticas mediúnicas. Ressuscitado pela pena de Cesariny, Pessoa exumado tem a oportunidade de dialogar com os seus intérpretes.
Através de O Virgem Negra, Cesariny parece apontar a incapacidade de Pessoa de se encontrar com o feminino, ou de se declarar homossexual. Trata-se de um Pessoa apócrifo ou, como dissemos na introdução deste ensaio, um Pessoa reescrito como texto intransitivo, construído a partir não só do que os outros dizem dele, mas também através dele próprio. Assim a corrosividade do texto de Cesariny explicita uma clara intencionalidade desmistificadora, satírica, mas também, como afirma Cândido Martins, uma “rejeição edipiana mais ou menos profunda” (1995: 109), do tipo de “tesera” conforme defendido por Harold Bloom, porque Cesariny está a completar a obra de Pessoa. Este processo também poderia ser descrito como de “demonização”; neste caso, Cesariny apropria-se de elementos pessoanos para os expor em sentidos opostos.
Ana Lucía de Bastos Herrera, A Tradição Pessoana: Influência de Fernando Pessoa sobre dois poetas portugueses, Mário Cesariny e Ruy Belo, e dois poetas venezuelanos, Rafael Cadenas e Eugenio Montejo.Faculdade de Letras da Universidade Do Porto, 2010.
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/12/14/campos.aspx]
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de Poesia, 17-05-2018.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html