"Fontana delle Api", por Giovanni Lorenzo Bernini, na Piazza Barberini
Se disséssemos hoje a um jovem poeta que achamos os seus versos «doces», o
jovem poeta ficaria ofendido de morte. Mas se alguém tivesse feito esse elogio
a um poeta grego ou romano, ele teria ficado desvanecido e encantado. Aliás,
não precisamos de viajar tão longe no tempo: Camões teria ficado imensamente
lisonjeado. Pois era essa a finalidade da poesia: ser doce.
Por isso havia tantas lendas sobre poetas antigos cujo talento era
explicado pelo facto de abelhas terem deixado mel nas suas bocas quando ainda
eram bebés. Por isso se estabeleceu naturalmente a correlação mel/poesia; por
isso se começou a pensar no poeta como uma abelha. O poeta grego Baquílides
disse de si mesmo que era uma abelha. E no «Íon» de Platão, Sócrates afirma
esta coisa extraordinária: «Os poetas dizem-nos que é em fontes de mel, em
certos jardins e pequenos vales das Musas, que eles colhem os versos, para, tal
como as abelhas, no-los trazerem, esvoaçando como elas. E falam verdade! Com efeito, o poeta é uma coisa leve,
alada, sagrada» («Íon» 534a-b; tradução de Victor Jabouille).
«Manda-me amor que cante docemente», escreve Camões no início da Canção 7.
Na Canção 3, fala-nos em «doce melodia» e «doce pensamento»; na Canção 5 numa
«doce voz»; um verde ramo na natureza faz um «doce ruído» (Canção 9). E «O
sulmonense Ovídio, desterrado», lembrando-se com saudade dos «doces» filhos, só
tem como companhia a «sua doce Musa» (Elegia 3). Não será doce a mais?
O século XX (e talvez já o século XIX) virou as costas à doçura na poesia,
certamente porque a banalização do açúcar na culinária estragou as conotações
positivas da glicose que o mel tinha emprestado à literatura. Quando, no
romance «Brideshead Revisited», o narrador se refere à quinzena romântica com
Sebastian em Veneza com as palavras «I was drowning in honey», sabemos que algo
mudou desde que Camões escreveu «Manda-me amor que cante docemente».
Mas uma coisa não mudou: a glicose como combustível da criação. No fundo,
terá sido por esse motivo (não consciencializado) que os poetas antigos
associaram a poesia ao mel. Não era tanto que a poesia fosse mel; era mais o
facto de a ingestão de mel (para povos que não tinham ainda açúcar) produzir
mais facilmente poesia. Porque a imaginação também precisa de combustível: os
escritores que recorreram ao vinho (Baco, esse grande inspirador!) estavam, no
fundo, a recorrer ao açúcar que existe no vinho («Baco das uvas tira o doce
mosto»: Lusíadas 4.27), do mesmo modo como os nerds que deram ao mundo os
nossos computadores e telemóveis (com todos os seus aplicativos e software) se
alimentaram de Coca-Cola, de donuts e daqueles hambúrgueres das cadeias
americanas que contêm mais açúcar do que qualquer sobremesa num restaurante em
Portugal. Eu diria, até, que se não fosse a dieta americana de açúcar a
estimular as mentes dos cientistas, nunca o homem teria chegado à lua nem me
seria possível consultar manuscritos da Bíblia ou de Vergílio online no meu
computador. Sem combustível (açúcar), nada surge «por puro engenho e por
ciência» (citando Lusíadas 5.17).
Mas voltando à Grécia arcaica: diz o poeta Álcman que vozes belas a cantar
poesia são «vozes de mel»; e Píndaro (de quem se dizia que abelhas tinham
deixado mel na sua boca quando era bebé) afirma que um poema, para ser de
qualidade superlativa, tem de voar de um tema para outro «como uma abelha». Na
sua Bucólica 1, Vergílio fala em abelhas depois de ter referido «fontes
sagradas». E Platão, como vimos, falou em «fontes de mel» Coube a Gian Lorenzo
Bernini fazer, em Roma, a síntese perfeita de tudo isto, com a sua «Fontana
delle Api».
Homenagem a Victor Jara por Carlos Matamala Rivas, 1979
O antigo militar chileno Pedro Barrientos foi
condenado, no dia 27 de Junho de 2016, por um tribunal na Flórida (Estados Unidos da
América), por tortura e homicídio do cantor Víctor Jara, em Setembro de
1973. Jara foi preso após o golpe conduzido pelo general Pinochet, em 1973, que
derrubou o presidente Salvador Allende, eleito em 1970 com o apoio da Unidad Popular (UP).
O golpe fascista, suportado pela CIA e precedido de um
bloqueio económico, levou à instauração de um regime militar liderado por
Pinochet, que durou 17 anos. Allende, o presidente eleito, morreu durante o
ataque ao Palácio La Moneda, sua residência oficial
em Santiago, em 11 de Setembro de 1973.
Na preparação do golpe, o poder económico promoveu uma
campanha mediática contra o governo da UP, em conjunto com a paralisação da
rede de transportes e a fuga de capitais.
Víctor Jara, cantor, autor e dramaturgo, era um dos
apoios mais destacados de Allende e do seu governo, suportado por socialistas,
comunistas e outros sectores populares. Aos 40 anos, Jara foi preso no Estádio
Chile (hoje Víctor Jara), torturado e morto. A 16 de Setembro, o seu
corpo foi encontrado junto ao recinto desportivo cravejado de balas.
«Livra-nos de aquele que nos domina na
miséria, traz-nos o teu reino de justiça e igualdade»
A
obra de Víctor Jara é dominada pela relação com o seu Chile, particularmente
com a realidade dos camponeses explorados. Os seus pais eram inquilinos na
propriedade de uma poderosa família latifundiária; a sua mãe era descendente de
índios Mapuche. Numa entrevista concedida em Moscovo, Jara conta que a música
entrou na sua vida através das canções que surgiam no trabalho do campo e,
particularmente, da sua mãe, que «tocava muito bem guitarra e cantava
maravilhosamente».
Em «Plegaria a un
labrador», transforma os versos católicos do Pai Nosso numa
canção libertadora, de unidade camponesa na luta contra a exploração a que eram
sujeitos. Durante o governo de Salvador Allende a reforma agrária chilena teve
um aceleramento profundo e alcançou mais de seis milhões de hectares.
Levanta-te e olha as tuas mãos
Para
crescer, estende-as aos teus irmãos
Juntos
iremos unidos pelo sangue
Agora
e na hora da nossa morte
Ámen
(Victor Jara, Plegaria a un labrador)
«Lembro-me de ti,
Amanda, correndo para a fábrica onde trabalhava Manuel»
Em
«Te Recuerdo Amanda», o cantor chileno canta uma história de amor entre dois
jovens operários. Dando-lhes o nome dos seus pais, Amanda e Manuel,
Jara faz da canção um retrato da aliança social entre camponeses e
operários chilenos que permitiu eleger um presidente com uma agenda
progressista e transformadora num continente dominado por ditaduras militares.
Mas
os versos retratam, também, a dureza do trabalho. Os operários vão trabalhar
para a serra e, quando a sirene toca, muitos não voltam, «tampouco Manuel».
Os
problemas das mulheres estão presentes na obra de Jara; numa entrevista em Cuba
afirma: «A mulher não é uma escrava: é igual ao homem e tem os mesmos direitos.
Pedir à mulher pureza e dedicação ao lar, e ao homem não, é ser esclavagista.»
«Nenhum canhão
destruirá o sulco do teu arrozal»
Com a guerra do Vietname contestada dentro e fora dos
Estados Unidos da América, Víctor Jara escreve em 1971 um álbum intitulado El derecho de vivir en paz. A canção homónima que abre
o disco é toda ela dedicada ao povo vietnamita, que, à época, sofria com a
ocupação parcial norte-americana, numa luta pela independência, já depois de
derrotado o colonialismo francês.
Víctor
Jara foi nomeado embaixador cultural do Chile por Salvador Allende, e viaja
pela América Latina e pela Europa, onde participa num acto mundial contra a
guerra no Vietname, em Helsínquia.
O
governo chileno, dirigido por Allende, adoptou uma política internacional de
respeito pela autodeterminação dos povos. O Chile integrou o movimento dos
países não-alinhados, fomentou um clima de paz e cooperação na América Latina e
a resolução pacífica dos conflitos.
Em
Dezembro de 1972, a menos de um ano do golpe, Salvador Allende discursa na
Assembleia Geral das Nações Unidas, onde denuncia as pressões externas, o
bloqueio económico-financeiro e a manipulação da opinião pública chilena
conduzidos pelos EUA.
«Somos
cinco mil»
Víctor Jara morreu após tortura no Estádio Chile, em
Santiago, dias depois do golpe de 11 de Setembro de 1973. Os poucos
companheiros que com ele partilharam o complexo desportivo, transformado em
campo de concentração, e sobreviveram contam que até ao fim cantou, tocou
guitarra e escreveu. Mesmo com as mãos fracturadas pelos militares, Jara ainda
cantou o hino da Unidad Popular, contam testemunhas.
Pouco antes de morrer, escreveu um último poema, em
que denuncia o terror dos golpistas, que fica conhecido como Estadio Chile.
Somos cinco mil
nesta pequena parte da cidade.
Somos cinco mil.
Quantos seremos no total,
nas cidades e em todo o país?
Somente aqui, dez mil mãos que semeiam
e fazem andar as fábricas.
Quanta humanidade
com fome, frio, pânico, dor,
pressão moral, terror e loucura!
Seis de nós se perderam
no espaço das estrelas.
Um morto, um espancado como jamais imaginei
que se pudesse espancar um ser humano.
(Último poema de Victor Jara)
Víctor Jara está sepultado no Cemitério Geral de
Santiago, para onde foram trasladados os seus restos mortais em 2009, numa
cerimónia que contou com mais de 12 mil pessoas. O Estádio Chile, transformado
em campo de concentração em 1973 e local da sua morte, foi renomeado Estádio
Víctor Jara em 2003.
António
Gedeão, Poemas Escolhidos, 12.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 2010, p. 62.
Notas:
êmbolos
(verso 6) – discos ou cilindros com movimento de
vaivém dentro dos tubos de um motor ou de uma máquina a vapor.
gomoso
(verso 14) – que destila ou contém goma; viscoso.
Ofélia
(verso 15) – personagem de Hamlet,
peça de William Shakespeare; após ser rejeitada pelo príncipe Hamlet, e ao
saber que este matou o seu pai, Ofélia enlouquece; cai num ribeiro, enquanto
apanha flores, e, cantando, deixa-se ir a flutuar ao sabor da corrente, até
morrer afogada.
nenúfar
(verso 16) – planta aquática flutuante, com
grandes flores, geralmente brancas.
Questionário:
1.
Estabeleça uma relação entre o título do poema e
o discurso do sujeito poético nas duas primeiras estrofes.
2.
Indique duas características que diferenciam a
terceira estrofe das estrofes anteriores.
3.
Proceda à análise formal do poema, no que
respeita à estrutura estrófica e aos tipos de rima.
4.
Releia a última estrofe do poema de António
Gedeão e a nota sobre Ofélia. Em seguida, observe a reprodução do quadro de
John Everett Millais.
No
poema e no quadro, o fim trágico de Ofélia é representado de modos distintos,
pondo em evidência aspetos diferentes.
Justifique
esta afirmação, com base em dois aspetos relevantes.
John Everett Millais, Ophelia, 1851-1852, Tate Britain, in www.tate.org.uk (consultado em 09/11/2020).
Chave
de correção do questionário sobre o poema “Lição sobre a água”:
1.
Na resposta, devem ser desenvolvidos os dois tópicos seguintes, ou outros
igualmente relevantes.
A
relação entre o título do poema e o discurso do sujeito poético nas duas
primeiras estrofes pode ser estabelecida a partir dos aspetos seguintes:
− a reprodução de um
modelo de apresentação escolar, tradicionalmente associado à transmissão de conhecimentos
em contexto de aula;
− o uso de linguagem
científica (objetiva e impessoal), com a intenção de descrever as propriedades
da água (num enunciado com valor aspetual genérico).
2.
Na resposta, devem ser desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros
igualmente relevantes.
As
características que diferenciam a terceira estrofe das estrofes anteriores são
as seguintes:
− o aparecimento de
uma personagem literária com uma conotação trágica («o cadáver de Ofélia» – v.
15), que diverge da neutralidade impessoal predominante nas estrofes
anteriores;
− a presença do
discurso metafórico («sob um luar gomoso e branco de camélia» – v. 14), por
oposição ao discurso científico e objetivo das duas primeiras estrofes;
− a mudança de tempo
verbal (do presente do indicativo, nas duas estrofes iniciais, para o pretérito
perfeito do indicativo, na última estrofe), que assinala a passagem de um modo
expositivo para um modo narrativo.
3.
Na resposta, devem ser desenvolvidos os dois tópicos seguintes.
No
que respeita à estrutura estrófica e aos tipos de rima, o poema:
− é constituído por
uma primeira estrofe com sete versos (sétima), uma segunda estrofe com cinco
versos (quintilha) e, por fim, uma terceira estrofe com quatro versos (quadra);
− apresenta rima
interpolada, rima emparelhada e versos brancos.
4.
Na resposta, devem ser desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros
igualmente relevantes.
Os
aspetos diferentes postos em evidência na representação do fim trágico de
Ofélia, nas duas obras, são os seguintes:
− no poema de António
Gedeão, a morte de Ofélia é inserida num ambiente noturno, em que se destaca a
referência ao luar (que acentua o carácter trágico e simbólico do episódio
aludido); no quadro de John Everett Millais, a luz do ambiente diurno revela os
pormenores do meio natural em redor de Ofélia;
− no poema, não
ocorrem referências a traços físicos de Ofélia; no quadro, é possível observar
a beleza e a juventude de Ofélia;
− no poema, Ofélia é
descrita «com um nenúfar na mão» (v. 16), o que reforça a importância simbólica
do meio aquático; no quadro, Ofélia é representada tendo na mão (direita)
algumas flores que colhera.
À
entrada da adolescência, tinha eu doze anos, um austero professor fez-me
descobrir o sortilégio das experiências de química, a tal ponto que, qual
pesquisador da pedra filosofal, Instalei no terraço de casa um pequeno
laboratório, com o beneplácito de meu pai, que tinha uma paciência infinita
para as minhas fantasias, e dei início à minha actividade experimental. Como
era de esperar, fruto da ignorância, a coisa correu mal, e depois de um
desastre sem consequências graves, fui levado a desmontar o laboratório e
esquecer as experimentações domésticas. Mas o entusiasmo ficou cá.
De entre as variadas coisas que ensinei, o que recordo com uma ternura
nostálgica são umas aulas de laboratório de química, e o prazer de fazer
descobrir aquele mundo mágico a sucessivas camadas de adolescentes. Hoje é a
lembrança dessas experiências que me faz trazer ao blog o poema de António Gedeão
(1906-1997), Lição sobre a água.
O poema, no seu propósito didáctico, assume um tradição que
remonta à medicina árabe medieval, na qual os tratados médicos (os únicos que o
mundo medieval cristão conheceu) eram escritos em verso para facilitar a sua
assimilação. O mas notável será o Poema da Medicina, de Avicena.
Ainda que o Químico, o Prof. Rómulo de Carvalho,
que escreveu poesia sob o pseudónimo de António Gedeão, tenha esquecido a
biologia e o papel da água como fonte da vida, na estrofe final do poema
associa toda esta ciência à mente humana e ao que ela pode ter de mais
dilacerante: a loucura e o suicídio por transtornos emocionais entre família,
dever, e desejo. Evoca aí o poeta a morte de Ofélia, paixão (?)
de Hamlet,
na peça homóloga de Shakespeare.
A cena descrita na última estrofe do poema foi pretexto para uma
famosa pintura de John Everett Millais (1829-1896), com cuja imagem abre o
artigo. A pintura original pertence à Tate Britain.
Luís de Camões, Rimas,
edição de Álvaro J. da Costa Pimpão, Coimbra, Almedina, 1994, p. 168.
Notas:
1enturbaram – tornaram turvas.
2intratável – inacessível; intransitável.
3 estio
– tempo quente e seco.
4fementidos – enganosos.
5regimento – governo.
6desvario – loucura; inquietação; excesso.
7natura – natureza humana.
Questionário:
1. Explique o
modo como a passagem do tempo é representada nas duas primeiras estrofes.
2. «Tem o tempo
sua ordem já sabida; / o mundo, não» (versos 9 e 10).
Explicite a
oposição presente nestes versos, tendo em conta a globalidade do poema.
3. Selecione a
opção de resposta adequada para completar as afirmações abaixo apresentadas.
Neste soneto,
além do tema da mudança, também se destaca o tema ………………. Perante a realidade que perceciona,
o sujeito poético evidencia um sentimento de ……………….
(A) da
reflexão sobre a vida pessoal … indiferença
(B) da
reflexão sobre a vida pessoal … descrença
(C) do
desconcerto … indiferença
(D) do
desconcerto … descrença
Chave de correção do questionário de interpretação do soneto:
1.Para que a resposta
seja considerada adequada, devem ser abordados dois
dos tópicos seguintes, ou outros igualmente
relevantes:
‒ a referência à
sequência das estações do ano através da caracterização de elementos da
natureza (em «Correm turvas as águas deste rio, / que as do Céu e as do monte
as enturbaram» – vv. 1-2, remete‑se
para o inverno; em «os campos florecidos» – v. 3, aponta-se para a primavera;
em «os campos [...] se secaram» – v. 3, indicia-se o verão; em «intratável se
fez o vale, e frio» – v. 4, sugere-se o outono);
‒ a referência aos
efeitos que a passagem do tempo provoca na natureza/a referência às
transformações ocorridas na natureza resultantes da passagem inevitável do
tempo (como o turvar das águas do rio ou o secar dos campos florescidos);
‒ a associação entre a
passagem do tempo e a ideia de mudança, evidente no recurso aos verbos «passar»
e «trocar» (vv. 5-6).
Nota – Os tópicos podem ser abordados separadamente ou
de forma integrada.
2.Devem ser abordados
os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:
‒ a previsibilidade/a
constância natural da passagem do tempo, evidenciada pelo ritmo cíclico das estações
do ano;
‒ a imprevisibilidade
da natureza humana/dos comportamentos humanos, provocando tal desconcerto no mundo
que «parece que dele Deus se esquece» (v. 11).
3. (D)
Neste soneto, além do tema da mudança, também se
destaca o tema do desconcerto. Perante a realidade que perceciona, o sujeito
poético evidencia um sentimento de descrença.
O soneto “Correm
turvas as águas deste rio” pode ser lido em
perspectiva a “Verdade, Amor, Razão, Merecimento”, inclusive pela ocorrência em
ambos de uma palavra-chave, “regimento”. Neste texto, basto-me no acima
transcrito, que propõe uma cisão entre “mundo” e “tempo”. O “mundo”, realidade
tangível à experiência do sujeito lírico, é “confuso”, enquanto o tempo mantém
sua ordem. Há, portanto, um divórcio entre tempo e espaço, duas instâncias em
desejada relação que, quando apartadas, criam no poeta uma espécie de precipício
subjetivo. A partir do “tudo posso ver” que se encontra no citado “Que poderei do
mundo já querer”, entendo real como dado espaciotemporal, mas, em “Correm turvas
as águas deste rio”, isso se complica, pois, enquanto o tempo segue seu curso,
o mundo é um “desvario” – por isso, o eu, além da natureza, se encontra perto desse
estado, e a última palavra do segundo quarteto não deixa de ser um verbo em primeira
do singular.
Por essas e outra, “parece” que Deus
“se esquece” do mundo, o que me faz repetir algo do começo deste texto: escrevi
imo para tentar indicar algo que pode ser tão superficial como qualquer
banalidade, mas cuja não evidência precisa da atenção de uns olhos afiados que
lhe permitam (seja ele, o imo, profundo ou superficial), ser visto, ou dado a
ver. A aparência é do esquecimento de Deus, dada à percepção do poeta no mundo
em “desvario”, o que enseja, por sua vez, outra aparência: nesta vida, talvez
não haja nada além da própria aparência, sem imo, sem essência, sem
profundidade. Maria Helena Ribeiro da Cunha, muito dedicada a pensar as bases
filosóficas de que Camões lançou mão, afirma: “Camões percorre o conceito
aristotélico do verosímil, que lhe abre a possibilidade de invocar
continuamente o estranhamento diante de uma realidade contraditória e não
explicada pelo entendimento” (1989, p. 97), o que o leva a formular o próprio desentendimento
diante da desconfortável realidade.
Um
detalhe desse soneto é magistral e revelador: em dois versos, “que parece que dele
Deus se esquece” e “que não há nela mais que o que parece”, há incômoda
proximidade de ocorrências do pronome “que”, não obstante a diferenças das
respectivas funções sintáticas. A aspereza sonora e visual expressa a gagueira
do poeta e do poema, incapazes de dizer maciamente de um desconcerto do mundo
que toca Deus. O atrito dos “que” reforça a incompreensão acerca desse Deus que
poderia concertar e o real, dando-lhe bom regimento: o problema é o da
incognoscibilidade de Deus ou de Sua apatia? Dizendo, ou perguntando, de outro
modo: se “parece” que “Deus se esquece” do mundo, e se, na “vida”, a aparência
(“pareça”) é a de “que não há nela mais que o que parece”, há uma essência
atrás da aparência? Não perco de vista as três ocorrências dessa ideia a partir
do décimo primeiro verso, tampouco que Deus não aparece à Máquina do Mundo. Uma
pergunta feita ao futuro: será possível investigar Deus em Camões tendo como
apetrecho inclusive a ideia de indecidível?
“Camões e o real”, Luis Maffei. Faculdade de
Letras da UFRJ, Metamorfoses (Revista de Estudos Luso Afro-Brasileiros
da Cátedra Jorge de Sena), v. 14, n.º 1, 2017. https://doi.org/10.35520/metamorfoses.2017.v14n1a10504
* * *
Tiempo-caos: angustia
en Camões
Al leer los sonetos líricos
de Luís de Camões encontramos que en su mayoría éstos se encuentran construidos
sobre una base temática bimembre. Los dos componentes de esta arquitectura son el
tiempo en su paso inexorable y el caos resultante. Esta relación dialéctica
trae consigo el contínuo mutar de los órdenes, situación que produce en el poeta
un sentimento angustioso; éste, a su vez, resultado de la anulación de aquellos
valores o normas que ofrecen al hombre seguridad en un momento histórico determinado.
Nuestro propósito es presentar
el desarrollo y tratamiento de estos elementos en el soneto "Correm turvas
as águas deste rio."(Luís
de Camões, Obras completas I. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1956, págs. 255-6).
A la vez, trataremos
de situar esta expresión poética dentro de las corrientes estético filosóficas en
que se desenvuelve el poeta.
Desde el primer verso del soneto
eje de nuestro análisis, Camões introduce la idea de movimiento que será trabajada
en el primer cuarteto. Metafóricamente se proyecta hacia el lector por medio de
dos símbolos: el río y la tierra que, al mismo tiempo, están relacionados con la
fertilidade y la vida. La imagen referente a las estaciones: "Os campos florescidos
se secaram; /Intratável se fez o vale e frio.", señala la perpetuidad temporal
de sus elementos dada su naturaleza cíclica y, por contraste, lo efímero del género
humano. Junto a este gran tema, fuerza generadora del soneto, Camões sugestivamente
desarrolla el segundo componente temático: el caos. Visualmente éste se presenta
en la figura del agua: "Correm turvas as aguas deste rio", turbulencia
que ha alterado la intrínseca diafanidad de la misma. Podemos notar que el caos
aquí está presentado a base de elementos físicos, agua-río, no por ello descartando
una posible interpretación filosófica, como veremos más
adelante.
El segundo verso establece
una concatenación de acciones que expresan movilidad: "que as do céu e as do
monte as enturbaram;" y, a la vez, se reitera la idea de trastoque en la esencia.
La lluvia cristalina produce el enturbamiento del río; del orden al desorden, del
equilibrio al caos. Como señaláramos, un segundo nivel intelectivo permite recrear
la imagen del río como símbolo de vida, enmarcando la expresión en un contexto religioso
que recuerda las coplas de Jorge Manrique. Esta interpretación nos permite establecer
un paralelo que vincula la tradición literária renacentista con la medieval.
Establecido el acercamiento
al primer cuarteto, vemos como los dos temas presentados son tratados por Camões
a dos niveles, el físico específico y el filosófico-universal.
La intensificación del primer
elemento arquitectónico la encontramos en el segundo cuarteto. El tiempo, presente
en el primer cuarteto, será objeto de análisis retrospectivo desde la inmediatez.
Presenciamos el movimento temporal hacia el pasado: "passou, se trocaram".
Camões presenta ahora la idea cambio-caso no ya de manera particular, sino
universal: "Uas cousas por outras se trocaram", estableciendo nuevamente
la relación entre causa y efecto. Lo caótioco en este cuarteto es presentado en
un marco mítico-filosófico; el destino (Fados) es el responsable del desordenado
mutar ya que, al abondonar el control del mundo, ha legado en el hombre la dirección
del mismo. Por medio de la mitología pagana Camões da la visión renacentista del
hombre como hacedor de su destino. Sin embargo, el cambio de una visión
teocéntrica a una antropocêntrica parece presentarse negativa al poeta pues el hecho
señala la pérdida de la armonía preexistente.
En el primer terceto se
intensifica la idea de organicidad y perpetuidad, relacionándola al plano temporal.
Nuevamente, el poeta señala que sólo aquello externo al hombre continúa su
estado armónico en su eterno devenir: "Tem o tempo sua orden já sabida".
El planteamiento es en estos momentos desde una perspectiva social: "O mundo
não; mas anda tão confuso". Sin embargo, Camões no parece encontrar una explicación
a dicha confusión social y, al encontrarse sin asidero ideológico expresa: "...
parece que Deus se esquece", anguistia hecha verbo que en el plano religioso
tendría ecos de blasfemia.
Esta desorientación provoca
en el poeta una actitud negativa que alcanza su punto álgido en el segungo terceto
expresándola en una visión totalizadora a base de la enumeración: "casos, opinões,
natura e uso". Después de establecidos los elementos, el poeta, como último
intento de encontrar una explicación, los recimina por ser, desde su
perspectiva, los causantes del caos del mundo. Al haber agotado las posibilidades
de encontrarle sentido al mundo concluye diciendo que la vida es sólo un cúmulo
de apariencias: "Fazem que nos pareça desta vida/Que não há nela mais que o
que parece." Expresión que encubre la anguistia experimentada ante la inseguridad
y el caos que no consigue comprender.
Qual é a realidade de Camões? Da
oposição entre o contentamento (supostamente) passado e o descontentamento
presente, do contraste entre o empiricamente impossível e o empiricamente real,
Camões encaminha-se para uma formulação metafísica do problema da crise
subjectiva do tempo psicológico e do desconcerto do mundo, numa tentativa de
escapar à conformação ou aceitação do absurdo da vida e à sua dupla verdade,
numa busca desesperada da Verdade, que o liberte de todas as aporias e o
encaminhe numa solução com sentido.
Tal é a tentativa de Camões para
resolver (pelo menos explicar) o problema do desconcerto objectivo do mundo –
aquele que se refere à distribuição desencontrada de prémios e castigos –, que
adopta uma solução mística para poder justificar a presença de acontecimentos
ou de casos que contribuem (aparentemente) para a ausência da ordem ou do
regimento do mundo visível, ao sabor dos caprichos e das incongruências da
Fortuna, e fazem com que os homens se julguem perseguidos pelos efeitos do
desconcerto de um mundo tão confuso, que parece que Deus se esquece dele (“Tem
o Tempo a sua ordem já sabida, / o mundo não, mas anda tão confuso / que parece
que dele Deus se esquece. / Casos, opiniões, Natura e Uso / fazem que nos
pareça desta vida / que não há nela mais que o que parece.”25). Mas estas
perseguições são na verdade transcendentes à compreensão da mente humana, pois
que a razão é impotente para integrar a experiência, solucionar e transcender a
aparência do desconcerto do mundo; na verdade este desconcerto não é aparente,
está antes justamente determinado pelos desígnios de Deus (desde o pecado
original): o que para Deus é justo parece injusto aos homens (“(...) dedicai,
se quereis, ao Desconcerto / novas honras e cegos sacrifícios, / que por
castigo igual de antigos vícios / quer Deus que andem as cousas por acerto. /
Não caiu neste modo de castigo / quem pôs culpa à Fortuna, quem somente / crê
que acontecimentos há no mundo. / A grande experiência é grão perigo, / mas o
que Deus é justo e evidente / parece injusto aos homens e profundo.”26).
A razão humana só pode restringir-se à
experiência fenomenológica, à observação dos factos e dos fenómenos da natureza
que envolvem todas as contradições vivenciais, conceptuais, éticas, morais e
axiológicas (“Verdade, Amor, Razão, Merecimento, / qualquer alma farão segura e
forte. / Porém Fortuna, Caso, Tempo e Sorte / têm do confuso mundo o regimento.
/ Efeitos mil revolve o pensamento / e não sabe a que causa se reporte, / mas
sabe que o que é mais que vida e morte / que não o alcança humano
entendimento.”27).
A essência do desconcerto só poderá ser equacionada pelo entendimento humano,
através da crença fideísta na acção divina. Porém, acreditar em Deus não
significa descobrir uma razão no desconcerto do mundo; significa, sim, aceitar
a sua irracionalidade no plano da experiência e confiar numa razão profunda
inacessível aos homens. Ter muito visto e experimentado é melhor, mais válido,
do que acreditar nas razões vãs dos doutos, pois que há coisas que se crêem e
não acontecem e há coisas que acontecem e não se crêem; por isso, dada a
incapacidade da razão para compreender este paradoxo entre a teoria racional
positiva e a experiência fenomenológica negativa, entre o que se passa, o que realmente
acontece, e a sede de verdade, de justiça, melhor ainda é crer em Cristo
(“Doctos varões darão razões subidas, / mas são experiências mais provadas / e por
isso é melhor ter muito visto. / Cousas há i que passam sem ser cridas, / e
cousas cridas há sem ser passadas. / Mas o milhor de tudo é crer em Cristo”.28). Ao evocar Deus
como a causa última lógica e racional do mundo, Camões não se deixa de conformar
com a ideia do absurdo; simplesmente a racionalidade que não está no mundo está
em Deus; até a necessidade de um universo (aparentemente) ilógico está em Deus;
a inteligibilidade dos actos de Deus não existe no plano racional da teoria nem
na experiência da realidade empírica mas sim na síntese mística e na solução
volitiva do plano divino. Assim, só através da superação metafísico-religiosa
do desconcerto do mundo e do dissídio vivencial, mental e espiritual é que se
pode descobrir o processo da Verdade transcendente e encontrar um sentido
ontológico e gnoseológico para a existência humana: se nos reportarmos ao mundo
inteligível através da solução derradeira que irrompe da Graça divina, o
desconcerto desaparece e o tempo fica iliminado; a saudade e a esperança perdem
a esta luz a sua natureza empírica e temporal; a alma deixa de estar sujeita
aos efeitos da mudança e inscreve-se num plano metacronológico de plenitude
escatológica. É a partir desta solução fideísta (de matriz augustiniana e não
neoplatónica ou antineoplatónica) – que não deixa de - ser também, na Lírica
camoniana, uma solução estética, pela criação fictícia de um universo utópico
de beleza, liberdade e fé, através do canto divino de libertação e ascensão espirituais
–, que Camões se encontra para resolver as suas contradições, antinomias e
tensões nas redondilhas “Sôbolos Rios” – aliás, já aludido na primeira parte da
dissertação. É através do acto volitivo da fé, só possível com a ajuda da
Graça, que Camões se separa do mundo sensível e alcança o mundo inteligível (e
não pela simples contemplação intelectual, de matriz platónica). Como afirma Aguiar
e Silva, “nas últimas quintilhas do poema exprime-se uma visão sombriamente
pessimista e uma valoração radicalmente negativa de tudo quanto procede do mundo
visível e da carne que encanta(s), / filha de Babel tão feia, ao mesmo tempo
que se exalta, num triunfalismo furiosamente penitencial, a destruição de todo
o afecto, de todo o deleite, de todo o liame, enfim, que possa prejudicar ou
retardar o apelo e a acção da Graça. O clímax deste triunfalismo exicial por
ser salvífico, encontra-se nestes versos (...): E beato quem tomar / seus pensamentos
recentes / e em nacendo os afogar, / por não virem a parar / em vícios graves e
urgentes. / Quem com eles logo der / na pedra do furor santo, / e, batendo, os
desfizer / na Pedra, que veio a ser enfim cabeça do Canto. Estes versos
significam um sacrificium intellectus (...)”29
As redondilhas “Sôbolos Rios” são por
isso uma solução de superação da síntese de fundamentação e dinâmica
neoplatónicas (tese recebida por herança cultural e desmentida pelo mundo
empírico que o poeta experimentou) e exprimem um momento dramático que se
resolve não por obra da inteligência mas por decisão e volição do recurso à
Graça Divina. Tal como o faz para se libertar da obsessão do desconcerto do
mundo, Camões escolhe (decide) crer em Cristo para poder resolver as suas
contradições e encontrar, pela reminiscência e pela estética (poética) da
utopia, a ordem do universo num lugar pré-terreno (Paraíso perdido), de onde
foi o homem feliz. Contrapondo-se à sequência de paradoxos que atestam o
desconcerto do mundo, em termos utópicos, o poeta vai projectar o sonho da
verdadeira felicidade, em busca de um sonho apaziguador de regresso às origens.
Para isso impõe-se uma recusa desse presente histórico injusto, corrompido e
pervertido, babélico, desconcertante e sufocante, e projecta-se a esperança e o
sonho de um mundo melhor no futuro – como o retorno da primitiva Idade De
Ouro.
(29)
Cf. Vítor Manuel de Aguiar e Silva, “Amor e mundividência na lírica camoniana”,
in Camões: labirintos e fascínios, Lisboa, Cotovia, 1994, pp. 176, 177.
CARREIRO, José. “Correm
turvas as águas deste rio, Camões”. Portugal, Folha de Poesia,
10-09-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/09/correm-turvas-as-aguas-deste-rio-camoes.html