Lição
sobre a água
Este líquido é
água.
Quando pura
é inodora,
insípida e incolor.
Reduzida a
vapor,
sob tensão e
alta temperatura,
move os
êmbolos das máquinas que, por isso,
se denominam
máquinas de vapor.
É um bom
dissolvente.
Embora com
exceções mas de um modo geral,
dissolve tudo
bem, ácidos, bases e sais.
Congela a zero
graus centesimais
e ferve a 100,
quando à pressão normal.
Foi neste
líquido que numa noite cálida de verão,
sob um luar
gomoso e branco de camélia,
apareceu a
boiar o cadáver de Ofélia
com um nenúfar
na mão.
António
Gedeão, Poemas Escolhidos, 12.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 2010, p. 62.
Notas:
êmbolos
(verso 6) – discos ou cilindros com movimento de
vaivém dentro dos tubos de um motor ou de uma máquina a vapor.
gomoso
(verso 14) – que destila ou contém goma; viscoso.
Ofélia
(verso 15) – personagem de Hamlet,
peça de William Shakespeare; após ser rejeitada pelo príncipe Hamlet, e ao
saber que este matou o seu pai, Ofélia enlouquece; cai num ribeiro, enquanto
apanha flores, e, cantando, deixa-se ir a flutuar ao sabor da corrente, até
morrer afogada.
nenúfar
(verso 16) – planta aquática flutuante, com
grandes flores, geralmente brancas.
Questionário:
1.
Estabeleça uma relação entre o título do poema e
o discurso do sujeito poético nas duas primeiras estrofes.
2.
Indique duas características que diferenciam a
terceira estrofe das estrofes anteriores.
3.
Proceda à análise formal do poema, no que
respeita à estrutura estrófica e aos tipos de rima.
4.
Releia a última estrofe do poema de António
Gedeão e a nota sobre Ofélia. Em seguida, observe a reprodução do quadro de
John Everett Millais.
No
poema e no quadro, o fim trágico de Ofélia é representado de modos distintos,
pondo em evidência aspetos diferentes.
Justifique
esta afirmação, com base em dois aspetos relevantes.
John Everett Millais, Ophelia, 1851-1852, Tate Britain, in www.tate.org.uk (consultado em 09/11/2020). |
Chave
de correção do questionário sobre o poema “Lição sobre a água”:
1.
Na resposta, devem ser desenvolvidos os dois tópicos seguintes, ou outros
igualmente relevantes.
A
relação entre o título do poema e o discurso do sujeito poético nas duas
primeiras estrofes pode ser estabelecida a partir dos aspetos seguintes:
− a reprodução de um
modelo de apresentação escolar, tradicionalmente associado à transmissão de conhecimentos
em contexto de aula;
− o uso de linguagem
científica (objetiva e impessoal), com a intenção de descrever as propriedades
da água (num enunciado com valor aspetual genérico).
2.
Na resposta, devem ser desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros
igualmente relevantes.
As
características que diferenciam a terceira estrofe das estrofes anteriores são
as seguintes:
− o aparecimento de
uma personagem literária com uma conotação trágica («o cadáver de Ofélia» – v.
15), que diverge da neutralidade impessoal predominante nas estrofes
anteriores;
− a presença do
discurso metafórico («sob um luar gomoso e branco de camélia» – v. 14), por
oposição ao discurso científico e objetivo das duas primeiras estrofes;
− a mudança de tempo
verbal (do presente do indicativo, nas duas estrofes iniciais, para o pretérito
perfeito do indicativo, na última estrofe), que assinala a passagem de um modo
expositivo para um modo narrativo.
3.
Na resposta, devem ser desenvolvidos os dois tópicos seguintes.
No
que respeita à estrutura estrófica e aos tipos de rima, o poema:
− é constituído por
uma primeira estrofe com sete versos (sétima), uma segunda estrofe com cinco
versos (quintilha) e, por fim, uma terceira estrofe com quatro versos (quadra);
− apresenta rima
interpolada, rima emparelhada e versos brancos.
4.
Na resposta, devem ser desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros
igualmente relevantes.
Os
aspetos diferentes postos em evidência na representação do fim trágico de
Ofélia, nas duas obras, são os seguintes:
− no poema de António
Gedeão, a morte de Ofélia é inserida num ambiente noturno, em que se destaca a
referência ao luar (que acentua o carácter trágico e simbólico do episódio
aludido); no quadro de John Everett Millais, a luz do ambiente diurno revela os
pormenores do meio natural em redor de Ofélia;
− no poema, não
ocorrem referências a traços físicos de Ofélia; no quadro, é possível observar
a beleza e a juventude de Ofélia;
− no poema, Ofélia é
descrita «com um nenúfar na mão» (v. 16), o que reforça a importância simbólica
do meio aquático; no quadro, Ofélia é representada tendo na mão (direita)
algumas flores que colhera.
Fonte: Exame Final Nacional de Literatura Portuguesa, Prova 734,
2.ª Fase, Ensino Secundário - 12.º Ano de Escolaridade, 2021. Decreto-Lei n.º
55/2018, de 6 de julho. Prova disponível em
https://iave.pt/wp-content/uploads/2021/09/EX-LitP734-F2-2021_net.pdf
e critérios de classificação em https://iave.pt/wp-content/uploads/2021/09/EX-LitP734-F2-2021-CC-VD_net.pdf
Texto de apoio | Depoimento
Só
conseguimos gostar do que conhecemos.
À
entrada da adolescência, tinha eu doze anos, um austero professor fez-me
descobrir o sortilégio das experiências de química, a tal ponto que, qual
pesquisador da pedra filosofal, Instalei no terraço de casa um pequeno
laboratório, com o beneplácito de meu pai, que tinha uma paciência infinita
para as minhas fantasias, e dei início à minha actividade experimental. Como
era de esperar, fruto da ignorância, a coisa correu mal, e depois de um
desastre sem consequências graves, fui levado a desmontar o laboratório e
esquecer as experimentações domésticas. Mas o entusiasmo ficou cá.
De entre as variadas coisas que ensinei, o que recordo com uma ternura
nostálgica são umas aulas de laboratório de química, e o prazer de fazer
descobrir aquele mundo mágico a sucessivas camadas de adolescentes. Hoje é a
lembrança dessas experiências que me faz trazer ao blog o poema de António Gedeão
(1906-1997), Lição sobre a água.
O poema, no seu propósito didáctico, assume um tradição que
remonta à medicina árabe medieval, na qual os tratados médicos (os únicos que o
mundo medieval cristão conheceu) eram escritos em verso para facilitar a sua
assimilação. O mas notável será o Poema da Medicina, de Avicena.
Ainda que o Químico, o Prof. Rómulo de Carvalho,
que escreveu poesia sob o pseudónimo de António Gedeão, tenha esquecido a
biologia e o papel da água como fonte da vida, na estrofe final do poema
associa toda esta ciência à mente humana e ao que ela pode ter de mais
dilacerante: a loucura e o suicídio por transtornos emocionais entre família,
dever, e desejo. Evoca aí o poeta a morte de Ofélia, paixão (?)
de Hamlet,
na peça homóloga de Shakespeare.
A cena descrita na última estrofe do poema foi pretexto para uma famosa pintura de John Everett Millais (1829-1896), com cuja imagem abre o artigo. A pintura original pertence à Tate Britain.
Carlos Fernandes
https://viciodapoesia.com/2017/10/12/licao-sobre-a-agua-poema-de-antonio-gedeao/
CARREIRO, José. “Lição
sobre a água, António Gedeão”. Portugal, Folha de Poesia, 11-09-2021.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/09/licao-sobre-agua-antonio-gedeao.html
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