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domingo, 21 de janeiro de 2018

Companhia das Ilhas

A Companhia das Ilhas iniciou a sua actividade de edição de livros em 5 de Maio de 2012.
É uma editora livreira independente.
Os autores, os “géneros” e as colecções são escolhas de gosto pessoal. Articulam-se com a opção de editar “géneros” negligenciados por grande parte das editoras portuguesas – poesia, teatro, ensaio, conto. Os preços justos são uma opção política editorial, não um estratagema comercial (o que implicaria a subalternização de textos e de autores). Esta política agiliza a edição e passa ao lado das máquinas (demasiado) bem oleadas do mainstream.
A Companhia das Ilhas é bem capaz de ser ilha: ilha movente que deita âncora aqui e ali: livrarias (reais e virtuais), formas várias de distribuição (mas atenta às perversidades do sistema e sempre pronta a zarpar para outras geografias).
A Companhia das Ilhas é bem capaz de ser ilha: ilha movente que deita âncora aqui e ali: livrarias (reais e virtuais), formas várias de distribuição (mas atenta às perversidades do sistema e sempre pronta a zarpar para outras geografias).

https://www.facebook.com/companhiadasilhas.lda.9/

http://companhiadasilhas.pt/





Companhia das Ilhas: a editora quer por o mundo a ler os Açores

A Companhia das Ilhas, uma editora da ilha do Pico, vai ser responsável por um dos lançamentos mais importantes de 2018: as obras completas de Vitorino Nemésio. O primeiro volume sai em abril.


Em maio de 2012, Carlos Alberto Machado decidiu fazer algo improvável: fundar uma editora na ilha do Pico, nos Açores, especializada em poesia e teatro, géneros geralmente negligenciados por quem edita livros. Talvez houvesse quem achasse que a Companhia das Ilhas estava condenada ao fracasso, mas a verdade é que, passados quase seis anos, a editora está maior do que nunca: em 2018, tenciona fazer chegar ao mercado livreiro cerca de 30 títulos, mais 18 do que os seis inicialmente lançados em 2012. Entre estes, encontra-se um dos grandes projetos da Companhia das Ilhas desde que abriu portas: a publicação em 16 volumes das obras completas de Vitorino Nemésio, considerado um dos grandes escritores portugueses do século XX.
Vitorino Nemésio nasceu a 19 de dezembro de 1901 na Praia da Vitória, na ilha Terceira, e morreu a 20 de fevereiro de 1978, em Lisboa, onde passou uma boa parte da sua vida (foi na capital que se licenciou em Filologia Românica). Romancista, poeta, cronista e académico, deixou uma extensa obra publicada da qual pouca coisa se encontra disponível no mercado. A maioria das obras editadas pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda (INCM) já estão esgotadas, e as que não estão são muito difíceis de encontrar. “Aqui fala-se muito do Vitorino Nemésio mas não há livros”, frisou Carlos Alberto Machado. A única exceção parece ser Mau Tempo no Canal, uma das grandes obras da literatura portuguesa do século passado.
Publicado originalmente em 1944, o romance foi reeditado pela Relógio d’Água em 2004, encontrando-se também disponível numa edição de bolso, mais recente, da BIS (uma chancela do Grupo Leya). Contudo, são poucos aqueles que se podem dar ao luxo de dizer que o leram. “As pessoas ouvem falar, associam logo, mas não leram os livros”, admitiu Carlos Alberto Machado em conversa com o Observador, acrescentando que, “nesse aspeto”, os Açores não são muito diferentes “de todo o lado”: “a massa não lê”. Mas este não é o único problema que existe no arquipélago açoriano, onde as livrarias são poucas e as iniciativas literárias quase nenhumas. Uma questão que o editor da Companhia das Ilhas acredita estar relacionada, entre outros motivos, “com uma dispersão grande de ilhas”, mas também com “o facto de serem ilhas em si”. “Significa que a população é pequena, apesar de tudo”, admitiu. “Há poucas livrarias. Todos estes circuitos numa zona de maior dimensão são mais disfarçados.”
É por esta razão que a pequena editora independente é um caso raro. Apesar de admitir a quase inexistência de um circuito literário nos Açores, Carlos Alberto Machado acredita que é importante fazer alguma coisa e não baixar os braços. Foi por isso que decidiu “avançar com isto”, apesar de lhe dizerem constantemente que havia “um problema de direitos de autor” e que era isso que impedia a reedição das obras do escritor açoriano. “Então pus as pernas a caminho e fui a Lisboa falar com o diretor das publicações da Imprensa Nacional.” A ideia inicial era “editar alguns livros essenciais”, mas Duarte Azinheira gostou tanto da proposta de Carlos Alberto Machado que decidiu contrapropor: e se publicassem antes as obras todas?
O editora da Companhia das Ilhas não tinham como dizer que não e foi assim que que surgiu a parceria com a INCM, que é em parte responsável pela nova edição, que tem direção científica do também açoriano Luiz Fagundes Duarte, da Universidade Nova de Lisboa (que já tinha colaborado na publicação de obras anteriores do escritor da ilha Terceira pela Imprensa Nacional). Ao todo, serão publicados cerca de 40 livros, divididos por 16 volumes, organizados por quatro séries: poesia, teatro e ficção, crónica e diário, ensaio e crítica.Porque, “apesar de tudo, Vitorino Nemésio deixou muita obra ensaística e muita crónica”, salientou o editor da Companhia das Ilhas, acrescentando que cada volume “apanha quase sempre diferentes géneros”. Contudo, dentro de cada série será sempre respeitada a ordem cronológica da primeira edição de cada livro e o texto seguirá sempre o da última em vida do autor, com ortografia atualizada, ou da edição crítica (se disponível).
Todas as obras foram publicadas ainda em vida do autor, à exceção de duas — Quase que os Vi Viver, publicado em 1985, e Caderno de Caligraphia e outros Poemas a Marga, editado pela primeira vez em 2003 pela INCM, vários anos depois de Nemésio morrer. “O completo não é completamente verdade”, admitiu o editor da Companhia das Ilhas. “Há um conjunto de dispersos que não estão reunidos em livro, em relação aos quais a Imprensa Nacional fará algum trabalho paralelamente a isto”, explicou o editor, acrescentando que, apesar disso, os inéditos do escritor açoriano “são pouquíssimos”.
Cada volume terá uma breve introdução a autoria do respetivo editor científico — conhecedor “profundo” da obra de Nemésio — que, além de fazer uma contextualização da obra ou obras, descreve ainda a história da impressão de cada livro. Apesar disso, Carlos Alberto Machado garante que “esta edição não é uma edição crítica”, cujas características costumam afastar “um pouco as pessoas”. “Esta edição não tem nada disso”, garantiu o editor. Até porque o objetivo da Companhia das Ilhas é exatamente o contrário: lançar edições “mais cuidadas do ponto de vista gráfico”, com “um novo rosto” e voltadas “para o grande público”, que incentivem a leitura de Nemésio. “Temos esperança que resulte melhor e que a obra comece a ser um pouco mais lida.”
Os 16 volumes da Obra Completa de Vitorino Nemésio serão editados ao longo de quatro anos, e a ideia é que saiam quatro volumes anualmente, mais ou menos de três em três meses. O primeiro, dedicado à poesia publicada pelo escritor entre 1916 e 1940, está a ser terminado — “está em fase de revisão”, admitiu Carlos Alberto Machado — e deverá sair algures em abril. “É um plano um bocado ambicioso”, mas Carlos Alberto Machado tem esperança que “tudo corra bem”. “A Imprensa Nacional é uma grande máquina.” Em 2018, serão ainda publicados três volumes das restantes séries, que irão incluir, por exemplo, a peça de teatro Amor de Nunca Mais (1920) e o ensaio Elogio Histórico de Júlio Dantas (1965). São os seguintes:
  • Poesia: Canto Matinal (1916), A Fala das Quatro Flores (1920), Nave Etérea (1922), Sonetos para Libertar um Estado de Espírito Inferior(1930), La voyelle promise (1938) e Eu, Comovido a Oeste (19140)
  • Teatro e Ficção: Amor de Nunca Mais (1920) e Paço do Milhafre(1924)
  • Crónica e Diário: Ondas Médias (1945) e O Segredo de Ouro Preto(1954)
  • Ensaio e Crítica: Sob os Signos de Agora (1932), Conhecimento de Poesia (1958) e Elogio Histórico de Júlio Dantas (1965)

Apostar nos escritores que os leitores esqueceram

A publicação das Obras Completas de Vitorino Nemésio é uma espécie de exceção no catálogo da Companhia das Ilhas, que tem apostado sobretudo nos autores contemporâneos, muito deles açorianos. “Somos uma editora que dá mais atenção à poesia e ao teatro”, explicou Carlos Alberto Machado ao Observador, lamentando que “quase ninguém” edita obras de dramaturgia. No ano passado, a editora publicou três obras de teatro — A dança das raias voadoras / Requests ou permissão para respirar, de Ana Lázaro e Firmino Bernardo, Três actos para um blue, de Marcela Costa e Yuck Factor, e Romance da última cruzada, de Ana Vitorino e Carlos Costa — e para este ano estão agendadas pelo menos mais cinco, entre autores portugueses e grandes nomes da literatura, que poderão ser adquiridos em livrarias um pouco por todo o país (apesar de estar sediada nos Açores, a editora não vende os seus livros apenas nas ilhas).
“Sempre fizemos uma tentativa de que os textos que publicamos tivessem uma relação com os espetáculos que estão a acontecer, que fazem parte do repertório de alguns grupos e criadores”, explicou o editor da Companhia das Ilhas. “Este ano vamos continuar nessa onda. Vamos editar alguns textos de Carlos J. Pessoa, do Teatro da Garagem, e um conjunto de textos do Rui Pina Coelho”, que colabora regularmente com o Teatro Experimental do Porto. Além disso, a editora vai dar início à publicação de alguns dramaturgos contemporâneos estrangeiros, numa parceria com o Teatro das Caldas da Rainha. Luigi Pirandello, Samuel Beckett e Jean-Pierre Sarrazac são os autores que vão sair este ano.
A poesia, outra das grandes apostas da editora, vai ter mais destaque em 2018. “No ano passado, demos mais importância à ficção, mas este ano vamos voltar à poesia”, frisou Carlos Alberto Machado, adiantando que “vamos começar já com um livro pequeno do Ramiro S. Osório, um importante poeta português”. Nascido em Lisboa, em 1939, Ramiro S. Osório viveu 22 anos em Paris, onde se exilou quando estava a terminar o curso de Arquitetura. Na capital francesa, teve oportunidade de estudar semiologia com Roland Barthes, no Collège de France, cinema com Jean Rouch, no Musée de l’Homme, e terminar o curso Arquitectura nas Belas-Artes. Trabalhou com o Herberto Hélder nos anos 70 e recebeu dois prémios da Associação Portuguesa de Escritores (APE) e várias distinções dos Ministério da Cultura. O seu espólio literário, onde se incluem 22 inéditos, começou recentemente a dar entrada na Biblioteca Nacional de Portugal.
O livro Ao largo de Delos reúne 40 poemas do poeta — “onde cabem duas Grécias e muito mais” — e chega às livrarias neste mês de janeiro, mais ou menos na mesma altura que Um mosquito num voo baixo, um “pequeno livro de poesia” de Gisela Cañamero, escritora, artes e encenadora, que já tinha publicado uma peça de teatro, Para Além do Muro, com a editora em 2015. Pena de Morte, um livro inédito de “um outro poeta, mais maduro”, Jorge Aguiar Oliveira, que também já editou com a Companhia das Ilhas, vai sair em fevereiro, alguns meses antes de um volume de poesia do açoriano José Martins Garcia, poeta com “uma obra genial que, infelizmente, não entrou na moda”, de acordo com Carlos Alberto Machado.
Ao largo de Delos, do poeta Ramiro S. Osório, é um livro “onde cabem duas Grécias”.
 A publicação está agendada para este mês de janeiro
José Martins Garcia nasceu em 1941, na ilha do Pico, de onde é natural a Companhia das Ilhas. Estudou Filologia Românica na Faculdade de Letras de Lisboa e começou a publicar, no início dos anos 70, na mítica editora Afrodite, de Ribeiro de Mello, que causou escândalo e sensação nos anos finais da ditadura salazarista com a publicação de títulos polémicos, como a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, de Natália Correia. Ganhou nome no início dos anos 80 mas acabou por cair no esquecimento depois da sua morte, aos 60 anos de idade. Considerado um dos grandes poetas açorianos do século XX, Martins Garcia nunca “entrou na moda”, como referiu Carlos Alberto Machado, que começou a reeditar a obra do poeta há dois anos. “Mesmo com a nossa edição, as pessoas leem, gostam, mas [o escritor] não entrou no circuito. Ficou um pouco para trás” e não teve a “repercussão nacional” de outros autores, admitiu o editor que, além de Poesia reunida, irá ainda editar um volume de ficção, Alecrim, Alecrim aos olhos, do mesmo autor.
Outro açoriano que faz parte do plano editoral da Companhia das Ilhas para 2018 é Manuel Tomás que, tal como Martins Garcia, também é um escritor contemporâneo. “São autores vivos e acho que isso é importante”, frisou o editor. “Aqui fala-se muito da literatura açoriana, mas os autores não são publicados ou são publicados de forma incompleta.” Para Carlos Alberto Machado, esse é o “serviço público” prestado pela editora — dar a conhecer escritores contemporâneos, naturais dos Açores, que caíram no esquecimento ou que nunca foram lembrados. Até porque há “algumas coisas bastante boas”, só que “os Açores sempre sofreram um pouco em relação ao continente, às vezes por culpa própria”. “Deixaram-se fechar”, considerou.
Foi também com esse sentido de missão que a Companhia das Ilhas se propôs a publicar a obra completa de José Sebag, um “muito importante e perfeitamente desconhecido” que “teve ligações muito próximas com o Grupo Surrealista de Lisboa”. Nascido em 1936, no Faial, Sebag publicou apenas dois livros durante a sua curta vida — Planeta Precário e Cão até Setembro — mas deixou muitos outros projetos que a Companhia das Ilhas pretende tornar públicos. “Planeta Precário é um opúsculo que ele publicou”, explicou o editor. “Ele achava que o título estava errado” e, durante uma viagem de regresso a Lisboa, “atirou os livros ao mar”. “A poesia é muito boa, sobretudo no contexto açoriano, mas não só. Estamos a trabalhar para fazer a edição desses dois livros e de outro que está inédito”, disse Carlos Alberto Machado, acrescendo que existe ainda um conjunto “muito grande” de poemas e “alguma prosa” que nunca foram publicados. A edição, que conta com o apoio da Direção Regional da Cultura, deve sair em 2019.
“Este livro contém a harmonia dos Quatro Evangelistas buscada por São Jerónimo.” É assim que a editora descreve Smalloch, de Alexandre Sarrazola, já disponível em livrarias um pouco por todo o país
Apesar de o catálogo deste ano da Companhia das Ilhas ser dedicado sobretudo ao teatro e à poesia, estão previstos alguns volumes de ficção. O primeiro, Smalloch, é de Alexandre Sarrazola — “um desconhecido” — e sai já em janeiro. Em março, será publicado Azares da poesia, de Jorge Fazenda Lourenço, especialista em Jorge de Sena. O livro — que mistura prosa e poesia — inclui “pequenos ensaios de literatura” e alguns poemas de Fazenda Lourenço e de outros autores. Um “projeto para continuar”, Carlos Alberto Machado espera publicar um livro de poesia do autor no próximo ano. Há rios que não desaguam a jusante, de Nuno Dempster, é “um romance de folgo” e vai sair mais tarde, em setembro. Ao todo, Carlos Alberto Machado espera publicar até ao final do ano cerca de 30 títulos, um número “um bocadinho complicado” para “uma editora pequena”. Mas o que interessa é não desistir.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Ary dos Santos

Um transgressor à conquista dos reinos da poesia.



Foi vendedor de máquinas de pastilhas elásticas, paquete, estivador. Libertário e explosivo, acabaria por se tornar um dos mais populares poetas e letristas do seu tempo. Recordamos José Carlos Ary dos Santos nos 80 anos do seu nascimento

Ary dos Santos (7 de Dezembro de 1936 - 18 Janeiro de 1984) afirmou com veemência a sua virilidade de poeta. Pela voz de Simone de Oliveira fez a apologia do corpo e do prazer femininos («Desfolhada Portuguesa», 1969), certamente por distracção da Censura, arrebatando o primeiro lugar no Festival RTP da Canção. Quatro festivais depois, arrasava a tourada na voz de Fernando Tordo e, na mesma faena, vencedora, investia sobre a primavera marcelista e apelava à resistência. As suas origens aristocrático-burguesas também não foram poupadas, como testemunha o conhecido poema «O Burguês», figura tratada a ferros sarcásticos. A salvo ficou A Bandeira Comunista (1977), corajosa e muito pessoalmente hasteada: «o meu comunismo vem-me por via Czarista!».
Ary dos Santos: o nome – do poeta e declamador carismático, conhecido do grande público como autor das letras de algumas das mais populares canções das décadas de ’60, ’70 e começos de ’80 – não faz jus a uma personalidade explosiva, irreverente, de humor sulfúrico e de grande turbulência imaginativa, capaz mesmo de fazer detonar «O Bombista».
Nasceu em Lisboa, um ano antes daquele que sempre afirmou. Quando, com apenas 16 anos, sai de casa em ruptura com o pai, traçara já, num soneto de um livro dedicado à mãe («pela infinita dor de a ter perdido» pouco antes), um programa de vida: «E canto na certeza do porvir,/ Que todo o mundo é meu e eu vou partir/ À conquista dos reinos da poesia!». Mal sonhava o jovem Zé Carlos que a poesia tinha reinos, uns mais nobres que outros. Natália Correia, que manterá com ele uma relação de amor-ódio, não se cansará de lho lembrar.
Insuficientemente amadurecido, claro, esse primeiro livro que quis apagado da sua bibliografia, Asas (1952), antecedendo bastante Liturgia do Sangue (1963), considerada a sua estreia literária efectiva, incubava já o seu tom excessivo e rasgado, o seu estilo transgressor, a rasar o libertário. Compreensivelmente, quando em 1966 Natália Correia preparar a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, celebrizada pelo veredicto do Tribunal Plenário, Ary dos Santos não poderá ser dispensado.
À saída de casa seguiram-se anos financeiramente difíceis, de embates quotidianos, e sucederam-se empregos: vendedor de máquinas de pastilhas elásticas, paquete na Sociedade Nacional de Fósforos, escriturário no Casino Estoril e estivador (a crer no seu testemunho, nem sempre fiel). «Isto vai meus amigos isto vai/ um passo atrás são sempre dois em frente» – dirá mais tarde no poema «O Futuro», de «Tríptico do Trabalho». Chegou a frequentar as Faculdades de Direito e de Letras da Universidade de Lisboa, mas «com toicinho e talento ambas partes» (palavras do seu «Auto-Retrato») e uma criatividade extraordinária, Ary dos Santos depressa as trocou pelo mundo da publicidade, área que em Portugal revoluciona, alcançando reconhecido êxito.
A criação poética, com comprazimento no ludismo verbal e disponibilidade metafórica, decorre paralela a uma vida profissional com cobranças difíceis e artes de espantar. Adereços Endereços (1965), Fotos-Grafias (1970), As Portas Que Abril Abriu (1975), O Sangue das Palavras (1978), 20 anos de Poesia (1983) são algumas das obras daquele que reuniu num único terceto as três linhas que reconhecidamente perfazem o todo que é a sua poesia: a interventora, a satírica e a lírica: «Poeta de combate disparate/ palavrão de machão no escaparate/ porém morrendo aos poucos de ternura».
Tinha em preparação um livro de poemas intitulado As Palavras das Cantigas (publicação póstuma, 1989), onde reuniu os melhores poemas dos últimos quinze anos, e um outro intitulado Estrada da Luz – Rua da Saudade, que pretendia que fosse uma autobiografia romanceada, mas não houve tempo. O excesso, a solidão e o gim foram a mistura explosiva.

«Quando eu morrer – afirmou um dia – vai ser em glória. Vai a classe operária toda ao meu funeral, e eu sentado no muro do cemitério, a vê-los passar!». O desígnio cumpriu-se quase inteiramente.

Teresa Carvalho, "Ary dos Santos. Um transgressor à conquista dos reinos da poesia", https://ionline.sapo.pt/537479, 2016-12-09




O Café

Chegam uns meninos de mota,
Com a china na bota e o papá na algibeira
São pescada marmota que não vende na lota
Que apodrece no tempo e não cheira
Porque o tempo
É a derrota

Chegam criaturas fatais
Muito intelectuais tal como a fava-rica
Sabem sempre de mais,
Escrevem para os jornais com canetas molhadas na bica
E a inveja (sim, a inveja!)
É quanto fica

Como quem está num chá dançante
Duas velhas de penante depenicam uma intriga
Debicando bolinhos vários
Dizem mal dos operários que são a espécie inimiga

Chegam depois boas maneiras
Com anéis e pulseiras e sapatos de salto
São as bichas matreiras que só dizem asneiras
São rapazes pescado do alto
E o que resta
É pó de talco

Chegam depois os vagabundos
Que por falta de fundos não ocupam a mesa
Têm olhos profundos,
Vão atrás de outros mundos que pagaram com sono e beleza
Mas o troco
É a pobreza

Chegam finalmente os cantores
Os que fazem as flores neste mundo de gente
São os modernos trovadores
Que adormecem as dores numa bica bem quente

Como quem está num chá dançante
Duas velhas de penante depenicam uma intriga
Debicando bolinhos vários
Dizem mal dos operários que são a espécie inimiga

Chegam depois boas maneiras
Com anéis e pulseiras e sapatos de salto
São raposas matreiras que só dizem asneiras
Sâo rapazes pescado do alto
E que resta
(Evidentemente que é) Pó de talco

Chegam depois os vagabundos
Que por falta de fundos não ocupam a mesa
Têm olhos profundos,
Vão atrás de outros mundos que pagaram com sono e beleza
Mas o troco
É sempre a pobreza

Chegam finalmente os cantores
Os que fazem as flores neste mundo de gente
São os modernos trovadores
Que adormecem as dores numa bica bem quente

José Carlos Ary dos Santos (1973)


A veia criadora e declamadora de Ary dos Santos

por Lucas Brandão, 2020-03-26

 

José Carlos Ary dos Santos fez história em Portugal. Deu a voz a muita poesia portuguesa mas, e acima de tudo, compôs imensas canções que fizeram do fado ser quem é atualmente. Acima de tudo, um género musical identitário, com um repertório relativamente amplo e bem conseguido. Para este, contribuiu muito o génio criativo, que, para além de proporcionar quatro canções que representaram Portugal no Festival Eurovisão da Canção, deu o mote para o sucesso da carreira de fadistas consagrados atualmente, como Amália Rodrigues ou Carlos do Carmo. Esquecido por via da sua morte precoce, é portador de um legado que importa ser relembrado e bem louvado.

 

  José Carlos Pereira Ary dos Santos nasceu em Lisboa, no dia 7 de dezembro de 1937. Seria nesta mesma cidade que viria a partir, aos 46 anos de idade, no dia 18 de janeiro de 1984. Nasceu numa família de raiz aristocrata, descendentes do Conde de Palmela e do Visconde de Manique, importantes figuras nobiliárquicas no século XIX. Começou a sua formação no Colégio Infante Sagres, mas o seu comportamento irrequieto e rebelde levá-lo-ia a ser expulso. Um breve período num colégio jesuíta a norte, em Santo Tirso, permitiu que regressasse a Lisboa, onde estou no Colégio São João de Brito. A morte da sua mãe e a relação distante com o pai – saiu de casa ainda adolescente – obrigou-o a procurar o seu sustento como escriturário no Casino Estoril e no ramo das vendas e da publicidade, onde usufruiu de algum sucesso criativo. Ainda chegaria a ingressar na Faculdade, em Direito e, algum tempo depois, em Letras, mas deixaria por terra os seus intentos académicos. Lançaria, porém, o seu primeiro livro em 1963, com pouco mais de vinte anos, com a coletânea de poesia “A Liturgia do Sangue”, assim como a peça “Tempo da Lenda das Amendoeiras” no ano seguinte. A poesia seria algo incentivado pela sua família desde cedo mas Ary não gostava do que escrevia, tanto que se chateou quando a sua família publicou “Asas” (1953) quando este tinha somente 14 anos. Seis anos depois, a sua vida conheceria um novo contributo ao seu caráter irascível quando se juntou à Comissão Democrática Eleitoral e ao Partido Comunista, com quem pôde usufruir de sessões de poesia que cativaram o seu gosto pela escrita e declamação.

A poesia e, a juntar a esta, a música seriam as vias pelas quais chegaria a um público cada vez mais amplo, ajudando a renovar o panorama da música portuguesa. Em muito contribuiu ter composto quatro canções bem-sucedidas para o Festival da Canção. “Desfolhada Portuguesa” (1969, interpretada por Simone de Oliveira), “Menina do Alto da Serra” (1971, na voz de Tonicha), “Tourada” (1973, cantada por Fernando Tordo), e “Portugal no Coração” (1977, dada a conhecer pela banda Os Amigos, que juntou nomes como Fernando Tordo, Paulo de Carvalho e Ana Bola) foram os quatro êxitos que compôs, com um tom ousado para então, que tocava em temas sensíveis e até tabu então. A estes, juntou-se uma relação de colaboração com Tordo que ascendeu a mais de 100 poemas para músicas. “Estrela da Tarde”, “Lisboa Menina e Moça” ou “Cavalo à Solta” são algumas das canções que viriam a advir dessa frutífera parceria, às quais se juntaram outras, como “Os Putos” ou “Quando um Homem Quiser”, aqui com a voz de Paulo de Carvalho.

 

  Músicas como “Fado do Campo Grande”, “Um Homem na Cidade”, “Namorados de Lisboa” ou “Fado Varina” dariam um contributo forte para a consolidação do fado como género musical e fariam parte de uma compilação de outra voz bem conhecida, a do fadista Carlos do Carmo, num álbum de seu nome “Um Homem na Cidade” (1977, toda ela com composições de Ary dos Santos). A particularidade da sua composição passava por um registo leve mas cuidado, atento àquilo que seria, para si, a voz de um povo e o que este merecia. “Ary Por Si Próprio” (1970) e, já depois da queda do Estado Novo, “Poesia Política (1974) e “Ary por Ary” (1979) exemplificam essa voracidade. A sua criação fora da música também merecia alguma atenção por parte da televisão, como a representação de “Azul Existe” no Teatro Tivoli a ser transmitida na RTP. A notoriedade que conseguiu fez com que se movimentasse muito dentro do país, recitando poesia e envolvendo-se em eventos protagonizados com outros cantores de intervenção, como Zeca Afonso ou José Mário Branco.

Nesta fase, já havia chegado o 25 de abril, que marcou o fim do regime ditatorial e o início da democracia, que abriu portas à afirmação da esquerda, à qual Ary dos Santos procurou emprestar a sua voz e, por vezes, a sua presença em manifestações e até assaltos de forças mais radicais. Tinha sido visado pela Censura, nomeadamente com a publicação de livros de poesia como “Adereços, Endereços” (1965), “Insofrimento in Sofrimento” (1969) e “Fotos-grafias” (1971), revendo os ganhos de abril com “As Portas que Abril Ganhou” (1975).  Cada vez mais se foi tornando numa figura incontornável da cultura portuguesa enquanto foi redigindo mais centenas de poemas e gravando inúmeras declamações, tanto de prosa como de poesia, com nomes consagrados da música nacional, como José Mário Branco ou até António Victorino d’Almeida, e os intérpretes Amália Rodrigues (destaque para “Cantigas de Amigos, álbum de 1971 que também contou com a participação da autora Natália Correia) e Tony de Matos. Um dos destaques a solo desta senda discográfica foi a leitura de “O Sermão de Santo António aos Peixes”, do Padre António Vieira, uma das obras de referência do barroco português. Antes da sua morte se fazer chegar, prepararia uma antologia dos últimos quinze anos da sua carreira lírica com “As Palavras das Cantigas” (lançado postumamente em 1984) e não chegaria a concluir a sua autobiografia, mais romanceada que meramente fictícia, em “Estrada da Luz – Rua da Saudade”.

 

  Seria vítima dos seus vícios, do tabaco e, especialmente, do álcool e de gim, tendo sido vítima de uma cirrose no início do ano de 1984. Foi uma perda inconsolável para a cidade de Lisboa e para Portugal, mas a capital do país sentiu-a como ninguém deste seu filho, que, mesmo sendo um choque para a falange mais conservadora do país – era homossexual -, granjeou um estatuto marcante para a cultura popular. Em Alfama, foi dado o seu nome a um largo e foi homenageada a sua residência de longa data, na Rua da Saudade – rua que iria dar nome ao seu retrato literário. As homenagens por parte de ex-colegas seus tornaram-se incontáveis, sendo vários os discos de homenagem ao seu trabalho e à sua pessoa, nomeadamente de Fernando Tordo ou de Carlos do Carmo. O “poeta do povo” chegaria à honra de grande-oficial da Ordem do Infante D. Henrique em 2004, no meio de todas essas considerações.

Ary dos Santos permanece, ainda hoje, como uma referência na composição musical em Portugal nos meados do século XX. Influenciou a música popular, desde as típicas baladas até ao fado, para além de se esforçar por aproximar a poesia do povo. O seu envolvimento político e social é disso exemplo, socorrendo-se dos seus dotes criativos para criar e entoar a poesia como música, com uma pujança que ressoava na voz estridente de Ary. A sua memória, por mais que esquecido seja o seu nome, permanece bem viva, ainda ao som dos atuais fadistas, mas também de outros artistas lusófonos, admiradores da sua veia lírica. Uma veia que criou e declamou com a força de poucos e com a virtude de ainda menos.

Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/a-veia-criadora-e-declamadora-de-ary-dos-santos/


 (Última atualização: 2022-07-20]

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Há livros que nos podem fazer mal?


Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica: dos Cancioneiros Medievais à Actualidade.
Organização de Natália Correia e  ilustrações de Cruzeiro Seixas


Há um movimento de estudantes universitários norte-americanos a pedir que os protejam dos conteúdos de alguns livros que consideram perigosos. Em causa estão sobretudo clássicos da literatura grega e romana. A psiquiatra Manuela Correia fala em “infantilização” da sociedade.

Em Lisístrata, comédia do ano 411 a.C., o dramaturgo grego Aristófanes põe na voz de uma mulher um apelo à paz: enquanto durar a guerra entre Atenas e Esparta, as atenienses recusam ter sexo com os seus maridos. O livro seria pouco depois proibido naquela que é uma das primeiras censuras literárias do Ocidente. Perigoso por propor uma alteração à norma de comportamento.
Muitos séculos depois, noutro país também do Ocidente, um grupo de estudantes universitários pede para que alguns clássicos da literatura, sobretudo da antiguidade grega e romana, que fazem parte dos programas curriculares, surjam com uma advertência na capa, chamando a atenção para o “perigo” para o “bem-estar mental” que representam os seus conteúdos, potencialmente causadores de sofrimento, trauma ou angústia.
Metamorfoses, do poeta latino Ovídio, é uma das obras que esses estudantes consideram conter “matéria perigosa”. O poema dividido em 15 livros é tido como um dos livros mais influentes da cultura e civilização ocidentais e narra a transformação exercida pelo tempo no homem e na sua história, cruzando ficção e realidade, e apresentando os mitos como essenciais na evolução humana. Deuses, homens, plantas, animais, elementos convivem fantasiosamente em histórias de amor, traição, incesto, punição, violência, morte, redenção, sem qualquer tipo de apreciação moral. Entre estes “interditos, está a descrição do rapto de Prosérpina, mulher de Plutão e filha de Deméter, que Ovídio começa a narrar assim: “Um dia colhia violetas e brancos lírios, e ia enchendo, com entusiasmo juvenil, cestas e o regaço, à compita com as amigas a ver quem colhia mais, quando Dite a viu e, quase em simultâneo, se enamora e rapta-a: tão precipitado era o seu amor. Aterrada, desata a deusa a chamar, com voz desolada, pela mãe e as companheiras, sobretudo pela mãe. Rasgando a parte de cima do vestido, a túnica soltou-se e as flores colhidas caíram por terra. E tal era a candura que presidia aos seus anos de menina, que até também a perda das flores consternou a rapariga.” (Cotovia, 2007)
O pedido aconteceu no início do Verão passado, veio dos estudantes da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, uma das mais prestigiadas do país, e foi rejeitado pela direcção, mas é simbólico em relação ao que se está a passar em muitas universidades nos Estados Unidos. Em Setembro do ano passado, a revista Atlantic publicava um artigo com o título O afago da mente americana, escrevendo que, “em nome do bem-estar emocional, os estudantes universitários exigem uma protecção cada vez maior em relação a palavras e ideias de que não gostam”, o que está, dizem os autores do texto, “a ser desastroso para a educação e para a saúde mental”. E dão mais exemplos. Os estudantes de Direito de Harvard pediram que não fosse ensinada a lei sobre violação. O problema, diziam, estava na palavraviolação (rape), que podia reacender o trauma em estudantes que pudessem ter sido vítimas desse tipo de abuso.
Absurdo? Os pedidos de protecção “literária” sucedem-se. Pouco tempo depois, a Aeon publicava um ensaio, partindo do facto de que a ideia de que os livros são perigosos é tão antiga como a literatura. “Não se fala tanto de ‘perigo’ político, mas moral ou mental. O romance de Chinua Achebe Quando Tudo se Desmorona (1958) está também entre os problemáticos por poder despertar instintos racistas ou reavivar o sofrimento de quem foi alvo de racismo; O Grande Gatsby, por estimular violência doméstica; Mrs Dalloway, de Virginia Woolf, por poder levar ao suicídio, assim como A Piada Infinita, de David Foster Wallace, por narrar os sintomas da depressão crónica experimentada pelo autor e que o levaria a suicidar-se em 2006, dez anos após a publicação do livro. Fala de uma sensação que “é o motivo pelo qual quero morrer”. E define-a assim: “É como se não fosse capaz de encontrar nada fora dessa sensação e por isso não sei que nome lhe posso dar. É mais horror que tristeza. É mais horror. É como se uma coisa horrorosa estivesse prestes a acontecer, a coisa mais horrível que se possa imaginar, não, pior do que se possa imaginar porque há também a sensação de que é preciso fazer qualquer coisa de imediato para se deter aquilo mas não se sabe o que se deve fazer e de repente está a acontecer, durante o tempo todo, está prestes a acontecer e ao mesmo tempo está a acontecer.” (Quetzal, 2012)
Os campus universitários americanos parecem viver no pânico do trauma, na obsessão da linguagem politicamente correcta, de tal forma que — e lembra ainda o artigo da Atlantic — humoristas como Jerry Seinfeld estão a recusar dar espectáculos nas universidades, alegando que os estudantes “não são capazes de suportar uma piada”.

“Infantilização” da sociedade

“Estamos perante uma excessiva psiquiatrização da sociedade”, afirma Manuela Correia, psiquiatra, psicoterapeuta, com um vasto trabalho e investigação desenvolvidos na área do suicídio na adolescência e juventude, e uma leitora voraz. Conhece todas as obras aqui apontadas como “perigosas” e tenta responder a uma questão muito simples: há livros que nos fazem mal? Ou — recuperando a terminologia usada por quem pede protecção — há livros “perigosos”? E a outra pergunta que pode precisar de resposta mais complexa: o que é que este medo pode representar, não apenas para quem dele padece, mas para a sociedade que o alimenta e dele parece alimentar-se?
“Pode falar-se em três categorias de interditos: o político, o religioso e o moral. E no moral está o uso de drogas, o apelo à violência, a sexualidade, o incesto, a prostituição, os termos impróprios. E parece ser aqui que estamos neste momento”, diz, remetendo para um termo que vem da sociologia, e que no seu entender está a regressar: anomia social.
O conceito desenvolvido por Émile Durkheim no final do século XIX no livro O Suicídio (1897) refere-se à ausência ou falta de normas ou regras numa estrutura ou grupo social. “Foi criado numa altura em que por diminuição do impacto religioso e dos valores das sociedades conservadoras, com a pulverização de valores através do desenvolvimento de uma economia capitalista e da razão, houve um aumento dessa regulação. Houve uma anomia social. É um conceito que tem a ver com a perda da identidade nas sociedades e dos seus objectivos. A religião, bem ou mal, dá um fim, um sentido”, contextualiza.





A psiquiatrização excessiva do comportamento humano é a forma que as sociedades capitalistas — porque formalmente são laicas — têm para controlar a tal anomia social. Antes, ela era controlada pela religião e por um poder político muito vertical. Hoje, nas democracias, o poder político é mais transversal, e aí, como já aconteceu há uns anos, patologiza-se o comportamento e patologiza-se uma pessoa que saia da norma. É uma forma de controlar a sociedade. O movimento dos anos 1960 da antipsiquiatria tinha que ver com isso. A psiquiatria funcionava como polícia da sociedade.”
Esse controlo pela psiquiatria está a voltar através de uma tentativa de normalizar os comportamentos. “Para mim, os casos mais graves, nem são os adolescentes, mas as crianças”, afirma. Leva a que, por exemplo, “se confunda muitas vezes uma criança irrequieta como hiperactiva” e lhe seja “medicada Ritalina”; ou a temer-se que contos clássicos como os dos Irmãos Grimm ou de Andersen possam ser traumáticos.
Uma das primeiras vezes em que se associou uma obra literária à prática do suicídio e isso deu lugar a uma investigação do tipo causa-efeito foi com A Paixão do Jovem Werther, de Goethe (1774, obra do romantismo que faz parte do Plano Nacional de Leitura). Ao longo do romance, o desespero toma conta do protagonista nas cartas que faz chegar ao narrador. “Ah!, por mais de cem vezes já peguei uma faca para dar vazão a este coração amargurado. Fala-se de uma raça de cavalos nobres que, quando são terrivelmente perseguidos e encurralados, arrebatam eles mesmos, por instinto, uma veia para facilitar a respiração. Sinto-me assim muitas vezes e gostaria de abrir uma veia que me desse a liberdade eterna…”
Manuela Correia refere-a como iniciática no estudo da relação entre literatura e suicídio. “Foi a partir daí que se começou a estudar o efeito de contaminação. O livro foi retirado em alguns países, mas voltou. Nunca ficou cientificamente provado que potenciasse esse efeito”, refere, salientando que essa ideia de contaminação está directamente associada à adolescência. “É a fase da formação, ainda não há um código de valores. Na adolescência temos várias tarefas, que passam pela alteração da relação com os pais, com os pares e a aquisição de uma identidade, onde está também a identidade sexual. Quem sou eu? O que quero ser? Qual o meu código de valores? A maior parte dos adolescentes são saudáveis, mas há umas franjas, mínimas em termos percentuais. E há um facto: esses jovens quando têm sofrimento psicológico, nomeadamente depressão, podem cometer suicídio. Em 90% dos casos de suicídio, há doença psiquiátrica por detrás, um sofrimento mantido: depressão, esquizofrenia, mania. Não há nunca uma causa única”, muito menos um livro.
“Nos adolescentes acontece muito mudarem de comportamento”, afirma. “Ou se isolam, ou mudam de grupo, ou têm vários comportamentos de risco mantidos no tempo, mudam os hábitos de vestuário, começam a ler livros e a ouvir músicas ligadas à temática da morte. São sinais de alerta”, explica, enquanto chama a atenção para o perigo de se achar que toda a sociedade é potencialmente composta por suicidas, deprimidos, traumatizados a quem um livro ou uma palavra num livro pode desencadear a acção limite.
“Os livros em si não são perigosos, eles fazem parte de uma constelação de comportamentos”, conclui, antes de voltar a exemplos que podem determinar uma incapacidade de lidar com o real que vem da infância e de uma sobreprotecção ligada ao medo dos pais de que a criança sofra.
Daí a preocupação de alguns educadores com os contos de Andersen ou do Grimm. “Falam de temas que as pessoas acham que não se deve falar às crianças, como a morte ou a bruxa má, e também em transgressões. Há nas crianças, naturalmente, uma ideia de liberdade ligada à transgressão. Mas varia de cultura para cultura. Por exemplo, na China, Alice no Pais das Maravilhas, de Lewis Carroll, está proibido, porque os animais têm equiparação aos humanos. As sociedades sempre controlaram e é importante que o colectivo tenha um autocontrolo. Mas…”
É neste “mas” que reside a resposta, que, no entender de Manuela Correia, não deve passar pela restrição da leitura, muitos menos desses contos que, entre outras coisas, ensinam o medo. “Os pais têm medo que as crianças tenham medo, mas é muito importante a aprendizagem do medo. Não faz mal que a criança chore e é bom que tenha medo.”



O que é o medo? “O medo é qualquer coisa que está ligada ao desconhecido e ao perigo e quando aprendemos isso adquirimos capacidades de lidar com ele. Há muitos estudos sobre os contos infantis. Os meninos que vão pelos caminhos à aventura, pelo desconhecido, deixam lá os sinais, mas depois acontece qualquer coisa e a marca desaparece e eles ficam perdidos. A criança chora. Não tem mal. O problema é quando a criança tem essa vivência sozinha. Antigamente, essas vivências eram acompanhadas pela família. Hoje a criança está muito sozinha. Está com os pais de forma muito instrumental, vestir, pequeno-almoço, ir para a escola, e à noite, despir, banho, trabalhos de casa, jantar, deitar. Há um estilo de vida que põe as crianças em frente à televisão, aos smartphones, no Facebook, sem o contacto olho a olho.” Estão ocupados. Este vocábulo, no entender de Manuela Correia, é o contrário de outro essencial para o desenvolvimento: o ócio, o tédio. “Os jovens hoje não têm tempo para ter tédio. O bom tédio, o bom ócio. Têm o tédio de ‘não sei o que é que hei-de fazer’. No bom tédio, uma pessoa pode estar sentada no jardim ou no sofá, uma hora, a cabeça a divagar. Isto é o ócio. Não há tempo para isto, para elaborar.”
Grupos como os dos universitários norte-americanos ou as associações de pais de muitas escolas surgem com este tipo de solicitação proteccionista em substituição de um papel que antes pertencia a um estado autoritário ou à religião. Segundo Manuela Correia, são o reflexo — no caso dos estudantes — e a origem — nos casos das gerações mais velhas (pais e avós) — de uma “infantilização” da sociedade; a sociedade que não consegue lidar com o medo ou com a pluralidade da linguagem.
Mas há também factores económicos determinantes, defende. “A própria austeridade reforça a anomia social, ou seja, a desagregação do tecido social. Mas o bom de tudo isto é que quando há muito movimento num sentido há tendência para haver um outro no sentido contrário para que essa anomia não seja excessiva e a sociedade possa estar autocontrolada, auto-regulada. Porque a sociedade como um todo também se auto-regula. É viva”, contém o problema e a sua solução.
Mas nunca se assistiu, reforça, ao pedido de protecção contra a liberdade de expressão por parte de uma comunidade de estudantes de elite, como está a acontecer nos Estados Unidos.

Os “transgressores”

A História tem casos de livros proscritos, na filosofia, na política, na ciência, os livros-ameaça ao estipulado. O Bom Selvagem, de Rousseau, Cândido, de Voltaire. “Eram indivíduos de uma elite que tinha conhecimento. E eram vistos como perigosos porque pensar é muito perigoso. Pensar dá poder. E por que é que normalmente são os grandes clássicos que agora são questionados por estes estudantes? Porque são os grandes clássicos que tratam os grandes temas, são os temas da filosofia. O que é que trata o James Joyce? Ou o Homero? Tratam a ideia de liberdade, e a liberdade é muito perigosa. A partir do século XIX, quando surge o romance, os interditos deixam de ser tanto os cientistas e os filósofos — com excepções como a de Charles Darwin [contestado pelo Criacionismo que rejeita a ideia de o homem e o universo terem sido criados por uma entidade que não sobrenatural].
A Origem das Espécies, de Darwin, foi retirado do programa oficial das escolas norte-americanas porque “a força do movimento Criacionista no país é muito grande”, lembra a psiquiatra, sublinhando “que nem a intenção do Presidente Obama em repor o livro como básico escolar conseguiu mudar as coisas”.


Um exemplo diferente é o que decorre do uso de linguagem considerada imprópria e um perigo em si mesma. “No Brasil, chegou a ser publicada uma versão light de O Alienista [1882], de Machado de Assis. Ele fala da mulher da vida airada, que é uma prostituta. Há livros que foram proibidos porque havia a palavra ‘puta’. Também aconteceu nos EUA. É a linguagem que ou ofende a religião ou o poder político, ou os costumes. E depois há a ideia de que as crianças não compreendem, o que é perigoso porque a linguagem e o pensamento estão ligados. Por isso a questão da língua é muito importante. Os adolescentes em todas as gerações têm códigos próprios e quando acaba a adolescência ficam com a linguagem de um adulto. Mas agora esses estereótipos estão a generalizar-se a todas as faixas etárias. Desenvolvemos a linguagem se pensarmos e, se tivermos uma linguagem rica, também pensamos melhor. Há um empobrecimento do vocabulário e um empobrecimento do pensamento.”
E há os livros “tabu” pela temática, periodicamente mais ou menos sensíveis conforme a geografia e a sensibilidade da comunidade. “Agitam as mentes”, comenta Manuela Correia.
Virginia Woolf está entre as escritoras mais visadas. “Ele — pois não poderia haver dúvidas quanto ao seu sexo, embora a moda da época contribuísse até certo ponto para o dissimular — estava a golpear uma cabeça de mouro suspensa das vigas do telhado”, primeira frase de Orlando, romance de 1928 que “pode entrar na construção social do género”, exemplifica a psiquiatra que vai à biografia da escritora, que “tinha relações amorosas com a Vita Sackeville-West, uma grande amiga e uma grande paixão. Teve uma depressão grave, o diagnóstico não está bem definido, mas havia uma esquizofrenia, porque às vezes ouvia vozes”.
Há mais. Anna Karenina, de Tolstoi, O Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, as obras de Kafka, Ulisses, de James Joyce. Todas são apontadas como exemplos de conterem “elementos perturbantes”. “Todos os grandes autores pegam nas questões existenciais: o quem sou eu, o que eu quero ser, como é que eu gostaria de ser visto pelos outros, como gostaria de me ver, ter um lugar. Por exemplo, o lugar de Fernando Pessoa era completamente conceptual, interior e feito de vivências que expressava através da língua. Foster Wallace descreve a depressão tal como ela é, de forma crua, dorida. Mas, do ponto de vista clínico, estes livros nunca são perigosos. Podem é fazer parte da tal constelação de comportamentos de um jovem já em sofrimento. Impedir os livros da grande literatura, desde a infância, é infantilizar. A infantilização traz um grande perigo: o de haver outra vez sociedades concentracionárias e com um poder vertical.”
A literatura “ajuda a construir a identidade. É fundamental. Se eu pensar que a ideia de democracia, a cultura humanista, a valorização da ciência, a relação com o outro, se regem por um determinado código de ética e de valores, tenho de defender o acesso aos bens culturais, um direito na Declaração Universal dos Direitos do Homem. E tenho de aceder aos cânones dessa cultura. Desde o Homero, desde a Epopeia de Gilgamesh [poema da antiga Mesopotâmia, actual Iraque] que trata da condição humana, da relação interpessoal e a ideia da viagem, que é a ideia de conhecer, ir para o desconhecido, ir para o medo. E depois os interditos: o suicídio, o incesto, a sexualidade, os valores. Todos os livros canónicos são uma preparação para a vida. E, se pudermos, ler os clássicos das várias culturas. Porque somos isso tudo.”



quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Natália Correia: Figura emblemática da cultura e da afirmação da identidade açoriana



 Natália Correia: Figura emblemática da cultura e da afirmação da identidade açoriana

Por: António Valdemar


A primeira fase da vida e obra de Natália Correia – decorreu dos anos 40, ao início dos anos 50. Concilia o jornalismo, a literatura e a política...


Natália Correia pertenceu ao reduzido número de mulheres que basta só dizer o primeiro nome para as identificar na amplitude da sua criação artística e literária e na singularidade da sua dimensão humana – Natália, Sophia, Agustina, Amália.
Nasceu nos Açores, na ilha de São Miguel, na Fajã de Baixo. Viveu com a mãe e a irmã Carmem, ora na Fajã de Baixo, ora em Ponta Delgada. Pai e mãe entraram em rutura quando Natália tinha alguns meses. O pai emigrou para o Brasil.
A mãe de Natália, Maria José Oliveira professora primária, mulher formada nos valores cívicos e culturais da Iª Republica, com formação laica e tendências libertárias – o que era raro na época - além do exercício do magistério, colaborou em jornais e revistas, frequentou tertúlias, publicou dois romances mas, desde sempre, preocupou-se com a educação das filhas incutindo-lhes os princípios da democracia e a aproximação com a modernidade.
Em 1934 a família instalou-se, definitivamente, em Lisboa. Maria José Oliveira quis dar às filhas outros horizontes. Recordou Natália: “Sendo uma intelectual que se não pode realizar, inteiramente, devido ao meio e às circunstâncias procurou preparar-nos». Entendia que «o desenvolvimento espiritual da mulher corresponde a uma atitude social». A permanência em S. Miguel, mesmo na cidade de Ponta Delgada, não reunia condições «para nos desenvolver espiritualmente». Era «um meio muito exíguo».
Natália Correia ainda passou pelo Liceu de Ponta Delgada; frequentou em Lisboa, o Liceu Filipa de Lencastre, mas sem qualquer aproveitamento. Mostrou-se refratária aos métodos de ensino. Ela própria o declarou: «Havia uma situação de disciplina, de imposição e de opressão incompatível com a minha maneira de ser. Nessa altura, julgava eu que tal atitude era determinada por preguiça ou relutância aos estudos. Agora sei que as minhas razões eram outras. Descobri, mais tarde, particularmente em trabalhos para que se exigiam disciplina e estrutura, que não podia vergar-me a regras que me fossem impostas de fora. Eu é que as tinha de criar».
Resultou, portanto, num «fracasso total» «a razão imediata da vinda para estudar em Lisboa». A passagem de Natália pelo liceu foi, segundo as suas palavras, de «ave migratória». O problema não se colocava só em São Miguel. Em Lisboa o rumo era o mesmo deparou com os mesmos métodos. A escola não era um espaço de formação e transformação coletiva; nem um lugar de esperança e de procura, de encontro aberto à pluralidade do saber e à difusão do conhecimento.
Natália Correia tem uma formação autodidata. Também aprendeu francês e inglês que falava e escrevia com desembaraço.
Apesar de pertencer a uma família muito católica e muito tradicional Maria José Oliveira ultrapassou a rotina que se circunscrevia ao exercício burocrático do magistério. O ensino era um ato de participação e de cidadania, a fim de pensar e interrogar o mundo.
Teve relações pessoais e literárias com figuras da oposição democrática, entre as quais o jornalista Carvalhão Duarte que viria a ser diretor d’A República. Desde muito jovem, Natália conviveu, com estas personalidades e através delas privou com muitas outras que contribuíram para a sua afirmação pessoal, literária e política.
A partir de meados dos anos 40, tornou-se uma figura de Lisboa ligada aos principais acontecimentos literários e políticos que marcaram, decisivamente, a segunda metade do século XX.
Está perpetuada na toponímia de Lisboa, da Grande Lisboa, da ilha de São Miguel e de outras ilhas dos Açores. O seu nome também se encontra inscrito e com todo o relevo na Fajã de Baixo. E ainda em diversas outras bibliotecas, como é o caso de Carnide e de Odivelas. Tem sido homenageada por universidades públicas e privadas. Foram assinalados, em 2013, com numerosas manifestações o 20º aniversário da morte e os 90 anos do nascimento de Natália Correia. Assumiram, contudo, especial relevo as comemorações que se efetuaram nos Açores promovidas pela Secretaria Regional da Educação, Ciência e Cultura, desde a ilha de Santa Maria até à ilha do Corvo.
Natália colocou, no local mais íntimo de trabalho da sua casa de Lisboa, o mítico 52, 5º da rua Rodrigues Sampaio, entre a rua de Santa Marta e a Avenida da Liberdade e onde viveu 40 anos, as imagens tutelares de Antero, de Pessoa e de outros mestres de quem recebera ensinamentos, conselhos e advertências: António Sérgio e Almada Negreiros. Entre eles destacava-se a mãe e um amigo da mãe, Cardoso Martha, que lhe deu explicações de português, francês e história. Antigo seminarista, com profundo conhecimento das humanidades clássicas, da literatura portuguesa e das várias literaturas de expressão românica, Manuel Cardoso Martha (1882 – 1958) era um erudito, um bibliógrafo, um bibliófilo, um colecionador de manuscritos e de livros que adquiriu de muitos modos, sem excluir apropriações ilícitas, em livrarias, em alfarrabistas e até em casas de amigos que visitava e lhe davam almoço ou jantar a troco de pilhérias que era exímio em narrar à sobremesa. Na sua maioria integram grande parte da «Antologia da Poesia Erótica e Satírica» que Natália publicou, nos anos 60, com êxito retumbante e foi apreendida pela PIDE e pela Censura.
Natália, em matéria de formação intelectual reconhecia, no entanto, que ficara a dever à mãe, na infância e na adolescência, os conhecimentos fundamentais para entender a vida e aceder à cultura. Lembrava, com frequência, que a mãe fizera despertar nas filhas o amor pelos livros e pela leitura, para ajudar a ver o mundo com outros olhos e de vários prismas; e, ainda, o sentimento da música, a história grega e romana, a explicação das fábulas, a decifração das figuras mitológicas e reais.
Se a identificação de Natália Correia com Lisboa foi muito intensa, a relação com os Açores foi igualmente profunda. Jamais esqueceu o famoso cozido das Furnas, os inhames e maçarocas de milho «cozidos na terra fervente e mole à beira da Lagoa e que depois comemos numa mesa de pedra sob as plumas dos fetos; por entre colinas de pedra-pomes, líquenes, musgos, mantos verdes que pendem dos ribanceiros onde se abrem as alas rosadas e azuis das hortênsias».
Uma coisa foi sempre evidente: Natália nunca se desligou das raízes. O seu percurso de quase sete décadas, cabe nestes versos: «Para Lisboa me trouxeram/ não de uma vez e embarcada:/ minha longa matéria foi/ pouco a pouco transportada./ Recém-vinda de ficada/em morosa maravilha, / sempre a chegar a Lisboa/ e sempre a ficar na ilha».
A primeira fase da vida e obra de Natália Correia decorreu dos anos 40, ao início dos anos 50. Concilia o jornalismo, a literatura e a política. Frequentou os meios políticos da oposição; colaborou no Rádio Clube Português. Teve o estímulo de dois intelectuais micaelenses radicados em Lisboa: Rebelo de Bettencourt e, sobretudo, do Padre Diniz da Luz que já tinha grande evidência no jornalismo.
Assinou, em 1945, as listas do MUD. Todavia, ao contrário da maioria dos intelectuais e políticos da sua geração – por exemplo Mário Soares, Aboim Inglês, Salgado Zenha - não ingressou no MUD Juvenil, dominado pelo Partido Comunista.
Escreveu no semanário O Sol fundado e dirigido por Alberto Lelo Portela, militar de prestígio que fez parte dos primórdios da aviação e que se destacou nas lutas da oposição ao salazarismo. A chefia da redação era assegurada por Alves Morgado (1901 - 1980) um jornalista profissional, conhecedor das regras do ofício na elaboração do noticiário, nos contatos com a tipografia, na revisão de textos de jovens colaboradores. Reunia, porém, a colaboração de grandes nomes. António Sérgio foi um deles e exerceu logo influência intelectual em Natália Correia.
Natália escreveu sobre política nacional e internacional: analisou a influência da guerra de 1939 a 1945, em vários setores; condenou a orientação de Hitler, os efeitos do nazismo, os fundamentos do Reich, as extensões do fascismo na Europa, a sua disseminação em Portugal, na classe politica, militar, na literatura e na arte.
Teve acesso aos preparativos da candidatura de Norton de Matos à Presidência da República que se apresentará um ano depois. Para o jornal o SOL entrevistou o general na sua casa em Ponte de Lima. Mais tarde, em 1958, participou na candidatura de Humberto Delgado à Presidência da República. Em 1969 esteve com Mário Soares e Salgado Zenha na CEUD Apoiou muitos outros movimentos, entre os quais o assalto ao Santa Maria comandado por Henrique Galvão e que deu lugar a um dos seus livros Canto do País Emerso, logo apreendido pela Pide e pela Censura.
Tem neste poema um dos mais vibrantes ímpetos de reivindicação das suas origens: Não sou daqui. Mamei em peitos oceânicos/ minha mãe era ninfa, meu pai chuva de lava/ mestiça de onda e de enxofres vulcânicos/ sou de mim mesma pomba húmida e brava. (….) «Não sou daqui. A minha pátria não é esta/ bússola quebrada dos impulsos./ Sou rápida, sou solta, talvez nuvem/ nuvens minhas irmãs que me argolais os pulsos/ tomai os meus cabelos! Levai-os para a floresta.
Natália integrou o Canto do País Emerso no «desafogo de uma tendência que se acentua nas minhas últimas produções, que é a compreensão de que a poesia se encontra ligada aos momentos mais importantes da vida coletiva e individual» e, por outro lado, «numa temática portuguesa compreendida entre a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto e a Ode Marítima de Fernando Pessoa/ Álvaro de Campos».





Os primórdios literários de Natália Correia
acusam a influência do neorrealismo...

Os primórdios literários de Natália Correia acusam a influência do neorrealismo. Desta fase avulta, nomeadamente, o romance Anoiteceu no Bairro. Demarcou-se, todavia, deste movimento literário e político, no início dos anos 50. Sem profissão de fé declarada ficou próxima do surrealismo. Classificou «uma etapa importante senão fundamental da poesia» do século XX. Luís Pacheco editor dos surrealistas publicou os seus livros Dimensão Encontrada (1957), Passaporte (1958), Comunicação (1959) e Canto do País Emerso (1961). Com Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, Alexandre O’ Neil, Manuel de Lima, Mário Henrique Leiria manteve relações pessoais literárias e artísticas.
Os vínculos são visíveis, nunca os negou, mas costumava dar esta explicação: «se existe qualquer relação entre a minha poesia e o surrealismo é francamente a posteriori, isto é para os que quiserem vê-la. Quanto a procurarem-me antecedentes, também temos por cá outros mais à mão que foram surrealistas sem pensar nisso: Gomes Leal e Sá Carneiro».
Os momentos altos da obra de Natália – que não é regular e daí a sua autenticidade e a sua força desmedida – multiplicam-se a partir de Dimensão Encontrada (1957), Passaporte (1958), Comunicação (1959), editadas por Luis Pacheco nas edições Contraponto.
Entre as numerosas controvérsias que Natália Correia desencadeou, antes e depois do 25 de Abril, destacam-se a publicação, no final do salazarismo do já referido Canto do Pais Emerso e da Antologia da Poesia Erótica e Satírica (1965) e, na «primavera marcelista» a responsabilidade editorial das Novas Cartas Portuguesas da autoria de Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno. Ambas apreendidas pela PIDE e pela Censura e ambas julgadas no Tribunal Plenário de Lisboa.
Embora nunca se tivesse submetido à disciplina de escolas, de grupos e de partidos, Natália Correia foi uma das personalidades da sua geração que, (salvaguardadas as diferenças de opinião e de temperamento), era reconhecida em todos os setores.
Natália Correia celebrou a vida, como expressão de euforia, de afirmação de coragem, de libelo acusatório. A sua poesia é dominada pelo arrebatamento lírico, o ímpeto romântico, a exuberância barroca, que se cruzam com a força dos símbolos e a profusão das metáforas.
Contudo, também na linhagem das Cantigas de Escarnio e Maldizer, Natália Correia disseca o poder. Não poupa a aristocracia decadente e com prosápias; a vulgaridade burguesa, os vícios e as vilezas dos novos e novíssimos ricos, os políticos arrivistas e corruptos, as manifestações de ignorância e fanatismo. Assim criou as Cantigas de Risadilha.
Juntamente com as irreprimíveis manifestações de açorianidade, Natália Correia estabeleceu uma relação profunda com Lisboa e a grande Lisboa. Em 1971, com a escultora e poetisa Isabel Meireles criou uma sociedade para instalar um bar, restaurante/ café concerto, no largo da Graça, no rés-do-chão da Vila Souza, um edifício histórico do bairro e da própria cidade. Ficou a chamar-se o Botequim, um nome com forte carga literária, politica e boémia, que remontava aos primeiros cafés de Lisboa, do século XVIII, ao tempo de Bocage, de José Agostinho e outros representantes das Arcádias, do pré-romantismo, dos antecedentes culturais e políticos da revolução liberal.
Para o Botequim – e o escritor e jornalista Fernando Dacosta analisou todos estes aspetos num livro notável, acerca da vida e da obra de Natália Correia - se transferiram surrealistas, e poetas e escritores de muitas outras tendências. Políticos de todos os quadrantes. Deputados, ministros, atuais ou futuros presidentes da República. Representantes do movimento da independência dos Açores. Convergiram no Botequim, devido à personalidade magnética de Natália, as sucessivas fases do processo revolucionário e contra revolucionário que surgiu com o 25 de Abril. A presença diária de Natália irradiou no Botequim durante mais de 20 anos, em noites memoráveis.
Em 1980 ingressou com Francisco Sá Carneiro, na Aliança Democrática. Foi, entretanto, deputada e assumiu posições polémicas, nomeadamente a favor do aborto, que não se identificavam com a linha de orientação estatutária e religiosa do PSD e o CDS. A sua trajetória partidária terminou no PRD, o grupo política que se constituiu sob a égide de Ramalho Eanes.
Ficaram célebres os versos, de Natália Correia ao comentar o deputado do CDS, João Morgado por ter proferido, auge do debate parlamentar da legislação sobre o aborto, afirmações que deram brado na época, nomeadamente: «o ato sexual é para fazer filhos». Natália não se conteve e escreveu, de jato um poema que circulou, em todo o País, até porque sairia, no dia seguinte, no Diário de Lisboa: «Já que o coito – diz Morgado -/tem como fim cristalino,/preciso e imaculado/fazer menina ou menino;/e cada vez que o varão/sexual petisco manduca,/temos na procriação/prova de que houve truca – truca./ Sendo pai só de um rebento, /lógica é a conclusão/ de que o viril instrumento/ só usou – parca ração!-/uma vez. E se a função/faz o órgão- diz o ditado-/consumada essa exceção,/ ficou capado o Morgado!»
Este episódio - que passou a fazer parte do folclore satírico de São Bento – constituiu uma das posições de rebeldia e contestação que assumiu perante a classe política, fosse qual fosse o partido, umas vezes fustigada com a energia do protesto, outras objeto de ironia e sarcasmo. Com a morte de Natália morreu o Botequim. Natália Correia estabeleceu sempre uma identificação profunda entre a vida e a poesia e que a destaca como uma das mais notáveis personalidades do século XX em Portugal.
António Valdemar, Correio dos Açores, 15 e 16 de setembro de 2015.





OPINIÃO

Natália Correia – vida com sentido

Aliança da criação literária com a coragem na intervenção política.

Presença vigorosa na sociedade portuguesa, da segunda metade do século XX, Natália Correia (1923-1993) afirmou-se pela singularidade da criação literária e pela determinação e coragem na intervenção política. Justifica a homenagem, hoje em Lisboa (às 18h), na Fundação Mário Soares – presidida pelo próprio Mário Soares, seu amigo e admirador de sempre – e integrada na série “Vidas com Sentido”, para distinguir figuras que prestigiaram a cultura e honraram a cidadania.
Tal como muitos outros intelectuais e artistas da sua geração, Natália Correia participou em grandes acontecimentos da oposição democrática – a fundação do MUD, as campanhas para a Presidência da República de Norton de Matos e Humberto Delgado. Apoiou outras comissões eleitorais, entre as quais a CEUD (1969) liderada por Mário Soares e que se encontra na génese do Partido Socialista. Associou-se aos protestos contra o assassinato de Humberto Delgado; insurgiu-se perante a reabertura do Tarrafal e com a perversa denominação Campo do Chão Bom, exarada no Diário do Governo; e contra o encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores por ter premiado a obra de Ludovino Vieira, preso no Tarrafal. Subscreveu documentos de solidariedade a presos políticos e às greves universitárias.
Teve livros proibidos pela censura como, por exemplo, Canto do País Emerso, a propósito da ocupação do paquete Santa Maria comandada por Henrique Galvão; a tragédia jocosa Homúnculo; e a Antologia da Poesia Erótica e Satírica que organizou e prefaciou, apreendida pela PIDE, e objeto de processo-crime e julgamento no Tribunal Plenário que a condenou a três anos de prisão, com pena suspensa.
Logo a seguir ao 25 de Abril, numa entrevista ao Expresso, Natália Correia revelou a disponibilidade para a ação política. No âmbito da Aliança Democrática presidida por Francisco Sá Carneiro e através do PRD foi eleita deputada. Proferiu intervenções memoráveis. A defesa da língua portuguesa, a valorização do património cultural, a defesa dos direitos humanos, os direitos das mulheres, o debate sobre o aborto assinalaram, entre outros temas, a sua passagem pelo hemiciclo de São Bento.
A política ativa não afetou a trajetória literária. Teve um vínculo ao surrealismo, devido às relações pessoais com Mário Cesariny e António Maria Lisboa, Cruzeiro Seixas e Manuel de Lima. Integrou as publicações de Luís Pacheco, o editor do Contraponto, das obras e autores daquele movimento.
Nunca se submeteu à disciplina de escolas e às cartilhas de grupos. Quis ser ela própria. Todavia, conciliava à energia e originalidade da sua criação, a herança poética de Gomes Leal e de Mário Sá Carneiro; o impulso desencadeado pelas Odes de Álvaro de Campos, e a torrencialidade da Cena do Ódio de Almada Negreiros. Atingiu a partir dos seus livros Dimensão Encontrada (1957) e Comunicação (1959) momentos significativos da poesia portuguesa. Evidenciou-se pelo arrebatamento lírico, a exuberância barroca, o ímpeto romântico, a truculência satírica que se cruzam com a força dos símbolos, a profusão das metáforas, a incursão no herético e no erótico que afronta e estilhaça as convenções existentes.
Num dos seus poemas autorretratou-se: “Hoje quero a violência da dádiva interdita/ sem lírios e sem lagos/ e sem gesto vago/ desprendido da mão que um sonho agita./ Existe a seiva. Existe o instinto. E existo eu/ suspensa de mundos cintilantes pelas veias /metade fêmea, metade mar como as sereias.”
Entre os paradigmas intelectuais e éticos também incluía a figura tutelar e a obra emblemática de Antero Quental, um dos seus patrícios açorianos de eleição. Era o poeta que lhe desvendava as portas da utopia, e a sede de infinito.
Procurava, contudo, distanciar-se do Antero noturno, do poeta e pensador carregado de pessimismo amargo que conduz à negação e à derrota e num dos seus Sonetos (indisfarçavelmente autobiográficos) confessou: que sempre o mal pior é ter nascido. Identificava-se com o outro Antero, o luminoso, que estimulava o exercício da liberdade e da justiça; e descobria: o meio-dia em vida refervendo, a tarde rumorosa e repousada, o claro sol amigo dos heróis; (...) tu pensamento não és fogo és luz.
Daí a categórica afirmação: "Não Antero, meu Santo, não me mato/ antes me zango até ficar num cato/quem me tocar (maldito!) que se pique." Assim, Natália Correia definia o seu comportamento humano e os itinerários da sua poesia. Em vez do mal pior da angústia e desespero do Antero noturno, elegia um bem melhor, o privilégio de ter vivido e continuar a viver até à dádiva interdita. Para sentir todas as volúpias e todas as audácias. A vida, em plenitude.

António Valdemar, Público, 2015-01-22.

     
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