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segunda-feira, 19 de agosto de 2013

É PRECISO DIZER-SE O QUE ACONTECE NO MEU PAÍS DE SAL (Ary dos Santos)


              
OS SAPATOS
1
               
Enfio os mocassinos do meu tempo nos pés
e piso a senda lenda dos meus antepassados.
Hoje, sou eu que passo o cabo das tormentas nos cafés
quando vomito a Índia nos lavabos.

Se Egas Moniz foi herói
duma bravata bonita
eu sou quem paga o resgate
da história que me limita.

A linda Inês dos meus olhos
foi reposta em seu sossego
não há hidroenergia
que ressuscite o Mondego
não há barragem que estanque
o sonho que é hoje infante
na ponta de um pesadelo.

Ai flores Ai flores de lapela
flores de plástico e de feltro
filigrana caravela
que estás cada vez mais perto
filha de Vasco da Gama
dado como pai incerto.

Partem tão tristes os pés
de quem te arrasta consigo
tão andados      tão modernos
tão vazios de sentido
tão queimados deste inferno
que têm as solas gastas
e o caminho puído.

Partem tão tristes os pés
de quem te arrasta consigo
passeiam
     andam
          desandam
                  param
                    Perseguem
                         persistem
                              caminham
                                      calculam
                                             correm
doem      detêm      desistem.
Partem tão tristes os tristes
tão fora de chegar bem
            
José Carlos Ary dos Santos, “Adereços, Endereços” (1965)
in Obra Poética, 2.ª ed. Lisboa: Edições Avante, 1995, pp. 158-159.
             


           
Ao elaborar os poemas “Os Sapatos” (1965) e “A Cortiça” (1969), Ary dos Santosaborda, aparentemente, um tema prosaico do quotidiano; no entanto, desde os primeiros versos do primeiro poema, deteta-se a crítica a um país estagnado, apático que procura transmitir a imagem do progresso tornando visíveis as conquistas da ciência.
Assumindo esse sujeito poético singular no primeiro vocábulo – “Enfio” -, o Eu leva-nos a efetuar uma viagem pelo Portugal seu contemporâneo, uma vez que “os mocassinos” que calça são “do [seu] tempo”, e percorrer a “senda lenda dos [seus] antepassados”. É com base em temas, situações e personagens do Portugal de antigas idades – as gloriosas – que o sujeito poético destrói ou desconstrói a falsa visão do progresso do país. Ary dos Santos recorre às memórias, às crenças e aos aspectos histórico-sociais que permitiram erigir a identidade social dos portugueses para, de imediato, realçar o quão limitador tem sido a manutenção desse discurso identitário que mais não é do que a manifestação da dominação e do poder por parte de quem o construiu. Neste Portugal, todos os dias há um “cabo das tormentas” (uma perseguição, uma difamação, a própria luta pela liberdade) para passar e o Eu alude concretamente à sordidez do conflito na Índia que ele “[vomita] (…) nos lavabos”. Esta tentativa para manter as colónias portuguesas e o preço humano que acarretava, leva-o a concluir que esse é “o resgate” que ele tem que pagar, só que tal facto decorre de uma “história que[ o] limita”, ao contrário do que sucedera na época da construção do Império Português. De igual forma, a “hidroenergia” não ressuscitará o Mondego, nem as barragens sustentarão o “sonho” tornado “pesadelo”. Nenhum dos progressos técnicos (como as “flores de plástico e de feltro”) permite diminuir a frustração e desespero de Portugal se ver sem pai já que “Vasco da Gama/[é] dado como pai incerto”.
Ao reutilizar um fragmento de uma cantiga de amigo de D. Dinis – “Ai flores, ai flores de verde pino” -, transporta para o momento presente o desespero da donzela gerado pela ausência de notícias do amigo, tão semelhante ao vivido pelas famílias dos militares que combatiam pela defesa das fronteiras do Império Português. Numa nova colagem de textos da lírica medieval (neste caso do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, numa cantiga de Juan Ruiz Castell-Branco em que o sujeito poético realça todo o seu sofrimento por a sua “Senhor” não lhe retribuir o amor), para além de atualizar a própria cantiga (Portugal seria essa senhora incompreensiva e indiferente ao sofrimento por ela gerado), faz-se alusão ao novo contexto: “os pés”, o povo português, são obrigados a seguir um conjunto de valores impostos por “quem [os] arrasta consigo”. Esses valores pretendem ser “modernos”, mas são “tão vazios de sentido” que são uma imposição não negociável nem reformulável. Estes “pés” percorrem longos caminhos para tentar fugir ao “inferno” que os queima1.
Num entrecruzar de lírica medieval com poesia visual, na última estrofe do poema, misturam-se dois tipos de passos – as duas realidades que dominavam Portugal: a fuga à repressão e a perseguição efetuada pelo Estado. Alternadamente, surge a menção às duas atitudes; os passos que “andam”, “param”, “persistem”, “caminham”, “correm”, “desistem” e os que “desandam”, “perseguem”, “calculam” e “detêm”. Neste Portugal controlador não é possível haver esperança, os pés “Partem tão tristes os tristes”, a única certeza é a de que eles estão “tão fora de chegar bem”. Nesta parte final do poema, a própria mancha gráfica permite visualizar um “n” deitado (o não da recusa deste Portugal) ou um “v” duplo (a referência à vitória da liberdade).
‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑
(1) Esta alusão ao “inferno” em que viviam os portugueses assemelha-se ao processo de depuração das palavras denunciado por Natália Correia no excerto de “Comunicação” (1959): «Tudo chegava pelo lado da sombra, do terror, da pegajosa ignomínia. Os esbirros amordaçavam a luz. Com as mãos mergulhadas nas estrelas que escondia nos bolsos o poeta assobiava uma pátria de brancura e paz. (...) O poema foi arrastado para a treva onde os estranguladores das palavras constroem o silêncio da sala de espelhos onde o tirano se masturba. O poema atravessou o inferno e alguns dos seus sons ficaram queimados.» | Natália Correia, “Comunicação” (1959) in Poesia Completa, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999, pág. 173.
             
                                              
 

            

De igual forma em “A Cortiça”, Ary dos Santos traça o retrato de Portugal dominado pela treva, desistência, sofrimento físico e moral, censura à palavra e obrigatoriedade de cumprir os ditames do poder político. 

               
               
A CORTIÇA

É preciso dizer-se o que acontece
no meu país de sal
há gente que arrefece      que arrefece
de sol a sol
de mal a mal.
É preciso dizer-se o que acontece
no meu país de sal.

Passando o Tejo       para além da ponte
que não nos liga a nada
só se vê horizonte
horizonte
e tristeza queimada.

É preciso dizer-se o que se passa
no meu país de treva:
uma fome tão grande que trespassa
o ventre de quem a leva.
É preciso dizer-se o que se passa
no meu país de treva:
mal finda a noite       escurece logo o dia
e uma espessa energia
feita de pus no sangue
de lama na barriga
nasce da terra exangue e inimiga

É o vapor da sede       é o calor do medo.
a cama do ganhão
a casca do sobredo.
É o suor com pão que se come em segredo.

É preciso dizer-se o que nos dão
no meu país de boa lavra
aonde um homem morre como um cão
à míngua de palavra:

Por cada tronco desnudado       um lado
do nosso orgulho ferido
e por cada sobreiro despojado
um homem esfomeado e mal parido.

Ah não, filhos da mãe!
Ah não, filhos da terra!
Os enjeitados também vão à guerra.
                         

José Carlos Ary dos Santos, “Insofrimento in Sofrimento” (1969)
in Op. Cit., pág. 243-244.

              
 *
                 
No “[seu] país de sal”, a população “arrefece”, a fome é “tão grande que trespassa/ o ventre de quem a leva” e “por cada sobreiro despojado/um homem esfomeado e mal parido”. Para além das dificuldades económicas e sociais, as pessoas estão impossibilitadas de pensar ou trocar opiniões; por isso, ao longe, só há “tristeza queimada”, à noite sucede o dia escuro e o “homem morre como um cão/à míngua de palavra”. Este cenário de um Portugal empobrecido e embrutecido, torna-se ainda mais degradante com a insistência no facto de se nascer numa “terra exangue e inimiga”, onde até “o suor com pão” é necessário comer “em segredo”. A ocultação, a incomunicabilidade parecem ser as únicas qualidades exigidas a estes portugueses que aceitam inclusivamente que “Os enjeitados também vão à guerra”. Daí o repúdio final do sujeito poético que, por analogia com a expressão popular, funciona como um duplo insulto a este Portugal controlador, corrosivo e estéril: “Ah não, filhos da mãe!/Ah não, filhos da terra!”

Portugal sob a égide da ditadura: o rosto metamorfoseado das palavrasTese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005, pp. 78-83.


PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:

 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   
                

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/08/19/os.sapatos.a.cortica.aspx]

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

AS PORTAS QUE ABRIL ABRIU (Ary dos Santos)


AS PORTAS QUE ABRIL ABRIU, Ary dos Santos

                 
AS PORTAS QUE ABRIL ABRIU

Era uma vez um país 
onde entre o mar e a guerra 
vivia o mais infeliz 
dos povos à beira-terra. 

Onde entre vinhas sobredos 
vales socalcos searas 
serras atalhos veredas 
lezírias e praias claras 
um povo se debruçava 
como um vime de tristeza 
sobre um rio onde mirava 
a sua própria pobreza.

Era uma vez um país 
onde o pão era contado 
onde quem tinha a raiz 
tinha o fruto arrecadado 
onde quem tinha o dinheiro 
tinha o operário algemado 
onde suava o ceifeiro 
que dormia com o gado 
onde tossia o mineiro 
em Aljustrel ajustado 
onde morria primeiro 
quem nascia desgraçado.

Era uma vez um país 
de tal maneira explorado 
pelos consórcios fabris 
pelo mando acumulado 
pelas ideias nazis 
pelo dinheiro estragado 
pelo dobrar da cerviz 
pelo trabalho amarrado 
que até hoje já se diz 
que nos tempos do passado 
se chamava esse país 
Portugal suicidado.

Ali nas vinhas sobredos 
vales socalcos searas 
serras atalhos veredas 
lezírias e praias claras 
vivia um povo tão pobre 
que partia para a guerra 
para encher quem estava podre 
de comer a sua terra.

Um povo que era levado 
para Angola nos porões 
um povo que era tratado 
como a arma dos patrões 
um povo que era obrigado 
a matar por suas mãos 
sem saber que um bom soldado 
nunca fere os seus irmãos.

Ora passou-se porém 
que dentro de um povo escravo 
alguém que lhe queria bem 
um dia plantou um cravo.

Era a semente da esperança 
feita de força e vontade 
era ainda uma criança 
mas já era a liberdade.

Era já uma promessa 
era a força da razão 
do coração à cabeça 
da cabeça ao coração. 
Quem o fez era soldado 
homem novo capitão 
mas também tinha a seu lado 
muitos homens na prisão.

Esses que tinham lutado 
a defender um irmão 
esses que tinham passado 
o horror da solidão 
esses que tinham jurado 
sobre uma côdea de pão 
ver o povo libertado 
do terror da opressão.

Não tinham armas é certo 
mas tinham toda a razão 
quando um homem morre perto 
tem de haver distanciação

uma pistola guardada 
nas dobras da sua opção 
uma bala disparada 
contra a sua própria mão 
e uma força perseguida 
que na escolha do mais forte 
faz com que a força da vida 
seja maior do que a morte.

Quem o fez era soldado 
homem novo capitão 
mas também tinha a seu lado 
muitos homens na prisão.

Posta a semente do cravo 
começou a floração 
do capitão ao soldado 
do soldado ao capitão.

Foi então que o povo armado 
percebeu qual a razão 
porque o povo despojado 
lhe punha as armas na mão.

Pois também ele humilhado 
em sua própria grandeza 
era soldado forçado 
contra a pátria portuguesa.

Era preso e exilado 
e no seu próprio país 
muitas vezes estrangulado 
pelos generais senis.

Capitão que não comanda 
não pode ficar calado 
é o povo que lhe manda 
ser capitão revoltado 
é o povo que lhe diz 
que não ceda e não hesite
– pode nascer um país 
do ventre duma chaimite.

Porque a força bem empregue 
contra a posição contrária 
nunca oprime nem persegue
– é força revolucionária!

Foi então que Abril abriu
as portas da claridade
e a nossa gente invadiu
a sua própria cidade.

Disse a primeira palavra 
na madrugada serena 
um poeta que cantava 
o povo é quem mais ordena.

E então por vinhas sobredos 
vales socalcos searas 
serras atalhos veredas 
lezírias e praias claras 
desceram homens sem medo 
marujos soldados «páras» 
que não queriam o degredo 
dum povo que se separa. 
E chegaram à cidade 
onde os monstros se acoitavam 
era a hora da verdade 
para as hienas que mandavam 
a hora da claridade 
para os sóis que despontavam 
e a hora da vontade 
para os homens que lutavam.

Em idas vindas esperas 
encontros esquinas e praças
não se pouparam as feras 
arrancaram-se as mordaças 
e o povo saiu à rua 
com sete pedras na mão 
e uma pedra de lua 
no lugar do coração.

Dizia soldado amigo 
meu camarada e irmão 
este povo está contigo 
nascemos do mesmo chão 
trazemos a mesma chama 
temos a mesma ração 
dormimos na mesma cama 
comendo do mesmo pão. 
Camarada e meu amigo 
soldadinho ou capitão 
este povo está contigo 
a malta dá-te razão.

Foi esta força sem tiros 
de antes quebrar que torcer 
esta ausência de suspiros 
esta fúria de viver 
este mar de vozes livres 
sempre a crescer a crescer 
que das espingardas fez livros 
para aprendermos a ler 
que dos canhões fez enxadas 
para lavrarmos a terra 
e das balas disparadas 
apenas o fim da guerra.

Foi esta força viril
de antes quebrar que torcer
que em vinte e cinco de Abril
fez Portugal renascer.

E em Lisboa capital
dos novos mestres de Aviz
o povo de Portugal
deu o poder a quem quis.

Mesmo que tenha passado 
às vezes por mãos estranhas 
o poder que ali foi dado 
saiu das nossas entranhas. 
Saiu das vinhas sobredos 
vales socalcos searas 
serras atalhos veredas 
lezírias e praias claras 
onde um povo se curvava 
como um vime de tristeza 
sobre um rio onde mirava 
a sua própria pobreza.

E se esse poder um dia 
o quiser roubar alguém 
não fica na burguesia 
volta à barriga da mãe. 
Volta à barriga da terra 
que em boa hora o pariu 
agora ninguém mais cerra 
as portas que Abril abriu.

Essas portas que em Caxias 
se escancararam de vez 
essas janelas vazias 
que se encheram outra vez 
e essas celas tão frias
tão cheias de sordidez 
que espreitavam como espias 
todo o povo português.

Agora que já floriu 
a esperança na nossa terra 
as portas que Abril abriu 
nunca mais ninguém as cerra.

Contra tudo o que era velho 
levantado como um punho 
em Maio surgiu vermelho 
o cravo do mês de Junho.

Quando o povo desfilou 
nas ruas em procissão 
de novo se processou 
a própria revolução.

Mas eram olhos as balas 
abraços punhais e lanças 
enamoradas as alas 
dos soldados e crianças.

E o grito que foi ouvido 
tantas vezes repetido 
dizia que o povo unido 
jamais seria vencido.

Contra tudo o que era velho 
levantado como um punho 
em Maio surgiu vermelho 
o cravo do mês de Junho.

E então operários mineiros 
pescadores e ganhões 
marçanos e carpinteiros 
empregados dos balcões 
mulheres a dias pedreiros 
reformados sem pensões 
dactilógrafos carteiros 
e outras muitas profissões 
souberam que o seu dinheiro 
era presa dos patrões.

A seu lado também estavam 
jornalistas que escreviam 
actores que se desdobravam 
cientistas que aprendiam 
poetas que estrebuchavam 
cantores que não se vendiam 
mas enquanto estes lutavam 
é certo que não sentiam 
a fome com que apertavam 
os cintos dos que os ouviam.

Porém cantar é ternura 
escrever constrói liberdade 
e não há coisa mais pura 
do que dizer a verdade.

E uns e outros irmanados 
na mesma luta de ideais 
ambos sectores explorados 
ficaram partes iguais.

Entanto não descansavam 
entre pragas e perjúrios
agulhas que se espetavam 
silêncios boatos murmúrios 
risinhos que se calavam 
palácios contra tugúrios 
fortunas que levantavam 
promessas de maus augúrios 
os que em vida se enterravam 
por serem falsos e espúrios 
maiorais da minoria 
que diziam silenciosa 
e que em silêncio fazia 
a coisa mais horrorosa:
minar como um sinapismo 
e com ordenados régios 
o alvor do socialismo 
e o fim dos privilégios.

Foi então se bem vos lembro 
que sucedeu a vindima 
quando pisámos Setembro 
a verdade veio acima.

E foi um mosto tão forte 
que sabia tanto a Abril 
que nem o medo da morte 
nos fez voltar ao redil.

Ali ficámos de pé 
juntos soldados e povo 
para mostrarmos como é 
que se faz um país novo.

Ali dissemos não passa! 
E a reacção não passou.
Quem já viveu a desgraça 
odeia a quem desgraçou.

Foi a força do Outono 
mais forte que a Primavera 
que trouxe os homens sem dono 
de que o povo estava à espera.

Foi a força dos mineiros 
pescadores e ganhões 
operários e carpinteiros 
empregados dos balcões 
mulheres a dias pedreiros 
reformados sem pensões 
dactilógrafos carteiros 
e outras muitas profissões 
que deu o poder cimeiro 
a quem não queria patrões.

Desde esse dia em que todos
nós repartimos o pão
é que acabaram os bodos
— cumpriu-se a revolução.

Porém em quintas vivendas 
palácios e palacetes 
os generais com prebendas 
caciques e cacetetes 
os que montavam cavalos 
para caçarem veados 
os que davam dois estalos 
na cara dos empregados 
os que tinham bons amigos 
no consórcio dos sabões 
e coçavam os umbigos
como quem coça os galões 
os generais subalternos 
que aceitavam os patrões 
os generais inimigos 
os generais garanhões 
teciam teias de aranha 
e eram mais camaleões 
que a lombriga que se amanha 
com os próprios cagalhões. 
Com generais desta apanha 
já não há revoluções.

Por isso o onze de Março 
foi um baile de Tartufos 
uma alternância de terços 
entre ricaços e bufos.

E tivemos de pagar
com o sangue de um soldado
o preço de já não estar
Portugal suicidado.

Fugiram como cobardes 
e para terras de Espanha 
os que faziam alardes 
dos combates em campanha.

E aqui ficaram de pé 
capitães de pedra e cal 
os homens que na Guiné 
aprenderam Portugal.

Os tais homens que sentiram 
que um animal racional
opõe àqueles que o firam 
consciência nacional.

Os tais homens que souberam 
fazer a revolução 
porque na guerra entenderam 
o que era a libertação.

Os que viram claramente 
e com os cinco sentidos 
morrer tanta tanta gente 
que todos ficaram vivos.

Os tais homens feitos de aço 
temperado com a tristeza 
que envolveram num abraço 
toda a história portuguesa.

Essa história tão bonita 
e depois tão maltratada 
por quem herdou a desdita 
da história colonizada.

Dai ao povo o que é do povo 
pois o mar não tem patrões.
– Não havia estado novo 
nos poemas de Camões!

Havia sim a lonjura
e uma vela desfraldada
para levar a ternura
à distância imaginada.

Foi este lado da história 
que os capitães descobriram 
que ficará na memória 
das naus que de Abril partiram

das naves que transportaram 
o nosso abraço profundo 
aos povos que agora deram 
novos países ao mundo.

Por saberem como é 
ficaram de pedra e cal 
capitães que na Guiné 
descobriram Portugal.

E em sua pátria fizeram 
o que deviam fazer:
ao seu povo devolveram 
o que o povo tinha a haver:
Bancos seguros petróleos 
que ficarão a render 
ao invés dos monopólios 
para o trabalho crescer. 
Guindastes portos navios 
e outras coisas para erguer 
antenas centrais e fios 
dum país que vai nascer.

Mesmo que seja com frio 
é preciso é aquecer 
pensar que somos um rio 
que vai dar onde quiser

pensar que somos um mar 
que nunca mais tem fronteiras 
e havemos de navegar 
de muitíssimas maneiras.

No Minho com pés de linho 
no Alentejo com pão
no Ribatejo com vinho 
na Beira com requeijão 
e trocando agora as voltas 
ao vira da produção 
no Alentejo bolotas 
no Algarve maçapão 
vindimas no Alto Douro 
tomates em Azeitão 
azeite da cor do ouro 
que é verde ao pé do Fundão 
e fica amarelo puro 
nos campos do Baleizão. 
Quando a terra for do povo 
o povo deita-lhe a mão!

É isto a reforma agrária 
em sua própria expressão:
a maneira mais primária 
de que nós temos um quinhão 
da semente proletária 
da nossa revolução.

Quem a fez era soldado 
homem novo capitão 
mas também tinha a seu lado 
muitos homens na prisão.

De tudo o que Abril abriu 
ainda pouco se disse 
um menino que sorriu 
uma porta que se abrisse 
um fruto que se expandiu 
um pão que se repartisse 
um capitão que seguiu
o que a história lhe predisse 
e entre vinhas sobredos 
vales socalcos searas 
serras atalhos veredas 
lezírias e praias claras 
um povo que levantava 
sobre um rio de pobreza 
a bandeira em que ondulava 
a sua própria grandeza! 
De tudo o que Abril abriu 
ainda pouco se disse 
e só nos faltava agora 
que este Abril não se cumprisse. 
Só nos faltava que os cães 
viessem ferrar o dente 
na carne dos capitães 
que se arriscaram na frente.

Na frente de todos nós 
povo soberano e total 
que ao mesmo tempo é a voz 
e o braço de Portugal.

Ouvi banqueiros fascistas 
agiotas do lazer 
latifundiários machistas 
balofos verbos de encher 
e outras coisas em istas 
que não cabe dizer aqui 
que aos capitães progressistas 
o povo deu o poder! 
E se esse poder um dia 
o quiser roubar alguém 
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe! 
Volta à barriga da terra 
que em boa hora o pariu 
agora ninguém mais cerra 
as portas que Abril abriu!
        
José Carlos Ary dos Santos
Lisboa, Julho-Agosto de 1975
             

           
Ary dos Santos descreveu assim a sua reação ao evento que mudaria por completo a sociedade e a política portuguesas: “Foi uma alvorada esplendorosa que, se bem que me entusiasmasse e deslumbrasse, se tornou uma primeira percepção real da liberdade e uma razão forte para lutarmos por ela. Foi um pouco isso que pretendi pôr em As Portas que Abril AbriuSe o consegui, o mérito não é meu. O mérito é de uma ideologia que nos sabe ensinar o que é a verdadeira militância intelectual e que nos comunica, com extremo mas benéfico rigor, que cada acto de criação individual deve, antes de mais, ser um acto de generosidade e de solidariedade humanas. ...” (“O Poeta morreu – a voz continua” in: Diário de Notícias: Suplemento de Domingo, 22 de Janeiro de 1984, pp. 38-40).
Depois da Revolução, Ary dos Santos entregou-se de corpo e alma a uma intensa atividade cultural ligada ao PCP, publicando em edição limitada de 1000 exemplares, contendo ainda o disco em que declama o poema, As Portas que Abril Abriu (1975) e gravando os discos Poesia Política e Llanto para Alfonso Sastre entre 1974 e 1975, entre participação em comícios, sessões de poesias e outras inúmeras atividades culturais.
É importante ressaltar que um excerto de As Portas que Abril Abriu foi inserido no Arco de São Bento, quando da sua transferência para a Praça de Espanha.
                   
in Bulletin of the Faculty of Foreign Studies, Sophia University, nº 40, 2005.
                
                
Ao publicar (1975) uma narrativa em verso rimado intitulada As Portas Que Abril Abriu, Ary dos Santos assume-se, isto é, interdita-se pela poética popular (nos seus traços exteriores) e pelo comprometimento da sua didática. Naquele texto, que começa por era uma vez um país, Ary dos Santos tenta dar conta da História portuguesa durante o fascismo até ao período revolucionário que se seguiu ao 25 de Abril (Julho-Agosto de 1975). O didatismo surge acentuado pela síntese de ideias que é colocada, em «discurso quotidiano», na margem de cada página, «explicando» o conteúdo dos versos (ou vice-versa). E a tiragem de 35 000 (trinta e cinco mil) exemplares da 1ª edição deste texto é não só reveladora do tipo de disponibilidade cultural que marca este período, mas também dos padrões de consciência que caracterizam o todo social e da norma estética que os sanciona.
        
Manuel Frias Martins, «O discurso popular» 
in 10 anos de poesia em Portugal, 1974-1984 – leitura de uma década. Lisboa,
 Editorial Caminho, 1986, coleção Nosso Mundo, pp. 30-31
             
                
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:
           

 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   
                        
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/08/30/as.portas.que.abril.abriu.aspx]

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

POETA CASTRADO, NÃO! (Ary dos Santos)


 


                 
POETA CASTRADO, NÃO!

Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado      não!

Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é seu
em tudo quanto lhes devo:
ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.

Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:

Da fome já se não fala
‑ é tão vulgar que nos cansa
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?

Do frio não reza a história
‑ a morte é branda e letal –
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?
E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
‑ Um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?!
‑ Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia!

Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:
demagogo       mau profeta
falso médico       ladrão
prostituta       proxeneta
espoleta       televisão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!
               
José Carlos Ary dos Santos, Resumo, 1972



             
A consciência de que ao poeta compete ser a voz da recusa, a que não é silenciada, a que incentiva à luta pela liberdade, a que se nega a compactuar com o sistema ou a esquecer o ambiente envolvente, vivendo num mundo ficcional porque não-real, perpassa também o poema “Poeta Castrado, Não” de Ary dos Santos.
Nele o poeta assume claramente que poderá ser tudo o que os outros, neste caso o Estado, quiserem dele; só não admite que o silenciem, daí a repetição constante dessa espécie de grito de repúdio: “Poeta castrado não!”.
Ao longo do poema, faz-se referência a todo o tipo de situações impostas que o poeta parece disposto a assumir, numa ampla enumeração aparentemente caótica dada a falta de pontuação que permite ir associando os vários termos para a construção de um todo: ele não se importa de ser “cabeçudo”, “malabarista”, “publicitário”, “falso médico”, “prostituta”, só não abdica da sua voz para revelar todas as atrocidades cometidas pelo regime e pelos homens. Por isso mesmo, salienta que o que escreve tem de ser entendido, no entanto sabe que nem todos estão aptos a descodificar as suas palavras: só “Os que entendem como eu”.
Será esse círculo de eleitos que detetará a “ternura”, a “saudade”, a “alegria”, a “coragem serena”, a renúncia da poesia feita em prol do regime e que “nos envenena”. Ao pretender distanciar-se daqueles que omitem a realidade, o poeta enumera as situações que merecem que ele não se cale, recorrendo a uma sucessão de perguntas retóricas que enfatizam a indiferença com que a população encara esses acontecimentos: as crianças mortas na guerra, o uso das bombas atómicas, a discriminação, entre muitas outras situações. Decorrente dessa posição, conclui que a poesia não é algo meramente fonético; a sua função não é ser apenas uma sucessão de sons sem sentido, é através de cada verso e da sua força que o poeta mostra “o reverso” das situações idealizadas pelo poder instituído com o intuito de camuflar as vicissitudes de um qualquer regime político, é através das palavras que ele torna audível a sua repugnância pelas circunstâncias que o envolvem e são o instrumento deixado à sua disposição para denunciar, desmascarar a hipocrisia generalizada incentivada pelo aparelho de Estado.
O poeta constata, assim, que toda a palavra escrita tem que ser interpretada. Para que esse processo ocorra é necessário que o leitor seja capaz de estabelecer um diálogo com o texto e descobrir, realmente, o que essa sucessão de sons pretende significar […].
Se autores como Sidónio Muralha, Manuel Alegre e Ary dos Santos optaram por incluir nos seus textos as críticas a uma situação adversa à criação poética, outros autores procuraram veicular essa repulsa pelos valores e situações instituídas pelo sistema de forma implícita, exigindo uma maior colaboração do leitor nessa interpretação dos textos.
                 
Portugal sob a égide da ditadura: o rosto metamorfoseado das palavrasTese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005.
           
           
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 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   
                

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/08/08/poeta.castrado.nao.aspx]