OS SAPATOS
1
Enfio os mocassinos do meu tempo nos pés
e piso a senda lenda dos meus antepassados.
Hoje, sou eu que passo o cabo das tormentas nos cafés
quando vomito a Índia nos lavabos.
Se Egas Moniz foi herói
duma bravata bonita
eu sou quem paga o resgate
da história que me limita.
A linda Inês dos meus olhos
foi reposta em seu sossego
não há hidroenergia
que ressuscite o Mondego
não há barragem que estanque
o sonho que é hoje infante
na ponta de um pesadelo.
Ai flores Ai flores de lapela
flores de plástico e de feltro
filigrana caravela
que estás cada vez mais perto
filha de Vasco da Gama
dado como pai incerto.
Partem tão tristes os pés
de quem te arrasta consigo
tão andados tão modernos
tão vazios de sentido
tão queimados deste inferno
que têm as solas gastas
e o caminho puído.
Partem tão tristes os pés
de quem te arrasta consigo
passeiam
andam
desandam
param
Perseguem
persistem
caminham
calculam
correm
doem detêm desistem.
Partem tão tristes os tristes
tão fora de chegar bem
e piso a senda lenda dos meus antepassados.
Hoje, sou eu que passo o cabo das tormentas nos cafés
quando vomito a Índia nos lavabos.
Se Egas Moniz foi herói
duma bravata bonita
eu sou quem paga o resgate
da história que me limita.
A linda Inês dos meus olhos
foi reposta em seu sossego
não há hidroenergia
que ressuscite o Mondego
não há barragem que estanque
o sonho que é hoje infante
na ponta de um pesadelo.
Ai flores Ai flores de lapela
flores de plástico e de feltro
filigrana caravela
que estás cada vez mais perto
filha de Vasco da Gama
dado como pai incerto.
Partem tão tristes os pés
de quem te arrasta consigo
tão andados tão modernos
tão vazios de sentido
tão queimados deste inferno
que têm as solas gastas
e o caminho puído.
Partem tão tristes os pés
de quem te arrasta consigo
passeiam
andam
desandam
param
Perseguem
persistem
caminham
calculam
correm
doem detêm desistem.
Partem tão tristes os tristes
tão fora de chegar bem
José Carlos Ary dos Santos, “Adereços, Endereços” (1965)
in Obra Poética, 2.ª ed. Lisboa: Edições Avante, 1995, pp. 158-159.
Ao elaborar os poemas “Os Sapatos” (1965) e “A Cortiça” (1969), Ary dos Santosaborda, aparentemente, um tema prosaico do quotidiano; no entanto, desde os primeiros versos do primeiro poema, deteta-se a crítica a um país estagnado, apático que procura transmitir a imagem do progresso tornando visíveis as conquistas da ciência.
Assumindo esse sujeito poético singular no primeiro vocábulo – “Enfio” -, o Eu leva-nos a efetuar uma viagem pelo Portugal seu contemporâneo, uma vez que “os mocassinos” que calça são “do [seu] tempo”, e percorrer a “senda lenda dos [seus] antepassados”. É com base em temas, situações e personagens do Portugal de antigas idades – as gloriosas – que o sujeito poético destrói ou desconstrói a falsa visão do progresso do país. Ary dos Santos recorre às memórias, às crenças e aos aspectos histórico-sociais que permitiram erigir a identidade social dos portugueses para, de imediato, realçar o quão limitador tem sido a manutenção desse discurso identitário que mais não é do que a manifestação da dominação e do poder por parte de quem o construiu. Neste Portugal, todos os dias há um “cabo das tormentas” (uma perseguição, uma difamação, a própria luta pela liberdade) para passar e o Eu alude concretamente à sordidez do conflito na Índia que ele “[vomita] (…) nos lavabos”. Esta tentativa para manter as colónias portuguesas e o preço humano que acarretava, leva-o a concluir que esse é “o resgate” que ele tem que pagar, só que tal facto decorre de uma “história que[ o] limita”, ao contrário do que sucedera na época da construção do Império Português. De igual forma, a “hidroenergia” não ressuscitará o Mondego, nem as barragens sustentarão o “sonho” tornado “pesadelo”. Nenhum dos progressos técnicos (como as “flores de plástico e de feltro”) permite diminuir a frustração e desespero de Portugal se ver sem pai já que “Vasco da Gama/[é] dado como pai incerto”.
Ao reutilizar um fragmento de uma cantiga de amigo de D. Dinis – “Ai flores, ai flores de verde pino” -, transporta para o momento presente o desespero da donzela gerado pela ausência de notícias do amigo, tão semelhante ao vivido pelas famílias dos militares que combatiam pela defesa das fronteiras do Império Português. Numa nova colagem de textos da lírica medieval (neste caso do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, numa cantiga de Juan Ruiz Castell-Branco em que o sujeito poético realça todo o seu sofrimento por a sua “Senhor” não lhe retribuir o amor), para além de atualizar a própria cantiga (Portugal seria essa senhora incompreensiva e indiferente ao sofrimento por ela gerado), faz-se alusão ao novo contexto: “os pés”, o povo português, são obrigados a seguir um conjunto de valores impostos por “quem [os] arrasta consigo”. Esses valores pretendem ser “modernos”, mas são “tão vazios de sentido” que são uma imposição não negociável nem reformulável. Estes “pés” percorrem longos caminhos para tentar fugir ao “inferno” que os queima1.
Num entrecruzar de lírica medieval com poesia visual, na última estrofe do poema, misturam-se dois tipos de passos – as duas realidades que dominavam Portugal: a fuga à repressão e a perseguição efetuada pelo Estado. Alternadamente, surge a menção às duas atitudes; os passos que “andam”, “param”, “persistem”, “caminham”, “correm”, “desistem” e os que “desandam”, “perseguem”, “calculam” e “detêm”. Neste Portugal controlador não é possível haver esperança, os pés “Partem tão tristes os tristes”, a única certeza é a de que eles estão “tão fora de chegar bem”. Nesta parte final do poema, a própria mancha gráfica permite visualizar um “n” deitado (o não da recusa deste Portugal) ou um “v” duplo (a referência à vitória da liberdade).
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(1) Esta alusão ao “inferno” em que viviam os portugueses assemelha-se ao processo de depuração das palavras denunciado por Natália Correia no excerto de “Comunicação” (1959): «Tudo chegava pelo lado da sombra, do terror, da pegajosa ignomínia. Os esbirros amordaçavam a luz. Com as mãos mergulhadas nas estrelas que escondia nos bolsos o poeta assobiava uma pátria de brancura e paz. (...) O poema foi arrastado para a treva onde os estranguladores das palavras constroem o silêncio da sala de espelhos onde o tirano se masturba. O poema atravessou o inferno e alguns dos seus sons ficaram queimados.» | Natália Correia, “Comunicação” (1959) in Poesia Completa, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999, pág. 173.
De igual forma em “A Cortiça”, Ary dos Santos traça o retrato de Portugal dominado pela treva, desistência, sofrimento físico e moral, censura à palavra e obrigatoriedade de cumprir os ditames do poder político.
A CORTIÇA
É preciso dizer-se o que acontece
no meu país de sal
há gente que arrefece que arrefece
de sol a sol
de mal a mal.
É preciso dizer-se o que acontece
no meu país de sal.
Passando o Tejo para além da ponte
que não nos liga a nada
só se vê horizonte
horizonte
e tristeza queimada.
É preciso dizer-se o que se passa
no meu país de treva:
uma fome tão grande que trespassa
o ventre de quem a leva.
É preciso dizer-se o que se passa
no meu país de treva:
mal finda a noite escurece logo o dia
e uma espessa energia
feita de pus no sangue
de lama na barriga
nasce da terra exangue e inimiga
É o vapor da sede é o calor do medo.
a cama do ganhão
a casca do sobredo.
É o suor com pão que se come em segredo.
É preciso dizer-se o que nos dão
no meu país de boa lavra
aonde um homem morre como um cão
à míngua de palavra:
Por cada tronco desnudado um lado
do nosso orgulho ferido
e por cada sobreiro despojado
um homem esfomeado e mal parido.
Ah não, filhos da mãe!
Ah não, filhos da terra!
Os enjeitados também vão à guerra.
José Carlos Ary dos Santos, “Insofrimento in Sofrimento” (1969)
in Op. Cit., pág. 243-244.
*
No “[seu] país de sal”, a população “arrefece”, a fome é “tão grande que trespassa/ o ventre de quem a leva” e “por cada sobreiro despojado/um homem esfomeado e mal parido”. Para além das dificuldades económicas e sociais, as pessoas estão impossibilitadas de pensar ou trocar opiniões; por isso, ao longe, só há “tristeza queimada”, à noite sucede o dia escuro e o “homem morre como um cão/à míngua de palavra”. Este cenário de um Portugal empobrecido e embrutecido, torna-se ainda mais degradante com a insistência no facto de se nascer numa “terra exangue e inimiga”, onde até “o suor com pão” é necessário comer “em segredo”. A ocultação, a incomunicabilidade parecem ser as únicas qualidades exigidas a estes portugueses que aceitam inclusivamente que “Os enjeitados também vão à guerra”. Daí o repúdio final do sujeito poético que, por analogia com a expressão popular, funciona como um duplo insulto a este Portugal controlador, corrosivo e estéril: “Ah não, filhos da mãe!/Ah não, filhos da terra!”
Portugal sob a égide da ditadura: o rosto metamorfoseado das palavras. Tese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005, pp. 78-83.
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► “Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/08/19/os.sapatos.a.cortica.aspx]
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