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sábado, 16 de março de 2019

Cosmicidade e comicidade em Natália Correia, por José Emílio-Nelson


Tertúlia em casa de Natália Correia.

Na abordagem elementar da poesia de Natália Correia, como a que me proponho apresentar, saliento dois pontos cardeais que me nortearam nessa tarefa insensata: a COSMICIDADE e COMICIDADE [descomedimentohybris].
Numa dialéctica (aparentemente antitética), a analogia entre COSMICIDADE e COMICIDADE, se afirma como característica fundadora da sua poética, com nuanças surrealistas, atenuações do Barroco, como dinâmica discursiva, magia sempre presente na sua escrita plurissignificativa: na obra poética, na obra teatral, romanesca e ensaística.
COSMICIDADE
Na INTRODUÇÃO à edição da POESIA COMPLETA de Natália Correia,[edição póstuma preparada pela autora que a intitulou de O SOL NAS NOITES E O LUAR NOS DIAS, datada de 1999], Natália Correia alude à COSMICIDADE e a define como sendo ‘o postulado de uma conexão cósmica da poesia com uma linguagem englobante da música e das matemáticas em que está estruturado o Universo’. (Deduzo que se refira à ‘harmonia das esferas’crença pitagórica que relacionava o Universo com a harmonia e a divina proporção musical que o sustenta).
Nos seus poemas crísticos, o imaginário ascende ’ao miradouro do Espírito‘para enxergar ‘sob forma mesmo estruturalmente dramática, ode, sátira ou humor que, como poesia, surge onde não há solução’.
Natália Correia ‘debate-se com a má eternidade e com a má infinitude’(diria Maurice Blanchot): a poesia surge ‘onde não há solução’Onde não há soluçãopermanecerá, assim interpreto, é a palavra indizível, inacessível, palavra esotérica, sob a forma teosófica, como interrogação ao insondável, religiosidade simbolista por empréstimo como
EQUÍVOCO CÓSMICO [INÉDITOS 1955/57]
Se meu germe, por equívoco, Teu gesto
Neste planeta funesto semeou,
Criar foi inventar-me o resto.
Perdoo-te a mentira que aqui sou
Pela verdade que lhe empresto.
Perspectiva-se neste poema, tanto quanto creio, o fingimento (na acepção pessoana) que se esclarece pelo que se lê no trecho inicial de EXÓRDIO [O ARMISTÍCIO (1985)]:
‘Não jurarei que qualquer deus exista. Só sei que é grosseiro viver sem deuses. Porque mais importante que os deuses existirem é acreditarmos neles. E mesmo que, existindo, nos ignorem, não sejamos nós a ignorar a sua autoridade primitiva que, nutrindo de segredos divinos as florestas, os rios e os ventos, faz correr o sangue em nossas veias. Usando este saber, menos dano nos farão os salteadores do verdor da natureza. Supersticiosos como todos os malfeitores, colhimento lhes será o terror sagrado de depredarem flores, árvores e fontes em que os deuses são tão reais quanto elas são. Baste-vos esta ciência: onde vos retiver a beleza de um lugar, há um deus que vos indica o caminho e Espírito.’
Em VOU DAS ANTÍTESES PARA O ABSOLUTO, [INÉDITOS 1947/55] busca o rumo constante da interrogação que a reflexão permite:
Não expulsarei os deuses e os demónios
Que discutem a posse da minha alma.
Esse conflito, esse entrelaçamento do anticlericalismo e da interrogação do Absoluto, de se lhe abeirar rejeitando-o, de o afastar pretendendo alcançá-lo, numa contradição assumida (ora com fingimento, ora com magia ‘dum ritmo exterior’), numa subversão que atravessa toda a obra da escritora, que se sintetiza no neologismo unamuniano, como se lhe referem em Espanha: MATRIA (conceito formulado anteriormente a Unamuno, mencionado pelo padre António Vieira, e revisitado por autores contemporâneos, como o expressa Luís Adriano Carlos no ensaio A MÁTRIA E O MAL EM NATÁLIA CORREIA).
O pendor metafórico da sua poesia permite irrupções de imagens que configuram uma irracionalidade da busca da razão, uma constante escondida adesão à dúvida e ao ímpeto para elaborar uma verdade que deuses e demónios disputam ou discutem, uma afirmação da sexualidade numa ânsia que se proclama noutro poema de EXÓRDIO:
‘Sejamos tranquilamente amantes das coisa divinas, sem o que a vida é o heroísmo reles de um aborrecimento.’, ou mais expressivamente, se lê num verso dos SONETOS ROMÂNTICOS: ‘Creio na carne que enfeitiça o além’.
O Absoluto, ‘cosmicidade do idioma poético’, manifesta-se como ‘a liberdade cósmica’, que é sublinhada amplamente na tão imensa música, música como acesso revelador da palavra em falta, a que Natália Correia alude, no contexto em que, como escreve, ‘nada é isolável’.Define, em ‘O POEMA’ a inventividade da poesia como ‘Pura intenção/ de cantar o que não conhece.’.
Lê-se num soneto do ciclo: ROGANDO À MUSA QUE TORNE CLARO O CORAÇÃO OBSCURO [SONETOS ROMÂNTICOS (1990)], algum tormento de interrogação do estético por detrás da simbolização da infinidade divina:
De um emboscado deus os sons que escreves
Vêm secretamente do infinito.
É para escrever que as tuas mãos são leves,
Submissas asas de um misterioso espírito.
Alheia te é a música que atreves;
Teu é o fado, o precipício, o rito
Da dor que faz passar entre horas breves
Té mister, poeta grácil de olhos tristes.
Desafias os astros? Não te gabes.
És sábio de saber que nada sabes.
Estás a mais no mundo e não existes.
COMICIDADE
Revela-se, em Natália Correia, um misticismo secularizado que lhe advém da independência com que ‘sem intento malévolo contra instituições democráticas’, combate ‘o desvario de extremismo’, ‘o imediatismo revolucionário’, e não se ilude com as soluções políticas adoptadas, revelando uma consciência céptica quanto ao pós-25 de Abril, embora positivamente interventora no campo político, deputada da Direita, empreendendo, na atitude, algo que ironicamente parece ser a palavra da auto-convicção de uma autoridade moral pública superior. Hoje se justifica (ou se lê) a EPÍSTOLA AOS IAMITAS (1976), pela realização poética alcançada. Poesia sem constrangimentos limitadores do seu assombro, da metáfora transgressora e exultante numa comicidade que é ‘um poema para ensinar risadas de camélias aos animais do medo’. [COMUNICAÇÃO1959]. É surpreendente a sua poesia pela articulação do imaginário poético dos ‘versos parodísticos’ com a intervenção política datada, sem nada perder nessa atitude extraverbal. Hoje justifica ler-se também as suas crónicas, como contextualização das poesias políticas. No fundo, trata-se de uma coerência entre a afirmação de uma poderosa presença do ‘Deus Riso’ e o seu aperfeiçoado labor metafórico: simultaneamente ética (hesito em classificá-la de ética idealizada) e incontestada ambição estética.
O riso de Natália Correia cumpre ‘a função útil do riso’, a significação social como defende Bergson [, na sua obra O RISO: ENSAIO SOBRE A SIGNIFICAÇÃO DA COMICIDADE] para quem o riso é ‘inteligência pura’.
Atenda-se que em A DEMIURGIA DO RISO, Natália Correia escreve como epígrafe:
E cada vez que celebrei o
Deus Riso floresceu em mim
Um novo invento.
O riso de Natália Correia ‘é o seu reino inesgotável’, como fonte de invenção, dado que há uma prioridade de ordem histórica no humor ‘jocoso de travessuras’ como no hilariantemente cómico, riso de zombaria quando se refere a episódios parlamentares, que reune no poemário CANTIGAS DE RISADILHA (entre 1979 e 1991.
Cito: ’O acto sexual é para fazer filhos’disse ele [Refere-se ao deputado João Morgado, e à sua posição conservadora, no debate sobre a legalização do aborto.]
‘Já que o coitodiz Morgado
Tem como fim cristalino,
Preciso e imaculado
Fazer menina ou menino;
E cada vez que o varão
Sexual petisco manduca,
Temos na procriação
Prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
Lógica é a conclusão
De que o viril instrumento
Só usou
parca razão!
Uma vez. E se a função
Faz o órgão
diz o ditado
Consumada essa excepção
Ficou capado o Morgado.’
A poesia satírica da cidadã Natália Correia contempla corrosivamente, com directas e facilmente decifráveis referências, com a comicidade e o riso(Vladimir Propp), o contexto sócio-histórico.
Natália Correia imprimiu no jornal da campanha eleitoral autárquica por Lisboa em que concorreu Marcelo Rebelo de Sousa o CANCIONEIRO JOGO-MARCELINO [1989] [,de que cito, aleatoriamente, o soneto]:
MARCELO É BOM BAILARINO
É entrar, venham ver a maravilha
Das variedades na feira marcelina!
E entre atracções à escolha a que mais brilha
É de Marcelo a fúria bailarina.
Do tango ao rock do chá-chá-chá ao samba,
Dançando a valsa como quem flores pisa,
Baila Marcelo até na corda bamba
E os alunos de Apolo inferioriza.
Topa, enfim, de cavaco o maçarico
No 
dernier cri da dança uma golpada:
Rebolar-se no novo sassarico
Para no partido acabar tudo à lambada.
No conjunto da sua obra, o humor, uma outra forma de sátira, é a homofonia ’Humor=Amor’ na desconcertante sexualidade da poesia de Natália Correia, e nessa direcção, será possível concluir, numa síntese que a própria autora escreveu:‘Disparei contra a univisualidade do mostrengo das coacções fascio-puritano-pirosas’.
Em conclusão, que não conclui nada: a poesia vária de Natália Correia mostra que a Cosmicidade, ‘o sopro da Alma Universal’ contém a inversão metafórica (Gérard Genette) da Comicidade.
Mesmo na interrogação e afinidade ao Absoluto [velhos Tratados Espirituais e Filosóficos, matemática e música] há um momento do tempo que decorre no tempo (1), em sentido figurado, que é considerado, aquele que revela como fundamento vinculado do processo criativo da COSMICIDADE que, sublinho, não se separa da COMICIDADE.
Disso nos apercebemos ao ler a primeira estrofe de JESUS NUM BAR:
Já rio e raio foste
E o vício do vinagre
Te afeiçoou aos bares
Onde homem te fizeste
Com a ruga celeste
de chegares sempre tarde.
Na obra literária de Natália Correia, a Cosmicidade (o que se recentra na intuição do Absoluto), entrecruza-se com a Comicidade das coisas deste mundo.
José Emílio-Nelson*, Revista Caliban, 16-03-2019
______________________
(1) Segundo Søren Kierkegaard, ‘ a música tem em si’ ‘um momento de tempo, mas não decorre no tempo, a não ser em sentido figurado’
(*) José Emílio-Nelson, poeta, crítico e editor, é o pseudónimo literário de José Emílio de Oliveira Marmelo e Silva, nascido em Espinho, em 17 de Maio de 1948. Iniciou a sua obra em 1979, com o livro Polifonia, e poesia recolhida em 2004, no volume A Alegria do Mal, prefaciado por Luís Adriano Carlos. (https://www.wook.pt/autor/jose-emilio-nelson/15654)






Cosmicidade e comicidade em Natália Correia, por José Emílio-Nelson” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 16-03-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/03/cosmicidade-e-comicidade-em-natalia.html


quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Natália Correia: Figura emblemática da cultura e da afirmação da identidade açoriana



 Natália Correia: Figura emblemática da cultura e da afirmação da identidade açoriana

Por: António Valdemar


A primeira fase da vida e obra de Natália Correia – decorreu dos anos 40, ao início dos anos 50. Concilia o jornalismo, a literatura e a política...


Natália Correia pertenceu ao reduzido número de mulheres que basta só dizer o primeiro nome para as identificar na amplitude da sua criação artística e literária e na singularidade da sua dimensão humana – Natália, Sophia, Agustina, Amália.
Nasceu nos Açores, na ilha de São Miguel, na Fajã de Baixo. Viveu com a mãe e a irmã Carmem, ora na Fajã de Baixo, ora em Ponta Delgada. Pai e mãe entraram em rutura quando Natália tinha alguns meses. O pai emigrou para o Brasil.
A mãe de Natália, Maria José Oliveira professora primária, mulher formada nos valores cívicos e culturais da Iª Republica, com formação laica e tendências libertárias – o que era raro na época - além do exercício do magistério, colaborou em jornais e revistas, frequentou tertúlias, publicou dois romances mas, desde sempre, preocupou-se com a educação das filhas incutindo-lhes os princípios da democracia e a aproximação com a modernidade.
Em 1934 a família instalou-se, definitivamente, em Lisboa. Maria José Oliveira quis dar às filhas outros horizontes. Recordou Natália: “Sendo uma intelectual que se não pode realizar, inteiramente, devido ao meio e às circunstâncias procurou preparar-nos». Entendia que «o desenvolvimento espiritual da mulher corresponde a uma atitude social». A permanência em S. Miguel, mesmo na cidade de Ponta Delgada, não reunia condições «para nos desenvolver espiritualmente». Era «um meio muito exíguo».
Natália Correia ainda passou pelo Liceu de Ponta Delgada; frequentou em Lisboa, o Liceu Filipa de Lencastre, mas sem qualquer aproveitamento. Mostrou-se refratária aos métodos de ensino. Ela própria o declarou: «Havia uma situação de disciplina, de imposição e de opressão incompatível com a minha maneira de ser. Nessa altura, julgava eu que tal atitude era determinada por preguiça ou relutância aos estudos. Agora sei que as minhas razões eram outras. Descobri, mais tarde, particularmente em trabalhos para que se exigiam disciplina e estrutura, que não podia vergar-me a regras que me fossem impostas de fora. Eu é que as tinha de criar».
Resultou, portanto, num «fracasso total» «a razão imediata da vinda para estudar em Lisboa». A passagem de Natália pelo liceu foi, segundo as suas palavras, de «ave migratória». O problema não se colocava só em São Miguel. Em Lisboa o rumo era o mesmo deparou com os mesmos métodos. A escola não era um espaço de formação e transformação coletiva; nem um lugar de esperança e de procura, de encontro aberto à pluralidade do saber e à difusão do conhecimento.
Natália Correia tem uma formação autodidata. Também aprendeu francês e inglês que falava e escrevia com desembaraço.
Apesar de pertencer a uma família muito católica e muito tradicional Maria José Oliveira ultrapassou a rotina que se circunscrevia ao exercício burocrático do magistério. O ensino era um ato de participação e de cidadania, a fim de pensar e interrogar o mundo.
Teve relações pessoais e literárias com figuras da oposição democrática, entre as quais o jornalista Carvalhão Duarte que viria a ser diretor d’A República. Desde muito jovem, Natália conviveu, com estas personalidades e através delas privou com muitas outras que contribuíram para a sua afirmação pessoal, literária e política.
A partir de meados dos anos 40, tornou-se uma figura de Lisboa ligada aos principais acontecimentos literários e políticos que marcaram, decisivamente, a segunda metade do século XX.
Está perpetuada na toponímia de Lisboa, da Grande Lisboa, da ilha de São Miguel e de outras ilhas dos Açores. O seu nome também se encontra inscrito e com todo o relevo na Fajã de Baixo. E ainda em diversas outras bibliotecas, como é o caso de Carnide e de Odivelas. Tem sido homenageada por universidades públicas e privadas. Foram assinalados, em 2013, com numerosas manifestações o 20º aniversário da morte e os 90 anos do nascimento de Natália Correia. Assumiram, contudo, especial relevo as comemorações que se efetuaram nos Açores promovidas pela Secretaria Regional da Educação, Ciência e Cultura, desde a ilha de Santa Maria até à ilha do Corvo.
Natália colocou, no local mais íntimo de trabalho da sua casa de Lisboa, o mítico 52, 5º da rua Rodrigues Sampaio, entre a rua de Santa Marta e a Avenida da Liberdade e onde viveu 40 anos, as imagens tutelares de Antero, de Pessoa e de outros mestres de quem recebera ensinamentos, conselhos e advertências: António Sérgio e Almada Negreiros. Entre eles destacava-se a mãe e um amigo da mãe, Cardoso Martha, que lhe deu explicações de português, francês e história. Antigo seminarista, com profundo conhecimento das humanidades clássicas, da literatura portuguesa e das várias literaturas de expressão românica, Manuel Cardoso Martha (1882 – 1958) era um erudito, um bibliógrafo, um bibliófilo, um colecionador de manuscritos e de livros que adquiriu de muitos modos, sem excluir apropriações ilícitas, em livrarias, em alfarrabistas e até em casas de amigos que visitava e lhe davam almoço ou jantar a troco de pilhérias que era exímio em narrar à sobremesa. Na sua maioria integram grande parte da «Antologia da Poesia Erótica e Satírica» que Natália publicou, nos anos 60, com êxito retumbante e foi apreendida pela PIDE e pela Censura.
Natália, em matéria de formação intelectual reconhecia, no entanto, que ficara a dever à mãe, na infância e na adolescência, os conhecimentos fundamentais para entender a vida e aceder à cultura. Lembrava, com frequência, que a mãe fizera despertar nas filhas o amor pelos livros e pela leitura, para ajudar a ver o mundo com outros olhos e de vários prismas; e, ainda, o sentimento da música, a história grega e romana, a explicação das fábulas, a decifração das figuras mitológicas e reais.
Se a identificação de Natália Correia com Lisboa foi muito intensa, a relação com os Açores foi igualmente profunda. Jamais esqueceu o famoso cozido das Furnas, os inhames e maçarocas de milho «cozidos na terra fervente e mole à beira da Lagoa e que depois comemos numa mesa de pedra sob as plumas dos fetos; por entre colinas de pedra-pomes, líquenes, musgos, mantos verdes que pendem dos ribanceiros onde se abrem as alas rosadas e azuis das hortênsias».
Uma coisa foi sempre evidente: Natália nunca se desligou das raízes. O seu percurso de quase sete décadas, cabe nestes versos: «Para Lisboa me trouxeram/ não de uma vez e embarcada:/ minha longa matéria foi/ pouco a pouco transportada./ Recém-vinda de ficada/em morosa maravilha, / sempre a chegar a Lisboa/ e sempre a ficar na ilha».
A primeira fase da vida e obra de Natália Correia decorreu dos anos 40, ao início dos anos 50. Concilia o jornalismo, a literatura e a política. Frequentou os meios políticos da oposição; colaborou no Rádio Clube Português. Teve o estímulo de dois intelectuais micaelenses radicados em Lisboa: Rebelo de Bettencourt e, sobretudo, do Padre Diniz da Luz que já tinha grande evidência no jornalismo.
Assinou, em 1945, as listas do MUD. Todavia, ao contrário da maioria dos intelectuais e políticos da sua geração – por exemplo Mário Soares, Aboim Inglês, Salgado Zenha - não ingressou no MUD Juvenil, dominado pelo Partido Comunista.
Escreveu no semanário O Sol fundado e dirigido por Alberto Lelo Portela, militar de prestígio que fez parte dos primórdios da aviação e que se destacou nas lutas da oposição ao salazarismo. A chefia da redação era assegurada por Alves Morgado (1901 - 1980) um jornalista profissional, conhecedor das regras do ofício na elaboração do noticiário, nos contatos com a tipografia, na revisão de textos de jovens colaboradores. Reunia, porém, a colaboração de grandes nomes. António Sérgio foi um deles e exerceu logo influência intelectual em Natália Correia.
Natália escreveu sobre política nacional e internacional: analisou a influência da guerra de 1939 a 1945, em vários setores; condenou a orientação de Hitler, os efeitos do nazismo, os fundamentos do Reich, as extensões do fascismo na Europa, a sua disseminação em Portugal, na classe politica, militar, na literatura e na arte.
Teve acesso aos preparativos da candidatura de Norton de Matos à Presidência da República que se apresentará um ano depois. Para o jornal o SOL entrevistou o general na sua casa em Ponte de Lima. Mais tarde, em 1958, participou na candidatura de Humberto Delgado à Presidência da República. Em 1969 esteve com Mário Soares e Salgado Zenha na CEUD Apoiou muitos outros movimentos, entre os quais o assalto ao Santa Maria comandado por Henrique Galvão e que deu lugar a um dos seus livros Canto do País Emerso, logo apreendido pela Pide e pela Censura.
Tem neste poema um dos mais vibrantes ímpetos de reivindicação das suas origens: Não sou daqui. Mamei em peitos oceânicos/ minha mãe era ninfa, meu pai chuva de lava/ mestiça de onda e de enxofres vulcânicos/ sou de mim mesma pomba húmida e brava. (….) «Não sou daqui. A minha pátria não é esta/ bússola quebrada dos impulsos./ Sou rápida, sou solta, talvez nuvem/ nuvens minhas irmãs que me argolais os pulsos/ tomai os meus cabelos! Levai-os para a floresta.
Natália integrou o Canto do País Emerso no «desafogo de uma tendência que se acentua nas minhas últimas produções, que é a compreensão de que a poesia se encontra ligada aos momentos mais importantes da vida coletiva e individual» e, por outro lado, «numa temática portuguesa compreendida entre a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto e a Ode Marítima de Fernando Pessoa/ Álvaro de Campos».





Os primórdios literários de Natália Correia
acusam a influência do neorrealismo...

Os primórdios literários de Natália Correia acusam a influência do neorrealismo. Desta fase avulta, nomeadamente, o romance Anoiteceu no Bairro. Demarcou-se, todavia, deste movimento literário e político, no início dos anos 50. Sem profissão de fé declarada ficou próxima do surrealismo. Classificou «uma etapa importante senão fundamental da poesia» do século XX. Luís Pacheco editor dos surrealistas publicou os seus livros Dimensão Encontrada (1957), Passaporte (1958), Comunicação (1959) e Canto do País Emerso (1961). Com Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, Alexandre O’ Neil, Manuel de Lima, Mário Henrique Leiria manteve relações pessoais literárias e artísticas.
Os vínculos são visíveis, nunca os negou, mas costumava dar esta explicação: «se existe qualquer relação entre a minha poesia e o surrealismo é francamente a posteriori, isto é para os que quiserem vê-la. Quanto a procurarem-me antecedentes, também temos por cá outros mais à mão que foram surrealistas sem pensar nisso: Gomes Leal e Sá Carneiro».
Os momentos altos da obra de Natália – que não é regular e daí a sua autenticidade e a sua força desmedida – multiplicam-se a partir de Dimensão Encontrada (1957), Passaporte (1958), Comunicação (1959), editadas por Luis Pacheco nas edições Contraponto.
Entre as numerosas controvérsias que Natália Correia desencadeou, antes e depois do 25 de Abril, destacam-se a publicação, no final do salazarismo do já referido Canto do Pais Emerso e da Antologia da Poesia Erótica e Satírica (1965) e, na «primavera marcelista» a responsabilidade editorial das Novas Cartas Portuguesas da autoria de Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno. Ambas apreendidas pela PIDE e pela Censura e ambas julgadas no Tribunal Plenário de Lisboa.
Embora nunca se tivesse submetido à disciplina de escolas, de grupos e de partidos, Natália Correia foi uma das personalidades da sua geração que, (salvaguardadas as diferenças de opinião e de temperamento), era reconhecida em todos os setores.
Natália Correia celebrou a vida, como expressão de euforia, de afirmação de coragem, de libelo acusatório. A sua poesia é dominada pelo arrebatamento lírico, o ímpeto romântico, a exuberância barroca, que se cruzam com a força dos símbolos e a profusão das metáforas.
Contudo, também na linhagem das Cantigas de Escarnio e Maldizer, Natália Correia disseca o poder. Não poupa a aristocracia decadente e com prosápias; a vulgaridade burguesa, os vícios e as vilezas dos novos e novíssimos ricos, os políticos arrivistas e corruptos, as manifestações de ignorância e fanatismo. Assim criou as Cantigas de Risadilha.
Juntamente com as irreprimíveis manifestações de açorianidade, Natália Correia estabeleceu uma relação profunda com Lisboa e a grande Lisboa. Em 1971, com a escultora e poetisa Isabel Meireles criou uma sociedade para instalar um bar, restaurante/ café concerto, no largo da Graça, no rés-do-chão da Vila Souza, um edifício histórico do bairro e da própria cidade. Ficou a chamar-se o Botequim, um nome com forte carga literária, politica e boémia, que remontava aos primeiros cafés de Lisboa, do século XVIII, ao tempo de Bocage, de José Agostinho e outros representantes das Arcádias, do pré-romantismo, dos antecedentes culturais e políticos da revolução liberal.
Para o Botequim – e o escritor e jornalista Fernando Dacosta analisou todos estes aspetos num livro notável, acerca da vida e da obra de Natália Correia - se transferiram surrealistas, e poetas e escritores de muitas outras tendências. Políticos de todos os quadrantes. Deputados, ministros, atuais ou futuros presidentes da República. Representantes do movimento da independência dos Açores. Convergiram no Botequim, devido à personalidade magnética de Natália, as sucessivas fases do processo revolucionário e contra revolucionário que surgiu com o 25 de Abril. A presença diária de Natália irradiou no Botequim durante mais de 20 anos, em noites memoráveis.
Em 1980 ingressou com Francisco Sá Carneiro, na Aliança Democrática. Foi, entretanto, deputada e assumiu posições polémicas, nomeadamente a favor do aborto, que não se identificavam com a linha de orientação estatutária e religiosa do PSD e o CDS. A sua trajetória partidária terminou no PRD, o grupo política que se constituiu sob a égide de Ramalho Eanes.
Ficaram célebres os versos, de Natália Correia ao comentar o deputado do CDS, João Morgado por ter proferido, auge do debate parlamentar da legislação sobre o aborto, afirmações que deram brado na época, nomeadamente: «o ato sexual é para fazer filhos». Natália não se conteve e escreveu, de jato um poema que circulou, em todo o País, até porque sairia, no dia seguinte, no Diário de Lisboa: «Já que o coito – diz Morgado -/tem como fim cristalino,/preciso e imaculado/fazer menina ou menino;/e cada vez que o varão/sexual petisco manduca,/temos na procriação/prova de que houve truca – truca./ Sendo pai só de um rebento, /lógica é a conclusão/ de que o viril instrumento/ só usou – parca ração!-/uma vez. E se a função/faz o órgão- diz o ditado-/consumada essa exceção,/ ficou capado o Morgado!»
Este episódio - que passou a fazer parte do folclore satírico de São Bento – constituiu uma das posições de rebeldia e contestação que assumiu perante a classe política, fosse qual fosse o partido, umas vezes fustigada com a energia do protesto, outras objeto de ironia e sarcasmo. Com a morte de Natália morreu o Botequim. Natália Correia estabeleceu sempre uma identificação profunda entre a vida e a poesia e que a destaca como uma das mais notáveis personalidades do século XX em Portugal.
António Valdemar, Correio dos Açores, 15 e 16 de setembro de 2015.





OPINIÃO

Natália Correia – vida com sentido

Aliança da criação literária com a coragem na intervenção política.

Presença vigorosa na sociedade portuguesa, da segunda metade do século XX, Natália Correia (1923-1993) afirmou-se pela singularidade da criação literária e pela determinação e coragem na intervenção política. Justifica a homenagem, hoje em Lisboa (às 18h), na Fundação Mário Soares – presidida pelo próprio Mário Soares, seu amigo e admirador de sempre – e integrada na série “Vidas com Sentido”, para distinguir figuras que prestigiaram a cultura e honraram a cidadania.
Tal como muitos outros intelectuais e artistas da sua geração, Natália Correia participou em grandes acontecimentos da oposição democrática – a fundação do MUD, as campanhas para a Presidência da República de Norton de Matos e Humberto Delgado. Apoiou outras comissões eleitorais, entre as quais a CEUD (1969) liderada por Mário Soares e que se encontra na génese do Partido Socialista. Associou-se aos protestos contra o assassinato de Humberto Delgado; insurgiu-se perante a reabertura do Tarrafal e com a perversa denominação Campo do Chão Bom, exarada no Diário do Governo; e contra o encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores por ter premiado a obra de Ludovino Vieira, preso no Tarrafal. Subscreveu documentos de solidariedade a presos políticos e às greves universitárias.
Teve livros proibidos pela censura como, por exemplo, Canto do País Emerso, a propósito da ocupação do paquete Santa Maria comandada por Henrique Galvão; a tragédia jocosa Homúnculo; e a Antologia da Poesia Erótica e Satírica que organizou e prefaciou, apreendida pela PIDE, e objeto de processo-crime e julgamento no Tribunal Plenário que a condenou a três anos de prisão, com pena suspensa.
Logo a seguir ao 25 de Abril, numa entrevista ao Expresso, Natália Correia revelou a disponibilidade para a ação política. No âmbito da Aliança Democrática presidida por Francisco Sá Carneiro e através do PRD foi eleita deputada. Proferiu intervenções memoráveis. A defesa da língua portuguesa, a valorização do património cultural, a defesa dos direitos humanos, os direitos das mulheres, o debate sobre o aborto assinalaram, entre outros temas, a sua passagem pelo hemiciclo de São Bento.
A política ativa não afetou a trajetória literária. Teve um vínculo ao surrealismo, devido às relações pessoais com Mário Cesariny e António Maria Lisboa, Cruzeiro Seixas e Manuel de Lima. Integrou as publicações de Luís Pacheco, o editor do Contraponto, das obras e autores daquele movimento.
Nunca se submeteu à disciplina de escolas e às cartilhas de grupos. Quis ser ela própria. Todavia, conciliava à energia e originalidade da sua criação, a herança poética de Gomes Leal e de Mário Sá Carneiro; o impulso desencadeado pelas Odes de Álvaro de Campos, e a torrencialidade da Cena do Ódio de Almada Negreiros. Atingiu a partir dos seus livros Dimensão Encontrada (1957) e Comunicação (1959) momentos significativos da poesia portuguesa. Evidenciou-se pelo arrebatamento lírico, a exuberância barroca, o ímpeto romântico, a truculência satírica que se cruzam com a força dos símbolos, a profusão das metáforas, a incursão no herético e no erótico que afronta e estilhaça as convenções existentes.
Num dos seus poemas autorretratou-se: “Hoje quero a violência da dádiva interdita/ sem lírios e sem lagos/ e sem gesto vago/ desprendido da mão que um sonho agita./ Existe a seiva. Existe o instinto. E existo eu/ suspensa de mundos cintilantes pelas veias /metade fêmea, metade mar como as sereias.”
Entre os paradigmas intelectuais e éticos também incluía a figura tutelar e a obra emblemática de Antero Quental, um dos seus patrícios açorianos de eleição. Era o poeta que lhe desvendava as portas da utopia, e a sede de infinito.
Procurava, contudo, distanciar-se do Antero noturno, do poeta e pensador carregado de pessimismo amargo que conduz à negação e à derrota e num dos seus Sonetos (indisfarçavelmente autobiográficos) confessou: que sempre o mal pior é ter nascido. Identificava-se com o outro Antero, o luminoso, que estimulava o exercício da liberdade e da justiça; e descobria: o meio-dia em vida refervendo, a tarde rumorosa e repousada, o claro sol amigo dos heróis; (...) tu pensamento não és fogo és luz.
Daí a categórica afirmação: "Não Antero, meu Santo, não me mato/ antes me zango até ficar num cato/quem me tocar (maldito!) que se pique." Assim, Natália Correia definia o seu comportamento humano e os itinerários da sua poesia. Em vez do mal pior da angústia e desespero do Antero noturno, elegia um bem melhor, o privilégio de ter vivido e continuar a viver até à dádiva interdita. Para sentir todas as volúpias e todas as audácias. A vida, em plenitude.

António Valdemar, Público, 2015-01-22.

     
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