sábado, 8 de junho de 2013

REGINALDO

              
Os rimances têm, naturalmente, diversas versões, consoante a região ou a pessoa que os canta. Os próprios títulos variam, como é o caso de «Reginaldo» que, em Trás-os-Montes é «Gerineldo».
As versões atuais resultam quase sempre, da justaposição de excertos de vários rimances. A 7ª sequência de «Reginaldo» (Canção) é exemplo disso. Na verdade, trata-se da «Canção do Órfão» do rimance «O Prisioneiro». Tal é verificável, até, pela fuga à rima em -i.
                

        
              
                   REGINALDO



1
– «Reginaldo, Reginaldo,
2
Pajem del-rei tão querido,
3
Não sei porquê, Reginaldo1
4
Te chamam o atrevido.»
5
– «Porque me atrevi, senhora,
6
A querer o defendido.»2
7
– «Não foras tu tão covarde
8
Que já dormiras comigo.»
9
– «Senhora zombais de mim
10
Porque sou vosso cativo.»3
11
– «Eu não no digo zombando,
12
Que deveras te lo digo.»
13
– «Pois quando o quereis, infanta,
14
Que vá pelo prometido?»
15
– «Entre las dez e las onze4
16
que el rei não seja sentido.»5
  
                     
17
Inda não era sol posto,
18
Reginaldo adormecido:
19
As dez não eram bem dadas,
20
Reginaldo já erguido.
21
Calçou sapato de pano,
22
Que el rei não fosse ouvido,
23
Foi-se à câmara da infanta,
24
Deu-lhe um ai, deu-lhe um gemido.
25
«Quem suspira a essa porta,
26
Quem será o atrevido?
27
– «É Reginaldo, senhora
28
Que vem pelo prometido.»
29
– «Levantai-vos minhas aias,
30
Que assim Deus vos dê marido!
31
E ide abrir mansinho a porta
32
Que el-rei não seja sentido.»
33
Vela o pajem toda a noite...
34
Por manhã é adormecido;
35
Chamava o rei que chamava6
36
Que lhe desse o seu vestido:
37
– «Reginaldo não responde,
38
alguma tem sucedido!
39
Ou está morto o meu pajem
40
Ou grande traição há sido.»7
41
Responderam os vassalos8
42
Que tudo tinham sentido:
43
– «Morto não é Reginaldo,
44
de sono estará perdido.»
45
Vestiu-se el-rei muito à pressa,
46
E leva um punhal consigo9
47
Vai correndo sala e sala,
48
Abrindo porta e postigo,
49
Chega ao camarim da infanta,
50
Entrou sem fazer ruído.
51
Dormiam tão sossegados
52
Como mulher e marido.
  
                       
53
De nada do que se passava
54
De nada davam sentido.
55
Acudiram os vassalos,
56
Que viram a el-rei perdido:
57
– «Nunca vossa majestade
58
Mate um homem adormecido.»10
59
Tira el-rei seu punhal de oiro,
60
Deixa-o entre os dois metido,
61
O cabo para a princesa.
62
Para o Reginaldo o bico.
63
Ia-se a virar o pajem,
64
Sentiu-se cortar no fio:11
65
– «Acorda já, bela infanta,
66
Triste sono tens dormido!
67
Olha o punhal de teu pai
68
Que entre nós está metido.»
69
– «Cala-te daí Reginaldo,12
70
Não sejas tão dolorido;13
71
Vai já deitar-se a seus pés,
72
Que el-rei é bom e sofrido.14
73
Para o mal que temos feito
74
Não há senão um castigo;15
75
Mas se el-rei mandar matar-me,
76
Eu hei-de morrer contigo.»
77
– «Donde vens, ó Reginaldo?»16
78
– «Senhor, de caçar sou vindo.
79
– «Que é da caça que caçaste,
80
Reginaldo o atrevido?»
81
– «Senhor rei, da caça venho,
82
Mas não a trago comigo;
83
Que o trazer caça real17
84
A vassalo é defendido.
85
Só vos trago uma cabeça,
86
A minha: dai-lhe o castigo.»
87
– «Tua sentença está dada,
88
Morrerás por atrevido.»
89
Vedes hora o bom do rei
90
Dando voltas ao sentido:
91
– «Se mato a bela infanta,
92
Fica o meu reino perdido...
93
Para matar Reginaldo,
94
Criei-o de pequenino...
95
Metê-lo-ei numa torre18
96
Por princípio de castigo.»
97
– «Dizei-me vós, meus vassalos,
98
Pois tudo tendes ouvido,
99
Que mais justiça faremos
100
Deste pajem atrevido?»
101
Respondem os condes todos,
102
E muito bem respondido:
103
– «Pajem de rei que tal faz,
104
Tem a cabeça perdido.»19
105
Já o metem numa torre,20
106
Já o vão encarcerar.
107
Mas ano e dia é passado,
108
E a sentença por dar.
109
Veio a mãe de Reginaldo
110
O seu filho a visitar:
111
– «Filho, quando te pari
112
Com tanta dor e pesar,
113
Era um dia como este,
114
Teu pai estava a expirar.
115
Eu coas lágrimas nos olhos,
116
Filho, te estava a lavar;
117
Cabelos desta cabeça
118
Com eles te fui limpar.21
119
E teu pai já na agonia,
120
Que me estava a encomendar:22
121
Enquanto fosses pequeno
122
De bom ensino te dar,
123
E depois que fosses grande
124
A bom senhor te entregar.
125
Ai de mim, triste viúva,
126
Que te não soube criar!23
127
A el-rei te dei por amo,
128
Que melhor não pude achar:
129
Tu vais dormir coa Infanta,
130
De teu senhor natural!24
131
Perdeste a cabeça, filho,
132
Que el-rei ta manda cortar!...
133
Ai! meu filho, antes que morras,
134
Quero ouvir o teu cantar.»
135
– «Como hei-de eu cantar, mi madre25
136
Se me sinto já finar?»
137
– «Canta, meu filhinho, canta,
138
Para haver minha bênção,
139
Que me estou lembrando agora
140
De teu pai nesta prisão.
141
Canta-me o que ele cantava
142
Na noite de São João;
143
Que tantas vezes mo ouviste
144
Cantar co meu coração.»
  
                   
145
– «Um dia antes do dia
146
Que é dia de São João,
147
Me encerraram nestas grades
148
Para fazer penação.26
149
E aqui estou, pobre coitado,
150
Metido nesta prisão,
151
Que não sei quando o sol nasce,
152
Quando a lua faz serão.»27
  
                        
153
De suas varandas altas
154
El-rei estava a escutar;
155
Já se vai onde a Princesa,
156
Pela mão a foi buscar:
157
– «Anda ouvir, ó minha filha,
158
Este tão lindo cantar,
159
Que ou são os anjos no céu,
160
Ou as sereias no mar.»
161
– «Não são os anjos no céu,
162
nem as sereias no mar,
163
mas o triste sem ventura
164
a quem mandais degolar.»
165
– «Pois já revogo a sentença
166
E já o mando soltar;
167
Prende-o tu, Infanta, agora,
168
Pois contigo há-de casar.»
                
Romanceirovolume II, 1852, Almeida Garrett
Mem-Martins, Europa-América, 1992, p, 107, s.
           
_____________________________
(1) A lição da Estremadura e muitas outras omitem estes seis versos, e completam a primeira cópia com estes outros dois:
Bem puderas, Reginaldo
Dormir um dia comigo.
A adotada no texto é do Alentejo.
(2) querer o defendido ‑ querer o proibido.
(3) vosso cativo – criado; preso de amor.
(4) Entre la uma e as duas
Quando el-rei esteja dormindo
. – Alentejo.
(5) seja sentido – sinta.
(6) Lá por sobre a madrugada
Pede el-rei o seu vestido.
 – Alentejo.
(7) Ou traição tem cometido. – Estremadura.
Ou traição me há cometido. – Beira Alta.
(8) Acode dali um pajem
Que é de Reginaldo amigo:
«Não é morto Reginaldo
Nem traição tem cometido.
Então está Reginaldo
Com a princesa dormindo». 
– Beira Baixa.
(9) Leva um traçado consigo. – Estremadura.
(10) Dê num homem adormecido. – Minho.
(11) no fio – no gume do punhal.
(12) Vai-te deitar, Reginaldo,
A seus pés muito rendido:
Que el-rei tem bom coração
E te há-de casar comigo. – 
Beira Baixa, Estremadura.
(13) dolorido ‑ assustado
(14) sofrido – com experiência; compreensivo.
(15) um castigo. Mas – o casamento. Mas
(16) Estas três coplas são omissas em todas as lições, salvo na do Alentejo e em uma das do Porto.
(17) caça real – a princesa.
(18) A lição do Alentejo termina o romance aqui com esta copla.
– «Levanta-te, ó Reginaldo,
Reginaldo atrevido,
O castigo que te dou
É que seja seu marido.»
Quereria o pérfido menestrel pôr um epigrama na boca de sua real majestade?
Outra lição da mesma província continua ainda depois:
Responderam os vassalos,
Que Reginaldo tem tido!
Que tudo tinham sentido:
Até aqui pajem del-rei,
– «oh! Quem teria a fortuna
Agora filho querido!
 – Alentejo.
(19) tem a cabeça perdido – perdeu a cabeça.
(20) Só as versões do Ribatejo trazem este episódio da torre.
(21) Pensamento favorito dos menestréis populares, que se encontra repetido em muitos dos nossos romances e xácaras.
(22) encomendar – recomendar.
(23) Ensinar. – Ribatejo.
(24) de teu senhor natural –filha do teu senhor.
(25) Mãe minha. – Ribatejo.
(26) sofrer penação – sofrer castigo.
(27) Em uma lição ultimamente vinda da Beira Alta vem o episódio da prisão com mais uma copla neste cantar do preso. Aqui ponho a dita copla por sua singularidade, apesar de se conhecer nela visível interpolação, e desarmonia de estilo e sentido. Imagino que será fragmento de outra xácara ou cantiga segundo tantos encontram em muitas delas:
Tenho aqui dois passarinhos
Que me trazem alcanfores;
Eles vão e eles vêm
Com novas dos meus amores,
Alcanfores? e trazer alcantores? quid?
    
     
TEXTO DE APOIO
       
Será este Reginaldo ou Eginaldo, o galante Eginard francês que os nossos traduziram assim, bem como de Bernard fizeram Bernal e Bernaldo, de Gerard Giraldo? E é este o celebrado secretário do Imperador Carlos Magno, de cujos muito românticos, porém mui poucos platónicos, amores com a filha de seu augusto amo, estão cheias as histórias da Meia-Idade? Tema constante de trovadores e poetas até quase aos nossos dias em que a suave e melancólica musa de Millevoye ultimamente o remoçou no seu mais admirado poema.
Se deste é que aqui se trata – e eu creio que sim – vemos que o romance popular conta o caso mui diferente do que os poetas e escritores do norte o referem. É bem sabido que, segundo esses, a namorada princesa, quando o feliz Eginaldo saía da sua câmara, um dia de madrugada de inverno e com a neve alta e recém-geada pelos átrios e jardins do palácio, o tomara ela aos ombros para que não ficassem impressas na neve as delatoras pegadas do amante. O que descobrindo por acaso o Imperador, que se levantara antes do sol, por tal modo se enternecera com aquela prova de generosa dedicação, que logo lhes perdoara a ambos, casando o ditoso secretário com a namorada princesa.
Talvez o que primeiro contou a história ao nosso povo e lha rimou para seus cantares, omitiu a cena da neve por menos familiar e comum nestes climas do sul; ou talvez a ignorasse, ou porventura não era ainda tão popular por lá como depois veio a ser. Fosse como fosse, este Reginaldo parece ser o Eginard de Carlos Magno, esta infanta a princesa sua filha, este rei o Imperador seu pai. A troco da bela cena da neve que nos falta, temos a visita da mãe de Reginaldo à prisão, e o lindíssimo solau que lhe ele canta. O que tudo parece composto nos mais ternos e desgarrados modos de Bernardim Ribeiro, ou de Crisfal. E temos por fim o rei chamando a filha ao balcão para ouvir cantar o preso: cena verdadeiramente homérica e de uma graça tão simples e tocante como não há outra que o seja mais.
Estou que nos veio de França este romance: não se encontra nas coleções castelhanas; e entre nós é dos que andam mais desfigurados e corruptos. Eu tive de reunir vários fragmentos para o restituir. No Alentejo chamam-lhe Generaldo, no MinhoGirinaldo; Eginaldo diz uma cópia da Beira, e outra que me veio do Porto trazia por título – Girinaldo o atrevido.
As variantes não são muitas, porque não pude considerar como tais as ligaturas absurdas com que partes do romance andavam cosidas a partes igualmente desconjunta das de outros, dos quais tive de o estremar para reunir o que felizmente achei que acertava e quadrava num todo completo.
São infinitas e muito disparatadas as variantes que desprezei na maior parte ao emendar conjeturalmente o romance. Também não valia a pena de as mencionar em nota. Fiz somente exceção a favor de algumas que juntei por mais consideráveis.
Na citada coleção do bispo Percy* vem uma balada inglesa que tem por títuloLittle Musgrave and Lady Barnard, história bastante diferente desta, mas há no princípio uns dizeres tão semelhantes aos nossos, que mais me confirmam nesta crença em que estou de que o verdadeiro romance antigo era de todos os países, como a todos pertencia o menestrel, o trovador, o cavaleiro andante, cuja pátria era o mundo. Fosse onde fosse, era sua a terra ou o castelo onde havia façanhas que fazer ou celebrar – aventuras para correr ou cantar. O romance Inglês é dos que reconhecem por mais antigos os coletores daquela nação.
          
Almeida GarrettRomanceirovolume II, 1852,
Mem-Martins, Europa-América, 1992, p, 107, s.
          
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Percy's Reliques, XL sece. III, book the first.
                                         


            
ANÁLISE DO RIMANCE
             
«Reginaldo»
Da responsabilidade de Almeida Garrett, 1852 

Romanceirovolume II, Mem-Martins, Europa-América, 1992, p, 107, s.
            
Trata-se de um romance tradicional ou rimance, na versão trabalhada por Almeida Garrett.
Os rimances são poemas de características épico-líricas que se costumavam cantar, acompanhados de instrumentos de corda, ora em danças corais, ora em reuniões de recreio ou trabalho. Ficaram na tradição oral e cada um deles tem inúmeras versões, espalhadas pelas mais diversas zonas do país e da Península.
tema Amor, tratado em «Reginaldo», desenvolve-se abordando as relações amorosas pré-matrimoniais e suas consequências:
Uma princesa convida um pajem a dormir com ela. Apanhados em flagrante pelo rei, o «atrevido» é preso numa masmorra. Mas, sensibilizado ao ouvir um diálogo (cantado) entre o cativo e a sua mãe ‑ que o visitara na prisão ‑, o rei liberta-o e dá-o em casamento à filha.
Vejamo-lo mais pormenorizadamente, através do resumo das várias sequências narrativas:
1. Sedução. A infanta, apaixonada por Reginaldo, convida-o a dormir com ela, provocando-o na sua valentia (v. 1 a 16).
2. Encontro. À hora combinada, Reginaldo vai ter ao quarto da princesa e passam a noite juntos (v. 17 a 34).
3. Descoberta. Desconfiado, o rei entra no quarto, verifica o que se passa e deixa um punhal entre eles (v. 35 a 62).
4. Despertar. Quando acordam, Reginaldo fica aterrorizado. Ela está disposta a tudo (v. 63 a 76).
5. Interrogatório. O rei interroga Reginaldo que lhe responde, ambiguamente, ter ido à caça (v. 77 a 78).
6. Dilema. O rei, perturbado, pede conselho e manda-o encerrar numa torre-prisão, como «princípio de castigo» (v. 89 a 104).
7. Canção. A mãe de Reginaldo vem visitá-lo e pede-lhe que cante, antes de morrer (v. 105 a 152).
8. Decisão. O rei, ouvida a canção, decide-se pelo casamento da princesa com o pajem (v. 153 a 168).
espaço onde decorre a ação é referido sem preocupações descritivas. Trata-se de um palácio real com torres (v. 95) que servem de prisão gradeada e escura (v. 150 s.), «varandas altas» (v. 153), salas com «porta e postigo» (v. 47 s.) e aposentos diversos (da infanta ‑ v. 23 31; 49 ‑ e suas aias; do rei e seus vassalos -‑v. 35 s.).
Evidenciam-se, em termos de espaço social, os valores tradicionais da corte medieval, a harmonia e a fidelidade, aqui com esbatimento de barreiras hierárquicas, sugerindo, por exemplo na conduta do rei, uma certa vivência democrática.
A história, que se dá num período de poucos anos, contempla momentos de passagem lenta do tempo, em que predomina o psicológico (ansiedade de Reginaldo quando se apercebe de que foram descobertos (v. 65); do rei, que dá «voltas ao sentido» (v. 90); e da mãe, ao recordar as tristezas familiares (v. 111 s.), e de passagem rápida, ou melhor, dita em poucas palavras (elipse), «ano e dia é passado/ e a sentença por dar», igualmente com grande carga psicológica (v. 107 s.).
As personagens que dão vida a esta história são: umas, principais -‑ Infanta, Reginaldo e Rei; outras, secundárias -‑ mãe de Reginaldo – e simples figurantes -‑ aias e vassalos.
A sua caracterização física direta fica-se por referências mínimas, quase nulas: a infanta era «bela (v. 65), Reginaldo usa «sapato de pano» (v. 21). Deduz-se, no entanto, (caracterização física indireta) que a infanta e o pajem eram jovens saudáveis e que a mãe deste usava cabelos compridos (v. 117 s.).
Infanta. Sedutora, quebra os tabus, alicia o pajem (v. 7 s.) e «compra» cúmplices na figura das aias (v. 30). Lúcida, reconhece o mal feito (v. 73). Responsável, assume as consequências do ato realizado (v. 74). Decidida, dispõe-se a morrer, caso tal aconteça ao parceiro (v. 76), e enfrenta o pai, acusando-o de mandar «degolar» um «triste, sem ventura », o pajem da sua paixão (v. 166 s.).
Reginaldo. Pajem, querido do rei (v. 2), é conhecido como «atrevido » (v. 4). Voluntarioso, reconhece o facto (v. 5 s.) e aceita o desafio da infanta (v. 13 s.; 21; 33). Responsável, assume as consequências do ato praticado (v. 85 s.), embora lamentando a sua sorte (v. 135 s.; 145 s.).
Rei. Assumindo o seu papel de senhor (v. 35 s.), pai (v. 59 s.) e juiz (v. 88 s.), investiga e torna conhecimento direto do sucedido (v. 45 a 50), aceita a opinião dos vassalos (v. 57 s.) e decide com moderação, protelando (v. 59 s.). «Bom e sofrido» (v. 72), ouve o réu (v. 77 s.), decreta a sentença de morte (v. 88), mas, compenetrado do seu triplo papel, dá «voltas ao sentido» (v. 90), escuta de novo os conselheiros (v. 103 s.) e ordena, «por princípio de castigo» (v. 95 s.) a prisão do pajem. Por fim, rende-se às lamentações expressivas do réu (v. 145 s.) e ao posicionamento crítico da filha: «Prende-o tu, infanta, agora,/pois contigo há-de casar» (v. 167 s.).
linguagem utilizada no texto, transcrito e retocado por Almeida Garrett, reflete bem as marcas do tempo da escrita, sem, no entanto, esconder a origem tradicional do rimance, com seus traços característicos. Por detrás desta roupagem romântica, é evidente uma mentalidade consentânea com o Humanismo Renascentista, a recordar, por exemplo, o Auto da Índia, de Gil Vicente, no que respeita à capacidade de iniciativa da mulher.
O efeito mágico do canto liberta Reginaldo, de acordo com o reconhecimento cultural da função estética e social da arte (vv. 152-167).
Este rimance, pertencendo, embora, ao género narrativo – conta uma história -‑, reúne num único texto os três géneros literários. O jogo conotativo dá-lhe, definitivamente, o tom e a melodia típicos e necessários ao prazer de ler.
           
António Moniz e Olegário Paz, Ler para ser. Percursos em Português B. 10º Ano. Lisboa, Editorial Presença, 1993, pp. 42-44
             
 
           
                 

Pan-Hispanic Ballad Project
Proyecto sobre el Romancero pan-hispánicoArchivo Internacional del Romancero pan-hispánicoUna base de datos de versiones de romances antiguos y modernos 
          
0023:129 Gerineldo (í-o)            (ficha nº: 7194) 

Versión de S. Miguel (isla de S. Miguel, AçoresPortugal).   Recogido antes de 1869. Publicada en 
Braga 1869, (y Braga 1982), 265267. Reeditada en Hardung 1887, I. 103106; Soares de Sousa 1902, 323326; RGP I 1906, (reed. facs. 1982) 201-204; RTLH 6-8 (1975-1976), 53-54; Cortes-Rodrigues 1987, 175177 y Carinhas 1995, II. 57 y RºPortTOM 2003, vol. 3, nº 1244, pp. 461-462. © Fundação Calouste Gulbenkian.  082 hemist.  Música no registrada.
  
--Gerenaldo, Gerenaldo,    pajem do rei bem querido,
  2  
porque não falas de amores    que estás aqui só comigo?
    
--Por eu ser vosso vassalo,    senhora, zombais comigo?
  4  
--Gerenaldo, eu não zombo,    falo deveras contigo.
    
--Vós quando quereis, senhora,    que vá ao vosso serviço?
  6  
--Das dez horas para as onze,    quando o rei `stiver dormindo.--
    
Ainda não eram dez horas,    Gerenaldo já erguido,
  8  
sapatinho descalçou,    a fim de não ser sentido,
    
foi à sala da infanta,    deu um ai mui` dolorido.
  10  
--Quem é esse cavaleiro,    das armas tão atrevido?
    
--É Gerenaldo, senhora,    que vem ao vosso serviço.
  12  
--Levanta os cortinados,    vem-te aqui deitar comigo,
    
de beijinhos e abraços,    hás-de ser mui` bem servido,
  14  
nada mais t` eu não prometo    que entre nós será sentido.--
    
Dali mais a poucochinho,    o rei andava erguido,
  16  
chamando por Gerenaldo    que lhe desse o seu vestido.
    
Andou de sala em sala,    de postigo em postigo.
  18  
--Gerenaldo não me fala,    Gerenaldo é falecido,
    
ou Gerenaldo é morto,    ou traição tem cometido,
  20  
ou me está com a infanta,    a prenda que eu mais estimo.--
    
Alevantou-se o bom rei,    o seu vestido vestiu,
  22  
seus sapatos na mão,    p`ra o passo não ser sentido.
    
Fora de passo em passo,    de castilo em castilo,
  24  
foi à cama da princesa,    aonde ele nunca ia,
    
estavam cara com cara,    como mulher com marido.
  26  
--Para matar Gerenaldo,    criei-o de pequenino,
    
para matar a infanta,    meu reino fica perdido.--
  28  
Pegara do seu punhal,    entre eles ficou metido.
    
--Acordai, senhora infanta,    que o nosso mal é sabido,
  30  
o punhal de vosso pai,    entre nós está metido.
    
--Cal`-te, cal`-te, Gerenaldo,    que meu pai é meu amigo,
  32  
se ele te mandar matar,    aplico que és meu marido,
    
se ele te mandar prender,    não hás-de ser mal servido,
  34  
se ele te perguntar,    não lhe negues o partido.--
    
--Donde vens, ó Gerenaldo    que vens tão descolorido?
  36  
--Venho de regar a horta,    pela manhã do rocio.
    
--Não me mintas, Gerenaldo,    que nunca me hás mentido.
  38  
--Venho de caçar a rola,    da outra banda do rio.
    
--A rola que tu caçaste,    já ta tinha prometido,
  40  
pois toma-a por tua mulher    e ela a ti por marido,
    
se queria outro mais alto,    tivera ela juízo.--
Variantes: -6b estiver (1906); -15a daí (1906).
     
                     
INTERTEXTUALIDADE (PARÓDIA)



Gerinaldo, Meu Petiz

- Pajem do imperador, Gerinaldo, meu petiz,
vem ter comigo esta noite, passar uma hora feliz,


o meu pai não estará cá, vai pra casa do juiz,
ficaremos só os dois, vou mostrar-te uns bikinis.

- Mas um dia sereis vós, a minha imperatriz?!
Fica mal dormir c'um pajem, vão chamar-te meretriz,

- Entre as dez e as onze, na casa da embaixatriz,
eu estarei lá no jardim, a ouvir os cris-cris.

Ainda não eram nove, já lá está o seu petiz:
- Oh pajem, que corpo lindo, foi o que eu sempre quis!

O rei, esse não andava a trabalhar com o juiz,
era desculpa mal dada, pra dormir com a embaixatriz.

Acorda a meio da noite, para fazer uns chichis,
desce abaixo ao jardim, vai regar uma raiz.

Mas espantado olha prò lado, para trás do chafariz,
está lá o seu Gerinaldo e a sua filha Beatriz.

- Que é que eu faço, Gerinaldo?! Vou cortar-te os kiwis!
Mas pensando bem melhor, ele tem modos tão gentis…

Vou deixar a minha espada, entre os dois corpos fabris,
amanhã quando acordarem, pomos os pontos nos is.

Gerinaldo acorda cedo, tem uma espada no nariz,
levanta-se com cuidado, não quer uma cicatriz.

- Olha, a espada de meu pai! Tem aqui a flor-de-lis.
Não fujas, vai ter com ele, vamos ver o que ele diz.

- Donde vens, ó Gerinaldo? Estás com cara infeliz?
- Venho da caça, senhor, apanhei uma perdiz.

-Gostas de caçar à noite, mas que mal é que eu te fiz?
Estou farto das tuas histórias, das desculpas infantis.

Vais casar com a minha filha, a futura imperatriz,
de pajem passas a genro, do Imperador Luís.


Romanceiro tradicional: versões factícias / Nuno Neves ; rev. Fernando Villas-Boas. – 1.ª ed. - Algés: Publicações Serrote, 2011. - 64 p.: il. ; 21 cm. - ISBN 978-989-65745-3-3

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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/06/08/reginaldo.aspx
Última atualização: 2018-07-22]

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Estar numa ilha é um modo de vida


     








INSULARIDADE: ILHA − UTOPIA, ISOLAMENTO, ENCANTAMENTO

Desde os tempos primordiais que as ilhas e a vida nesses territórios isolados, de reduzida dimensão e perdidos nos oceanos, despertam curiosidade, favorecendo a imaginação, estimulando a criatividade e a escrita do romance. Na literatura e no imaginário Ocidental há lugar para ilhas que guardam tesouros, que são povoadas por raças e espécies de fauna e flora inusitadas, que acolhem florescentes reinos inacessíveis, que são santuários de civilizações extraordinariamente avançadas. Apesar de garantirem o acesso aos territórios insulares por vários meios e em qualquer altura − a maioria das ilhas e a vida que nelas acontece estão hoje ao alcance de qualquer um através da internet − as novas tecnologias revelaram-se, porém, incapazes de retirar a esses espaços um poder icónico que continua a garantir-lhes uma força atrativa consagrada pela literatura ao longo de séculos.
A condição especial desse tipo de territórios levou, por exemplo, Thomas More e José Saramago a transformar penínsulas em ilhas, criando as condições necessárias ao ensaio de novas soluções económicas ou políticas para a humanidade, no caso do primeiro, ou de caminhos alternativos, no caso do segundo.
Fisicamente apartados − o fundador da Utopia destruiu o istmo que ligava a ilha ao continente e fenómenos sobre-humanos determinaram a rutura da Ibéria face ao continente Europeu, obrigando-a a navegar, qual Jangada de Pedra, sem rumo no vasto Atlântico − ambos os territórios ganham dinâmicas internas que impõem, por si só, outras formas de organização.
Se em More essa nova ilha “afortunada” surgia com o propósito de pôr em evidência as falhas do sistema económico, político e social britânico, contrapondo-lhe um regime supostamente perfeito, em A Jangada de Pedra pretende-se questionar a opção portuguesa pela integração europeia. Não deveria Portugal optar por uma relação privilegiada com a Espanha, companheira de viagem, e com as suas antigas colónias? Eis a questão lançada por Saramago.
Como sobrevive e reage um europeu do século XVIII sozinho e entregue à natureza durante um largo período de tempo? É outra das interrogações a que a literatura que tem as ilhas por cenário pretende responder em Robinson Crusoé. Claro que a obra emblemática de Daniel Defoe não se fica pela abordagem dessa questão, uma vez que usa também a ilha como espaço propício à reflexão sobre temas tão primordiais como a condição humana ou a religião. O mesmo se passa com As Viagens de Gulliver, em que Jonathan Swift, fazendo o seu herói cumprir um périplo por ilhas com sistemas de poder e de organização diversos, volta a destacar a crítica ao comportamento político e humano da sociedade europeia do seu tempo. Em A ilha debaixo do mar, Isabel Allende propõe outra possibilidade de resposta associada à condição de ilhéu – espaço de consolação e de realização daqueles que nunca em vida podem ser felizes, os escravos. Conta a escrava Zarité, protagonista da obra, numa referência a essa ilha mítica:
Ainda ontem estive a dançar na praça com os tambores mágicos de Sanité Dedé. Dançar e dançar. De vez em quando, aparece Erzuli, a loa mãe, loa do amor e monta Zarité. Então vamos as duas a galopar visitar os meus mortos na ilha debaixo do mar. É assim (2009: 511).
     Pelo menos para os que vivem em continentes ou em ilhas cuja dimensão se lhes assemelha as regiões insulares surgem identificadas como realidades exóticas, em que serão possíveis modos de vida sonhados e um homem feliz num mundo encantado, maravilhoso, afortunado. Seja pela singularidade do seu microcosmos, pela presença constante de mar e céu ou pela intimidade e solidão que proporcionam, as ilhas têm habitado o imaginário dos povos desde a lendária Ítaca de Ulisses e Penélope. E hoje, mesmo sabendo que já não há ilhas por descobrir, o homem continua à procura, através das mais variadas formas de arte ou meios de construção e expressão simbólica, do espaço insular como território de refúgio, de surpresas e de realização do sonho.
     Mas para muitos autores, sobretudo para os que nelas vivem, as ilhas podem, pelo contrário, ser espaços de degredo e purgação, de sofrimentos e dor. Em As lhas Desconhecidas, Raul Brandão, um autor que viveu o drama do isolamento e das difíceis condições de subsistência no arquipélago durante dias numa visita ao Açores faz um retrato particularmente dramático da vida na região. Numa referência em particular ao Corvo escreve:
Sinto-me encerrado num presídio e a minha vontade é fugir: a vida monótona tem um peso com que não posso arcar. Já não suporto a existência natural. Nem poderia viver como os corvinos ali preso aos vivos e aos mortos, com o Tempo lá no alto a presidir a todos os atos necessários e fatais da vida rudimentar (2002: 21).
Ainda que enquadrada na explicação para a ausência de mendicidade e miséria, a sensação de cerco, especialmente vivenciada nas ilhas em consequência de uma exposição permanente ao olhar dos outros e à obrigação de uma absoluta submissão às leis e costumes coletivos, tinha já sido aludida por More:
[Na ilha da Utopia] Está cada um constantemente exposto aos olhares de todos os outros e vê-se na necessidade de trabalhar e de descansar segundo as leis e costumes do país. Desta vida pura e ativa resulta em tudo abundância. O bem-estar difunde-se igualmente por todos os membros dessa admirável sociedade, onde mendicidade e miséria são monstros ignorados (1978: 94).
Helena Marques, uma escritora madeirense contemporânea, também alerta para o peso do isolamento imposto à condição insular, justificando com essa circunstância a regular necessidade de “fuga” admitida pelo médico Marcos, personagem central de O Último Cais:
Ele acabou, contrafeito e reticente, por admitir a palavra fuga: pois então é de fuga que se trata, Marcos. Não de mim, amor, ou até confessa, um pouco também de mim. Mas sobretudo fuga do tédio, do consultório, do hospital, dos doentes, das visitas obrigatórias, dos passeios sempre iguais, das conversas sem surpresa, das mesmas caras e das mesmas cenas, ano após ano (1995: 25).
Ainda recentemente, e depois de uma viagem pelos Açores cujo relato parece pretender desmontar alguns dos mitos sobre a vida em ilhas, Joaquim Manuel Magalhães escreveu acerca das Flores: "Houve uma ilha em que nada tinha à minha espera nem nada encontrei. Apenas taxistas com carros poluentes, o cheiro da gasolina e os escapes do motor inundado os bancos de trás cujas janelas era impossível de abrir" (1993: 27), acrescentado um pouco mais adiante: "Vi uma ilha tão isolada e conflituosa no interior de si mesma, povoada além dos esperáveis sexismos, por ataques de casta e de racismo (a chegada de trabalhadores cabo-verdianos para a construção do talvez absurdo porto das Lajes é motivo de ignaras chacotas)" (idem: 28) .
Embora tenha espelhado em variadas das suas obras as dificuldades específicas da condição de vida na insularidade, em títulos como Paço do Milhafre, Mistério do Paço do Milhafre ou Corsário das Ilhas, Vitorino Nemésio parece mais conciliado com condição ilhoa, a que atribui, aliás, determinadas vantagens:
Um continente é uma coisa muito grande e incerta para mim. A ilha é mais curta. Sai melhor das águas. De longe parece um pão. Ao perto é o que é: uma rocha com casas; gente dentro. Em geral há muito peixe, alguma caça e pastagens. Como há pastagens, há carneiros e, havendo carneiros, há lã para a gente vestir. Pode-se morrer descansado numa ilha. A cova nem por isso é mais curta. (2000: 38).
Particularmente críticos sobre as condições de vida que a ilha proporciona e acerca de uma superestrutura (traços económicos, políticos e culturais prevalecentes) que condiciona o modo de ser insular são, de modo especial, dois dos principais escritores contemporâneos, João de Melo e José Martins Garcia. Se em O Meu Mundo não é Deste Reino e Gente Feliz com Lágrimas, João de Melo retrata a miséria da condição humana na sua freguesia natal na ilha de S. Miguel e a obrigação de sair para sobreviver, em O Medo, A Fome e Contrabando Original, Martins Garcia reporta-se tanto a esses temas como à permanente condenação do insular pela sua origem: vá para onde vá, leva a ilha consigo.
Afonso Alberto Pereira Pimentel, Identidade, globalização e açorianidade
(Dissertação de Mestrado em Estudos Interculturais: Dinâmicas Insulares). 
Ponta Delgada: Universidade dos Açores, 2013, pp. 25-29.



       
   

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/05/29/Chrys.Chrystello.aspx]