quinta-feira, 15 de agosto de 2013

TU, QUE ORA VENS DE MONTEMAIOR (Gil Sanches, séc. XIII)

              
A simples hipótese da separação da sua dama lança o poeta no desespero, “os seus olhos não mais dormirão”.
              

                      





Tu, que ora vens de Montemaior,

tu, que ora vens de Montemaior,

digas-me mandado de mia senhor,

digas-me mandado de mia senhor;

5

       ca se eu seu mandado

       nom vir, trist'e coitado

       serei; e gram pecado

       fará, se me nom val;

       ca em tal hora nado

10

       foi que, mao-pecado!,

       amo-a endoado,

       e nunca end'houvi al!

Tu, que ora viste os olhos seus,

tu, que ora viste os olhos seus,

15

digas-me mandado dela, por Deus,

digas-me mandado dela, por Deus;

       ca se eu seu mandado

       nom vir, trist'e coitado

       serei; e gram pecado

20

       fará, se me nom val;

       ca em tal hora nado

       foi que, mao-pecado!,

       amo-a endoado,

       e nunca end'houvi al!
                       
Dom Gil Sanches (CA 332 / CBN 22)
              
                 
Glossário e notas:
v. 1: ora – agora.
v.1: Montemaior ‑ Cantiga de amor que, ao contrário do que acontece habitualmente com as composições deste género, pode ser datada com alguma precisão. Na verdade, a referência a Montemor remete-nos indiscutivelmente para um dos espaços centrais do prolongado conflito que o rei D. Afonso II manteve com suas irmãs Teresa, Sancha e Mafalda a propósito do testamento de seu pai, D. Sancho I. Montemor-o-Velho foi, de facto, a praça forte de D. Teresa, a mais ativa das infantas, tendo sido inclusivamente cercada pelas tropas do monarca seu irmão em 1213, no que constituiu um dos principais episódios bélicos do conflito. Este facto levou D. Carolina Michaellis a sugerir que a composição de D. Gil Sanches teria sido composta nessa data. Como Resende de Oliveira (Gil Sanchez", in Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, Lanciani, Giulia e Tavani, Giuseppe (org.), Lisboa, Editorial Caminho, 1993), pensamos, no entanto, que a juventude do trovador à época parece contrariar esta datação. Mais plausível é a hipótese, avançada por este investigador, de ela ter sido composta em 1223, aquando da assinatura do tratado de paz entre o novo monarca, D. Sancho II, e suas tias, tratado esse confirmado exatamente em Montemor por D. Garcia Mendes d´Eixo, pai de D. Maria Garcia de Sousa, a donzela com quem D. Gil Sanches se ligou (e que poderá ser a destinatária da cantiga). ©2011-2012 Littera - FCSH
v. 3: mandado - notícia, mensagem; digas-me mandado – dá-me notícias.
v.5: ca - pois, porque
v. 7: serei – ficarei
v. 9: ca em tal hora nado – porque em tão má hora nasci.
v. 10: foi – fui
v. 10: mal/mao pecado - infelizmente, por mal dos meus pecados
v. 11: endoado - inutilmente, em vão
v. 12: ende - disso, daí
v. 12: al (em frases negativas) - mais nada
vv. 9-12: pois nasci em tal hora, que, por minha infelicidade, amo-a em vão e nunca obtive outra recompensa.
                 
Descrição dos processos formais de versificação:
Cantiga de refrão paralelística composta por duas estrofes singulares: dois dísticos monorrimos, de versos iguais (paralelismo popular), decassílabos e hexassílabos, e um longo refrão palaciano, segundo o esquema rimático: 10a   10a   10a   10a   6’B   6’B  6’B   6C   6’B   6’B   6’B   6C
                 
Sugestão temática:
Saudade da mulher amada, através de alguém que vem de Monte-Maior.
            
Quanto ao assunto:
O trovador está triste e maldiz a hora em que nasceu, pois a sua “senhor” não lhe mandou recado de Monte-Maior, e lastima-se nunca ter recebido nada dela.
              
Leitura interpretativa:
Coitado do trovador! Interpela alguém que vem de Monte-Maior e que pode trazer novas da sua amada: “digas-me mandado de mha senhor”.
É que está tão infeliz!... Maldiz a hora em que nasceu: “pois en tal hora nado foi”. Ama-a em vão.
E muito à maneira dos cantares de amigo, o poeta recorre ao paralelismo de construção e semântico e anafórico, a primeira estrofe com versos iguais dois a dois, seguidos de um refrão bastante pouco usual, pois é muito grande, expande-se por oito versos, numa tensão amorosa sem tamanho. É mesmo o sofrer de amor, a saudade pela “senhor” que está em Monte-Maior.
O pronome “tu”, apóstrofe, logo no princípio, remete-nos de uma forma muito natural e espontânea para alguém que chegou e lhe pode dizer novas da dona.
E, no refrão, tenta explicar, desabafar a sua dor: é que se ele não trouxer recado dela, “se seu mandado não vir”, “triste e coitado” ficará. A dupla adjetivação a dar-nos a dimensão da sua dor. E ela far-lhe-á muito mal se não vier em seu auxílio. Então maldita seja a hora em que ele nasceu. Para sua infelicidade, ama-a sem jeito, em vão, e nunca recebeu dela outra coisa.
O ritmo marca também a agonia do sujeito, predominando os sons abertos, como num grito de desabafo. O polissíndeto, utilizado no refrão, marca o desespero do poeta, num queixume de dor, num imenso suspiro que não para… A anáfora “ca” tem valor explicativo.
E ele continua a interpelar a pessoa que, vindo de Monte-Maior, viu os olhos da sua amada, e pede-lhe, por Deus, que lhe dê notícias dela.
Novamente num tom obsessivo, diz-lhe que, se não trouxer recado dela, ficará muito triste e maldiz a sua sorte, pois tal amor foi em vão, nunca recebeu nada dela.
Como vemos, nesta cantiga de amor, temos toda a estrutura da cantiga de amigo. O refrão é demasiado grande, mas fora isso, temos o paralelismo semântico e de construção anafórico, as ideias repetem-se obsessivamente.
(Adaptado de A Lírica Trovadoresca, Maria José Barbosa, Mem Martins, Edições Sebenta, [1997])
           
           
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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/08/15/tu.que.ora.vens.de.montemaior.gil.sanchez.aspx]

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

A PAZ SEM VENCEDOR E SEM VENCIDOS (Sophia Adresen)


  A Pomba, de uma série de gravuras dedicada aos pássaros, foi utilizada em um cartaz do Congresso pela Paz em Paris, e a partir de então tornou-se um símbolo universal.  
         
                 
                 
A PAZ SEM VENCEDOR E SEM VENCIDOS

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça.
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ter melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos
                    
Sophia de Mello Breyner Andresen, “Em Memória” (1972) in Dual
                    
                    
Sophia de Mello Breyner vai metaforicamente aludir às situações de opressão e de injustiça que proliferavam em Portugal.
Utilizando intertextos religiosos vai apelar à “paz sem vencedor e sem vencidos”, a que “nasce da verdade”, “da justiça”, da própria “liberdade” de forma a que o “reino” de Deus seja instituído em Portugal. Será nesse tempo “novo” que a nação poderá recomeçar dominada pela “esperança e justiça”. Para que tal suceda urge que “a paz seja de todos”, que cada ser consiga “ler melhor a vida” e entenda o “mandamento” de Deus. Sophia deixa, então, implícito que é necessário abolir a situação de injustiça que domina a sociedade da época, mas que tal só será frutífero se uma situação de injustiça não for substituída por outra. Estes dois textos são um dos muitos exemplos do ato de solidariedade que é a escrita, da sua função de ser um relatório entre a criação e a sociedade bem como da sua ambivalência já que esse ato nasce do confronto do escritor com a sociedade e, ao mesmo tempo, procura interferir ou pelo menos projetar-se nessa sociedade que lhe deu origem, estabelecendo uma circularidade, um “transfer tragique” como lhe chamou Barthes entre texto/escritor/sociedade. A poesia assumiu para o homem da época a dimensão de “um ato total”, a partir dela era possível relacionar a situação do próprio homem com a da sua criação poética.
                 
Portugal sob a égide da ditadura: o rosto metamorfoseado das palavrasTese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005, pp. 75-77.
           
           
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 Perfil poético e estilístico de Sophia de Mello Breyner Andresen - apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da lírica de Sophia de Mello Breyner Andresen, por José Carreiro. Folha de Poesia, 2020-07-17


 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   
                  

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/08/14/a.paz.sem.vencedor.e.sem.vencidos.aspx]

terça-feira, 13 de agosto de 2013

COMO ULISSES TE BUSCO E DESESPERO (Manuel Alegre)


      
                
              
COMO ULISSES TE BUSCO E DESESPERO


Como Ulisses te busco e desespero
como Ulisses confio e desconfio
e como para o mar se vai um rio
para ti vou. Só não me canta Homero.

Mas como Ulisses passo mil perigos
escuto a sereia e a custo me sustenho
e embora tenha tudo nada tenho
que em te não vendo tudo são castigos.

Só não me canta Homero. Mas como Ulisses
vou com meu canto como um barco
ouvindo o teu chamar ‑ Pátria Sereia
Penélope que não te rendes – tu

que esperas a tecer um tempo ideia
que de novo teu povo empunhe o arco
como Ulisses por ti nesta odisseia.
             
Manuel Alegre, Praça da Canção/O Canto e As Armas, 1.ª ed. de bolso, 
Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000, pág.189.
             
 
                   
             
Manuel Alegre em “Como Ulisses te busco e desespero” aproveita o mito do regresso a Ítaca de Ulisses para abordar a sua busca da pátria perdida e inacessível.
À semelhança do herói escolhido, também o sujeito poético passa “mil perigos”, procura desesperadamente a pátria já que não a ter equivale a ter perdido tudo. Ao longo desse retorno a casa, o sujeito é seduzido pelo canto das sereias; mas, como Ulisses, resiste a essa ilusão – o canto do aparelho de Estado e do Portugal que quer projetar no mundo – e contrapõe-lhe o seu próprio canto. De igual forma, a pátria age como Penélope: não se rende, não perde a esperança “que de novo o teu povo empunhe o arco” e permanece tecendo “um tempo ideia” em que esta “odisseia” termine. No entanto, o sujeito poético sabe que só a ele compete fazer ouvir a sua voz dado que não existe um “Homero” para cantar as tormentas que tem que enfrentar para libertar a pátria. É entre a desconfiança e a confiança no apelo emitido pela sua pátria-sereia-Penélope que o sujeito navega rumo a um futuro que ele espera ser o fim da sua “odisseia”.
                 
Portugal sob a égide da ditadura: o rosto metamorfoseado das palavrasTese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005, pp. 74-75.
2005, pp. 72-74.
           
           
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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/08/13/como.Ulisses.te.busco.e.desespero.aspx]

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

UM ADEUS PORTUGUÊS (Alexandre O'Neill)


 


UM ADEUS PORTUGUÊS

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal
 
*
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
            
Alexandre O’Neill, No Reino da Dinamarca, 1958
              
            
A HISTÓRIA DE UM POEMA
             
Quando escrevi «Um Adeus Português», há quase quarenta anos, estava a sofrer pressões inacreditáveis, por parte de alguém da minha família, para não «ir atrás da francesa». A francesa, a minha querida e já falecida amiga Nora Mitrani, queria que eu fosse ter com ela a Paris, onde vivia. «Vens, ficas cá e depois se vê», era o que o seu otimismo me dizia por carta. Mas as coisas não se passaram assim. 
A pressão (ou, melhor, a perseguição) chegou ao ponto de ter sido metida uma cunha à polícia política para que o passaporte me fosse denegado, o que aconteceu, não sem que eu, primeiro, tivesse sido convocado para a própria sede dessa polícia e interrogado pelo subinspetor Seixas. Seixas usou comigo de uma linguagem descomedida. Perguntou-me que ia eu fazer a Paris. Respondi: ‑ Turismo.
Quis saber se eu conhecia a senhora N. M. Eu disse que sim. Então Seixas retorquiu: ‑ Se calhar V. quer ir porque essa gaja lhe meteu alguma coisa na cachola. Com a serenidade que me foi possível, fiz-lhe saber que se enganava, que N. M. não era uma gaja e que eu não tinha cachola. Pareceu surpreendido. Depois, irritado, mandou-me sair. E assim estive anos sem conseguir passaporte.
Claro que o poema não se gerou apenas desta situação, mas ela contribuiu poderosamente, com outros fatores circunstanciais bem conhecidos, para que o poema aparecesse. Era uma época em que tudo cheirava e sabia a ranço, em que o amor era vigiado e mal tolerado, em que um jovem não era senhor dos seus passos (errados ou certos, não interessa).
Semanas depois, «nascia» o poema e, com ele publicado, uma relativa notoriedade. É que o poema, ingénuo como é, tem realmente a força do nojo e do desespero combinados com um derrame/contenção sentimental que não mais igualei. Então, durante algum tempo, fiquei conhecido como o poeta de «Um Adeus Português».
A minha amiga, que não voltei a ver (quando a fui procurar em Paris já tinha morrido), ainda tomou conhecimento deste poema. Escreveu-me: «Li o teu Adeus. Fiquei atrozmente comovida.»
Claro que um poema não é feito de nojos, desesperos e derrames sentimentais, mas, no caso, a felicidade de expressão foi vivamente alimentada por uma raiva e um amor desmesurados, quer dizer, adolescentes. E o poema foi ficando e passando para as antologias.
Explico tudo isto porque outro dia me chegou às mãos um número da Europededicado à literatura de Portugal. E lá aparece, numa tradução bastante pobre, o tal «Adeus... ». Não é que, na nota proemial, em que me definem como sarcástico, desesperado e terno, dizem que o poema foi inspirado por Nora Mitrani! Eu acho que, por enquanto, isso é comigo. Também o João Botelho (o do excelente filme Conversa Acabadame telefonou a pedir-me autorização para usar o título do poema para título de um novo filme seu. Dei-lha logo. E nem sequer lhe perguntei se o que ele vai fazer tem a ver com o poema ou não. Isso é lá com ele. Como, insisto, é só comigo que Nora Mitrani tenha sido ou não a inspiradora de «Um Adeus Português». Pelo menos antes da presente explicação.
Tempos.
         
Alexandre O’Neill, Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 94, 1984
             

LEITURA ORIENTADA

1. Alexandre O'Neill recorda as circunstâncias de escrita do poema «Um Adeus Português», recuperando, através do gesto da escrita, um tempo passado.
 1.1. Considera que esse passado pertence apenas à vida privada do escritor, a um passado coletivo ou, enquanto testemunho, alia ambos?
 1.2. Compare os sentimentos vividos pelo autor «há quase quarenta anos» com o tom com que fala deles no depoimento publicado no Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 94.
 2. Depois de ler este testemunho, o que é que, enquanto leitor, aprendeu sobre as relações entre a vida dos poetas e a criação dos seus textos?
 3. Faça o levantamento das imagens ou expressões do poema «Um Adeus Português» que representam a opressão política que se vivia em Portugal.
 4. De que modo se exprime a relação entre amor e liberdade?
 5. Qual a importância da última estrofe para o sentido do poema?
            
(Adaptado de Plural – Português 10º ano / Ensino Secundário, 
Elsa Pinto, Paula Fonseca, Vera Baptista, Lisboa Editora, 2007, p. 84 e p. 162.)
           
            
 ALEXANDRE O'NEILL
            
Alexandre O’Neill optou por fazer referência ao Portugal seu contemporâneo e à forma como as pessoas viviam a partir das metáforas do medo e dos monstros para ilustrar a perseguição, a diminuição da confiança que havia entre os seres humanos, fazendo com que as pessoas olhassem os familiares e a si próprios como se de estranhos se tratasse e não ousassem divulgar as suas ideias. Essa indistinção entre homens e seres nocivos ao seu próprio semelhante é notória, quando O’Neill afirma que: “Monstros e homens lado a lado/Não à margem, mas na própria vida.//Absurdos monstros que circulam /Quase honestamente.” (Alexandre O’Neill, No Reino da Dinamarca, 1958) 
Consciente da forma como o Estado controlava tudo e todos, O’Neill opta por referir-se a esses braços tentaculares e invisíveis como se fossem monstros. Misturados entre os homens, esses seres terríficos deambulam “honestamente”, já que foram criados pelo poder instituído, e procuram ter acesso aos pensamentos das pessoas, dado que circulam indetetáveis, geram o medo que acompanha os homens em todas as situações por mais quotidianas que elas sejam. 
Essa proliferação do medo está patente em “O Poema pouco original do medo” e “Perfilados de Medo”. No primeiro, o autor evidencia o domínio avassalador do medo: ele “vai ter tudo”, desde aspeto humano até aos objetos de luxo. A forma como os delatores se imiscuíam em todas as situações é enfatizada por essa personificação do medo; não só ele vai ter “pernas” como “olhos”, “mãozinhas”, “ouvidos”, vai assumir a forma dos funcionários de Estado ou mesmo dos familiares e dos amigos. Decorrente dessa situação, o medo apodera-se de todos transformando-os em “ratos”, em seres dominados pelo terror incapazes de reagir e de ousar pensar. A capacidade de ter acesso aos mais íntimos pensamentos das pessoas torna-se notória pelo facto de os “ouvidos” do medo poderem estar “nas paredes”, “no chão”, “no tecto” e até “nos teus ouvidos”. Uma vez que esses delatores não são identificáveis, a desconfiança instala-se, aumentam as “suspeitas”, a desconfiança entre as pessoas porque é impossível saber em quem confiar. Por isso mesmo, o sujeito poético constata que a intenção do medo é, de facto, amedrontar de tal forma as pessoas que, dominadas por ele, sejam reduzidas a “ratos”, a meros sobreviventes, sem vontade própria. Contudo esse medo acaba por ser ambivalente. Se, por um lado, aprisiona as pessoas; por outro, é o motor da sua rebelião, do seu inconformismo, é ele “que nos salva da loucura”, como é mencionado no segundo poema. Devido a esse fator, “Perfilados de medo” combatem apesar de saberem que “Decisão e coragem valem menos/e a vida sem viver é mais segura”. Ao viverem dominados por esse medo, transformaram-se, agora, em “irónicos fantasmas”, em seres quase incorpóreos que buscam o que não são e o que nunca chegarão a ser. Dessa perspetiva, assumem o papel de “loucos”, de seres amorfos e destituídos de capacidade para agir e pensar, semelhantes a um “Rebanho”; no entanto, não são conduzidos por um pastor, são “perseguidos” pelo medo e daí viverem em sociedade, mas tão isolados que “da vida [perderam] o sentido”.
Da mesma forma que se refere ao regime e às suas imposições através da metáfora do medo e dos monstros, O’Neill não deixa de tecer críticas ao ambiente que o rodeia quando, supostamente, está a relatar a forma inglória como se processou um dos seus relacionamentos amorosos. Em “Um Adeus Português” torna-se evidente que o afastamento dos dois é causado pelo ambiente castrador e persecutório existente em Portugal que não permite que um estrangeiro consiga sobreviver em tais condições.
Numa espécie de diálogo virtual com a amada, o sujeito poético vai mesclando essas alusões a um Estado controlador, tirano, mesquinho e medíocre. Por isso mesmo, a amada não poderia acomodar-se “à roda em que [ele apodrece] / apodrecemos”; a viver sob a égide da “pata ensanguentada” que a todos persegue; limitando-se a “ficar [naquela] cadeira/onde [passa] o dia burocrático”, vendo a “estupidez” e o “medo perfilado” de um “modo funcionário de viver” já que até os gestos quotidianos foram institucionalizados. Neste contexto, o sujeito poético compreende que não era possível viver com o fantasma dos delatores, não sabendo quando chegaria o “dia sórdido/canino/policial” em que alguém os denunciaria nem ficar reduzida à apatia que dominou os portugueses confinados “à pequena dor”, essa “pequena dor à portuguesa”. O ambiente de Lisboa, corroído pela “náusea”, “idiotia”, “razão absurda de ser”, pela “asfixia”, pela falsidade, não é compatível com o local de origem da amada: a “cidade aventureira”. Como tal, só restou ao sujeito poético despedir-se, dizer-lhe adeus e permanecer neste ambiente letal e castrador.
Estes poemas de O’Neill apresentam algumas das características que Fernando Guimarães (in A Poesia Contemporânea Portuguesa, 2.ª ed. revista e aumentada, Vila Nova de Famalicão: Edições Quasi, 2002, pp. 9 a 17) deteta na poesia das décadas de 40 e 50. Vislumbra-se uma espécie de antilirismo, dado o teor reflexivo dos poemas, que recorre aos símbolos como um espaço de confluência de analogias e associações, criando uma rede de “leituras sobrepostas” e centrando a atenção do leitor sobre a tessitura verbal do poema. A poesia funcionava como um ato de libertação, combatendo uma sociedade repressiva e (re)posicionando o homem dentro de uma outra realidade. Nestes poemas torna-se evidente a capacidade deste escritor em invadir o “lado menor, medíocre, quotidiano e ridículo das coisas”, como refere António Quadros (in A ideia de Portugal na literatura portuguesa dos últimos 100 anos, Lisboa: Guimarães Editores, 1989, pág. 195); apresentando uma visão anti-heroica do Portugal seu contemporâneo, enfatizando o que ele tinha de mesquinho e feio. É esse “olhar ácido” que António Quadros considera estar de acordo com uma espécie de “realismo satírico e liquidatário de todas as heranças românticas ou transcendentais”, que usa o quotidiano para contrapor à imagem sublimada que o regime divulgou e impôs aos portugueses.
Outra das possibilidades encontradas por alguns autores foi o recurso a intertextos clássicos e bíblicos. No entanto, esta opção pressupõe que o leitor conheça esses intertextos e seja capaz de os atualizar. Mais uma vez, o leitor é implicado ativamente no processo de criação poética e, dada a especificidade dos intertextos utilizados, se não tiver acesso a esses referentes a sua interpretação do texto ficará limitada à significação primeira das palavras.
             
Portugal sob a égide da ditadura: o rosto metamorfoseado das palavrasTese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005, pp. 72-74.
            
            
O POEMA POUCO ORIGINAL DO MEDO


O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
             (assim assim)
escriturários
              (muitos)
intelectuais
              (o que se sabe)
com certeza a deles
a tua voz talvez
talvez a minha

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo

(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo             .
que é justamente
o que o medo quer)
          
*                     
O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos
              
Alexandre O’Neill, Abandono Vigiado, 1960
                 
                             
                
                
PERFILADOS DE MEDO

Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.

Perfilados de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido...
                   
Alexandre O’Neill, Poemas com Endereço, 1962
          

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