segunda-feira, 12 de agosto de 2013

UM ADEUS PORTUGUÊS (Alexandre O'Neill)


 


UM ADEUS PORTUGUÊS

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal
 
*
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
            
Alexandre O’Neill, No Reino da Dinamarca, 1958
              
            
A HISTÓRIA DE UM POEMA
             
Quando escrevi «Um Adeus Português», há quase quarenta anos, estava a sofrer pressões inacreditáveis, por parte de alguém da minha família, para não «ir atrás da francesa». A francesa, a minha querida e já falecida amiga Nora Mitrani, queria que eu fosse ter com ela a Paris, onde vivia. «Vens, ficas cá e depois se vê», era o que o seu otimismo me dizia por carta. Mas as coisas não se passaram assim. 
A pressão (ou, melhor, a perseguição) chegou ao ponto de ter sido metida uma cunha à polícia política para que o passaporte me fosse denegado, o que aconteceu, não sem que eu, primeiro, tivesse sido convocado para a própria sede dessa polícia e interrogado pelo subinspetor Seixas. Seixas usou comigo de uma linguagem descomedida. Perguntou-me que ia eu fazer a Paris. Respondi: ‑ Turismo.
Quis saber se eu conhecia a senhora N. M. Eu disse que sim. Então Seixas retorquiu: ‑ Se calhar V. quer ir porque essa gaja lhe meteu alguma coisa na cachola. Com a serenidade que me foi possível, fiz-lhe saber que se enganava, que N. M. não era uma gaja e que eu não tinha cachola. Pareceu surpreendido. Depois, irritado, mandou-me sair. E assim estive anos sem conseguir passaporte.
Claro que o poema não se gerou apenas desta situação, mas ela contribuiu poderosamente, com outros fatores circunstanciais bem conhecidos, para que o poema aparecesse. Era uma época em que tudo cheirava e sabia a ranço, em que o amor era vigiado e mal tolerado, em que um jovem não era senhor dos seus passos (errados ou certos, não interessa).
Semanas depois, «nascia» o poema e, com ele publicado, uma relativa notoriedade. É que o poema, ingénuo como é, tem realmente a força do nojo e do desespero combinados com um derrame/contenção sentimental que não mais igualei. Então, durante algum tempo, fiquei conhecido como o poeta de «Um Adeus Português».
A minha amiga, que não voltei a ver (quando a fui procurar em Paris já tinha morrido), ainda tomou conhecimento deste poema. Escreveu-me: «Li o teu Adeus. Fiquei atrozmente comovida.»
Claro que um poema não é feito de nojos, desesperos e derrames sentimentais, mas, no caso, a felicidade de expressão foi vivamente alimentada por uma raiva e um amor desmesurados, quer dizer, adolescentes. E o poema foi ficando e passando para as antologias.
Explico tudo isto porque outro dia me chegou às mãos um número da Europededicado à literatura de Portugal. E lá aparece, numa tradução bastante pobre, o tal «Adeus... ». Não é que, na nota proemial, em que me definem como sarcástico, desesperado e terno, dizem que o poema foi inspirado por Nora Mitrani! Eu acho que, por enquanto, isso é comigo. Também o João Botelho (o do excelente filme Conversa Acabadame telefonou a pedir-me autorização para usar o título do poema para título de um novo filme seu. Dei-lha logo. E nem sequer lhe perguntei se o que ele vai fazer tem a ver com o poema ou não. Isso é lá com ele. Como, insisto, é só comigo que Nora Mitrani tenha sido ou não a inspiradora de «Um Adeus Português». Pelo menos antes da presente explicação.
Tempos.
         
Alexandre O’Neill, Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 94, 1984
             

LEITURA ORIENTADA

1. Alexandre O'Neill recorda as circunstâncias de escrita do poema «Um Adeus Português», recuperando, através do gesto da escrita, um tempo passado.
 1.1. Considera que esse passado pertence apenas à vida privada do escritor, a um passado coletivo ou, enquanto testemunho, alia ambos?
 1.2. Compare os sentimentos vividos pelo autor «há quase quarenta anos» com o tom com que fala deles no depoimento publicado no Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 94.
 2. Depois de ler este testemunho, o que é que, enquanto leitor, aprendeu sobre as relações entre a vida dos poetas e a criação dos seus textos?
 3. Faça o levantamento das imagens ou expressões do poema «Um Adeus Português» que representam a opressão política que se vivia em Portugal.
 4. De que modo se exprime a relação entre amor e liberdade?
 5. Qual a importância da última estrofe para o sentido do poema?
            
(Adaptado de Plural – Português 10º ano / Ensino Secundário, 
Elsa Pinto, Paula Fonseca, Vera Baptista, Lisboa Editora, 2007, p. 84 e p. 162.)
           
            
 ALEXANDRE O'NEILL
            
Alexandre O’Neill optou por fazer referência ao Portugal seu contemporâneo e à forma como as pessoas viviam a partir das metáforas do medo e dos monstros para ilustrar a perseguição, a diminuição da confiança que havia entre os seres humanos, fazendo com que as pessoas olhassem os familiares e a si próprios como se de estranhos se tratasse e não ousassem divulgar as suas ideias. Essa indistinção entre homens e seres nocivos ao seu próprio semelhante é notória, quando O’Neill afirma que: “Monstros e homens lado a lado/Não à margem, mas na própria vida.//Absurdos monstros que circulam /Quase honestamente.” (Alexandre O’Neill, No Reino da Dinamarca, 1958) 
Consciente da forma como o Estado controlava tudo e todos, O’Neill opta por referir-se a esses braços tentaculares e invisíveis como se fossem monstros. Misturados entre os homens, esses seres terríficos deambulam “honestamente”, já que foram criados pelo poder instituído, e procuram ter acesso aos pensamentos das pessoas, dado que circulam indetetáveis, geram o medo que acompanha os homens em todas as situações por mais quotidianas que elas sejam. 
Essa proliferação do medo está patente em “O Poema pouco original do medo” e “Perfilados de Medo”. No primeiro, o autor evidencia o domínio avassalador do medo: ele “vai ter tudo”, desde aspeto humano até aos objetos de luxo. A forma como os delatores se imiscuíam em todas as situações é enfatizada por essa personificação do medo; não só ele vai ter “pernas” como “olhos”, “mãozinhas”, “ouvidos”, vai assumir a forma dos funcionários de Estado ou mesmo dos familiares e dos amigos. Decorrente dessa situação, o medo apodera-se de todos transformando-os em “ratos”, em seres dominados pelo terror incapazes de reagir e de ousar pensar. A capacidade de ter acesso aos mais íntimos pensamentos das pessoas torna-se notória pelo facto de os “ouvidos” do medo poderem estar “nas paredes”, “no chão”, “no tecto” e até “nos teus ouvidos”. Uma vez que esses delatores não são identificáveis, a desconfiança instala-se, aumentam as “suspeitas”, a desconfiança entre as pessoas porque é impossível saber em quem confiar. Por isso mesmo, o sujeito poético constata que a intenção do medo é, de facto, amedrontar de tal forma as pessoas que, dominadas por ele, sejam reduzidas a “ratos”, a meros sobreviventes, sem vontade própria. Contudo esse medo acaba por ser ambivalente. Se, por um lado, aprisiona as pessoas; por outro, é o motor da sua rebelião, do seu inconformismo, é ele “que nos salva da loucura”, como é mencionado no segundo poema. Devido a esse fator, “Perfilados de medo” combatem apesar de saberem que “Decisão e coragem valem menos/e a vida sem viver é mais segura”. Ao viverem dominados por esse medo, transformaram-se, agora, em “irónicos fantasmas”, em seres quase incorpóreos que buscam o que não são e o que nunca chegarão a ser. Dessa perspetiva, assumem o papel de “loucos”, de seres amorfos e destituídos de capacidade para agir e pensar, semelhantes a um “Rebanho”; no entanto, não são conduzidos por um pastor, são “perseguidos” pelo medo e daí viverem em sociedade, mas tão isolados que “da vida [perderam] o sentido”.
Da mesma forma que se refere ao regime e às suas imposições através da metáfora do medo e dos monstros, O’Neill não deixa de tecer críticas ao ambiente que o rodeia quando, supostamente, está a relatar a forma inglória como se processou um dos seus relacionamentos amorosos. Em “Um Adeus Português” torna-se evidente que o afastamento dos dois é causado pelo ambiente castrador e persecutório existente em Portugal que não permite que um estrangeiro consiga sobreviver em tais condições.
Numa espécie de diálogo virtual com a amada, o sujeito poético vai mesclando essas alusões a um Estado controlador, tirano, mesquinho e medíocre. Por isso mesmo, a amada não poderia acomodar-se “à roda em que [ele apodrece] / apodrecemos”; a viver sob a égide da “pata ensanguentada” que a todos persegue; limitando-se a “ficar [naquela] cadeira/onde [passa] o dia burocrático”, vendo a “estupidez” e o “medo perfilado” de um “modo funcionário de viver” já que até os gestos quotidianos foram institucionalizados. Neste contexto, o sujeito poético compreende que não era possível viver com o fantasma dos delatores, não sabendo quando chegaria o “dia sórdido/canino/policial” em que alguém os denunciaria nem ficar reduzida à apatia que dominou os portugueses confinados “à pequena dor”, essa “pequena dor à portuguesa”. O ambiente de Lisboa, corroído pela “náusea”, “idiotia”, “razão absurda de ser”, pela “asfixia”, pela falsidade, não é compatível com o local de origem da amada: a “cidade aventureira”. Como tal, só restou ao sujeito poético despedir-se, dizer-lhe adeus e permanecer neste ambiente letal e castrador.
Estes poemas de O’Neill apresentam algumas das características que Fernando Guimarães (in A Poesia Contemporânea Portuguesa, 2.ª ed. revista e aumentada, Vila Nova de Famalicão: Edições Quasi, 2002, pp. 9 a 17) deteta na poesia das décadas de 40 e 50. Vislumbra-se uma espécie de antilirismo, dado o teor reflexivo dos poemas, que recorre aos símbolos como um espaço de confluência de analogias e associações, criando uma rede de “leituras sobrepostas” e centrando a atenção do leitor sobre a tessitura verbal do poema. A poesia funcionava como um ato de libertação, combatendo uma sociedade repressiva e (re)posicionando o homem dentro de uma outra realidade. Nestes poemas torna-se evidente a capacidade deste escritor em invadir o “lado menor, medíocre, quotidiano e ridículo das coisas”, como refere António Quadros (in A ideia de Portugal na literatura portuguesa dos últimos 100 anos, Lisboa: Guimarães Editores, 1989, pág. 195); apresentando uma visão anti-heroica do Portugal seu contemporâneo, enfatizando o que ele tinha de mesquinho e feio. É esse “olhar ácido” que António Quadros considera estar de acordo com uma espécie de “realismo satírico e liquidatário de todas as heranças românticas ou transcendentais”, que usa o quotidiano para contrapor à imagem sublimada que o regime divulgou e impôs aos portugueses.
Outra das possibilidades encontradas por alguns autores foi o recurso a intertextos clássicos e bíblicos. No entanto, esta opção pressupõe que o leitor conheça esses intertextos e seja capaz de os atualizar. Mais uma vez, o leitor é implicado ativamente no processo de criação poética e, dada a especificidade dos intertextos utilizados, se não tiver acesso a esses referentes a sua interpretação do texto ficará limitada à significação primeira das palavras.
             
Portugal sob a égide da ditadura: o rosto metamorfoseado das palavrasTese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005, pp. 72-74.
            
            
O POEMA POUCO ORIGINAL DO MEDO


O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
             (assim assim)
escriturários
              (muitos)
intelectuais
              (o que se sabe)
com certeza a deles
a tua voz talvez
talvez a minha

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo

(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo             .
que é justamente
o que o medo quer)
          
*                     
O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos
              
Alexandre O’Neill, Abandono Vigiado, 1960
                 
                             
                
                
PERFILADOS DE MEDO

Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.

Perfilados de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido...
                   
Alexandre O’Neill, Poemas com Endereço, 1962
          

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 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   
                

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/08/12/um.adeus.portugues.aspx]

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