segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

A UM CRUCIFIXO (Antero de Quental)


A UM CRUCIFIXO

Há mil anos, bom Cristo, ergueste os magros braços
E clamaste da cruz: há Deus! E olhaste, ó crente,
O horizonte futuro e viste, em tua mente,
Um alvor ideal banhar esses espaços!

Porque morreu sem eco o eco de teus passos,
E de tua palavra (ó Verbo!) o som fremente?
Morreste... ah! dorme em paz! não volvas, que descrente
Arrojaras de novo à campa os membros lassos...

Agora, como então, na mesma terra erma,
A mesma humanidade é sempre a mesma enferma,
Sob o mesmo ermo céu, frio como um sudário...

E agora, como então, viras o mundo exangue,
E ouvirás perguntar — de que serviu o sangue
Com que regaste, ó Cristo, as urzes do Calvário? —
    
Antero de Quental, 1862
   
  



A UM CRUCIFIXO
Lendo, passados 12 anos, o soneto da parte 1ª que tem o mesmo título.
            
Não se perdeu teu sangue generoso,
Nem padeceste em vão, quem quer que foste,
Plebeu antigo, que amarrado ao poste
Morreste como vil e faccioso.

Desse sangue maldito e ignominioso
Surgiu armada uma invencível hoste...
Paz aos homens e guerra aos deuses! ‑ pôs-te
Em vão sobre um altar o vulgo ocioso...

Do pobre que protesta foste a imagem:
Um povo em ti começa, um homem novo:
De ti data essa trágica linhagem.

Por isso nós, a Plebe, ao pensar nisto,
Lembraremos, herdeiros desse povo,
Que entre nossos avós se conta Cristo.
    
Antero de Quental, 1874
                 
  



Os sonetos completos de Anthero de Quental, publicados por J. P. Oliveira Martins. - [1ª ed.]. - Porto : Livraria Portuense de Lopes, 1886, pp. 20 e 63.
   
   
   

O pessimismo de Antero é mais alegre que o seu otimismo e a sua fé mais desoladora do que a sua descrença.
É que ‑ creio ser o primeiro a observá-lo ‑ aquelas pessoas a quem é mais conforme a tristeza do que a alegria, quando por acaso alegres (realmente, presumo) não estão em si como na tristeza. Isto dá-se com outras faculdades. Edgar Pöe, por exemplo, é mais contente no seu terror do que na sua alegria.
[...]
Com Antero de Quental se fundou entre nós a poesia metafísica, até ali não só ausente, mas organicamente ausente, da nossa literatura. [...]
      
"Fragmentos inéditos de Fernando Pessoa”, Jacinto do Prado Coelho. In: Revista Colóquio/Letras. Documentos, n.º 8, julho de 1972, pp. 53-54.
      
          

          

O PENSAMENTO DE DEUS NOS SONETOS
     
Em “Palavras de um Certo Morto” e “A um Crucifixo”, encontramos um Antero fortemente influenciado por uma série de leituras sobre a vida de Jesus, principalmente a de Renan, sobre as quais tece comentários:
Quanto mais estudo, mais me parece aquilo uma fantasia sentimental, um resto da velha crendice [...]. O grande valor desse livro é todo lírico, pessoal, subjetivo; histórico, muito pouco. O mais curioso é que apesar disso (devia dizer, por isso mesmo) a Vie de Jésus se vai tornando centro de uma nova igreja cristã, de uma igreja em que se adora Cristo como “o mais divino dos humanos”, um “mestre inimitável da vida espiritual”.[...] O Cristianismo morreu totalmente: em corpo e alma. Não é só a lenda cristã que a razão moderna rejeita; é o espírito cristão, o sentir cristão, tudo. [...]. (Antero de Quental –Subsídios para a sua Biografia, 1948, vol. II, p. 23)
    
Necessário se faz que nos reportemos ao clima anticlerical, tão em voga no período, no qual “[ a] Igreja era o alvo de todos os ódios e violências. Mas a Igreja não se destruía, sem se destruir o Cristianismo. E para o Cristianismo desaparecer, era preciso, em primeiro, fazer desaparecer o Cristo.” (NEVES, M. O Grupo dos Cinco – Dramas Espirituais.Lisboa, Livraria Bertrand, 1945, p. 206)
Torna-se inegável a mudança de postura dos escritores portugueses em relação ao tratamento dispensado a Jesus; dos primórdios da literatura até os dias de Antero, se críticas houve, estas foram dispensadas apenas ao clero (Cantigas de Escárnio e Farsas de Gil Vicente), permanecendo intocável a figura de Jesus. Somente na geração de 70 passará a ser arguida a divindade do mesmo.
Para nosso poeta, entretanto, “[ o] seu Deus [continua a ser] apenas de natureza íntima” e “Cristo não é Deus. É um homem extraordinário, símbolo da vida” (NEVES, M. O Grupo dos Cinco – Dramas EspirituaisLisboa, Livraria Bertrand, 1945, p.45), ao qual Antero nunca renunciou.
Sua visão de um Cristo humanizado provém de que “renuncia aos dogmas da Igreja, entrega-se aos mitos da ciência, do progresso, da liberdade e da revolução.” (Ibidem, p.44)
Essa mudança na postura dos escritores portugueses da época deu-se pelos motivos expostos neste trabalho, citados a partir de 3.1.
É esse Cristo, tornado humano, que encontramos em “A um Crucifixo” (1874) (há outro soneto com o mesmo título, de 1862, já citado à página 19) e em “Palavras de um Certo Morto” […]
Colocado por António Sérgio no Ciclo do Apostolado Social, o de 1874 é resposta ao de 1862, escrito doze anos antes, cujos últimos versos são: “De que serviu o sangue /Com que regaste, ó Cristo, as urzes do Calvário?” Como se não houvesse solução de continuidade, o segundo assim se abre: “Não se perdeu teu sangue generoso,” pois dele “Surgiu armada uma invencível hoste...” Chama-lhe “plebeu antigo” – ao seu olhar de homem do século XIX, socialista, que nele põe, de certo modo, a origem do proletariado –; “vil e faccioso” – através do olhar dos contemporâneos de Jesus, que o viam como um subversivo da ordem política e religiosa.
Enquanto, no soneto de 1862, se lamentava a “inutilidade do sacrifício de Cristo”, neste, doze anos depois, verifica-se o erro da conclusão anterior, “pois que, se de facto o ritmo do viver do Cristo não ritmou até hoje a sociedade existente, criou um pensamento revolucionário enérgico, que modelará talvez a do porvir.” (SÉRGIO, A.Sonetos. Organização, prefácio e anotações. Lisboa: Couto Martins, 1956, p.122)
É esse Cristo que, junto a Hegel e Proudhon, Antero considera “aqueles a quem mais ama e a quem mais deve.” (Ibidem, p.123)
Humanizado, considerado um ancestral dos homens (“Por isso nós, a Plebe, ao pensar nisto, / Lembraremos, herdeiros desse povo, / Que entre nossos avós se conta Cristo.”), torna-se Ele o orientador “[ d]a Ecclesia pressa de um novo Cristianismo.” (Ibidem, p.124)
      
Antero de Quental: Uma trajetória com Deus, Helen Araujo Mehl. 
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, setembro de 2003, pp. 62-63.
      
   



A UM CRUCIFIXO – ANTERO DE QUENTAL: MACROANÁLISE
   
O poema intitulado “A um crucifixo” [“Há mil anos, bom Cristo, ergueste os magros braços”], do poeta português Antero de Quental, foi escrito em 1862. Nele, o eu-lírico dirige-se a um interlocutor específico; ele direciona sua voz poética ao Cristo materializado em um crucifixo. Pelo título, percebe-se que o poeta volta seu olhar contemplativo à imagem de Jesus pregado no madeiro, ressaltando sua missão salvadora aqui na Terra. Ele está diante de um crucifixo e, nele, visualiza o Messias no momento de suas dores de agonia.
Na primeira estrofe, ocorre o que se chama de "flashback", onde o eu-lírico se volta para o próprio Cristo, numa espécie de resgate do instante de sua crucificação (Paixão de Cristo). A sinfonia das palavras transporta o leitor para o mistério da cruz. Há o regresso até o monte Calvário, sendo testemunhas do sacrifício do Cordeiro para a remissão dos pecados da humanidade. Esse confronto temporal (passado e presente) será necessário para a resolução, posterior, das incertezas que povoam a mente do eu-poético.  Ao mesmo tempo em que há um lamento da inutilidade de seu martírio, o Cristo é relembrado como um homem bom, que almejava um ideal: usar a sua morte como exemplo de vida e uma forma de redenção do povo. São descritos os últimos momentos de sua vida e o quanto ele acreditava que sua passagem aqui na terra fosse capaz de preencher o vazio existencial do ser humano.
Na segunda estrofe, ainda num passado presentificado, a voz poética lança mão de um questionamento: “Por que morreu sem eco, o eco de teus passos,/ E de tua palavra (ó Verbo!) o som fremente?”. A incerteza quanto à repercussão de sua ação na Terra é resultante da descrença total dos valores mundanos. A grande indagação feita aqui diz respeito à fé, que passou a ser desvinculada da instância mística e centrada na questão ética, manifestada na procura por uma nova ideia sobre o seu sentido. Sendo assim, a fé figura como uma forma de elevação, desprovida do simbolismo religioso, vinculada mais à moral e à ética. Ela passa a ser uma abstração, um conceito a ser pensado, e não um sentimento subjetivo e dogmático do homem. Por esta razão, aconselha-se ao Cristo que não regresse ao mundo como prometera, pois sua morte não teve a repercussão que lhe era almejada. Suas palavras foram abafadas e a mesma terra que tanto necessitava de uma luz, sair da enfermidade, permaneceu doente. É como se a sua morte tivesse causado certa provocação, mas, no fim, tudo continuou igual (é a mesma terra erma, sob o mesmo ermo céu).
É na terceira estrofe que se atribui a culpa ao responsável pela “castração” da divindade do cristo: a própria humanidade. Neste momento, o tempo verbal retorna ao presente, como forma de se analisar a ressonância deste facto nos dias vigentes. E a constatação é clara. Após presenciar a grande prova do amor de Deus para com os homens, ao dar seu filho único para remir os pecados do mundo, a humanidade permaneceu incrédula, contemplando, estática, as marteladas que ela mesma apregoava nos “membros lassos...”. Neste mesmo terceto, nota-se a repetição do adjetivo "mesmo(a)", quatro vezes, que acentua a constatação de que a sociedade não sofreu alteração. A mesmice dessa humanidade incapaz de aprender as lições do Mestre continua imutável.
No último terceto, já frustrado com a “mortificação” da fé humana, seca de vida e vazia de esperança, e descontente com o não cumprimento dos preceitos divinos, Cristo ainda é interrogado: “E ouviras perguntar — de que serviu o sangue/ Com que regaste, ó Cristo, as urzes do Calvário? —”. O eu-lírico, numa visão angustiante e desesperada na busca pela verdade, indaga o crucificado a respeito do valor que sua morte teve (ou deixou de ter) para os homens. Esta angústia é fruto da visão que o eu - lírico alimenta ao contemplar o suplício de Cristo. Na verdade, somos nós as urzes do Calvário; eram os nossos pecados de Cristo carregou nos ombros na Via Sacra (a cruz); e, o mais evidente, também nós fomos marcados com os cravos que perpassaram seus membros debilitados; temos as chagas em nossos membros para não esquecermos que, um dia, um homem as tomou em favor da nossa salvação. Com esta pergunta, é encerrado o soneto.
A resposta seria dada por Antero, doze anos depois. Em 1874, o poeta escreve outro soneto, também intitulado “A um crucifixo”, onde reafirma a validade do martírio de Cristo e coloca a humanidade como herdeira do seu trono celeste. Enquanto, no soneto de 1862, lamentava-se a “inutilidade do sacrifício de Cristo”, pondo em dúvida a missão do Salvador, cujo exemplo não foi suficiente para abrandar o caos do mundo e o sofrimento dos seus filhos, neste, verifica-se o erro da conclusão anterior.
Como se não houvesse solução de continuidade, o segundo assim se abre: “Não se perdeu teu sangue generoso”, visto que não morreu em vão, pois dele “Surgiu armada uma invencível hoste...”. A vinda de Jesus à terra é apresentada com caráter revolucionário. O Mártir, do qual se fala no poema, é a fonte da verdadeira e futura luta plebeia do mundo socialista. É este Cristo humanizado, sangrando, morrendo (para os que não acreditavam) como maldito, atiçando o desprezo, que aparece liberto e lembrado ao morrer pelos que estão à margem: “Lembraremos, herdeiros desse povo,/ Que entre nossos avós se conta Cristo.”. Jesus é chamado de “plebeu antigo”, aludindo à sua origem humilde (filho de carpinteiro e dona de casa), além de expressar o caráter de sua missão terrena, voltada para os pobres. Em se tratando do século XIX, pode-se dizer que há, nesta nomeação (apóstrofe), a identificação da origem do proletariado. A morte do Cristo “como vil e faccioso” é vista pelo olhar do homem antigo, que enxergava, nele, um revolucionário e agitador da classe oprimida, contra a ordem política e religiosa da época cristã.
Esse povo evocado é bem digno descendente do Cristo que morreu pregado na cruz. Porém, não se trata de uma plebe passiva, amedrontada e incapaz de reação perante a desgraça. Aqueles que o poeta considera herdeiros do “sangue generoso” de Jesus são os que lutam: “Do pobre que protesta foste a imagem / Um povo em ti começa, um homem novo”. O povo assume a dimensão do herói coletivo, apostolado da pura fé plebeia.
Por fim, a mensagem que transparece do soneto analisado (“A um crucifixo – 1862”) é a recusa por parte do ser humano em não acreditar na verdade. O facto de se viver num mundo tão camuflado por aparências, banalizou a verdade como algo vão, insuficiente para garantir a vida em sociedade e nos meios que dela constituem o cotidiano do homem moderno. Por isso, a desvalorização da verdade e o questionamento de sua ausência pelo poeta. A humanidade conhecia a verdade irrevogável, mas a ignorou, pactuando, ela própria, com o crime efetuado contra aquele que varreu o pecado da face da terra.   
"Aquele que não conhece a verdade é simplesmente um ignorante, mas aquele que a conhece e diz que é mentira, este é um criminoso." (Bertolt Brecht)        
White Crucifixion, 1938, Marc Chagall
               
A angústia existencial. Figurações do poeta. Diferentes configurações do Ideal.
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:
      
 Estudos e Ensaios: Antero de Quental, Joaquim de Carvalho

 "«Na mão de Deus»: um percurso pelo universo religioso dos«Sonetos Completos» de Antero", Mário Garcia. In: Revista Colóquio/Letras. Ensaio, n.º 123/124, janeiro de 1992, p. 143-149.


 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>


 [Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/02/10/a.um.crucifixo.aspx]

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

ANTERO DE QUENTAL, UMA TRAJETÓRIA COM DEUS


 ANTERO DE QUENTAL         João de Deus
  
  
A João de Deus
   
Se é lei, que rege o escuro pensamento,
Ser vã toda a pesquisa da verdade,
Em vez da luz achar a escuridade,
Ser uma queda nova cada invento;

É lei também, embora cru tormento,
Buscar, sempre buscar a claridade,
E só ter como certa realidade
O que nos mostra claro o entendimento.

O que há de a alma escolher, em tanto engano?
Se uma hora crê de fé, logo duvida:
Se procura, só acha… o desatino!

Só Deus pode acudir em tanto dano:
Esperemos a luz d'uma outra vida,
Seja a terra degredo, o céu destino.
       
Antero de Quental
  
  
*
  
  
O PENSAMENTO DE DEUS
Deus é alvo de uma conceção dúbia por parte de Antero, já que, mercê da sua educação religiosa, é visto como um meio de evasão: "Só Deus pode acudir em tanto dano:/ Esperemos a luz de uma outra vida, seja a terra degredo, o céu destino" (Op. cit.:174). Mas o que prevalece nesta fase, é sobretudo pensar Deus como inconsciente, numa nítida influência de Hartmann: "Chamam-me deus há mais de dez mil anos.../ Mas eu por mim não sei como me chamo..." (Op. cit: 170).
http://www.citi.pt/cultura/literatura/poesia/quental/opdd.html
              
                
              
*              
                
              
PENSANDO O SENTIMENTO
No Ciclo do Pensamento de Deus (SÉRGIO, 1956, p.231), o soneto “A João de Deus”, escrito entre 1860 e 1862 (CARREIRO, p.135), já nos antecipa a ideia surgida em 1865, quando Antero traça oposições entre seu poema “Luz do Sol, Luz da Razãoe o de João de Deus,“Luz da Fé”:
A minha fé vira-se mais para a terra do que para o céu. O João prefere o céu. Mas quem tem culpa deste desacordo é ele mesmo. Pois, terra digna de ele a pisar e viver nela, não valerá bem um céu, qualquer que ele seja? (CARREIRO, p.139)
A resposta dada por Antero a M. P. da Rocha Viana, em 1865, (CARREIRO, p.139) concretiza a ideia da diferença entre a visão de Deus dos dois poetas: se para Antero a fé precisa ser clara e racionalizada,
É lei também, embora cru tormento,
Buscar, sempre buscar a claridade,
E só ter como certa realidade
O que nos mostra claro o entendimento. (QUENTAL, 1956, p.235)
para João de Deus ela é prenúncio de eternidade e só através dela se chegará à ressurreição: “Seu Deus é compassivo, remunerador, pai, enfim, e a morte não é morte, mas ressurreição”. (BERARDINELLI, p.10)
À necessidade de entendimento e clareza da fé de Antero, toda voltada para a terra, opõe-se a fé incondicional de João de Deus, séria e devotamente voltada para o céu:
Segues-me sempre...e só por ti suspiro!
Vejo-te em tudo...terra e céu te esconde!
Nunca te vi...cada vez mais te admiro! (JOÃO de DEUS, p.75)
No poema anteriano, o primeiro terceto nos mostra a perceção do autor, perdido que está em meio ao sentimento contraditório que se lhe apresenta:
O que há-de a alma escolher, em tanto engano?
Se uma hora crê de fé, logo duvida:
Se procura, só acha ... o desatino! (QUENTAL, 1956, p.235)
Mas ainda persiste a crença latente num Deus maior, é nEle, nas Suas mãos, que repousa a certeza de uma solução para Antero: entre tantas dúvidas, só em Deus estará a resposta:
Só Deus pode acudir em tanto dano:
Esperemos a luz duma outra vida,
Seja a terra degredo, o céu destino. (Ibidem, p.235)
É de se notar o tom de certeza no imperativo do verbo ser do último verso: a ideia do Deus só perdão, ainda está lá.
Antero de Quental: Uma trajetória com Deus, Helen Araujo Mehl.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, setembro 2003, 
pp. 26-27.
  
  


 

  
  


OS SONETOS DE ANTERO DE QUENTAL
[…]
O movimento como elemento característico destes Sonetos relaciona-se com o antitetismo que, de acordo com a estrutura deste género64, está também na origem daqueles em que o movimento se manifesta menos acentuado por interrogações e exclamações.
São característicos a esse respeito títulos tais como Diálogo, Tese e Antítese, Disputa em Família e Luta, e igualmente a palinódia de A um Crucifixo de 1862 pelo soneto do mesmo título, de 1874. Os monólogos Amor vivo, Mea Culpa, Voz do Outono, Estoicismo, Comunhão, Solemnia Verba são expressões da luta interior do Poeta; Ignoto Deo, Divina Comédia, Ignotus e Logos, do seu conflito com Deus; os grupos de A Ideia I-VIII, Espiritualismo I-II e Elogio da Morte I-VI, têm estrutura dialética. Em trinta e nove dos cento e nove sonetos do volume, o antagonismo é marcado por «mas» (ao lado de «contudo», «entanto», «porém»), em quatro, por «e» adversativo, em sessenta e sete por outros meios: contra-afirmações, imperativos ou meras antíteses. Mesmo o último soneto do volume, Na Mão de Deus, no intuito do Poeta o seu termo estética e filosoficamente conciliador, é, nesta sua função, determinado pelo antagonismo que nele aparece reconciliado.
As noções de Antero são impregnadas de antagonismos intrínsecos. Deus, procurado, acreditado e suplicado, é ao mesmo tempo o Ser que se oculta no infinito, que se esquiva, insondável e eternamente silencioso, que estabelece a lei da busca da Verdade e igualmente a contrária, que torna vã toda a sua pesquisa:
É lei de Deus este aspirar imenso...
E contudo a ilusão impôs à vida,
E manda buscar luz e dá-nos treva! (A Santos Valente),
e
Se é lei, que rege o escuro pensamento, 
Ser vã toda a pesquisa da Verdade, 
Em vez de luz achar a escuridade, 
Ser uma queda nova cada invento,

É lei também, embora cru tormento, 
Buscar, sempre buscar a claridade, 
E só ter como certa realidade 
O que nos mostra claro o entendimento. (A João de Deus)
  
Assim, aparece como «fantasma» odiado e amado (O Inconsciente), como «tirano», «grande», «forte», «terrível», potência receada, inimigo da liberdade que busca a Verdade, e todavia como vã banalidade» (Disputa em Família), ser que a si próprio ainda não se «encontrou» (Ignotus). A síntese deste conceito de Deus invisível, mas presente, que domina no íntimo da alma, que está na origem dos sentimentos e das noções, apenas Imaginado e todavia receado, invocado e silencioso, inexorável e todavia adorado, aparece no soneto
LOGOS

Tu que eu não vejo, e estás ao pé de mim,
E, o que é mais, dentro em mim — que me rodeias
Com um nimbo de afetos e de ideias,
Que são o meu princípio, meo e fim...

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És um reflexo apenas da minha alma,
E em vez de te encontrar com fronte calma
Sobressalto-me ao ver-te, e tremo e exoro-te...

Falo-te, calas... calo, e vens atento...
És um pai, um irmão, e um tormento
Ter-te a meu lado… és um tirano, e adoro-te!
  
Cristo ficou privado da imortalidade, definitivamente humilhado e aniquilado, «morto», pela divinização (Palavras dum certo Morto). Por outro lado, o triunfo da Razão extática ao proclamar que Deus morreu, é apenas a expressão da«(eterna, trágica ironia» de Deus (Quia ӕternus).
O Homem, por sua vez, submetido à lei que lhe impõe buscar a verdade e daquela que torna vã esta mesma aspiração, é dilacerado pela fé e pela dúvida, pela confiança e pela revolta. As suas interrogações perdem-se, inatendidas, no vácuo, respondem-lhe apenas o eco das próprias dúvidas e tristezas e o silêncio impassível, e em vez de encontrar a luz da Verdade, o espírito ansioso perde-se na escuridão impenetrável. Já num dos primeiros dos seus Sonetos, em Ad Amicos, escrevia
(...) nossa alma é como um hino
À luz, à liberdade, ao bem fecundo,
Prece e clamor dum pressentir divino,

Mas num deserto só, ávido e fundo,
Ecoam nossas vozes, que o Destino
Paira mudo e impassível sobre o Mundo.
  
No Palácio da Ventura, dirá:
Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!

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Com grandes golpes bato à porta e brado:
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Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d’ouro com fragor...
Mas dentro encontro só cheio de dor
Silêncio e escuridão—e nada mais!
  
Ainda nos posteriores e últimos sonetos leem-se versos semelhantes:
Penetrando, com fronte no enxuta,
No sacrário do templo da Ilusão,
Só encontrei, com dor e confusão
Trevas e pó, uma matéria bruta... (Transcendentalismo);

É tudo, em torno a mim, dúvida e luto,
E, perdido num sonho imenso, escuto
O suspiro das coisas tenebrosas... (Lacrimae rerum);

(...) na imensa extensão, onde se esconde
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais... (Oceano Nox).
  
As ideias que agitam e atormentam o Poeta, brotadas do seu próprio íntimo, incompreensíveis a ele mesmo, são invocadas simultaneamente como «irmãos» e «algozes», «visões misérrimas e atrozes» (No Turbilhão). Do ideal que na sua consciência existe e que procura atingir, sabe ao mesmo tempo que é inatingível, e a inteligência e o anseio transformam-se em sonho e tormento:
Conheci a Beleza que não morre
E fiquei triste (...)
……………………………………………
……………………………………………

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……………………………………………
……………………………………………
……………………………………………

Pedindo à forma, em vão, a ideia pura,
Tropeço, em sombras, na matéria dura,
E encontro a imperfeição de quanto existe.

Recebi o batismo dos poetas,
E assentado entre as formas incompletas
Para sempre fiquei pálido e triste (Tormento do Ideal).
Do sonho em que se perdeu ou no qual se recolheu, é acordado para voltar a sofrer tormentos e dores:
Em sonho, às vezes, se o sonhar quebranta
Este meu vão sofrer, esta agonia,
Como sobe cantando a cotovia,
Para o céu a minh'alma sobe e canta.

Canta a luz, a alvorada, a estrela santa,
Que ao mundo traz piedosa mais um dia...
Canta o enlevo das coisas, a alegria
Que as penetra de amor e as alevanta...

Mas, de repente, um vento húmido e frio
Sopra sobre o meu sonho: um calafrio
Me acorda - A noite é negra e muda: a dor

Cá vela, como dantes, a meu lado...
……………………………………………
…………………………………………… (Acordando)
   
A morte aparece como Mors Liberatrix sob a imagem da espada resplandecente que rasga a escuridão, e, na duplicidade de Mors-Amor, como cavaleiro vestido de armadura reluzente, cavalgando um «negro corcel».
Os antagonismos penetram nos próprios pormenores da expressão e das imagens.
Assim, Deus é caracterizado como «gota de mel em taça de venenos» (Ignoto Deo); leva através de «regiões inominadas, cheias/De encanto e de pavor..., de não e sim» (Logos); «manda buscar luz e dá-nos trevas» (A Santos Valente); impõe à humanidade a lei de ser «vã toda a pesquisa da verdade, / Em vez da luz achar a escuridade., calei de embora em tormento,/Buscar, buscar sempre a claridade» (A João de Deus). A Ideia com tanto fervor solicitada recusa-se-lhe como «virgem desdenhosa (A Ideia V), mas não deixa de ser o único conforto que ao Homem resta:—«não há na vida/Sombra a cobrir melhor nossa cabeça, / Nem balsamo mais doce que adormeça / Em nós a antiga, a secular ferida» (A Ideia VI), e é encontrada, «onde a noite tem mais luz que o nosso dia» (A ideia VII). O Céu aparece como imenso e estreitos (Consulta), o Homem, como «mixto infeliz de trevas e de brilho» (Homo), as almas pairam entre luz e horrores» (Velut Umbra). «Cruel e delirante, é o turbilhão de dor, pecado, ilusão e luta, que envolve a Humanidade (Divina Comédia); nos seus excessos blasfemos, os ímpios e ateus gemem sob o peso da tristeza e da impotência que sentem e da sua ânsia de infinito, e no seu rir não vibra a alegria da serenidade superior, —é «um rir feito de fel e de impureza» (O Convertido). A zona da Morte é constituída por regiões sagradas / E terríveis», a própria Morte apresenta-se como vulto Tenebroso e sublime, / Formidável, mas plácido» (Mors-Amor), que derruba e consola, aniquila e redime — «Firo, mas salvo...», «Prostro e desbarato / Mas consolo... Subverto, mas resgato» (Mors Liberatrix)—, como funérea Beatriz de mão gelada… / Mas única Beatriz consolador» (Elogio da Morte III); a sua ironia é «Sinistramente estranha, atroz e calma» (Anima mea), e
Verbo velado
Silencioso intérprete sagrado
Das coisas invisíveis, muda e fria,

E, na sua mudez, mais retumbante
Que o clamoroso mar, mais rutilante,
Na sua noite, do que a luz do dia (O que diz a Morte).
  
O Nirvana abre-se como «vácuo tenebroso» para além do ir universo luminoso» que, sobre o fundo do Nada, se revela como ilusão e vazio. (Nirvana), e o Não-Serrevela-se como o único Ser verdadeiro, absoluto (Elogio da Morte VI).
Sobretudo é o antagonismo entre luz e trevas que domina na imaginação de Antero. A luz aparece relacionada com o Divino e o Sublime, a Verdade e a Beleza, a Fé e a Ideia, o Amor puro e o Pensamento puro, a Liberdade e o Heroísmo, mas também com a inquietude de ansias febris, lutas absurdas e torturantes, revelações aniquiladoras e inexoráveis; a escuridão aparece relacionada com o terrestre e a imperfeição, a ilusão e a aparência, a descrença e a incerteza, a dúvida e a angústia, o abismo e o vácuo, mas também com o sossego e o esquecimento, a harmonia e a paz do Nirvana e do Não-Ser da Morte que, oposto ao Ser inquieto, perturbador da Vida, apenas aparente, ilusória e dolorosamente desenganadora, é o Ser absoluto, sempre o mesmo, imóvel e Imutável.
Tão pouco como o antagonismo dos sonetos Tese e Antítese aparece reconciliado num terceiro soneto que devia intitular-se Síntese, tao pouco aparecem reconciliados os antagonismos que na Obra de Antero surgem.
Contudo, não se trata de antagonismos estáticos e absolutos, mas dinâmicos, e entre os quais os fenómenos como que pairam e se extinguem, correm e discorrem, se revelam e se ocultam, se perdem e se confundem. Deus aparece como visão sonhada que se reflete na alma do Poeta «como sobre o mar o Sol se espelha» (Ignoto Deo); ainda em Logos lê-se: «És um reflexo apenas da minha alma». O Supremo Ideal também é «visão / Que ora amostra ora esconde o meu destino...» e «Nuvem, sonho impalpável, do desejo» (Ideal). O Universo repleto de vultos e forças, vida e movimento, aparece sob a imagem do mar tumultuoso e tempestuoso (Nirvana e Voz interior), o Mundo, a perder a cor à luz da Beleza imortal, «bem como a nuvem que erra / No pôr do Sol e sobre o mar discorre» (Tormento do Ideal)65 ou como «fumo ondeando, / Visões sem ser, fragmentos de existência... / Uma névoa de enganos e Impotências / Sobre vácuo insondável rastejando...» (Contemplação). Outras imagens do género são as do tempo que corre incessante e «num turbilhão cruel e delirante», «só gera, inextinguíveis, / Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis (Divina Comédia), da glória, «fumo que sobre o abismo anda suspenso» (A Alberto Sampaio), ou clarão de extinta chama», «Foco incerto, que a luz já mal derrama», «eco perdido» e «miragem em nuvem ilusória» (A M. C.), do Belo e do Sublime que como nuvens acasteladas, em fumo se vão (Velut umbra), do Pensamento como «vapor que se esvai e se dissolve», e a Vontade como onda que «entre rochedos se espedaça» (Ad Amicos), a Ideia como «encoberta peregrina», «Pálida imagem que a água de algum rio, / Refletindo, levou... incerta e fina / Luz, que mal bruxuleia pequenina... / Nuvem, que trouxe o ar, e o ar sumiu.... (A Ideia V). «Incerta peregrina, a alma oscila entre a imortal beleza, que a prende, e a «eterna pátria que aspira...» (Aspiração), entre fé e dúvida, entre esperança e desengano—«Se uma hora crê de fé, logo duvida; / Se procura, só acha... o desatino!» (A João de Deus) —,envolvida pela «névoa baça» da «incerteza das cousas», «nas suas próprias redes se embaraça» (Ad Amicos). Descrente, triste e desesperado, Antero apresenta-a, em todo o seu abandono e em toda a sua solidão, sob a imagem da ave impiedosamente desterrada e de asas partidas, e da vela pelos tufões arrojada pelo mar (Despondency). Como «vago peregrino, apresenta também o Homem (A Ideia II), abandonado à incerteza: — «O que procuro, / Se me foge, é miragem enganosa, / Se me espera, pior, espectro impuro... / Assim a vida passa vagarosa: / O presente, a aspirar sempre ao futuro: / O futuro, uma sombra mentirosa» (A Felix dos Santos). Ainda num dos sonetos do último ciclo, refere-se ao Homem que «vaga desolado / E em vão busca a certeza que o conforte) (Lacrimae rerum). Até no último soneto composto, em Com os Mortos, evoca a imagem da fuga e disperso contínuas:
Os que amei, onde estão? idos, dispersos, 
Arrastados no giro dos tufões, 
Levados, como em sonho, entre visões, 
Na fuga, no ruir dos universos... 

E eu mesmo, com os pés também imersos 
Na corrente e à mercê dos turbilhões, 
Só vejo espuma lívida, em cachões, 
E entre ela, aqui e ali, vultos submersos...
  
A esse respeito é também notável a frequência e variedade de termos que exprimem a busca e a aspiração, o errar e a oscilação, a transição e a extinção, o correr e o pairar, ou que se referem ao vago e indefinido, à perturbação, à ilusão e ao engano:—ao lado de buscar, procurar, pesquisar, aspirar, ansiar: lutar, disputar e pedir; ao lado de ânsia, anseio, ansiedade, ansiedade, ansioso: lutas, desejo e febre do Ideal; ao lado de errar, vagar, divagar: peregrino e peregrina, vacilar e duvidar, trémulo e vacilante; ao lado de passar e fugir: correr, perder-se e perdido, sumir, sumir-se e sumido, fundir-se e fundido, desmaiar, dissipar e dissipar-se, morrer e desfalecer, murchar, consumir-se, dissolver-se, espedaçar-se, desfazer, ir-se em fumo, desvanecer-se, desaparecer e esvair-se, descer, baixar, varrer, dispersar e disperso, agonia e transitório; ao lado de flutuar, vogar, pairar e esvoaçar: onda e nuvem, fumo, vapor e suspenso; ao lado de incerto e incerteza, vago e vagante, imensidade e imensidão: duvidoso, vaporoso e escuro, trevas e escuridão, vácuo e abismo; ao lado de tormento, tormenta e tormentoso: tumultuar e tumultuoso, desatino e confusão, e turbilhão ou turbilhões; ao lado de ilusão e ilusório, engano, enganar e enganoso: miragem e sombra mentirosa.
António Sérgio, na análise dos sonetos Idílio e Palácio da Ventura, mostrou que os contrastes se estendem até aos pormenores da fonação, da rima e do ritmo, opondo, na de Idílio, o «ritmo vivo, matinal, fresquíssimo» das quadras com a sua estridula rapidez de ascenso e suas rimas em i» aos nasais de ao longe, no horizonte, amontoado, e a amplitude a súbitas quebrada, com o verso «quantas vezes, de súbito, emudeces!» ao afrouxar do movimento, seu ensurdecer em ua, e nos baixos das rimas em ua, nos tercetos, e aponta, em O Palácio da Ventura, para o contraste entre o «ritmo martelado» do verso «Sonho que sou um cavaleiro andante», e a «ondulação» do segundo, «Por desertos, por sois, por noite escura», evocando aquele o galopar do cavalo, e este, a amplidão da jornada, que parece sem fim»65.
  
“Os Sonetos de Antero de Quental” in Estudos Vol. II, Albin Eduard Beau. Acta Universitatis Conimbrigensis, Coimbra Editora, 1964, pp. 286-296. (Tradução de Die Sonette von Antero de Quental,publicado em «Portugiesiche Forschungen der Görresgesellschaft, Erste Reihe: Auísätze zur portugiesischen Kulturgeschichte», II. Münster, 1961)
  
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(64) V. W. MÖNCH, l. c. 33 e sgs.
(65) Cf. a imagem da «luz baça (...) igual à do sol posto, / Quando só nuvem lívida esvoaça» (Das Unnennbare).
(65) L. c., 96 e 134, resp. 70 e 90.



   SUGESTÃO DE LEITURA:

à Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>
                
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/02/07/se.e.lei.que.rege.o.escuro.pensamento.aspx]