terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

PALAVRAS DUM CERTO MORTO (Antero de Quental)


 

   
    
PALAVRAS DUM CERTO MORTO

Há mil anos, e mais, que aqui estou morto,
Posto sobre um rochedo, à chuva e ao vento:
Não há como eu espectro macilento,
Nem mais disforme que eu nenhum aborto...

Só o espírito vive: vela absorto
Num fixo, inexorável pensamento:
“Morto, enterrado em vida!” o meu tormento
É isto só... do resto não me importo...

Que vivi sei-o eu bem... mas foi um dia,
Um dia só ‑ no outro, a Idolatria
Deu-me um altar e um culto... ai! adoraram-me

Como se eu fosse alguém! como se a Vida
Pudesse ser alguém! — logo em seguida
Disseram que era um Deus... e amortalharam-me!
     
Antero de Quental
   

   
«Ecce Homo», Mark Wallinger 
    


O PENSAMENTO DE DEUS NOS SONETOS
     
Em “Palavras de um Certo Morto” e “A um Crucifixo”, encontramos um Antero fortemente influenciado por uma série de leituras sobre a vida de Jesus, principalmente a de Renan, sobre as quais tece comentários:
Quanto mais estudo, mais me parece aquilo uma fantasia sentimental, um resto da velha crendice [...]. O grande valor desse livro é todo lírico, pessoal, subjetivo; histórico, muito pouco. O mais curioso é que apesar disso (devia dizer, por isso mesmo) a Vie de Jésus se vai tornando centro de uma nova igreja cristã, de uma igreja em que se adora Cristo como “o mais divino dos humanos”, um “mestre inimitável da vida espiritual”.[...] O Cristianismo morreu totalmente: em corpo e alma. Não é só a lenda cristã que a razão moderna rejeita; é o espírito cristão, o sentir cristão, tudo. [...]. (Antero de Quental –Subsídios para a sua Biografia, 1948, vol. II, p. 23)
         
Necessário se faz que nos reportemos ao clima anticlerical, tão em voga no período, no qual “[ a] Igreja era o alvo de todos os ódios e violências. Mas a Igreja não se destruía, sem se destruir o Cristianismo. E para o Cristianismo desaparecer, era preciso, em primeiro, fazer desaparecer o Cristo.” (NEVES, M. O Grupo dos Cinco – Dramas Espirituais.Lisboa, Livraria Bertrand, 1945, p. 206)
Torna-se inegável a mudança de postura dos escritores portugueses em relação ao tratamento dispensado a Jesus; dos primórdios da literatura até os dias de Antero, se críticas houve, estas foram dispensadas apenas ao clero (Cantigas de Escárnio e Farsas de Gil Vicente), permanecendo intocável a figura de Jesus. Somente na geração de 70 passará a ser arguida a divindade do mesmo.
Para nosso poeta, entretanto, “[ o] seu Deus [continua a ser] apenas de natureza íntima” e “Cristo não é Deus. É um homem extraordinário, símbolo da vida” (NEVES, M. O Grupo dos Cinco – Dramas EspirituaisLisboa, Livraria Bertrand, 1945, p.45), ao qual Antero nunca renunciou.
Sua visão de um Cristo humanizado provém de que “renuncia aos dogmas da Igreja, entrega-se aos mitos da ciência, do progresso, da liberdade e da revolução.” (Ibidem, p.44)
Essa mudança na postura dos escritores portugueses da época deu-se pelos motivos expostos neste trabalho, citados a partir de 3.1.
É esse Cristo, tornado humano, que encontramos em “A um Crucifixo” (1874) (há outro soneto com o mesmo título, de 1862, já citado à página 19) e em “Palavras de um Certo Morto”, analisados a seguir. […]
Em “Palavras de um Certo Morto”, “mostra-nos Antero o pensamento divino, manifestado através das ações de Jesus” (Ibidem, p.234), quando, transformado num objeto de idolatria, vê-se privado do papel de “modelo de vida moral”: “[...] a Idolatria / Deu-me um altar e um culto...ai! adoraram-me, / [...] e amortalharam-me!”.
As reclamações sucedem-se: “Há mil anos, e mais, que aqui estou morto, / Posto sobre um rochedo à chuva e ao vento: [...]”; “Como se eu fosse alguém! Como se a Vida / Pudesse ser alguém!”; destaca-se, nesses versos, o sentimento de frustração pelo que poderia ter realizado, se lhe tivessem dado o direito de ser Vida (no sentido anteriano:princípio ideal espiritual).
No Cristo amortalhado, “Só o espírito vive: vela absorto / num fixo, inexorável pensamento: / ‘Morto, enterrado em vida!’, o meu tormento / É isto só... do resto não me importo...”, o sentimento de impotência perante o que poderia ter sido: “o Cristo princípio, ideia pura da vida, e o Cristo personificado, idolatrado e por isso desvirtuado.” (Ibidem, p.246)
Pertencente ao Ciclo do Pensamento de Deus, portanto, de índole combativa, é um monólogo onde Cristo desabafa a dor de não ter sido compreendido pelos homens, que o materializaram, pregando-o, não numa cruz, mas num altar, e adorando-o. Em carta a Tommaso Cannizzaro, de 1889, ele explica claramente o seu pensamento:
O personagem que fala no meu soneto Palavras de um certo morto é, como por certo compreendeu, o Cristo: o Cristo símbolo, ideia e princípio da vida espiritual, personificado e idolatrado pela ignorância dos homens, que fizeram uma pessoa (alguém) de um princípio impessoal e por isso o desvirtuaram criando simplesmente uma nova idolatria. Tais são as queixas do Cristo e tal é o pensamento do soneto. [...] É talvez um pouco obscuro e metafísico; com efeito, várias pessoas me têm já perguntado qual o verdadeiro pensamento deste soneto. Esse pensamento consiste no contraste entre o Cristo, ideia pura da vida, o Cristo princípio e o Cristo personificado, idolatrado e por isso desvirtuado; de modo que a apoteose equivaleu à morte e enterro daquilo mesmo a que se pretendia dar imortalidade. A vida (princípio ideal espiritual) não pode ser alguém (uma pessoa, um indivíduo limitado): daí a contradição íntima do Cristianismo, o contraste e a ironia dolorosa das palavras que ponho na boca do Cristo, ao mesmo tempo como uma crítica amarga da loucura idólatra dos homens e um juízo sintético da história do Cristianismo. (Antero de Quental –Subsídios para a sua Biografia ,1948, vol. II, p. 24)
      
Antero de Quental: Uma trajetória com Deus, Helen Araujo Mehl. 
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, setembro 2003.
    
    


Paolo Troilo
Paolo Troilo, 2013
    
    
A NATUREZA DA PRECE
No poema “Palavras duns Certo Morto”, Antero cunha a primazia da irmandade entre estética e ética. Sua decisão afirma o inabalável combate poético: a luta mais íntima e fratricida é entre o pensar e o sentir […].
O momento do “real” é exposto em sua ficcionalidade; a alteridade como criadora da ficção não tem mais o que possuir, portanto, raciocina a partir de um tempo para um tempo maior, no para além da morte; melhor: a memória imperecível da ética. Antero de Quental nem pretende resgatar o temporal e nem anunciar o seu término. Antes, formula a instrução visionária que, por atitude poética, provoca um problema de fé e um problema de forma. Tais situações permitem ao poeta colocar tudo num compromisso moralmente expresso pela palavra eu; que de alguma maneira enterrado em vida conta o excelso de sua memória amortalhada.
Porém, o que tenho a dizer da poesia? Digo que o muito que se fala do papel representado por Antero nas dimensões da política faz esquecer que o poeta promulga o princípio da destruição do poema que é sobre algo; realizando o enleio entre um eu tão arcaico com outro tão fracamente anunciador do presente. Essa atitude evidencia o estado de espírito de relembrança em pretérito superdeterminado, no qual se protagonizam cenas com dois ou mais passos em direção à natureza. Explico: a natureza consolida-se como personificação de pontos temporais que se originam com alguma veste trágica.
São estas vestes que no prumo equilibram a ironia; delineada na seriedade dos versos. Ou seja: o aspeto de imortalidade confirma e suplanta a evidência das coisas ditas na poesia, de forma que a imagem do processo — mil anos, um dia — evoque o contrário do temporal; agenciando a identidade que abre prosseguimento através de uma desejo trapaceado. Melhor: Antero de Quental ao imiscuir-se na figuração que anuncia Deus como duplo poético, cria a formação reativa que constitui a negatividade de qualquer transcendência — o ego do poeta, conforme o seu desamparo, retira sua fixação dos objetos que podiam estar na presença. dado o alto grau que eles têm de irredutível alteridade, e, assim, espera reproduzir um estado primitivo para sua angústia.
Esse estado primitivo da angústia confirma a versão do passado que se realiza como função diferencial do presente, cabendo ao ato de presentificar a eficácia das impressões originais que dão nome ao poeta. Ora, se Antero está de posse de uma identidade, ele não tem um tema, senão a estória de como cria a sua própria imagem única e, portanto, além de si. Se a imagem parece objetiva é por ser mais implícita; não pode ser alcançada no presente, porque seu modo é a duração, e qualquer tentativa de apreendê-la diretamente revive o vazio do presente como sensação de perda.
Quental toma o mito da memória cristã propondo um eu sou tudo que fui, e nesse andamento aproxima-se do presente ao viver a fuga de algo que teme segundo aquilo que ama e perde. Melhor: o poeta cura a imaginação através do controle do ego, criando, assim, o compensatório ato que aprofunda o resgate da ambiguidade originária do poeta — homem ou divino.
Nesse sentido, aquilo que aparece como uma temática cristã é no poema um abandono no perigo, que de alguma maneira ameaça o mundo e a vida de Antero. No perigo da identificação se esconde o paradoxo particular e, com base nele, o poeta estrutura seu ditame.
O mundo daquele que, no rochedo, sofre as intempéries é novo, exatamente por ser demasiado arcaico, saturado de perigo. Lá está a origem espiritual que torna a unificação do poeta e do mundo a vivência de todas as situações humanamente derradeiras. Se o socialismo de Antero de Quental tem alguma participação no seu ato poético, é na absoluta soberania dessa relação. Ou seja: transportado para o centro da vida, só resta ao poeta a imóvel presença a passividade total que é a essência mesma da coragem — entregar-se totalmente àquela relação.
Sendo dessa maneira, posso argumentar que as palavras do poema contêm a tendência de criações tardias, derivando da certeza interna de se encontrarem na própria vida espiritual, na qual a sobriedade do poeta em sua altiva ironia é permitida e, até, exigida; pois mantém-se sublime para além de toda elevação. A coragem de Antero de Quental é aquilo que a sua poesia deve ter de profético, afrontando um perigo do inundo e anunciando a tarefa a realizar.
O ato ético, então, seria — posso dizer — menos o poema em si do que aquilo que o poema dita como tarefa. Antero, na realidade, seja no registo poético ou político, vive o avanço de um sobre o outro, tratando-os pelo que testemunha a poesia, atestando-se como tal; quer dizer: torna a relação mundo-poeta um ato de falar a verdade. Logo, vocação moderna para o martírio — que segundo me parece assegura o desfalecimento do tema para beneficiar o paradoxo máximo da individualidade poética: a grande poesia é prosa de mundos.
      
Desempenho da leitura: sete ensaios de literatura portuguesa,
Marcus Alexandre Motta. Editora 7Letras, 2004, pp. 38-40.
    
                 

  
Mark Wallinger: Ecce Homo, 1999

          



A angústia existencial. Figurações do poeta. Diferentes configurações do Ideal.
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:

 "«Na mão de Deus»: um percurso pelo universo religioso dos«Sonetos Completos» de Antero", Mário Garcia. In: Revista Colóquio/Letras. Ensaio, n.º 123/124, janeiro de 1992, p. 143-149.
    
 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>

                

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/02/11/palavras.dum.certo.morto.aspx] 

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