terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

PALAVRAS DUM CERTO MORTO (Antero de Quental)


 

   
    
PALAVRAS DUM CERTO MORTO

Há mil anos, e mais, que aqui estou morto,
Posto sobre um rochedo, à chuva e ao vento:
Não há como eu espectro macilento,
Nem mais disforme que eu nenhum aborto...

Só o espírito vive: vela absorto
Num fixo, inexorável pensamento:
“Morto, enterrado em vida!” o meu tormento
É isto só... do resto não me importo...

Que vivi sei-o eu bem... mas foi um dia,
Um dia só ‑ no outro, a Idolatria
Deu-me um altar e um culto... ai! adoraram-me

Como se eu fosse alguém! como se a Vida
Pudesse ser alguém! — logo em seguida
Disseram que era um Deus... e amortalharam-me!
     
Antero de Quental
   

   
«Ecce Homo», Mark Wallinger 
    


O PENSAMENTO DE DEUS NOS SONETOS
     
Em “Palavras de um Certo Morto” e “A um Crucifixo”, encontramos um Antero fortemente influenciado por uma série de leituras sobre a vida de Jesus, principalmente a de Renan, sobre as quais tece comentários:
Quanto mais estudo, mais me parece aquilo uma fantasia sentimental, um resto da velha crendice [...]. O grande valor desse livro é todo lírico, pessoal, subjetivo; histórico, muito pouco. O mais curioso é que apesar disso (devia dizer, por isso mesmo) a Vie de Jésus se vai tornando centro de uma nova igreja cristã, de uma igreja em que se adora Cristo como “o mais divino dos humanos”, um “mestre inimitável da vida espiritual”.[...] O Cristianismo morreu totalmente: em corpo e alma. Não é só a lenda cristã que a razão moderna rejeita; é o espírito cristão, o sentir cristão, tudo. [...]. (Antero de Quental –Subsídios para a sua Biografia, 1948, vol. II, p. 23)
         
Necessário se faz que nos reportemos ao clima anticlerical, tão em voga no período, no qual “[ a] Igreja era o alvo de todos os ódios e violências. Mas a Igreja não se destruía, sem se destruir o Cristianismo. E para o Cristianismo desaparecer, era preciso, em primeiro, fazer desaparecer o Cristo.” (NEVES, M. O Grupo dos Cinco – Dramas Espirituais.Lisboa, Livraria Bertrand, 1945, p. 206)
Torna-se inegável a mudança de postura dos escritores portugueses em relação ao tratamento dispensado a Jesus; dos primórdios da literatura até os dias de Antero, se críticas houve, estas foram dispensadas apenas ao clero (Cantigas de Escárnio e Farsas de Gil Vicente), permanecendo intocável a figura de Jesus. Somente na geração de 70 passará a ser arguida a divindade do mesmo.
Para nosso poeta, entretanto, “[ o] seu Deus [continua a ser] apenas de natureza íntima” e “Cristo não é Deus. É um homem extraordinário, símbolo da vida” (NEVES, M. O Grupo dos Cinco – Dramas EspirituaisLisboa, Livraria Bertrand, 1945, p.45), ao qual Antero nunca renunciou.
Sua visão de um Cristo humanizado provém de que “renuncia aos dogmas da Igreja, entrega-se aos mitos da ciência, do progresso, da liberdade e da revolução.” (Ibidem, p.44)
Essa mudança na postura dos escritores portugueses da época deu-se pelos motivos expostos neste trabalho, citados a partir de 3.1.
É esse Cristo, tornado humano, que encontramos em “A um Crucifixo” (1874) (há outro soneto com o mesmo título, de 1862, já citado à página 19) e em “Palavras de um Certo Morto”, analisados a seguir. […]
Em “Palavras de um Certo Morto”, “mostra-nos Antero o pensamento divino, manifestado através das ações de Jesus” (Ibidem, p.234), quando, transformado num objeto de idolatria, vê-se privado do papel de “modelo de vida moral”: “[...] a Idolatria / Deu-me um altar e um culto...ai! adoraram-me, / [...] e amortalharam-me!”.
As reclamações sucedem-se: “Há mil anos, e mais, que aqui estou morto, / Posto sobre um rochedo à chuva e ao vento: [...]”; “Como se eu fosse alguém! Como se a Vida / Pudesse ser alguém!”; destaca-se, nesses versos, o sentimento de frustração pelo que poderia ter realizado, se lhe tivessem dado o direito de ser Vida (no sentido anteriano:princípio ideal espiritual).
No Cristo amortalhado, “Só o espírito vive: vela absorto / num fixo, inexorável pensamento: / ‘Morto, enterrado em vida!’, o meu tormento / É isto só... do resto não me importo...”, o sentimento de impotência perante o que poderia ter sido: “o Cristo princípio, ideia pura da vida, e o Cristo personificado, idolatrado e por isso desvirtuado.” (Ibidem, p.246)
Pertencente ao Ciclo do Pensamento de Deus, portanto, de índole combativa, é um monólogo onde Cristo desabafa a dor de não ter sido compreendido pelos homens, que o materializaram, pregando-o, não numa cruz, mas num altar, e adorando-o. Em carta a Tommaso Cannizzaro, de 1889, ele explica claramente o seu pensamento:
O personagem que fala no meu soneto Palavras de um certo morto é, como por certo compreendeu, o Cristo: o Cristo símbolo, ideia e princípio da vida espiritual, personificado e idolatrado pela ignorância dos homens, que fizeram uma pessoa (alguém) de um princípio impessoal e por isso o desvirtuaram criando simplesmente uma nova idolatria. Tais são as queixas do Cristo e tal é o pensamento do soneto. [...] É talvez um pouco obscuro e metafísico; com efeito, várias pessoas me têm já perguntado qual o verdadeiro pensamento deste soneto. Esse pensamento consiste no contraste entre o Cristo, ideia pura da vida, o Cristo princípio e o Cristo personificado, idolatrado e por isso desvirtuado; de modo que a apoteose equivaleu à morte e enterro daquilo mesmo a que se pretendia dar imortalidade. A vida (princípio ideal espiritual) não pode ser alguém (uma pessoa, um indivíduo limitado): daí a contradição íntima do Cristianismo, o contraste e a ironia dolorosa das palavras que ponho na boca do Cristo, ao mesmo tempo como uma crítica amarga da loucura idólatra dos homens e um juízo sintético da história do Cristianismo. (Antero de Quental –Subsídios para a sua Biografia ,1948, vol. II, p. 24)
      
Antero de Quental: Uma trajetória com Deus, Helen Araujo Mehl. 
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, setembro 2003.
    
    


Paolo Troilo
Paolo Troilo, 2013
    
    
A NATUREZA DA PRECE
No poema “Palavras duns Certo Morto”, Antero cunha a primazia da irmandade entre estética e ética. Sua decisão afirma o inabalável combate poético: a luta mais íntima e fratricida é entre o pensar e o sentir […].
O momento do “real” é exposto em sua ficcionalidade; a alteridade como criadora da ficção não tem mais o que possuir, portanto, raciocina a partir de um tempo para um tempo maior, no para além da morte; melhor: a memória imperecível da ética. Antero de Quental nem pretende resgatar o temporal e nem anunciar o seu término. Antes, formula a instrução visionária que, por atitude poética, provoca um problema de fé e um problema de forma. Tais situações permitem ao poeta colocar tudo num compromisso moralmente expresso pela palavra eu; que de alguma maneira enterrado em vida conta o excelso de sua memória amortalhada.
Porém, o que tenho a dizer da poesia? Digo que o muito que se fala do papel representado por Antero nas dimensões da política faz esquecer que o poeta promulga o princípio da destruição do poema que é sobre algo; realizando o enleio entre um eu tão arcaico com outro tão fracamente anunciador do presente. Essa atitude evidencia o estado de espírito de relembrança em pretérito superdeterminado, no qual se protagonizam cenas com dois ou mais passos em direção à natureza. Explico: a natureza consolida-se como personificação de pontos temporais que se originam com alguma veste trágica.
São estas vestes que no prumo equilibram a ironia; delineada na seriedade dos versos. Ou seja: o aspeto de imortalidade confirma e suplanta a evidência das coisas ditas na poesia, de forma que a imagem do processo — mil anos, um dia — evoque o contrário do temporal; agenciando a identidade que abre prosseguimento através de uma desejo trapaceado. Melhor: Antero de Quental ao imiscuir-se na figuração que anuncia Deus como duplo poético, cria a formação reativa que constitui a negatividade de qualquer transcendência — o ego do poeta, conforme o seu desamparo, retira sua fixação dos objetos que podiam estar na presença. dado o alto grau que eles têm de irredutível alteridade, e, assim, espera reproduzir um estado primitivo para sua angústia.
Esse estado primitivo da angústia confirma a versão do passado que se realiza como função diferencial do presente, cabendo ao ato de presentificar a eficácia das impressões originais que dão nome ao poeta. Ora, se Antero está de posse de uma identidade, ele não tem um tema, senão a estória de como cria a sua própria imagem única e, portanto, além de si. Se a imagem parece objetiva é por ser mais implícita; não pode ser alcançada no presente, porque seu modo é a duração, e qualquer tentativa de apreendê-la diretamente revive o vazio do presente como sensação de perda.
Quental toma o mito da memória cristã propondo um eu sou tudo que fui, e nesse andamento aproxima-se do presente ao viver a fuga de algo que teme segundo aquilo que ama e perde. Melhor: o poeta cura a imaginação através do controle do ego, criando, assim, o compensatório ato que aprofunda o resgate da ambiguidade originária do poeta — homem ou divino.
Nesse sentido, aquilo que aparece como uma temática cristã é no poema um abandono no perigo, que de alguma maneira ameaça o mundo e a vida de Antero. No perigo da identificação se esconde o paradoxo particular e, com base nele, o poeta estrutura seu ditame.
O mundo daquele que, no rochedo, sofre as intempéries é novo, exatamente por ser demasiado arcaico, saturado de perigo. Lá está a origem espiritual que torna a unificação do poeta e do mundo a vivência de todas as situações humanamente derradeiras. Se o socialismo de Antero de Quental tem alguma participação no seu ato poético, é na absoluta soberania dessa relação. Ou seja: transportado para o centro da vida, só resta ao poeta a imóvel presença a passividade total que é a essência mesma da coragem — entregar-se totalmente àquela relação.
Sendo dessa maneira, posso argumentar que as palavras do poema contêm a tendência de criações tardias, derivando da certeza interna de se encontrarem na própria vida espiritual, na qual a sobriedade do poeta em sua altiva ironia é permitida e, até, exigida; pois mantém-se sublime para além de toda elevação. A coragem de Antero de Quental é aquilo que a sua poesia deve ter de profético, afrontando um perigo do inundo e anunciando a tarefa a realizar.
O ato ético, então, seria — posso dizer — menos o poema em si do que aquilo que o poema dita como tarefa. Antero, na realidade, seja no registo poético ou político, vive o avanço de um sobre o outro, tratando-os pelo que testemunha a poesia, atestando-se como tal; quer dizer: torna a relação mundo-poeta um ato de falar a verdade. Logo, vocação moderna para o martírio — que segundo me parece assegura o desfalecimento do tema para beneficiar o paradoxo máximo da individualidade poética: a grande poesia é prosa de mundos.
      
Desempenho da leitura: sete ensaios de literatura portuguesa,
Marcus Alexandre Motta. Editora 7Letras, 2004, pp. 38-40.
    
                 

  
Mark Wallinger: Ecce Homo, 1999

          



A angústia existencial. Figurações do poeta. Diferentes configurações do Ideal.
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:

 "«Na mão de Deus»: um percurso pelo universo religioso dos«Sonetos Completos» de Antero", Mário Garcia. In: Revista Colóquio/Letras. Ensaio, n.º 123/124, janeiro de 1992, p. 143-149.
    
 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>

                

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/02/11/palavras.dum.certo.morto.aspx] 

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

A UM CRUCIFIXO (Antero de Quental)


A UM CRUCIFIXO

Há mil anos, bom Cristo, ergueste os magros braços
E clamaste da cruz: há Deus! E olhaste, ó crente,
O horizonte futuro e viste, em tua mente,
Um alvor ideal banhar esses espaços!

Porque morreu sem eco o eco de teus passos,
E de tua palavra (ó Verbo!) o som fremente?
Morreste... ah! dorme em paz! não volvas, que descrente
Arrojaras de novo à campa os membros lassos...

Agora, como então, na mesma terra erma,
A mesma humanidade é sempre a mesma enferma,
Sob o mesmo ermo céu, frio como um sudário...

E agora, como então, viras o mundo exangue,
E ouvirás perguntar — de que serviu o sangue
Com que regaste, ó Cristo, as urzes do Calvário? —
    
Antero de Quental, 1862
   
  



A UM CRUCIFIXO
Lendo, passados 12 anos, o soneto da parte 1ª que tem o mesmo título.
            
Não se perdeu teu sangue generoso,
Nem padeceste em vão, quem quer que foste,
Plebeu antigo, que amarrado ao poste
Morreste como vil e faccioso.

Desse sangue maldito e ignominioso
Surgiu armada uma invencível hoste...
Paz aos homens e guerra aos deuses! ‑ pôs-te
Em vão sobre um altar o vulgo ocioso...

Do pobre que protesta foste a imagem:
Um povo em ti começa, um homem novo:
De ti data essa trágica linhagem.

Por isso nós, a Plebe, ao pensar nisto,
Lembraremos, herdeiros desse povo,
Que entre nossos avós se conta Cristo.
    
Antero de Quental, 1874
                 
  



Os sonetos completos de Anthero de Quental, publicados por J. P. Oliveira Martins. - [1ª ed.]. - Porto : Livraria Portuense de Lopes, 1886, pp. 20 e 63.
   
   
   

O pessimismo de Antero é mais alegre que o seu otimismo e a sua fé mais desoladora do que a sua descrença.
É que ‑ creio ser o primeiro a observá-lo ‑ aquelas pessoas a quem é mais conforme a tristeza do que a alegria, quando por acaso alegres (realmente, presumo) não estão em si como na tristeza. Isto dá-se com outras faculdades. Edgar Pöe, por exemplo, é mais contente no seu terror do que na sua alegria.
[...]
Com Antero de Quental se fundou entre nós a poesia metafísica, até ali não só ausente, mas organicamente ausente, da nossa literatura. [...]
      
"Fragmentos inéditos de Fernando Pessoa”, Jacinto do Prado Coelho. In: Revista Colóquio/Letras. Documentos, n.º 8, julho de 1972, pp. 53-54.
      
          

          

O PENSAMENTO DE DEUS NOS SONETOS
     
Em “Palavras de um Certo Morto” e “A um Crucifixo”, encontramos um Antero fortemente influenciado por uma série de leituras sobre a vida de Jesus, principalmente a de Renan, sobre as quais tece comentários:
Quanto mais estudo, mais me parece aquilo uma fantasia sentimental, um resto da velha crendice [...]. O grande valor desse livro é todo lírico, pessoal, subjetivo; histórico, muito pouco. O mais curioso é que apesar disso (devia dizer, por isso mesmo) a Vie de Jésus se vai tornando centro de uma nova igreja cristã, de uma igreja em que se adora Cristo como “o mais divino dos humanos”, um “mestre inimitável da vida espiritual”.[...] O Cristianismo morreu totalmente: em corpo e alma. Não é só a lenda cristã que a razão moderna rejeita; é o espírito cristão, o sentir cristão, tudo. [...]. (Antero de Quental –Subsídios para a sua Biografia, 1948, vol. II, p. 23)
    
Necessário se faz que nos reportemos ao clima anticlerical, tão em voga no período, no qual “[ a] Igreja era o alvo de todos os ódios e violências. Mas a Igreja não se destruía, sem se destruir o Cristianismo. E para o Cristianismo desaparecer, era preciso, em primeiro, fazer desaparecer o Cristo.” (NEVES, M. O Grupo dos Cinco – Dramas Espirituais.Lisboa, Livraria Bertrand, 1945, p. 206)
Torna-se inegável a mudança de postura dos escritores portugueses em relação ao tratamento dispensado a Jesus; dos primórdios da literatura até os dias de Antero, se críticas houve, estas foram dispensadas apenas ao clero (Cantigas de Escárnio e Farsas de Gil Vicente), permanecendo intocável a figura de Jesus. Somente na geração de 70 passará a ser arguida a divindade do mesmo.
Para nosso poeta, entretanto, “[ o] seu Deus [continua a ser] apenas de natureza íntima” e “Cristo não é Deus. É um homem extraordinário, símbolo da vida” (NEVES, M. O Grupo dos Cinco – Dramas EspirituaisLisboa, Livraria Bertrand, 1945, p.45), ao qual Antero nunca renunciou.
Sua visão de um Cristo humanizado provém de que “renuncia aos dogmas da Igreja, entrega-se aos mitos da ciência, do progresso, da liberdade e da revolução.” (Ibidem, p.44)
Essa mudança na postura dos escritores portugueses da época deu-se pelos motivos expostos neste trabalho, citados a partir de 3.1.
É esse Cristo, tornado humano, que encontramos em “A um Crucifixo” (1874) (há outro soneto com o mesmo título, de 1862, já citado à página 19) e em “Palavras de um Certo Morto” […]
Colocado por António Sérgio no Ciclo do Apostolado Social, o de 1874 é resposta ao de 1862, escrito doze anos antes, cujos últimos versos são: “De que serviu o sangue /Com que regaste, ó Cristo, as urzes do Calvário?” Como se não houvesse solução de continuidade, o segundo assim se abre: “Não se perdeu teu sangue generoso,” pois dele “Surgiu armada uma invencível hoste...” Chama-lhe “plebeu antigo” – ao seu olhar de homem do século XIX, socialista, que nele põe, de certo modo, a origem do proletariado –; “vil e faccioso” – através do olhar dos contemporâneos de Jesus, que o viam como um subversivo da ordem política e religiosa.
Enquanto, no soneto de 1862, se lamentava a “inutilidade do sacrifício de Cristo”, neste, doze anos depois, verifica-se o erro da conclusão anterior, “pois que, se de facto o ritmo do viver do Cristo não ritmou até hoje a sociedade existente, criou um pensamento revolucionário enérgico, que modelará talvez a do porvir.” (SÉRGIO, A.Sonetos. Organização, prefácio e anotações. Lisboa: Couto Martins, 1956, p.122)
É esse Cristo que, junto a Hegel e Proudhon, Antero considera “aqueles a quem mais ama e a quem mais deve.” (Ibidem, p.123)
Humanizado, considerado um ancestral dos homens (“Por isso nós, a Plebe, ao pensar nisto, / Lembraremos, herdeiros desse povo, / Que entre nossos avós se conta Cristo.”), torna-se Ele o orientador “[ d]a Ecclesia pressa de um novo Cristianismo.” (Ibidem, p.124)
      
Antero de Quental: Uma trajetória com Deus, Helen Araujo Mehl. 
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, setembro de 2003, pp. 62-63.
      
   



A UM CRUCIFIXO – ANTERO DE QUENTAL: MACROANÁLISE
   
O poema intitulado “A um crucifixo” [“Há mil anos, bom Cristo, ergueste os magros braços”], do poeta português Antero de Quental, foi escrito em 1862. Nele, o eu-lírico dirige-se a um interlocutor específico; ele direciona sua voz poética ao Cristo materializado em um crucifixo. Pelo título, percebe-se que o poeta volta seu olhar contemplativo à imagem de Jesus pregado no madeiro, ressaltando sua missão salvadora aqui na Terra. Ele está diante de um crucifixo e, nele, visualiza o Messias no momento de suas dores de agonia.
Na primeira estrofe, ocorre o que se chama de "flashback", onde o eu-lírico se volta para o próprio Cristo, numa espécie de resgate do instante de sua crucificação (Paixão de Cristo). A sinfonia das palavras transporta o leitor para o mistério da cruz. Há o regresso até o monte Calvário, sendo testemunhas do sacrifício do Cordeiro para a remissão dos pecados da humanidade. Esse confronto temporal (passado e presente) será necessário para a resolução, posterior, das incertezas que povoam a mente do eu-poético.  Ao mesmo tempo em que há um lamento da inutilidade de seu martírio, o Cristo é relembrado como um homem bom, que almejava um ideal: usar a sua morte como exemplo de vida e uma forma de redenção do povo. São descritos os últimos momentos de sua vida e o quanto ele acreditava que sua passagem aqui na terra fosse capaz de preencher o vazio existencial do ser humano.
Na segunda estrofe, ainda num passado presentificado, a voz poética lança mão de um questionamento: “Por que morreu sem eco, o eco de teus passos,/ E de tua palavra (ó Verbo!) o som fremente?”. A incerteza quanto à repercussão de sua ação na Terra é resultante da descrença total dos valores mundanos. A grande indagação feita aqui diz respeito à fé, que passou a ser desvinculada da instância mística e centrada na questão ética, manifestada na procura por uma nova ideia sobre o seu sentido. Sendo assim, a fé figura como uma forma de elevação, desprovida do simbolismo religioso, vinculada mais à moral e à ética. Ela passa a ser uma abstração, um conceito a ser pensado, e não um sentimento subjetivo e dogmático do homem. Por esta razão, aconselha-se ao Cristo que não regresse ao mundo como prometera, pois sua morte não teve a repercussão que lhe era almejada. Suas palavras foram abafadas e a mesma terra que tanto necessitava de uma luz, sair da enfermidade, permaneceu doente. É como se a sua morte tivesse causado certa provocação, mas, no fim, tudo continuou igual (é a mesma terra erma, sob o mesmo ermo céu).
É na terceira estrofe que se atribui a culpa ao responsável pela “castração” da divindade do cristo: a própria humanidade. Neste momento, o tempo verbal retorna ao presente, como forma de se analisar a ressonância deste facto nos dias vigentes. E a constatação é clara. Após presenciar a grande prova do amor de Deus para com os homens, ao dar seu filho único para remir os pecados do mundo, a humanidade permaneceu incrédula, contemplando, estática, as marteladas que ela mesma apregoava nos “membros lassos...”. Neste mesmo terceto, nota-se a repetição do adjetivo "mesmo(a)", quatro vezes, que acentua a constatação de que a sociedade não sofreu alteração. A mesmice dessa humanidade incapaz de aprender as lições do Mestre continua imutável.
No último terceto, já frustrado com a “mortificação” da fé humana, seca de vida e vazia de esperança, e descontente com o não cumprimento dos preceitos divinos, Cristo ainda é interrogado: “E ouviras perguntar — de que serviu o sangue/ Com que regaste, ó Cristo, as urzes do Calvário? —”. O eu-lírico, numa visão angustiante e desesperada na busca pela verdade, indaga o crucificado a respeito do valor que sua morte teve (ou deixou de ter) para os homens. Esta angústia é fruto da visão que o eu - lírico alimenta ao contemplar o suplício de Cristo. Na verdade, somos nós as urzes do Calvário; eram os nossos pecados de Cristo carregou nos ombros na Via Sacra (a cruz); e, o mais evidente, também nós fomos marcados com os cravos que perpassaram seus membros debilitados; temos as chagas em nossos membros para não esquecermos que, um dia, um homem as tomou em favor da nossa salvação. Com esta pergunta, é encerrado o soneto.
A resposta seria dada por Antero, doze anos depois. Em 1874, o poeta escreve outro soneto, também intitulado “A um crucifixo”, onde reafirma a validade do martírio de Cristo e coloca a humanidade como herdeira do seu trono celeste. Enquanto, no soneto de 1862, lamentava-se a “inutilidade do sacrifício de Cristo”, pondo em dúvida a missão do Salvador, cujo exemplo não foi suficiente para abrandar o caos do mundo e o sofrimento dos seus filhos, neste, verifica-se o erro da conclusão anterior.
Como se não houvesse solução de continuidade, o segundo assim se abre: “Não se perdeu teu sangue generoso”, visto que não morreu em vão, pois dele “Surgiu armada uma invencível hoste...”. A vinda de Jesus à terra é apresentada com caráter revolucionário. O Mártir, do qual se fala no poema, é a fonte da verdadeira e futura luta plebeia do mundo socialista. É este Cristo humanizado, sangrando, morrendo (para os que não acreditavam) como maldito, atiçando o desprezo, que aparece liberto e lembrado ao morrer pelos que estão à margem: “Lembraremos, herdeiros desse povo,/ Que entre nossos avós se conta Cristo.”. Jesus é chamado de “plebeu antigo”, aludindo à sua origem humilde (filho de carpinteiro e dona de casa), além de expressar o caráter de sua missão terrena, voltada para os pobres. Em se tratando do século XIX, pode-se dizer que há, nesta nomeação (apóstrofe), a identificação da origem do proletariado. A morte do Cristo “como vil e faccioso” é vista pelo olhar do homem antigo, que enxergava, nele, um revolucionário e agitador da classe oprimida, contra a ordem política e religiosa da época cristã.
Esse povo evocado é bem digno descendente do Cristo que morreu pregado na cruz. Porém, não se trata de uma plebe passiva, amedrontada e incapaz de reação perante a desgraça. Aqueles que o poeta considera herdeiros do “sangue generoso” de Jesus são os que lutam: “Do pobre que protesta foste a imagem / Um povo em ti começa, um homem novo”. O povo assume a dimensão do herói coletivo, apostolado da pura fé plebeia.
Por fim, a mensagem que transparece do soneto analisado (“A um crucifixo – 1862”) é a recusa por parte do ser humano em não acreditar na verdade. O facto de se viver num mundo tão camuflado por aparências, banalizou a verdade como algo vão, insuficiente para garantir a vida em sociedade e nos meios que dela constituem o cotidiano do homem moderno. Por isso, a desvalorização da verdade e o questionamento de sua ausência pelo poeta. A humanidade conhecia a verdade irrevogável, mas a ignorou, pactuando, ela própria, com o crime efetuado contra aquele que varreu o pecado da face da terra.   
"Aquele que não conhece a verdade é simplesmente um ignorante, mas aquele que a conhece e diz que é mentira, este é um criminoso." (Bertolt Brecht)        
White Crucifixion, 1938, Marc Chagall
               
A angústia existencial. Figurações do poeta. Diferentes configurações do Ideal.
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:
      
 Estudos e Ensaios: Antero de Quental, Joaquim de Carvalho

 "«Na mão de Deus»: um percurso pelo universo religioso dos«Sonetos Completos» de Antero", Mário Garcia. In: Revista Colóquio/Letras. Ensaio, n.º 123/124, janeiro de 1992, p. 143-149.


 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>


 [Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/02/10/a.um.crucifixo.aspx]