domingo, 16 de março de 2014

DE PERFIL (Natália Correia)


                      
      
      
O meu perfil é a última esperança de existir um deus que não limita. Fitar o indemonstrável é a minha paisagem preferida. Por isso de perfil me vedes, infatigavelmente proporcionando-me a liberdade de um deus adormentado na cãibra da vossa fé.
Até hoje os deuses foram estupidamente demonstráveis na imagem e semelhança das vossas mandíbulas de devoradores do além. E assim morreram de estupidez.
A minha descrença é a última camada de ar de que dispõe o deus que sufocastes com a vossa fé, ó teocidas de excessivamente acreditardes em deuses! A minha descrença é o meu perfil gravado na suspeita de um deus que me trespassa como a dúvida de um cão atravessando uma rua.
Acaso já vistes uma árvore que se mostrasse de frente? De todos os ângulos que tenteis captar a eternidade suspensa numa árvore ela é um perfil, uma coluna de puro silêncio dessa qualquer outra coisa que é a árvore que julgais ver de frente. Contudo não duvidais de que as árvores existem e que num futuro inscrito no calendário do vosso terror elas sairão de si mesmas como labaredas cantantes, arrancando-vos a língua com a sua música. E então sim tereis a guerra, não a que o ar empesta com o mau hálito das coisas separadas, não a que, selando o mal com as requebradas afetações do bem, as formas embriagadas do ser imobiliza no tempo hábil do estar. Mas a guerra do homem com o deus que no homem se ignora, até cessar a obscena oposição entre a verdade e o mito.
Com isto tento dizer-vos que o meu perfil é uma canção esmagada na minha boca frontal e ferida; a largada de um navio carregado de nomes habitados que enrouquece na travessia, o derradeiro e fabuloso esforço para desnudar o delírio de um deus que a minha epiderme subjuga.
      
Natália Correia, A mosca iluminada, 1972
        


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DE PERFIL
Poesia com dor já comprei
ou algo que de poesia
tinha a cordial dissipação
dos poemas que eu não escrevia.

Agora pela romântica
retórica de não ter dinheiro
a vendo avulso mas roubo
no peso como o merceeiro.

Esse pequeno furto é o meu quarto
(de alva) indicador insone
que disca o número de deus
num sub-reptício telefone

deus movediço que é uma rede
de linhas interrompidas
onde caio morta de sede
de jogar comigo às escondidas.

Escondendo o que de frente vejo
de perfil me vedes como os egípcios
não por vício de esconder um deus
mas o deus de esconder um vício.

Se um grama de mim sonego
a que chamo deus por ínvio rito
perdoai-me porque só vos roubo
aquilo em que não acredito.
      
Natália Correia, A mosca iluminada, 1972
      

      

                    


      

Do mesmo modo que “Num dia demasiadamente raivoso”, em “Fragmentos de um itinerário” encontram-se “O meu perfil é a última esperança” e o poema “De perfil” (1993, v. 1, p. 436-438).
Em ambos os textos, o eu lírico tenta construir sua imagem desvinculada do “mito” em relação a Deus, ou seja, da visão que os homens têm de Deus. Para isso, recorre ao perfil (focalização da parte lateral de uma imagem) e a uma analogia com as árvores, pelo facto de elas serem circum-áxeis e não terem, portanto, a parte frontal, atribuída a esse “mito”.
A perspetiva oblíqua em relação à imagem do ser, posicionamento observado em “Autogénese” (1993, v. 1, p. 319), revela a construção de uma anamorfose, um termo advindo das artes plásticas e que significa desvio em relação à parte frontal, uma espécie de obliquidade. Adaptando o conceito à literatura, para Natália, tal como ela mesma escreve no prefácio de O surrealismo na poesia portuguesa (1973, p. 11), a anamorfose almeja a “depravação da perspetiva lógica”. Nos dois textos anteriores, a anamorfose é composta não no âmbito da palavra, mas no da estrofe ou, no caso do texto em prosa, na abrangência do parágrafo, o que reforça a tese do enredamento. Ao longo não só dessas partes, mas do texto inteiro, estão presentes uma articulação entre signos hiperbólicos e imagens surreais compondo uma sátira a uma convenção em relação a Deus, à fé tal como praticada pelo senso comum (“A minha descrença é a última camada de ar de que dispõe o deus que sufocastes com a vossa fé, ó teocidas de excessivamente acreditardes em deuses!”, “cãibra da vossa fé”, “mandíbulas de devoradores do além”, “deus movediço”) e à lógica (“o meu perfil é a largada de um navio carregado de nomes habitados que enrouquece na travessia”).
Assim como a anamorfose pode se manifestar por meio de uma atitude discursiva reveladora do mecanismo de desvio da parte frontal de um objeto, realizada pelo próprio texto literário, ela também pode ocorrer por uma única expressão que torna oblíqua ou vista por um outro ângulo uma determinada imagem. É o que se nota nos dois textos, em que o signo “perfil”, isoladamente, já resume o sentido de visão oblíqua. Iniciando o texto escrito em prosa e intitulando o poema, significa delineamento pelo lado, em contraste com uma focalização da frente. Além disso, também pode significar a síntese das características do eu lírico, que, mais uma vez na poesia de Natália, afirma-se de modo intenso, porém não apenas como enunciador, compondo um mero narcisismo, mas como uma figura de linguagem para enaltecer a própria poesia e o ofício de poeta, valorizando-se, assim, o princípio da especificidade da arte.
No que concerne à possibilidade de realização de metáfora e/ou de surrealismo na anamorfose, no texto em prosa ocorrem os dois procedimentos, pois, se o período “o meu perfil é uma canção esmagada na minha boca frontal e ferida” apresenta uma metáfora, a continuação do período, “a largada de um navio carregado de nomes habitados que enrouquece na travessia, o derradeiro e fabuloso esforço para desnudar o delírio de um deus que a minha epiderme subjuga”, revela um tom de surrealismo na obra de Natália. No poema, por sua vez, a anamorfose é construída mais pelo viés do surreal.
Tanto em “O meu perfil é a última esperança” como em “De perfil”, a mudança da perspetiva frontal para a oblíqua é problematizada essencialmente na penúltima parte do texto. O ser renega por completo a frente, exaltando o perfil para demonstrar a existência de algo escondido nele e que precisa ser visto: a impossibilidade de se comparar Deus com a imagem do homem. Para reforçar a necessidade de enxergar o lado, o eu lírico faz uma comparação entre ele e as pirâmides do Egito e entre a entidade “vós” e os egípcios.
A invocação da segunda pessoa, possivelmente o leitor, realiza a função conativa, promovendo a tessitura literária pela relação apelativa eu-vós. As três vezes ao longo do texto pelas quais o ser conversa com a segunda pessoa (primeiro, quarto e quinto parágrafos) alimentam a hipótese de enredamento, construído a fim de persuadir o leitor. A extensão, juntamente com o referido contato, mostram-se, pela persuasão, como recursos para obter o tom enérgico com o qual Natália identifica-se poeticamente para exaltar, entre outras, a condição do poeta. O caráter discursivo de sua poesia é, então, uma preferência estética para chegar a esse tom.
Em virtude de o eu sugerir que seu espaço particular de criação poética é o quarto, a expressão “de perfil”, mais no poema do que no texto em prosa, leva à possibilidade de o eu estar diante do espelho, conversando com o leitor. Todas as críticas são direcionadas à visão humana a respeito de Deus, rebaixada já pelo facto de ser chamada de “mito” e por criar um “deus” falso, inscrito com inicial minúscula.
As frases em avesso nos dois últimos versos da quinta estrofe, “não por vício de esconder um deus/ mas o deus de esconder um vício”, não são apenas uma tentativa barroca de apresentar um mundo às avessas, mas deixam clara a opinião do eu sobre a posição de se submeter Deus à imagem e semelhança dos homens. Tal posição, ao ser chamada de “vício”, é considerada autoritária, até pelo facto de esconder “um deus”.
Percebe-se que Natália realmente pratica em sua poesia a anamorfose comentada por ela em O surrealismo na poesia portuguesa. Ao afirmar: “as coisas simplificam-se para o poeta quando começam a ser absurdos para os outros”, a poeta (1973, p. 11) está teorizando um aspeto desenvolvido por ela em sua obra, quando resulta, mais uma vez, pelo desvio da lógica tradicional, o tom agressivo que demonstra a superioridade do poeta.
Além da anamorfose, as construções que colocam certos dados em avesso e também outros procedimentos descritos na referida antologia de Natália são recursos para desvio da lógica buscados pelo surrealismo, cujo verdadeiro objetivo era estabelecer o desvio completo. Aristóteles (1951, p. 122) já dizia algo identificável com a obra de Natália: “em poesia, é de preferir o impossível que persuade ao possível que não persuade”. Isso quer dizer que, para o filósofo, imitar, representar, criar imagens é natural ao ser humano e, sendo a forma imanente ao objeto, a obra de arte é uma realidade ela própria, podendo ser mais importante do que a história, contrariamente a Platão, para quem a realidade humana é basicamente imitativa e distante da essência do ser.
A recorrência às árvores como exemplos de seres vivos que fogem à obrigatoriedade da semelhança com o ser humano, em virtude de elas, sendo circum-áxeis, não terem a parte da frente, mas somente o perfil, também é outro detalhe do pensamento surrealista com o qual Natália dialoga: a “mágica da desocultação” empreendida por Théofile Viau. Assim como para esse poeta as árvores e as hemoptises provinham dos rochedos, para Natália, “elas sairão de si mesmas como labaredas cantantes”, arrancando “com a sua música” a língua da entidade “vós”. O facto de as árvores saírem de algum lugar e de não se parecerem com o ser humano exprime o desejo surrealista de romper com o “mito” e os “Dragões da Lógica”.
Uma idealização do perfil muito próxima à de Natália também pode ser encontrada na pintura do belga René Magritte (1898-1967), mais especificamente no quadro Alice no país das maravilhas (109 x 84,7cm; 42,9 x 33,3’’) de 1945:
     
     
De tendência surrealista, embora avesso a tal classificação, Magritte deixou vários quadros que ainda desafiam a compreensão do observador, pelo facto de, analogamente aos poemas de Natália, suas pinturas não requererem apenas um olhar que apreende, mas que depreende. Alice no país das maravilhas de Magritte revela, nononsense, um teor satírico próximo ao de Natália, e ambos os elementos também estão presentes na narrativa homônima (1865) de Lewis Carroll (1832-1898), considerada por Octavio Paz (1976, p. 15) um poema, em virtude de nela a prosa negar-se a si mesma, já que as frases não se sucedem obedecendo a uma ordem conceitual ou narrativa, mas são presididas pelas leis da imagem e do ritmo, compondo um fluxo e refluxo de imagens, acentos e pausas, sinal inequívoco da poesia.
O quadro, bem como o poema, ao tomar como objeto o afastamento em relação à natureza e a contradição da realidade como o Ideal, executa a depravação da perspetiva lógica por meio de uma sátira “jocosa”, aproximando-se do que diz Schiller (1991, p. 64) em relação ao que ele chama de “poeta sentimental” (romântico). A realidade, para Schiller, é um objeto necessário de aversão, mas tudo o que importa é que essa própria aversão tem de nascer, de novo necessariamente, do Ideal oposto à realidade.
Focalizando “De perfil”, quanto à tentativa do eu lírico de identificar sua imagem e de estabelecer uma relação com Deus, pode-se correlacioná-lo ao poema “Fui eu” de Orides e ao quadro para o qual foi escrito, que também apresenta um rosto sugerindo um ser em questionamento a respeito de sua identidade. Verifica-se um estado de jacência em “Fui eu” e uma impulsividade em “De perfil”.
Se no poema de Natália a anamorfose é apresentada rapidamente, projetando no eu lírico o exemplo do perfil, no texto em prosa essa visão oblíqua é ampliada, então, para o caso das árvores, expondo mais claramente “a guerra do homem com o deus que no homem se ignora, até cessar a obscena oposição entre a verdade e o mito”. O que se estabelece no texto em prosa acerca do indivíduo, principalmente no primeiro e no último parágrafos, acaba desenvolvendo-se no poema, pela focalização do eu lírico e pela restrição do espaço ao ambiente do quarto. A obliquidade torna-se, portanto, um escape para o ser humano livrar-se do “mito”, ou seja, do senso comum. Estando presente na maior parte da poesia de Natália, conforme apontado anteriormente, o narcisismo é outro aspeto considerável no interior do enredamento. A voz em primeira pessoa conduz um poema e, para se autoafirmar, recorre ao tom agressivo de palavras hiperbólicas e imagens surreais, que, juntas, ao longo de uma estrofe e de um parágrafo, constituem um estranhamento: às vezes anamorfose às vezes metáfora, por meio de desconexões semânticas dentro de uma estrutura sintática regular.
Segundo Natália (O surrealismo na poesia portuguesa. S. l., Europa-América, 1973, p. 10-12), a anamorfose realiza-se tanto pela imagética plástica quanto pela depravação da perspetiva lógica. Na primeira situação, há “um sistema de formas que, vistas de frente, são uma mistura confusa de figuras esticadas e insignificativas, mas que, quando observadas obliquamente, apertam-se em proporções justas”. Na rutura com a perspetiva lógica, “as coisas têm significações aberrantes quando vistas de frente, recuperando gradualmente a sua essência à medida que o pensá-las se desloca para o outro ponto, o ponto cândido da perspetiva poética”.
Nos dois casos, compõe-se uma distorção de imagens, em um primeiro momento, hermética ou obscura. A diferença é que, se no sistema plástico, tem-se uma imagem cujas redefinições não são comentadas, na depravação, a mudança de perspetiva de focalização do elemento já é “dita” no poema.

                                      NATÁLIA CORREIA 

[…]
Voltando a “De perfil”, quanto à referida demonstração da superioridade do poeta, ela não poderia ser obtida sem o enredamento, porque, se para Natália, exibir eloquência é condição fundamental para evidenciar a importância do poeta, do ponto de vista ideológico, articular as partes do poema por meio de uma trama, de um envolvimento semântico-formal, torna-se um apoio encontrado na própria linguagem verbal, enquanto fonte de possíveis representações do perfil de um eu lírico, que, no caso de Natália, pode ser, de certo modo, identificado com a autora.
Portanto, de maneira contrastante a fragmento, a funcionalidade interna que não permite ler isoladamente um verso está sendo chamada aqui de “enredamento”. É esse aspeto o que molda a eloquência de Natália, em uma escrita na qual é recorrente a fusão entre voz lírica e poeta.
Conclui-se que a linguagem poética é alcançada, no interior do enredamento, por meio de uma perspetiva crítico-literária voltada para a desvinculação com a lógica, fruto da identificação da poeta com o movimento surrealista. Frente a isso, uma particularidade da autora é a busca de um fazer literário que possibilite demonstrar, pelo estilo eloquente, entre outras questões, o valor do poeta. O que se buscava no Romantismo por meio da afirmação intensa do eu, Natália obtém pela força da eloquência.
O narcisismo, a ideia de fechamento tematizado ou não e a visão oblíqua como possibilidade de romper com a lógica e com o senso comum em relação a Deus buscam no enredamento um recurso de linguagem para compor um tipo de texto que, seja em prosa seja em verso, é acima de tudo persuasivo, tanto assim que a inserção do eu no discurso é outra maneira de persuadir o leitor.
O prefácio a O sol nas noites e o luar nos dias confirma algumas especificidades encontradas nos textos analisados, principalmente a de que o estilo eloquente possibilita a construção da linguagem poética por favorecer uma “força unificadora” ao texto, identificada com o eu lírico, diversas vezes consubstanciado com a poeta.
A “força unificadora”, expressão particular de Natália, pode ser interpretada como enredamento e sustenta o facto de que, em “Fragmentos de um itinerário”, os textos ou fragmentos apresentam-se, na verdade, no âmbito da ligação entre as partes, tanto inter quanto intratextualmente, sob o ponto de vista do preenchimento pela escrita eloquente. A perspetiva poética da autora é, então, a de um envolvimento textual que, para ela, é mais significativo entre as partes da obra do que se a poeta recorresse a espaços em branco ao longo do objeto.
    
 São José do Rio Preto, Universidade Estadual Paulista 
 Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, 2006, pp. 166-177
        
           

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 [Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/03/16/de.perfil.aspx]

sábado, 15 de março de 2014

O NASCIMENTO DO POETA (Natália Correia)

    
Natália Correia (Furnas, 1975)


      
         
O NASCIMENTO DO POETA


Ora foi num dia treze
que em seu bíblico lugar de dor
minha mãe deu por completas
as letras de meu teor

Porque para acabar o mundo
era precisa a minha mão
do azul calafetado
caí nas facas do chão

Machucada de nascida,
da minha sofrida região
pus-me a levantar o mapa
em ponto de exclamação

Assim na câmara escura
de cada privada saliência
meus olhos se revelaram
negativos da ausência

Soube que o tempo é uma luva
antissética que o infinito
calça para joeirar
sem contágio o nosso trigo

daí o amor ser o meio
do homem dividido em dois
e a pior metade é estarmos
à espera de sermos depois

Soube que quando a amargura
nos gasta a pintura aparece
a cor que teriam os olhos
de um deus apócrifo se viesse

não refulgente ou teologal
tampouco suspensa espada
mas ocasional como vestir
uma camisa lavada

porque a vida é a ocupação
do único espaço disponível
para o possível amanhã
da nossa véspera impossível

e o sidéreo, adeus mistério
é um queijo de paciência
para a gulodice da terra
(e não perdi a inocência)

Soube coisas que sabê-las
foi eu ir ficando nua
como no apocalipse uma última
pedra vestida de lua

como no fim do mundo um lírico
verme a recomeçá-lo
a beber estrelas e peixes
pelo seu estreito gargalo

Como eu em amorosa
posição de cana ereta
a pescar no indizível
o sinónimo de poeta
           
Natália Correia, A mosca iluminada, 1972
           
           
           
[…] em “O nascimento do poeta” (1993, v. 1, p. 416-417), o eu lírico apresenta uma relação tensa entre o nascimento e o facto de ser poeta, construindo uma afirmação intensamente narcisista do eu.
Contido em “Fragmentos de um itinerário” (1993, v. 1, p. 411-444), que, juntamente com “As aparições” (1993, p. 445-475), é uma das duas secções da obra A mosca iluminada, publicada em 1972 e recolhida ao primeiro dos dois volumes da poesia completa de Natália, esse poema expressa a ideia de uma consubstanciação entre eu lírico e poeta, não somente pela reflexão da entidade feminina6 sobre ela mesma como criadora e, como tal, sobre seu poder de criticar o mundo e reordená-lo às suas aspirações, mas também pela data mencionada logo no primeiro verso, dia 13, que remete a 13 de setembro de 1923, nascimento de Natália. Autoafirmando-se pela voz em primeira pessoa, o eu lírico narcisista faz transbordar uma intensa preocupação com o ser que nasce e as relações por ele estabelecidas com o mundo, remetendo o leitor, inclusive, ao “Poema de sete faces” (1967, p. 53) de Carlos Drummond de Andrade.
No entanto, em uma entrevista da poeta incluída no livro Palavra de poeta - Portugal (1994, p. 79), de Denira Rozário, Natália chama a atenção para o universo da poesia, da escrita poética (da ficção, da criação, da simulação, do fingimento), e não propriamente para a realidade biográfica, acreditando que “o autorretrato do poeta, se é que ele é confiável na sua totalidade, está na sua poesia”. Tal afirmação articula-se com a de Domin (Para qué la lírica hoy? Barcelona: Alfa, 1986, p. 22), segundo a qual “para o autor, [...] o poema segue sendo uma parte de sua biografia, como o momento da suprema identidade consigo mesmo que é, ao mesmo tempo, a suprema autodespossessão”. Autodespossessão porque, no texto poético, há um jogo instituído pela ficção, que, pela construção de um simulacro, adquire um estatuto sígnico, mediatizando ou “transpessoalizando” a imagem da poeta.
A preocupação com a escrita poética torna-se mais clara no prefácio a O sol nas noites e o luar nos dias (1993, v. 1, p. II):
“[...] fixo-me nesta velha questão porque nela encontro pistas abonatórias do que na vivência do meu fazer poético me surge como uma evidência: o brotar da poesia numa linguagem construída na esfera psíquica de fatores transpessoais que atuam como uma força unificadora.”
O tom agressivo do eu lírico de Natália reclama um olhar atento e cuidadoso para compreender o posicionamento filosófico predominante de tensão entre opostos que coexistem, interpenetram-se e se complementam, como: vida e morte, origem e não origem, génese e apocalipse, revelação e ocultamento, dor e exclamação, sagrado e profano, possível e impossível, céu e terra, pureza e impureza, simples e complexo, antissético e contágio, banalidade do mundo e valorização do “eu”. Esse posicionamento admite correspondências com a lógica dos contrários lançada noManifesto surrealista (1924) de André Breton e mostra a rebeldia no poema de Natália. A síntese desses elementos em oposição ao longo de “O nascimento do poeta” recupera e atualiza o aspeto fundamental da imagem surrealista como fruto da fusão de realidades imprevistas em uma imagem síntese, enigma que se faz representação cifrada do desejo de encontrar na vida a subversão capaz de afrontar o mundo reificado e propor um novo princípio de realidade. Os dois primeiros versos da segunda estrofe (“Porque para acabar o mundo/ era precisa a minha mão”) e toda a penúltima estrofe, por exemplo, permitem identificar a subversão poética de Natália com o estatuto da beleza surrealista como aquele que se mostra na irradiação revolucionária das imagens, na embriaguez dessa vida “a perder de fôlego”.
A inscrição reiterada do ser poético de Natália, na dinâmica da contestação, pode ser entendida no âmbito de que a investigação dos conflitos da subjetividade é signo de resistência, história apreendida por meio do êxtase da imagem surrealista. A possibilidade de emancipação humana por meio da arte foi o grito mais alto e mais revolucionário da aventura surrealista.
Ainda no que concerne às oposições, também no prefácio, página IV, a autora esclarece o seu sentido: “as coisas só se revelam inteiramente no seu oposto, visto que com ele são unas”. Tal posicionamento faz lembrar as filosofias de Heráclito, baseada na tese de que o universo é uma eterna transformação, na qual os contrários equilibram-se, constituindo a razão universal (“logos”) a reger os planos cósmico e humano, e de Hegel (1770-1831), defensor da oposição entre ser e pensamento, em um primeiro nível, para depois ser superada por uma síntese ideal, fundamentando a “dialética” – problemática vinda de Platão – não como um método a supor a exterioridade do entendimento em relação ao objeto, mas como o próprio movimento do Conceito (a manifestação da essência ou substância do mundo real), a própria vida do sistema, pois o Absoluto, o nível do discurso (a verdade plena, simultaneamente ideia e realidade concreta), é o sujeito, o conhecimento racional, a razão.
Se, por um lado, a voz em primeira pessoa está presente não só como objeto do assunto, mas como enunciador, por outro lado, de acordo com Domin (1986, p. 40), “enquanto o poema ajuda o homem a ser ele mesmo, enquanto o ajuda a denominar e comunicar a própria experiência, ajuda-o a dominar a realidade que ameaça extingui-lo”, pois, no ato de escrever, o poeta permite a si mesmo expressar melhor a diferença entre a realidade empírica e a literária, criada no poema, e, deste modo, perceber a ilusão promovida nos leitores pela realidade extraliterária de levar a confundir desmedidamente poeta e eu lírico.
Em redondilha maior, quase todas as 13 quadras apresentam o traço de desconexões semânticas em uma estrutura sintática regular, levando o leitor a desenredar as várias metáforas construídas por meio das oposições citadas. A aproximação formal com a cantiga popular acaba se opondo à complexidade do conteúdo, indicando, em mais uma dualidade opositiva, o caráter provocador da poesia de Natália. A atividade do poeta é, para ela, demiúrgica, porque, ao possibilitar uma mistura entre concreto e abstrato, tornando opaca a compreensão do texto, confere poder a quem escreve, que passa a ser o detentor do saber quase inalcançável, compondo mais uma vez a imagem da feiticeira ou da poeta-feiticeira na poesia de Natália.
Ganhando corpo em um enfrentamento com o leitor, o poema se enreda em tensões dialéticas entre semântica e sintaxe, ampliando o hermetismo das associações: por exemplo, na terceira estrofe, a relação entre o nascimento dolorido e o fato de o eu poético colocar-se a levantar o mapa em ponto de exclamação chega a ser surreal, pois as realidades associadas são consideravelmente díspares no âmbito empírico. Trata-se de um recurso poético para desfazer a impressão de que a atividade do poeta é simples, puramente sentimentalismo.
Para Natália, a poesia deve provocar o leitor, perturbando o seu entendimento, por meio de uma intensificação das abstrações, uma herança das vanguardas poéticas, em especial a surrealista. No caso da terceira estrofe, a abstração se dá quando se percebe que a aproximação surreal passa a ter um sentido: a celebração do nascimento reverte-se para uma sensação de descontentamento por causa das dores, manifestada na escrita poética na atitude do eu lírico de rebelar-se contra esse acontecimento, ao recorrer, por referência semântica, à funcionalidade do ponto de exclamação. Portanto, a desconexão semântica ocorre como uma tentativa de intensificar a abstração da reflexão poética.
As ambiguidades, as passagens obscuras, as antíteses, as repetições, o perspetivismo, o pessimismo, a melancolia quanto à vida terrena, o descontentamento cósmico, o sentimento trágico referente à existência, o exagero da individualidade e do engenho pessoal, o refúgio na “torre de marfim” da arte obscura, o gosto pela grandiosidade e magnificência traduzido na riqueza de imagens, a atração pela violência e pelos sentimentos fortes manifestados em traços estilísticos intensivos como hipérboles (“para acabar o mundo/ era precisa a minha mão”, “como no fim do mundo um lírico/ verme a recomeçá-lo”, “beber estrelas e peixes/ pelo seu estreito gargalo”) induzem a enxergar uma escrita barroca na poesia de Natália. Não é à toa que, naAntologia da poesia do período barroco (1982, p. 38), organizada em 1970 pela própria Natália, ela defende ser a poesia barroca “aquela em que o poeta deixa de ser objeto da poesia para ser sujeito de uma ação poética reveladora”. Essa tentativa de o eu poético afirmar-se de modo intenso é justamente o que se verifica em forte tom em “O nascimento do poeta”.
As repetições de afirmações metafóricas em tons incontestáveis, o uso do pretérito perfeito do indicativo para intensificar as certezas, as repetições de determinadas estruturas, por exemplo, com o verbo “saber” também no pretérito reforçam o tom agressivo e presentificam, na escrita, o narcisismo. Tais realizações poéticas retomam a conceção de Valéry (1999, p. 200) de que um poema é essencialmente feito de palavras, destacando o plano formal, e não somente de ideias.
Tendo em vista os traços de difícil depreensão na poesia, é necessário compreender a noção de estilhaçamento inerente à arte literária, que, mesmo em uma estrutura de enredamento ou envolvimento entre partes do texto, ocorre, em “O nascimento do poeta”, especialmente em nível semântico, para que haja uma interação entre as categorias sémicas do objeto. Ou seja, em um poema, as associações não se dão unicamente de maneira monológica, linear, mas por sincretismo, promovendo associações plurissignificativas, conforme as relações verificadas anteriormente. Daí existir uma abertura semântica no fechamento discursivo. Um exemplo é o da sexta estrofe: o que significa “o amor ser o meio /do homem dividido em dois /e a pior metade é estarmos/ à espera de sermos depois”? Como se percebe, há uma abertura plurissignificativa no “enredamento” entre os quatro versos, permitindo concordar com Bartolomeu Campos de Queirós (2006): “todo escritor configura um texto, mas é a abertura em sua construção que vai conduzir o leitor a reconhecê-lo como literário ou não”.
*
[…] em “O nascimento do poeta”, […] a relação sintático-semântica não apresenta completamente uma harmonia, mas também uma tensão dialética que instaura ironia, porque as sete sílabas, estrutura das cantigas populares, contrastam com a complexidade das associações imagéticas. O plano cósmico, a noção de tempo, o apocalipse e a ocasionalidade da ocupação do espaço, equivalente ao facto de nascer, são aspetos recolhidos figurativamente pelo eu lírico na dimensão que ele chama de “indizível”, para apresentar o nascimento e, conforme a última estrofe, o sinónimo de poeta.
O poema constitui-se de versos com seis, sete, oito e nove sílabas, cada número simbolicamente relacionado a uma determinada questão: versos de seis sílabas referem-se à suavidade do Amor; de sete, à poesia; de oito, a uma disforia relacionada a sofrimento e ao facto de estar no mundo; de nove, a Deus, ao cosmos e ao fim de um ciclo. Por exemplo, a sétima estrofe contém um verso de sete, dois de oito e um de nove sílabas, sendo este último relacionado a um “deus apócrifo”, o que revela uma espécie de senso crítico do eu lírico de Natália, por correlacionar, pela perspetiva da ocasionalidade, a amargura do nascimento ao aparecimento de um deus falso. Mas as relações de sentido dessa estrofe não terminam e desenrolam-se na próxima, também iniciada por um verso com nove sílabas e remetendo ao elemento divino. Forma-se, então, pela ironia e pelo senso crítico, um “enredamento” no poema.
Essa denominação foi escolhida entre várias outras – “trama”, “enovelamento”, “intrincamento”, “entrelaçamento”, “enlaçamento”, “desdobramento”, “encadeamento” – porque é a mais próxima da ideia de que há em um poema uma funcionalidade interna que requer a contemplação do leitor para o conjunto dinâmico do texto, ou seja, configura-se uma trama que não deixa ler isoladamente partes do poema. Trata-se de uma valorização do corpo poético em sua totalidade, na qual as associações insólitas (tempo - luva antissética calçada pelo infinito, amargura - desgaste da pintura, aparecimento de um deus apócrifo - ato de vestir uma camisa lavada, vida - ocupação de um espaço, sidéreo - queijo de paciência para a gulodice da terra) em uma sintaxe narrativo-discursiva, próprias do estilo de Natália, que prima pelo excesso, pela magia encantatória do verbo, remetem a traços do barroco: jogos de luz e sombra com ângulos das inclinações mais diversas; procura do movimento e da ilusão que leva a obra a não permitir uma visão privilegiada (frontal, definida), mas induza o observador a deslocar-se continuamente para compreendê-la sob aspetos sempre inusitados, como se ela estivesse em contínua mutação.
O tipo de escrita de Natália remete às instabilidades criadas nas obras barrocas, nas quais o tratamento temático se dá por meio de conflitos, de tensões, de modo a não haver questões absolutas no equilíbrio entre forma e conteúdo. Assim como no estilo barroco, em “O nascimento do poeta” a multiplicidade de detalhes converge para a unidade alcançada pela interpenetração entre as partes, projetando a atenção para o todo […]. Relaciona-se à tensão observada na obra de Natália a observação de Haroldo de Campos (1975, p. 92) de que a poesia “faz-se dialética não para o conforto de alguma síntese ideal, hipostasiada no absoluto, mas pela guerra permanente que engendra entre os elementos em conflito, à busca de conciliação, e onde o possível se substitui normativamente ao eterno”.
Nessa trama interna do poema, manifesta-se um aspeto universal correspondente à força centrípeta da linguagem literária, questão problematizada por vários críticos, como Northrop Frye, Umberto Eco e Melo e Castro. O crítico português, na obra O fim visual do século XX (1993, p. 17), explica o fato de a obra de arte possuir uma força centrípeta que atrai o espectador, transformando-o em participante no sentido de comunicar-se consigo próprio, na obra de arte. O leitor reage, assim, ao complexo das perceções que lhe são possíveis. Pensando, neste momento, no título da seção em que está incluído “O nascimento do poeta”, “Fragmentos de um itinerário”, um detalhe não deve ser deixado de lado quanto à construção desse poema: a “eloquência” é incoerente com uma estrutura poética fragmentária, levando a pensar que os fragmentos só existem no título da seção e nas respetivas implicações semânticas que agrupam os textos dela integrantes.
Trata-se de um conjunto de poemas precedidos cada um por um texto em prosa centrado no mesmo núcleo temático do poema: “Num dia demasiadamente raivoso” e “O nascimento do poeta”, “No sítio em que os Transparentes” e “Árvore géniológica”, “Na fossa dos mais acreditados dicionários” e “Mãe ilha”, “Os outros seriam menos estúpidos” e “A casa do poeta”, “O quarto é o homem elevado ao quadrado” e “Quarto”, “O casamento é um soneto” e “Tríptico do amor conjugal”, “O meu perfil é a última esperança” e “De perfil”, “O sonho é o homem a três quartos” e “Sonho a três quartos”, “Alguém liga-se à corrente poética” e “A defesa do poeta”.
Para estarem agrupados em uma obra particular e ainda receberem um subtítulo, certamente que deve haver algo a conduzir esses textos: é a voz de um ser feminino exaltando, principalmente, o “eu”, a poesia, o espaço de criação literária e o poeta. Se os textos constituem um “itinerário”, tal percurso se demarca pela voz de um ser feminino, o eu “em amorosa posição de cana erecta”, a focalizar o próprio eu, a figura do poeta. Fica patente, portanto, o princípio de composição de uma poesia marcada, sobretudo, pelo signo da intertextualidade, à medida que se estabelece uma inevitável relação de um texto com os demais, sem que isso queira dizer que eles fazem referência entre si.
Embora esteja sendo usado em um nível semântico intertextual, o termo “fragmentos” permite uma discussão a respeito da imagem de “enredamento”, por indicar que, até quando se trata de fragmentos ou, na verdade, textos, a poesia de Natália desenvolve-se no âmbito da ligação entre as partes que a escrita e leitura realiza. Quando até os fragmentos são considerados textos, é porque a perspetiva poética da autora é, realmente, a de um envolvimento que, para ela, é mais significativo entre as partes da obra do que se recorresse a espaços em branco ao longo do objeto, lembrando Mallarmé.
A já mencionada epígrafe escrita por Natália ao poema “Ode ao agravo geral” (1993, v. 1, p. 169) de que “o valor das palavras na poesia é o de nos conduzirem ao ponto onde nos esquecemos delas” e “o ponto onde nos esquecemos delas é onde nunca mais se pode ter repouso”, ao conceber uma especificidade para a relação entre as palavras e as ideias por elas suscitadas, na poesia, traz uma noção válida para o enredamento: a de que existe uma ligação entre as partes do poema capaz de provocar um “borbulhar” de sentidos, os quais, não se fixando em um ponto determinado (um verso, uma estrofe) do texto, enviam a outra parte, construindo um “enredamento”, uma teia. Essa tecedura poética impede a leitura isolada de um fragmento do poema, forçando o leitor a circular pelo texto e entre os textos, para que não se perca o recurso impulsionador do tom rebelde da linguagem adotado por Natália. É preciso mergulhar nesse espaço “onde nunca mais se pode ter repouso”. Portanto, o enredamento torna-se uma forma de impulsionar o tom rebelde da linguagem na poesia de Natália, conforme se pode notar em “Num dia demasiadamente raivoso”, antecedente a “O nascimento do poeta”:
“Num dia demasiadamente raivoso para caber no Zodíaco nasci a metade de um endecassílabo quebrado em dois. Tambor de ossos delirantes espalhei na cidade a notícia de que um planeta puro como o hálito de muitas flores reunidas preparava um dilúvio de sonhos para desnudar as estrelas jacentes nas criptas dos nomes. Era a loucura de não nascer comigo. Sentados no sumptuoso aposento da morte, os homens trocavam entre si as navalhas em códigos dos assassinos especialistas na vida. Tinham todos nascido pontualmente à hora da certidão de idade. Ou estavam pelo menos convencidos disso. Uma certeza que na caça aos fogos fátuos do alfabeto atribui a cada um o mérito de pendurar à cintura o significado esperneante da vida. Uma cabeleira em acento circunflexo amortecia os sons pertencentes a outra idade que levavam aos sepulcros, salas de dança horrível das vogais sepultadas vivas. Constelada de calafrios recolhi-me à minha flor provocada pelos dias intensos em que me alcanço na radiosa capital dos inascidos: a luz da minha pele iluminada por dentro para gravar um canto. A educação musical dos girassóis que dá o meu hectare de realidade entre o ser e o estar põe a minha memória ao serviço da metade que eu fiquei por nascer. Trabalho urbanístico de esponja embebida na luz de um lugar achado pela técnica suavíssima do marfim de todos.
Alguns, por cardíaca aceitação do policiamento da porta que um cão de turquesas abre para o sítio onde vai ser a vida, chamam a isso poesia.”
       
Ao longo de todo o texto “Num dia demasiadamente raivoso”, não por acaso em forma de prosa, tendo em vista o estilo por enredamento, a poeta é associada a um bebê que nasce. Há várias correlações, entre as quais a primeira é de tom erótico, ao metaforizar (identificar semanticamente dois conjuntos, no caso, o bebé e a poeta, por meio de um processo de intersecção sémica entre eles) a chegada do eu lírico por um canal dividido em dois. Como se pode observar, o próprio texto poético em análise é dividido em dois parágrafos, sendo que, na segunda parte, tem-se a finalização da chegada da poesia.
Outra correlação é quanto ao sofrimento: tanto no nascimento do bebé quanto no do eu lírico, há um “esperneamento”, que acaba sendo o significado da vida. Para a voz do poema de Natália, espernear é, pois, uma insatisfação permanente trazida pelo nascimento.
Uma especificidade do enredamento em “Num dia demasiadamente raivoso” encontra-se não somente nas imagens correlacionadas, mas na maneira como elas são associadas, intersecionadamente, fundindo uma realidade (o nascimento de um bebê) a outra (o nascimento da poeta). Por exemplo, em “nascer a metade de um hendecassílabo dividido em dois”, há um ser que nasce, mas o nascimento torna-se estranho quando ocorre em um hendecassílabo. No próximo período, há quatro entidades cuja associação leva a vários pontos de referência, configurando a fusão de realidades: o ser que nasceu, “planeta puro”, “dilúvio de sonhos” e “criptas dos nomes”. Tal forma de construir a linguagem poética é amparada pela horizontalidade da prosa, em que se constroem períodos longos, principalmente o último.
O mergulho no espaço do nascimento emerge em signos cujas materialidades sonoras demonstram um impulso efervescente de criação poética: “ossos delirantes”, “loucura”, “suntuoso”, “esperneante”, “técnica suavíssima do marfim”. A escolha lexical e o arranjo das palavras conferem à linguagem um tom rebelde sendo impulsionado pela continuidade de tal estilo.
      
 São José do Rio Preto, Universidade Estadual Paulista - 
Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, 2006, pp. 118-126, 160-166.
           
           
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(6) Convém, a esta altura, uma nota: a motivação por reforçar no texto a identidade feminina e, além do mais, por deixar clara em toda sua poesia o facto de ser Natália quem escreve, não deixa de ser mais uma das críticas da poeta a instituições: a masculinidade que determina o mundo e a literatura, mesmo que essa crítica realize-se especificamente no plano da linguagem, da poesia para a poesia na construção de um simulacro, assim como afirma a própria autora (1966, p. 54): «a poesia é uma magia pela magia, magia sem esperança e o poeta o mago que se entrega ao rito pelo próprio rito, não esperando nada senão as experiências que fazem corpo com o ato de penetrar nesse rito». O narcisismo coloca-se contrariamente, por exemplo, à postura da escritora feminista francesa Aurore Dupin (1804-1876), que, paradoxalmente a sua ideologia, para produzir literatura, adotou o pseudónimo masculino George Sand. Baudelaire (1958, p. 1214) criticava duramente as pretensões moralísticas da escritora, desconsiderando-a como artista: «ela foi sempre moralista [...] Eis a razão por que jamais foi artista». Também vale frisar, diante desses dois exemplos, que o tipo de escrita não depende de uma correspondência estrita com a identidade do autor: assim como um discurso feminista não tem, necessariamente, uma autoria feminina, uma mulher não escreve somente com um estilo feminino e um discurso de afrodescendente também pode não ter sido produzido por um autor negro.
        
           
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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/03/15/o.nascimento.do.poeta.aspx]