sábado, 5 de abril de 2014

LOGOS (Antero de Quental)


Gilbert Garcin, "A ruptura".

  

               
               
      LOGOS
     
      Ao sr. D. Nicolas Salmeron.
     
     Tu, que eu não vejo, e estás ao pé de mim
     E, o que é mais, dentro em mim ‑ que me rodeias
     Com um nimbo de afetos e de ideias,
     Que são o meu princípio, meio e fim...
     
     Que estranho ser és tu (se és ser) que assim
     Me arrebatas contigo e me passeias
     Em regiões inominadas, cheias
     De encanto e de pavor... de não e sim...
     
     És um reflexo apenas da minha alma, 
     E em vez de te encarar com fronte calma 
     Sobressalto-me ao ver-te, e tremo e exoro-te...
     
     Falo-te, calas... calo, e vens atento...
     És um pai, um irmão, e é um tormento
     Ter-te a meu lado... és um tirano, e adoro-te!
               
Antero de Quental
               
               
               
TEXTOS DE APOIO À LEITURA DO POEMA
               
Este soneto de madurez leva o título do vocábulo grego para se referir à inteligência, à palavra em tanto que fruto dum processo de razoamento. A composição vai adicada ao filósofo e político espanhol do XIX, Nicolas Salmeron.
Este soneto António Sérgio inclui-o no Ciclo “Da Metafísica” e a este crítico nos remetemos para o analisar (218-219). O Logos é o movimento da Razão, a Ideia hegeliana, é dizer, o princípio que no nosso intelecto pensa as coisas e a causa objetiva que as produz. O Logos toma consciência de fazer parte no nosso espírito e de aí o afirmar o poeta que “estás dentro de mim”, que “és um reflexo da minha alma.” Cala-se ele quando nós falamos, porque somos nós então quem por ele se exprime; fala quando nos calamos, porque se manifesta nesse caso pelos nossos atos. Nós somos apenas uma determinação do Logos, e por isso Antero lhe chama “tirano”, se bem que ao mesmo tempo “pai” e “irmão”. Adora-o, porque é o Deus-Ideia em que ele próprio vive. Ademais disso, tivemos ocasião de lembrar, outrossim, que a atividade do Logos segue o esquema triádico: 1º, posição dum conceito; 2º, posição de um conceito negativo desse; 3º, negação desta negação, posição da síntese. E por isso percorrer o caminho do Logos significa passar por “não” e “sim”, como se diz no soneto. Mas note-se que a “negatividade” dá-nos o outro, e não o contrário; dá-nos um qualquer diferente; não determina nada; e de aí – ao que supomos – a inanidade da lógica hegeliana.
Pode interpretar-se o pensamento do Hegel, no que respeita ao Espírito e à Natureza, como vendo aí duas realidades distintas, e a função do Logos dentro de tal pressuposto que seria a de superar este dualismo básico. Como Natureza e Espírito, todavia, não constituem duas simples abstrações vazias, dois conceitos tomados como absolutos e por isso contrários e coincidentes (como os do “ser” e “não-ser”), senão que duas concretas realidades, ‑ o Logos não pode constituir aqui, com a Natureza e com o Espírito, uma tríada dialética tese-antítese-síntese, e terá de encarar-se como certo quê obscuro onde radica Natureza e de onde procede o Espírito, ‑ o que o torna análogo ao Inconsciente do Hartmann. E talvez seja isto uma forma aceitável de nos figurarmos como Antero passou de um ao outro (do Logos de Hegel ao Inconsciente do Hartamann) e de fazermos a aproximação do presente soneto com outros seus em que se nos fala do Inconsciente.
           
                
Gilbert Garcin, "Le Charme de l'Au-delà", 2012

É assim que o espírito, sem sair de si, se cria e fecunda continuamente, compenetrando-se cada vez mais com a sua própria essência, extraindo dela, da sua infinita virtualidade, momentos cada vez mais completos e mais ricos de ser, até atingir a mais alta consciência de si. Reconhece-se então idêntico com o eu absoluto e independente de toda a fenomenalidade: concebe Deus como o tipo da sua mesma plenitude, concebe e sente a vida moral como a esfera da realização desse ideal. A realização desse ideal aparece-lhe agora como o seu fim último, aquele de que os fins anteriormente propostos, limitados e transitórios, eram só imagem e preparação. Este fim último, porém, sendo imanente, confunde-se com a perfeição do seu mesmo ser.
Antero de Quental, 
Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX
           
*
                 
O misticismo anteriano não é, pois, o da união com Deus, mas o da transformação do próprio indivíduo em eu absoluto, em puro Deus imanente. Este misticismo, como "sentimento e como doutrina", consiste na ascensão ao absoluto, na absolutização do eu, implicando, pois, desmaterialização, libertação do eu empírico que é fonte do sofrimento, dos desejos e da dor, em busca de um outro eu impessoal, absoluto, todo razão e vontade pura, verdadeira substância. Só nesta "ascese búdica" é possível a identidade plena do eu com o seu próprio ideal. O misticismo ativo de Antero consiste em praticar a vida como quem sabe que cada ato é um momento do absoluto.
O Deus anteriano não é o do cristianismo, o transcendente, mas o imanente, que existe no homem e urge descobrir porque "o homem é um Deus que se ignora […] e o Deus da Humanidade é o mesmo homem: e o seu ideal, a religião da Vida".
Deus, tal como em Hegel, realiza-se e ganha consciência de si no homem. Objetiva-se e historiciza-se em esferas gradativas da natureza e ganha verdadeira consciência de si no homem. É um Deus progressivo, princípio espiritual, não sendo, por isso, um Deus-Pessoa. Esta relação íntima entre Deus e o homem resultou das influências da teologia germânica e da sua ligação com o budismo e com a conceção hegeliana de devir. Se Deus é o Bem Supremo, e se este existe no homem, então, entre o homem e Deus não existe qualquer diferença substancial. Deus não tem consciência de si, só pelo homem ela se revela. Este problema, aliás já referido, pode ser encontrado em Hartmann que, como se afirmou, exerceu influência no pensamento de Antero.
Manuel Tavares e Mário Ferro, Guia do Estudante de FilosofiaLisboa, Editorial Presença, 1992, pp. 120-1 21
               
               
                
Gilbert Garcin, "Le funambule", 2002



            
OS SONETOS DE ANTERO DE QUENTAL
5
Substancialmente, estes Sonetos são, na sua maioria, meditações e reflexões do Poeta sobre a sua situação individual ou sobre a situação humana em geral, de abandonado e perdido, crente e desesperado, revoltado e resignado, de busca e ânsia, e da sua atitude de interrogador e cético, contemplativo, meditativo e cismador.
Deus e o Divino, a fé, a dúvida e a descrença, o prazer e o tormento do pensar, a incerteza e o abismo insondável da existência, o enigma e o sentido da vida e da morte, o Ideal e a realidade, o tédio do mundo e a redenção, o mistério do Ser e do Não-Ser: — estes são os temas principais dos sonetos através de todos os ciclos, não formulando os poemas os resultados do vivido e sofrido, da contemplação, do pensamento e da meditação, mas é o próprio processo do viver e do sofrer, do contemplar, pensar e meditar que neles se manifesta, o sentimento transformado em ideia clara e definida, e a ideia transformada em sentimento.
O elemento característico destes sonetos é o movimento, o seu dinamismo intrínseco, que nuns leva do inicio afetivo até à afirmação sentenciosa ou à extinção indefinida, e noutros, da afirmação simples até â exclamação clamorosa ou hínica, partindo na sua maioria de interrogações ou terminando em interrogativas.
Ao primeiro destes grupos pertencem os sonetos A J. Félix dos Santos, com os versos iniciais:
Sempre o futuro, sempre! e o presente
Nunca! Que seja esta hora que se existe
De incerteza e de dor sempre a mais triste,
E só farte o desejo um bem ausente!
             
e o final:
Assim a vida passa vagarosa:
O presente, a aspirar sempre ao futuro,
O futuro uma sombra mentirosa;
             
Lacrimae Rerum, com o começo:
Noite, irmã da Razão e irmã da Morte,
Quantas vezes tenho eu interrogado
Teu verbo, teu oráculo sagrado,
Confidente e intérprete da Sorte!
             
e o fim:
Mas, na pompa de imenso funeral,
Muda, a Noite, sinistra e triunfal,
Passa volvendo as horas vagarosas...

É tudo, em torno a mim, dúvida e luto,
E, perdido num sonho imenso, escuto
O suspiro das cousas tenebrosas…;
             
Comunhão, que principia por
Reprimirei meu pranto!... Considera
Quantos, minh’alma, antes de nós vagaram,
Quantos as mãos incertas levantaram
Sob este mesmo Céu de luz austera!

—Luz morta! amarga a própria primavera!—
             
acabando por
Seguirei meu caminho confiado
………………………………………………………
Na humilde fé de obscuras gerações,
Na comunhão dos nossos pais antigos.
             
Do segundo grupo fazem parte os sonetos Aspiração, com o princípio
Meus dias vão correndo vagarosos
Sem prazer e sem dor (...),
             
e o fim:
(...) sereno, embora a dor me fira,
Eu sempre bem-direi esta tristeza! —
             
Nocturno, com a calma inicial dos versos
Espírito que passas, quando o vento
Adormece no mar e surge a lua,
Filho esquivo da noite que flutua,
Tu só entendes bem o meu tormento...,
             
e o fervor da invocação no terceto final:
E tu entendes o meu mal sem nome,
A febre de Ideal, que me consome,
Tu só, Génio da Noite, e mais ninguém! —
             
Acordando, com os versos iniciais
Em sonho, s vezes, se o sonhar quebranta
Este meu vão sofrer, esta agonia,
Como sobe cantando a cotovia,
Para o céu a minh’alma sobe e canta,
             
e o final:
Os meus Cantos de luz (...)
São sonho só, e sonho o meu amor!
             
Em Velut Umbra, a curva dinâmica vai de
Fumo e cismo! Os castelos do horizonte
Erguem-se à tarde, e crescem de mil cores,
E ora espalham no céu vivos ardores,
Ora fumam, vulcões de estranho monte...
             
até
Oh nuvens do Ocidente, oh cousas vagas,
(…) como a vós
Beleza e altura se me vão em fumo!
             
Mea Culpa principia pela afirmação
Não duvido que o mundo no seu eixo
Gire suspenso e volva em harmonia;
Que o homem suba e vá da noite ao dia,
E o homem vá subindo inseto e seixo,
             
acabando pela exclamação:
A Natureza é minha mãe ainda:
É minha mãe... Ah, se eu à face linda
Não sei sorrir; se estou desesperado,

Se não há que me aqueça esta frieza,
Se estou cheio de fel e de tristeza,
E de crer que só eu seja culpado!
             
Voz interior, depois dos versos iniciais
Embebido num sonho doloroso,
Que atravessam fantásticos clarões,
Tropeçando num povo de visões,
Se agita meu pensar tumultuoso...
             
culmina nos versos
Com um bramir de mar tempestuoso
………………………………………………………..
………………………………………………………..
Rodeia-me o Universo monstruoso,
             
para se extinguir com o terceto
Só no meu coração, que sondo e meço,
Não sei que voz, que eu mesmo desconheço,
Em segredo protesta e afirma o Bem!
             
e finalmente, Na Mão de Deus, com os versos iniciais
Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração,
             
termina por
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!
             
De interrogações partem e interrogativos são os sonetos A M. C. com o princípio
Porque descrês, mulher, do amor da vida?
             
e o verso final
Se descrês, em que hei de eu crer agora? —
             
Ideia V, com a estrofe inicial
Mas a Ideia quem ê? Quem foi que a viu
Jamais, a essa descoberta peregrina?
Quem lhe beijou a sua mão divina?
Com seu olhar de amor quem se vestiu?—
             
Divina Comédia, com o introito
Erguendo os braços para o céu distante
E apostrofando o. deuses Invisíveis
Os homens clamam: — «Deuses impassíveis,
A quem serve o destino triunfante,

Porque é que nos criastes?! (...)
             
e a reversão final:
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dizem: —«Homens! porque t que nos criastes?
             
Terminam em interrogativa os sonetos A Santos Valente, com o terceto
Ah, se Deus acendeu um foco intenso
De amor e dor em nós, na ardente lida,
Porque a miragem cria… ou porque a leva? —
             
Amaritudo, com os versos finais:
Oh minh’alma, que creste na virtude!
O que será velhice e desalento,
Se isto se chama aurora e juventude? —
             
No Turbilhão, com os tercetos
Fantasmas de mim mesmo e da minha alma,
Que me fitais com formidável calma,
Levados na onda turva do escarcéu,

Quem sois vós, meus irmãos e meus algozes?
Quem sois, visões miseráveis e atrozes?
Ai de mim! ai de mim! e quem sou eu?!
             
Os vários elementos da afirmação, interrogação e exclamação confundem-se, completando-se e intensificando-se reciprocamente, em Ignoto Deo:
Que beleza mortal se te assemelha,
Oh sonhada visão desta alma ardente,
Que refletes em mim teu brilho ingente,
Lá como sobre o mar o sol se espelha?

O mundo é grande — e esta Ansia me aconselha
A buscar-te na terra: e eu pobre crente
Pelo mundo procuro um Deus clemente,
Mas a ara só lhe encontro… nua e velha...

Não é mortal o que eu em ti adoro.
Que és tu aqui? olhar de piedade,
Gota de mel em taça de venenos..

Pura essência das lágrimas que choro
E sonho dos meus sonhos! se és verdade,
Descobre-te, visão, no céu ao menos! —
             
em
Lamento
Um dilúvio de luz cal da montanha:
Eis o dia! eis o sol! o esposo amado!
Onde há por toda a terra um só cuidado
Que não dissipe a luz que o Mundo banha?

Flor a custo medrada em erma penha,
Revolto mar ou golfo congelado,
Aonde há ser de Deus tão olvidado
Para quem paz e alívio o Céu não tenha?

Deus é Pai! Pai de toda a criatura;
E a todo o ser o seu amor assiste:
De seus filhos o mal sempre é lembrado...

Ah! se Deus a seus filhos dá ventura
Nesta hora santa... e eu só posso ser triste...
Serei filho, mas filho abandonado ! —
             
em
             
A Germano Meyreles
Só males são reais, só dor existe;
Prazeres só os gera a fantasia;
Em nada, um imaginar, o bem consiste,
Anda o mal em cada hora e instante e dia.

Se buscamos o que é, o que devia
Por natureza ser não nos assiste;
Se fiamos num bem, que a mente cria,
Que outro remédio há aí senão ser triste?

Oh! quem tanto pudesse, que passasse
A vida em sonhos só, e nada vira...
Mas, no que se não vê, labor perdido!

Quem fora tão ditoso que olvidasse...
Mas nem seu mal com ele então dormira,
Que sempre o mal pior é ter nascido! —
             
em
             
Oceano Nox
Junto do mar (...)
…………………………..
………………………………….
………………………
(...) sentei-me tristemente,
Olhando o ceu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento
Que saía das cousas, vagamente...

Que inquieto desejo nos tortura,
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que Ideia gravitais?—

Mas na imensa extensão, onde se esconde
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais...
             
O carácter do movimento é ainda acentuado pela frequência Invulgar doenjambement que se encontra em todos os Sonetos sem exceção, estendendo-se em alguns até a todos os versos, como acontece em PsalmoSepultura Romântica, A Ideia IIEspectros e O que diz a Morte.
             
6
             
O movimento como elemento característico destes Sonetos relaciona-se com o antitetismo que, de acordo com a estrutura deste género, está também na origem daqueles em que o movimento se manifesta menos acentuado por interrogações e exclamações.
São característicos a esse respeito títulos tais como Diálogo, Tese e Antítese, Disputa em Família Luta, e igualmente a palinódia de A um Crucifixo de 1862 pelo soneto do mesmo título, de 1874. Os monólogos Amor vivo, Mea Culpa, Voz do Outono, Estoicismo, Comunhão, Solemnia Verba são expressões da luta interior do Poeta; Ignoto Deo, Divina Comédia, Ignotus e Logos, do seu conflito com Deus; os grupos de A Ideia I-VIII, Espiritualismo I-II e Elogio da Morte I-VI, têm estrutura dialética. Em trinta e nove dos cento e nove sonetos do volume, o antagonismo é marcado por «mas» (ao lado de «contudo», «entanto», «porém», em quatro, por «e» adversativo, em sessenta e sete por outros meios: contra-afirmações, imperativos ou meras antíteses. Mesmo o último soneto do volume, Na Mão de Deus, no intuito do Poeta o seu termo estética e filosoficamente conciliador, é, nesta sua função, determinado pelo antagonismo que nele aparece reconciliado.
As noções de Antero são impregnadas de antagonismos intrínsecos. Deus, procurado, acreditado e suplicado, é ao mesmo tempo o Ser que se oculta no infinito, que se esquiva, insondável e eternamente silencioso, que estabelece a lei da busca da Verdade e igualmente a contrária, que torna vã toda a sua pesquisa:
É lei de Deus este aspirar imenso...
E contudo a ilusão impôs à vida,
E manda buscar luz e dá-nos treva! (A Santos Valente),
             
e
Se é lei, que rege o escuro pensamento,
Ser vã toda a pesquisa da Verdade,
Em vez de luz achar a escuridade,
Ser uma queda nova cada invento,

É lei também, embora cru tormento,
Buscar, buscar sempre a claridade,
E só ter como certa realidade
O que nos mostra claro o entendimento (A João de Deus).
             
Assim, aparece como «fantasma» odiado e amado (O inconsciente), como «tirano», «grande», «forte», «terrível», potência receada, inimigo da liberdade que busca a Verdade, e todavia como «vã banalidade» (Disputa em Família), ser que a si próprio ainda não se «encontrou» (Ignotus). A síntese deste conceito de Deus invisível, mas presente, que domina no íntimo da alma, que está na origem dos sentimentos e das noções, apenas Imaginado e todavia receado, invocado e silencioso, inexorável e todavia adorado, aparece no soneto
Logos
     Tu, que eu não vejo, e estás ao pé de mim
     E, o que é mais, dentro em mim ‑ que me rodeias
     Com um nimbo de afetos e de ideias,
     Que são o meu princípio, meio e fim...
     
     ………………………………………………………
     ………………………………………………………
     ………………………………………………………
     ………………………………………………………
     
     És um reflexo apenas da minha alma, 
     E em vez de te encarar com fronte calma 
     Sobressalto-me ao ver-te, e tremo e exoro-te...
     
     Falo-te, calas... calo, e vens atento...
     És um pai, um irmão, e é um tormento
     Ter-te a meu lado... és um tirano, e adoro-te!
             
Cristo ficou privado da imortalidade, definitivamente humilhado e aniquilado, «morto», pela divinização (Palavras dum certo Morto). Por outro lado, o triunfo da Razão extática ao proclamar que Deus morreu, é apenas a expressão da «eterna, trágica ironia» de Deus (Quia aeternus).
O Homem, por sua vez, submetido à lei que lhe impõe buscar a verdade e daquela que torna vã esta mesma aspiração, é dilacerado pela fé e pela dúvida, pela confiança e pela revolta. As suas interrogações perdem-se, inatendidas, no vácuo, respondem-lhe apenas o eco das próprias dúvidas e tristezas e o silêncio impassível, e em vez de encontrar a luz da Verdade, o espírito ansioso perde-se na escuridão impenetrável. […]
                 
Ler mais: “Os Sonetos de Antero de Quental” in Estudos Vol. II, Albin Eduard Beau. Acta Universitatis Conimbrigensis, Coimbra Editora, 1964, pp. 278-288. (Tradução de Die Sonette von Antero de Quental,publicado em «Portugiesiche Forschungen der Görresgesellschaft, Erste Reihe: Auísätze zur portugiesischen Kulturgeschichte», II. Münster, 1961)
               
               
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:
      
 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>


                  
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/04/05/logos.aspx]

sexta-feira, 4 de abril de 2014

PÔS-TE DEUS SOBRE A FRONTE A MÃO PIEDOSA (Antero de Quental)


Odilon Redon, MULHER COM VEU, 1895

         
          
A M.C.

Pôs-te Deus sobre a fronte a mão piedosa:
O que fada o poeta e o soldado
Volveu a ti o olhar, de amor velado,
E disse-te: «vai, filha, sê formosa!»

E tu, descendo na onda harmoniosa,
Pousaste neste solo angustiado,
Estrela envolta num clarão sagrado,
Do teu límpido olhar na luz radiosa...

Mas eu... posso eu acaso merecer-te?
Deu-te o Senhor, mulher! o que é vedado,
Anjo! deu-te o Senhor um Mundo à parte.

E a mim, a quem deu olhos para ver-te,
Sem poder mais... a mim o que me há dado?
Voz que te cante e uma alma para amar-te!
Antero de Quental
         
          

Antero canta os seus amores, espiritualizados como os de Petrarca. Neles não há sensualidade à vista, como nas poesias de Anastácio da Cunha ou Garrett; há de preferência uma adoração abnegada do Eterno Feminino.
António Barreiros, História da Literatura Portuguesa
         
          
Analise o poema, tendo em conta os elementos seguintes:

• o tom narrativo das duas quadras; o tom dramático dos dois tercetos;

• o destinatário:
- percurso de raiz platonizante;
- caracterização conforme à origem divina (beleza, excecionalidade, luz – “Anjo”);

• programa de relacionamento possível estabelecido pelo sujeito poético:
- os olhos/visão;
- a voz/canto;
- a alma/amor.

• recursos estilísticos e sua expressividade.
        
E. Costa, V. Baptista, A. Gomes, Plural 12, Lisboa Editora, 1999
        
           
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:
      
 Audição do poema “Pôs-te Deus sobre a fronte a mão piedosa
 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>



[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/04/04/amc.aspx]

quinta-feira, 3 de abril de 2014

AÇORIANIDADE


FOTOGRAFIA DE JOSE MARIA DE AGUIAR CARREIRO, Freguesias de Santana e Achada, no concelho de Nordeste, 2011-03-26
José Carreiro, Feteira Grande, 2011-03-26.

            

            

“Quisera poder enfeixar nesta página emotiva o essencial da minha consciência de ilhéu. Em primeiro lugar o apego à terra, este amor elementar que não conhece razões, mas impulsos; - e logo o sentimento de uma herança étnica que se relaciona intimamente com a grandeza do mar.

[…] o basco espanhol Baroja […] escreveu um livro chamado juventud,Egolatria: "O ter nascido junto do mar agrada-me, parece-me como um augúrio de liberdade e de câmbio".

Escreveu a verdade. E muito mais quando se nasce mais do que junto ao mar, no próprio seio e infinitude do mar, como as medusas e os peixes. Era este orgulho feito de singularidade e solidão que levava Antero a chamar aos portugueses da metrópole os seus "quási patrícios".

Uma espécie de embriaguez do isolamento impregna a alma e os atos de todo o ilhéu, estrutura-lhe o espírito e procura uma fórmula quási religiosa de convívio com quem não teve a fortuna de nascer, como o logos, na água […]”.

Vitorino Nemésio, Açorianidade, 1932

        

        

             

IDENTIDADE AÇORIANA

“Num viveiro de lusitanidade quatrocentista”, nasce o ilhéu, uma criação que ganha forma quando o “continental transplantado se descontinentaliza” e perde os seus pontos de referência (Nemésio, 1989: 13). Como ilhéu, a viver num espaço isolado, assume a condição de insular e, ao conviver com outros continentais “transplantados”, acaba por adquirir novos hábitos, costumes e crençasproduzindo um tecido social novo e, acima de tudo, próprio, o que leva, de uma forma natural, à consciencialização do ser açoriano. Assim, “há um escalonamento temporal e espacial no processo de insularidade. Primeiro é-se insular geograficamente, depois, é-se insular psicologicamente; por fim, é-se insular culturalmente” (Rosa e Trigo, 1990: 19).

É na convergência destas três facetas que emerge a identidade do açoriano ou, nas palavras de Vitorino Nemésio (1901-1978)4, a açorianidade. Termo usado pela primeira vez em 19325açorianidade pode ser entendido como uma expressão dos traços de uma comunidade, no fundo como conceito caracterizador de “entidade cultural coletiva” (Almeida, 1987: 305), atendendo à “existência de uma realidade açoriana que não só geograficamente se manifesta, mas que sobretudo é vivida numa ética própria, numa vida – em suma – em muitos pontos especializada e diferenciada” (Nemésio, 1995 [1932]: 88).

Embora a nacionalidade seja reconhecida aos portugueses, desde 1822, na nossa tradição jurídico-constitucional, pelo jus solis e pelo jus sanguiniis, nem sempre esses requisitos terão sido suficientes para os indivíduos se autopercecionarem realmente enquanto tal. Podemos ilustrar este pensamento com um exemplo dado pela história e citado por José Mattoso (2001:14): na segunda metade do século XIX, o Rei D. Luís perguntou do seu barco a uns pescadores se eram portugueses, ao que estes responderam: “Nós outros? Não, meu Senhor! Nós somos da Póvoa do Varzim!”. Esta história leva-nos a pensar que, apesar da antiguidade do Estado, a noção de pertença a uma comunidade nacional é relativamente recente. A partir da Revolução Liberal, o país confrontou-se com o desafio político e cultural de fundar e legitimar uma nova ordem nacional, um novo sentimento de pertença coletiva a uma só comunidade, quer espacial, quer histórica. Foi esse esforço de liberais oitocentistas, republicanos e salazaristas que brindou o nosso tempo com vagas de “reaportuguesadores”, de “inventores de Portugal”, na literatura, na arte, na música e na arquitetura. No entanto, o analfabetismo, bem como a fragmentação e a pobreza do tecido económico nacional, nunca permitiram criar uma identidade supraindividual e suprarregional, fazendo com que o contexto em que o indivíduo nascesse e crescesse assumisse o estatuto definidor da sua identidade, contribuindo para o enfraquecimento ou mesmo para a anulação de laços mais abrangentes.

Partindo do caricato exemplo dos pescadores nortenhos, podemos fazer uma analogia com o arquipélago dos Açores, pois se no século XIX os pescadores só viam a sua Póvoa do Varzim, eram raros os açorianos de então que não se diziam micaelenses,terceirenses ou faialenses antes de serem portugueses, dado que os Açores eram o seu “país natal”. Fruto também da situação geográfica pode dizer-se que a relação do arquipélago com o Portugal continental, pelo menos até ao século XX, era muito semelhante a uma relação metrópole-colónia. Assim, existiam vários escritos onde a ideia de Portugal como uma nação pluriespacial – na qual o arquipélago dos Açores estivesse plenamente integrado e onde fosse assumido o sentimento português dos açorianos – não era clara, fazendo com que, no caso açoriano, se desenvolvesse um certo “orgulho na insularidade”, cujo reverso sempre foi (e ainda poderá ser), uma certa “mágoa de abandono”.

Mercê da situação geográfica, o mar é um dos elementos base na vida dos ilhéus. É com ele que os indivíduos mantêm uma forte relação, pois, se, por um lado, oferece a certeza do confinamento, por outro lado, oferece a possibilidade de fuga e de ligação com o resto do mundo. Vitorino Nemésio, também ele açoriano, em Corsário das Ilhas – o testemunho escrito das suas viagens aos Açores em 1946 e em 1955 – regista este sentimento, ao afirmar que:

os continentais, sempre um pouco malignos connosco, bem davam a imagem do nosso estreitamento neste Mundo, dizendo: “Vocês, quando acordam, não estendem as pernas, com medo de que o mar vos molhe as pontas dos pés”... Ora, se isto não é fisicamente verdade (...) tem todavia uma certa razão interior: traduz caricaturalmente a nossa sensação insular de solidão e de limite. Nós não temos medo de que o mar nos alague ou de que a terra nos falte: - temos sempre presente, como salutar advertência, a sensação de que o Mundo é curto, e o tempo mais curto ainda.

Mas contra o que se poderia tirar da área apertada que nos coube no berço, quanto à nossa equação com o Mundo e à nossa maneira de respirar, a verdade é que ninguém mais do que o ilhéu, a não ser talvez o homem da planície, possui o instinto da amplidão. É com os próprios olhos que tiramos do mar a terra que nos faltou (1996: 62).

Esta consciência da insularidade é decisiva para a assunção da açorianidadeenquanto dimensão cultural e (quase) filosófica do ilhéu, na medida em que passa a haver uma relação inconsciente com o mundo de proveniência e instala-se uma relação consciente e forte com a terra de acolhimento. Consequentemente, há sentimentos de pertença que se instalam e se tornam princípios inabaláveis, levando à emergência, de uma forma generalizada, de um enfraquecimento do “sentido de nacionalidade” (Rosa e Trigo, 1990: 21).

No entender de José Henrique dos Santos Barros (1981), este fator poderá estar relacionado com a emigração acentuada que pode levar a uma desagregação e a uma segmentação espacial, logo, a uma falta de “coesão social” que impede os açorianos de se verem coletivamente (74). Contudo, se, por um lado, a emigração pode apartar e desagregar, por outro lado parece-nos curioso verificar, especialmente quando se disserta sobre a açorianidade enquanto conceito, que esta se manifesta, de forma mais visível, quando a distância física existe. Assim, constata-se junto da diáspora açoriana a invocação de uma proximidade psicológica, através da lembrança, da memória, da escrita ou da leitura das vivências passadas, e assume-se a tal coesão, numa espécie de “catarse coletiva da libertação” mesmo que, e acima de tudo, seja imaginada (Almeida, 1989:30).

Fatores objetivos, como a pobreza e o desemprego, aliam-se a fatores subjetivos, como o apelo de familiares ou o sonho da fortuna fácil, para dar forma a um êxodo regular de açorianos. Em busca de um “significado cultural global” para a emigração ao longo da história portuguesa, Machado Pires identifica duas grandes justificações: por um lado, a deficiente estrutura social, com o domínio senhorial, a má exploração dos campos, a fraca industrialização e a atração pela exploração marítima que impedia a criação de raízes e o desenvolvimento sustentado; por outro lado, e de forma imbricada, as características próprias do povo português – logo, também do povo açoriano – onde ressalta a expansividade (Pires, 1981).

Nesta linha de ação, não se pode ignorar o fator emigração na teia da construção de um conceito de identidade local. Para além de ser uma dimensão mental e espiritual, temática recorrente na literatura açoriana (emigrada étnica)6, é um fenómeno importante na formação económica, social e cultural do arquipélago (Rocha, 1991: 265). De uma forma generalizada, as famílias emigradas agregam-se em comunidades e mantêm viva a sua cultura e a sua consciência insular, não só de uma forma interior, mas também de uma forma visível com o consumo de produtos regionais, com a presença da bandeira e do hino do arquipélago7, com a comemoração de datas marcantes, essencialmente religiosas, como as Festas do Espírito Santo8.

De acordo com Rosa e Salvato (1990), a emigração veio permitir a emergência da “mátria açoriana”, mãe que não assume diferenças, mas que olha os filhos como iguais, como açorianos. Em simultâneo, e de acordo com os mesmos autores, a mátria vive em harmonia com a pátria, permitindo afirmar que “a mátria dá justificação à açorianidade e que a pátria justifica a portugalidade” (19).

Apesar de a Literatura ser uma forma de expressão significativa na tradição açoriana9, encontrámos na RTP-Açores e na ficção televisiva (na sua maioria produtos de adaptações de obras literárias de autores locais) um potencial estudo de caso para cumprir os nossos objetivos.      

Catarina Duff Burnay,Gaudium Sciendi nº 1março de 2012.
           
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(4) Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva, oriundo da Ilha Terceira, foi poeta, ensaísta, romancista e Professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e na Universidade Livre de Bruxelas.

(5) "Açorianidade", Insula, 7/8, Julho/Agosto, 1932 (Vitorino Nemésio (1989 [1932]) "Açorianidade" Carlos Cordeiro, et al (rec. e sel. textos) Açorianidade e Autonomia. Páginas Escolhidas, Ponta Delgada: Signo, pp. 13-14). Este conceito segue os princípios que levaram à criação do termo hispanidad por Miguel de Unamuno (En torno al Casticismo, 1895).

(6) Em concordância com Eduardo Mayone Dias (1983), a literatura açoriana relaciona-se com a emigração de duas formas: através da literatura emigrada, ou seja, criada por autores transplantados não influenciados pelo novo ambiente e através da literatura étnica, isto é, o trabalho de uma segunda geração de emigrantes consciente da sua cultura e do seu lugar no país de acolhimento.

(7) A primeira bandeira surgiu em 1893 durante o chamado Primeiro Movimento Autonomista Açoriano. Com pequenas alterações, foi aprovada pelo Decreto Regional n.º 4/79/A de 10 de Abril. O hino foi composto em 1890 durante o mesmo período. Com letra de Natália Correia foi oficialmente adotado em 1980 pelo Decreto Regulamentar Regional n.º 49/80/A de 21 de Outubro.

(8) Ver, entre outros: João Leal (1994) As Festas do Espírito Santo nos Açores: um estudo de etnografia social, Lisboa: Dom Quixote.

(9) A expressão literatura açoriana teve a sua primeira aparição impressa a 12 de Maio de 1852 na Revista dos Açores, a propósito de uma informação biobibliográfica. A partir daí, durante a segunda metade do século XIX até aos dias de hoje, a questão foi/é debatida, apoiada e rebatida. No entender de Onésimo Teotónio Almeida (1983), estamos perante um debate semântico, político, ideológico e estético que cria controvérsia por se estar a lidar com uma instância pequena (Açores) e não com uma situação nacional (Literatura Portuguesa, Literatura Francesa), onde também não existe corpo homogéneo nem barreiras definidas. Para além disso, e embora a caracterização de uma produção escrita como substrato cultural de um povo implique uma autonomia política, linguística e cultural9, a expressão “Literatura Açoriana” deverá prevalecer, quando usada em sentido alargado, em referência a obras que: a) falam dos Açores; b) usam os Açores como pano de fundo; c) são escritas por açorianos; d) são escritas por não açorianos, mas que falam deles ou neles se passam; e) usam regionalismos açorianos; f) não os usam, mas usam personagens ou temas que o são; g) revelam, expressam e defendem a mundividência cosmológica e ética açoriana; h) revelam, expressam e defendem a primeira e recusam a segunda, ou vice-versa ou recusam ambas; i) fazem algo ou tudo o dito de a) a h) (Almeida, 1983: 212).






Machado Pires estreia série na RTP/Açores
Estreia domingo, dia 26 de outubro de 2014, às 19h30, na RTP/Açores, a série Açorianidade, da autoria do Professor Machado Pires.
Inspirada no livro Páginas da Açorianidade, a série televisiva carateriza a condição insular e a identidade marcada das ilhas açorianas.
Com doze episódios de vinte minutos, Açorianidade  assenta numa série de conversas entre Machado Pires e personalidades cuja atividade ajuda a compreender a identidade açoriana.
Entre outros, estão agendados diálogos com Avelino Meneses, Fernando Peixoto, Jorge Barros e Ana Maria Martins.
Discípulo de Vitorino Nemésio, criador do conceito açorianidade, Machado Pires, natural da ilha Terceira, foi reitor da Universidade dos Açores.





[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/04/03/acorianidade.aspx]

quarta-feira, 2 de abril de 2014

LITERATURA AÇORIANA


              
JOSE CARREIRO, Sete Cidades, 2011-10-01
José Carreiro. Sete Cidades, 2011-10-01
  



As definições de literatura açoriana são vastas, por isso restringimo-nos às palavras de Machado Pires ("O homem açoriano e a açorianidade", 1995), José Martins Garcia (Diário de Notícias / suplemento «Cultura», 1983/06/16), Onésimo Teotónio de Almeida ("A questão revisitada", 1983) Almeida Pavão ("Constantes da insularidade numa definição de literatura açoriana", 1988) e Vitorino Nemésio ("Açorianidade",1932) que introduziu a problemática da identidade da literatura açoriana, com base no termo da açorianidade.


 



Embora haja quem ponha em causa a existência de uma literatura propriamente açoriana, pelo facto de os Açores constituírem um arquipélago que pertence, geograficamente, a Portugal e que partilha do mesmo idioma, também há quem afirme que, efetivamente e, por várias circunstâncias, existe uma literatura açoriana.
No Diário de Notícias, Suplemento da Cultura de 1983, Garcia afirma que
É uma literatura de autonomia em relação à literatura Portuguesa. (…) o conjunto de obras literárias que veiculam a mundividência típica do Homem Açoriano. (…) esta mundividência corresponde a um condicionalismo geográfico e histórico (…) essa mundividência não comporta limites temáticos, nem se liga a questões de diferenciação linguística, nem a questões essencialmente políticas, nem (muito menos) a qualquer tipo de regionalismo.(1983:2).
Em 1988, no seu artigo intitulado Constantes da Insularidade na Definição da Literatura Açoriana, Pavão refere que
Embora haja quem suponha estéril o debate sobre a existência ou não de uma literatura açoriana, pessoalmente vejo nele uma riquíssima mina de elementos, dados, ideias, perspetivas, conceitos, especulações, interpretações, explicações, análises que refletem mundividências, posições teóricas sobre estética, pontos de vista sobre uma realidade humana num espaço geográfico específico (os Açores) de muitos dos melhores nomes das letras dos Açores. Seria injustificável ignorar-se simplesmente a recorrência dessa questão sem se ver nela algo mais profundo do que um mero debate semântico. Ainda que se queira negar-lhe a importância das consequências, há causas e motivos para o seu aparecimento e ressurgimento cíclico que nenhum observador atento ou estudioso minimamente interessado poderá desdenhar. (1988:2)
Aqui, põe-se em questão uma identidade própria de uma literatura, cunhada de uma mundividência própria, onde só há registo no locus da sua própria construção, por circunstâncias ambientais, vividas pelo autor que as presencia e as transmite, pelas letras, da sua língua individual e própria.
Aguiar e Silva (1989:114) esclarece:
A literatura strictu sensu, ou “literatura” sem qualquer modificador, é entendida como a “literatura superior”, a “literatura elevada” ou a “literatura canonizada”, isto é, aquele conjunto de obras consideradas como esteticamente valiosas pelo “milieu” literário – escritores, críticos, professores, etc. – e aceites pela comunidade como parte viva, fecunda e imperecível da sua herança cultural.
Reis (2001:19) afirma que
qualquer reflexão preambular sobre a literatura e a sua existência enfrenta, de início, a questão de saber se é possível (ou até que ponto é possível) estabelecer fronteiras que delimitam o fenómeno literário; ou por outras indagar o que cabe e o que não cabe dentro do campo literário.
Imediatamente reconhece que essas fronteiras são «algo fluidas», na medida em que, por exemplo, há textos que comungam das duas naturezas (literários e não literários, como por exemplo as crónicas, algumas, pelo menos), outros que, ao longo dos tempos, foram considerados, numa época, como literários, noutra, foram completamente desvalorizados ou esquecidos. Tarefa difícil e inglória, portanto, a de delimitar essas fronteiras.
Entre essas «fronteiras algo fluidas» estão as fronteiras de uma literatura nacional. Ora, se não há consenso em relação à definição de literatura, mais difícil ainda é definir uma literatura adjectivada de açoriana. Por outro lado, percebemos que os limites de uma literatura nacional terão de ser sempre estabelecidos em relação a outra literatura nacional.
Ainda no artigo sobre Constantes da Insularidade na Definição da Literatura Açoriana, Pavão (1988:3) refere que
Foi o atributo de autonomia que, a nosso ver, pretensamente aposto a tal Literatura, a transformou em pomo de discórdia, suscitando a oposição formal de Gaspar Simões e de Cristóvão Aguiar, entre outros. Pensamos, sim, que poderá persistir a designação de Literatura Açoriana, sem que ela se reclame de autónoma. Neste particular, teremos de dar razão aos dois autores referidos na medida em que, utilizando idênticos argumentos, poderíamos abranger dentro do mesmo conceito os casos de Raul Brandão, Pascoais e Agustina Bessa Luís, que trazem marcas de «algo de inconfundivelmente duriense, autónomo», não obstante, até ao presente, ninguém se haver lembrado de proclamar a «autonomia» duma Literatura de Entre Douro e Minho.
Acrescenta ainda no mesmo artigo que,
Há, porém, em nosso entender, nos seus assertos equívocos que convém analisar. Para aquele crítico (Gaspar Simões), a definição de «literatura açoriana» estará ligada aos «escritores que nasceram, viveram e morreram em terras do Arquipélago», muito embora admita que "muito mais fortemente" do que a gente do torrão Continental, a gente do torrão insular contraia, mesmo por pouco tempo com ele em contacto, caracteres diferenciados. (1988:4).
O que equivale, da parte do autor, a confessar que, em relação ao Continente, existem caracteres diferentes nas obras dos autores insulares, a despeito da exiguidade do tempo em que viveram na terra de origem. Mas então há ou não há diferenças, em relação à literatura açoriana?
Isto é, não basta, como fez Simões, atentar no «isolamento físico - geográfico» para caracterizar a insularidade. Mais do que isso, são esse isolamento e essa distância que, uma vez interiorizados numa mundividência e, numa mundividência, geram esse sentimento de angústia metafísica, presente, por exemplo, em Roberto de Mesquita.
Os génios e os talentos não se forjam pelas ambiências culturais, as quais apenas os detetam e divulgam. Roberto de Mesquita foi grande por razões de ordem intrínseca, mas deve muito da sua descoberta a Nemésio. A causa de muitos valores literários insulares permanecerem no olvido reside, uma boa parte das vezes, na ignorância ou no menosprezo que lhes votam os autores e os areópagos das Letras Continentais.
Sobre a condição do homem açoriano, diz Nemésio (1932:59) «como homens estamos historicamente soldados ao povo de onde viemos e enraizados pelo habitat a uns montes de lava que soltam da própria entranha uma substância que nos penetra. A geografia, para nós, vale outro tanto como a história»
De facto, a vivência num pedaço de terra limitado, cercado pelo vasto oceano, define um modo particular de pensar, sentir e agir, enfim, um modo particular de ser. A temática da literatura açoriana encontra-se, pois, intimamente relacionada com peculiaridades de mundividência.
           

“Acerca da Literatura Açoriana” in Da Presença da Literatura Açoriana nos Manuais Escolares de Português Língua Estrangeira no Contexto da Aprendizagem dos Luso-Descendentes nos Estados Unidos (EUA)Ana Isabel do Couto Medeiros. Tese de mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2012.

            
          

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/04/02/literatura.acoriana.aspx]