quinta-feira, 18 de setembro de 2014

OS DEMÓNIOS DE ALCÁCER QUIBIR (Sérgio Godinho)

"A liberdade exprime-se de duas formas: como resultado e como intenção."
Sérgio Godinho (entrevista, RTP, 2022)





O D. Sebastião foi para Alcácer Quibir 
de lança na mão, a investir, a investir, 
com o cavalo atulhado de livros de história 
e guitarras de fado para cantar vitória. 

O D. Sebastião já tinha hipotecado 
toda a nação por dez reis de mel coado 
para comprar soldados, lanças, armaduras, 
para comprar o V das vitórias futuras. 

O D. Sebastião era um belo pedante 
foi mandar vir para uma terra distante 
pôs-se a discursar: isto aqui é só meu 
vamos lá trabalhar que quem manda sou eu. 

Mas o mouro é que conhecia o deserto 
de trás para diante e de longe e de perto 
o mouro é que sabia que o deserto queima e abrasa 
o mouro é que jogava em casa. 

E o D. Sebastião levou tantas na pinha 
que ao voltar cá encontrou a vizinha 
espanhola sentada na cama, deitada no trono 
e o país mudado de dono. 

E o D. Sebastião acabou na moirama 
um bebé chorão sem regaço nem mama 
a beber, a contar tim por tim tim 
a explicar, a morrer, sim, mas devagar 

E apanhou tal dose do tal nevoeiro 
que a tuberculose o mandou para o galheiro 
fez-se um funeral com princesas e reis 
e etcetera e tal, Viva Portugal.
   
Sérgio Godinho, De Pequenino Se Torce O Destino1976
   



Ficha de abordagem do tema musical “Os Demónios de Alcácer-Quibir”





1. Caracteriza o ritmo da canção salientando a sua expressividade.
2. O autor pretende revelar a sua caracterização da personalidade de D. Sebastião.
a) Explicita-a.
b) Qual é a figura de estilo predominante da qual se socorre o poeta para a caracterização de D. Sebastião? Justifica.
3. Caracteriza a linguagem utilizada recorrendo a dois exemplos.
4. Estabelece um paralelismo entre a mensagem desta canção de Sérgio Godinho e a obra estudada: “Frei Luís de Sousa “.

José Manuel Cardoso Belo. Vila Real, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2010, p. 181.

  

Textos de apoio

A Simbiose Sinestésica Intertextual da Poesia Musicada em Sala de Aula: “Os Demónios de Alcácer Quibir” (letra e música de Sérgio Godinho)

Ritmo– Ternário, em clara imitação de cavalos a galope.
Melodia – Ao estilo do próprio cantautor, desconcertante, com alterações de ritmo e melodia.
Apresenta influências de música jazz, valorizando o pendor satírico do texto.
Harmonia – Complexa, rompendo com a rotina.
Análise semântica ‑ Este tema musical, segundo Gilbert Durand (“O Imaginário português e as aspirações do ocidente cavaleiresco”, in Cavalaria espiritual e conquista do mundo. Lisboa, Instituto nacional de investigação científica, 1986), tem como temática o imaginário profundo do povo português – O do Salvador D. Sebastião, rei que espera escondido a hora do regresso. Contudo, Sérgio Godinho refuta este mito e caracteriza com sarcasmo o arrojado desejo de vencer os mouros no seu próprio reduto. Utilizando uma linguagem oralizante, com expressões populares, o poeta pretende ridicularizar, abanando as consciências saudosistas que sempre aspiraram pela vinda do desejado e malogrado D. Sebastião.
Este Rei acreditava que uma vitória no Norte de África abriria novas alternativas para o alargamento territorial e consequente desenvolvimento financeiro do país. Seduzido por um projeto político sem limites e por ideais cavaleirescos, D. Sebastião lançou-se para a campanha de África coma ideia de engrandecer o Império Português, como refere Fernando António Baptista Pereira (O Retrato do rei Sebastião como cavaleiro do Graal. Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1986, p. 73)
“…Esta junção do imaginário cavaleiresco com propostas megalómanas de redenção do todo nacional informa a assunção final da sua imagem de salvador da pátria pela conquista de Marrocos, chave para todos os problemas imediatos da expansão portuguesa.
Para tal desígnio, contraiu empréstimos provenientes dos fundos dos cristãos novos e despendeu somas elevadas para apetrechar um exército que pudesse vencer todas as adversidades.
O cantautor imprime um ritmo vivo, bélico, apostando numa cavalgada musical que nos transporta até à batalha a fim de poder libertar os “demónios,” como forma de exorcizar a consciência colectiva do povo português. De salientar a linguagem utilizada: coloquial, moderna, descomplexada, com uma mescla de expressões familiares e populares que pretendem também com o recurso à ironia, desmistificar a lenda. De acrescentar que orquestração e letra estão interligadas por uma desenvoltura na interpretação própria de um “trovador” histórico da música portuguesa ‑ Sérgio Godinho.
A primeira quadra satiriza através da repetição do verbo “investir” a medida julgada correta ‑ a de apostar no Norte de África. O terceiro e quarto versos ridicularizam, por hipálage -“cavalo atulhado de livros de história” em alusão a D. Sebastião que, segundo o Padre Amador Rebelo (Idem p.72 nota de rodapé nº 16), seu mestre, gostava imenso de ler livros de feitos históricos. A introdução das guitarras de fado na guerra ameniza a violência que se perspetiva. A segunda quadra destaca o tom irónico da hipoteca do país resultante da atitude assumida. A quadra seguinte apelida o rei de” pedante”, vaidoso, autoritário –“…Quem manda aqui sou eu”. A quarta quadra apresenta uma das razões da derrota portuguesa – o desconhecimento do terreno. A aventura bélica está presente no tema musical com uma parte desconcertante, com sons soltos, desgarrados, projetando a ideia de desorganização, de violência que desemboca na imagem satírica do rei ter perdido a guerra e ainda ver como companhia na cama uma espanhola referência - à mulher de Filipe II de Espanha – Ana de Áustria. A sátira prossegue com a imagem da morte de um jovem a beber como se de uma taberna se tratasse a explicar a frase que historicamente lhe é reconhecida: de não ter aceitado rendição e ter respondido que “…morreria sim mas devagar!…”Sérgio Godinho conhecedor de tal frase atribuída ao rei utiliza mais uma vez o tom sarcástico para menosprezar o rei.
Finalmente, a última quadra culmina com o nevoeiro, arquétipo desprezado pelo poeta pela forma leviana com que aborda a questão:”…apanhou tal dose do tal nevoeiro “O poeta aproveitou o nevoeiro para inventar a doença da tuberculose e divertir-se, uma vez mais, com o argumento de ter tido, finalmente, um funeral digno homenageado, em presença, por princesas, reis e outros aristocratas. Este é, segundo Gilbert Durand (O imaginário português e as aspirações do ocidente cavaleiresco. Lisboa, Instituto nacional de investigação científica, 1986, p.16), um mitologema da sociedade portuguesa” o do salvador, do rei que espera, escondido a hora de regresso “Contudo, com este cantautor o mitologema surge de forma invertida, negando-o pela forma sarcástica. A expressão final “Viva Portugal” pretende evidenciar o desprezo que este mitologema desperta no autor – um cansaço de um país que persiste, até agora, adiado a viver sob a alçada de um sebastianismo (Machado Pires, E -utopia: Revista electrónica de estudos sobre utopia, 2005. Internet disponível em http:/www.letras.up./pt/upi/utopiasportuguesas/e-topia/revista.htm, consultado em 2010-06-25)
Símbolo da utopia de um povo infeliz e secularmente oprimido (pela coroa, pela igreja, pelo Estado, por ditadores, por potências estrangeiras, potentados económicos, etc.), mas também igualmente pouco ou nada habituado a ser dono do seu próprio destino e que se sente eternamente órfão de um líder iluminado que o encaminhe, num futuro mais ou menos distante, para um horizonte de glória (…) povo (…) que o leva a gostar de carismas, auras míticas, destinos de missão, promessas milagres salvações espetaculares …um povo (generoso mas imprevidente ?!) que pensa mais com o coração do que com a cabeça …só a verdadeira cultura e a educação darão mais autoconfiança coletiva.
Sérgio Godinho, com este tema, pretende denunciar o sintoma de decadência, endógeno do povo português em se iludir na “emergência cíclica do inconsciente cultural português, em períodos de crise, de viragem, de profunda mutação do mito sebastiânico (ou de tendências messiânicas que com ele se confundem). “O poeta insurge-se contra a mitogenia como força impulsionadora do pensamento e da arte (incluindo a literatura). Os portugueses gostam de mitos; não os enterram, glosam-nos, desenvolvem-nos.” (Ibidem)
Os portugueses fomentam este mitologema porquanto ele parece constituir-se como resposta patriótica do subconsciente coletivo.
Já Almeida Garrett, na obra de carácter dramático lecionada no programa do 11º ano do Ensino Secundário ‑ Frei Luís de Sousa, ao provocar a tragédia familiar, pretendia apelar para a necessidade de expurgar o sentimento patriótico do povo português. Como mensagem, transparece a ideia que o passado saudosista e todas as conotações daí advindas assombram e, consequentemente, impedem a regeneração da consciência coletiva do povo. Urge colocar, por isso, um final perentório, abrupto, tal com termina o tema musical, exprimindo a impaciência de quem acredita na mudança de mentalidade.
  
José Manuel Cardoso Belo. Vila Real, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2010, pp. 137-140.

SERGIO GODINHO


O Cantautor Sérgio Godinho
  
Sérgio Godinho, nascido em 31 de Agosto de 1945, empenhou-se desde a sua adolescência, por influência dos pais anti-salazaristas, em demarcar-se da política vigente ao negar os seus préstimos como militar ao serviço da guerra colonial. Como consequência, abandonou o país e após ter visitado a Suíça instalou-se em Paris na companhia de José Mário Branco e de Luís Cília. Nesta cidade, assistiu à célebre revolta dos estudantes franceses denominada “Maio de 68”. A experiência adquirida com esta luta, coadjuvada com a participação na propalada ópera rock “Hair” possibilitou abertura de novos horizontes essenciais para a escrita e composição de temas musicais. Como o próprio cantautor refere, a propósito da sua participação na citada ópera rock,

(…) Entrei no “Hair” em 69 porque uma das coisas que senti mesmo intuitivamente é que esses universos eram conjugáveis. Não foi por acaso que mais tarde faço uma canção: “a paz, o pão, habitação”, que é um rock puro sobre as palavras deordem, eu chamo aquilo um graffiti musical, portanto esses universos eram conciliáveis. Raposo (2007:96)

Apaixonado confesso de José Afonso, Sérgio Godinho considera-o “um melodista nato extremamente talentoso e criativo” (In Mundo da Canção, Volume 1, Lisboa, 2005).

Após ter composto canções em francês, iniciou o seu longo percurso musical com o L.P. ”Os Sobreviventes”. Deste trabalho, recebeu em 1972, o prémio da Casa de Imprensa como o melhor autor da letra e, em 1973, foi premiado como melhor disco do ano.

Em 1972, o cantautor grava o L.P. “Pré-Histórias”. São estes dois álbuns que, por precederem a data da Revolução de Abril de 1974, nos interessam para o estudo deste trabalho de investigação. Eles traçam aspetos marcantes que caracterizaram a identidade portuguesa da época.

No tema “Descansa a Cabeça (Estalajadeira)”, Sérgio Godinho destaca o facto de se considerar apátrida, sem quaisquer ligações ao país. Considera-se um cidadão do mundo que, por mera casualidade, nasceu neste canto – em Portugal. O poeta assume uma posição de perfeito desafio relativamente às autoridades políticas do país. Por outra via, valoriza, quer os elos familiares quer a sua liberdade. Salientamos a sua reiterada preocupação em considerar-se um cidadão livre, sem qualquer espécie de constrangimentos:

(…) Vim/ ao mundo/por acaso/Em Portugal não tenho pátria / 
Sou sozinho / e sou da cama dos meus pais 

Sou /donde vos apetecer 
sou do mar e sou do corpo /das mulheres estranguladas nos canais […] 

A sua contestação à guerra do Ultramar, facto que motivou o abandono do país, está evidenciada nos versos: 

“Sei /fazer a guerra à guerra /sei histórias verdadeiras 
sei resistir ao calor, aos temporais 

Sei /rasgar quando é preciso 
é preciso tantas vezes 
duas vezes, outras tantas, muitas mais.

O autor exprime uma forte clarividência que contrasta com o mal-estar resultante da hipocrisia de todos quantos usavam falsas palavras para ludibriar aqueles que pretendiam ser livres. O ambiente de repressão, de medo, pelo facto de nunca se saber quem são os confidentes ou os denominados “bufos” do regime, está patente na canção “Até Domingo”. Encontramos, neste tema, um apelo à união dos opositores contra a mentira. Caso assim não seja, não se poderá esperar outro desfecho senão a morte silenciada:

(…) E para aqui estamos em salamaleques /a lamber mãos feitas para abanar leques a pedir bis, a gritar bravo, /a aplaudir, muito bem
e até domingo que vem 
Nunca vivi nada em vão /vi muita palavra tornar-se 
em tanta gente em disfarce /e em muita boca traição
E em muita boca traição /e em cada de nós um olhar 
se nos vierem falar /sabemos quem eles são 
Sabemos quem eles são /como quem sabe de si mesmo 
o medo, a vida desfez-mo /a letra me tomarão 
Sabemos já d´antemão /quem nasceu p´ra viver de luto 
a flor de Junho dá fruto /o homem sozinho é que não/ 
O homem sozinho é que não /que diga quem quase morreu 
a perguntar "quem sou eu" /e a viver da solidão
E a viver da solidão /fomos pouco a pouco fazendo /
a nossa cova no vento /abrigados num caixão “

O tema “A-E-I-O” revela-se contra a tradição, os costumes que passam de velhas gerações para as novas, sem que esse facto se constitua algo de positivo, que se possa valorizar. O poeta constata que os portugueses sentem que as suas vidas não evoluem devido aos variados constrangimentos quer a nível económico, quer social, quer político. A repressão exercida sobre as pessoas é, de tal forma, que elas não se sentem motivadas para desenvolver as suas tarefas de uma forma construtiva. O ambiente de censura e de opressão geram tristeza, mesmo angústia. O poeta deseja o aparecimento de um novo dia, uma nova oportunidade sob um regime democrático. Em estilo próprio Sérgio Godinho revela a sua principal característica - a ironia, através de expressões populares, dialógicas, informais, irreverentes, com efeitos sonoros repetitivos a destacar a agressão de que o próprio, no final, se torna vítima:

“A-E-I-O vai para a neta o que foi d´avó 
/A-A-E-I-O vai para a neta o que foi d´avó (refrão)

A vida de quem anda /às ordens de quem manda 
já cheira que tresanda /não anda nem desanda 
não anda nem desanda /não anda nem desanda 

A vida de quem chora /à espera duma aurora /que leve a noite embora 
bem perde p'la demora /bem perde p’la demora /bem perde p´la demora . 
(A-A-E-I-O...) 
(A vida de quem anda...) 

-A-E-I-O bate na neta quem bateu n´avó /A-A-E-I-O bate na neta quem bateu n´avó 

A-A-E-E-I bate na neta quem bateu em ti /A-A-E-E-I bate na neta quem bateu em ti.

O mal-estar prossegue com o tema “Senhor Marquês.” Ao seu estilo frontal, Sérgio Godinho denuncia a pobreza, a miséria dos mais necessitados. O poeta serve-se da figura do Marquês para demarcar ainda mais o fosso entre o rico e o pobre que vive nos bairros de lata. A exploração é de tal forma, que uma vez assaltado, o Marquês não desperta qualquer preocupação e consequente proteção, tanto por parte das restantes pessoas bem como das autoridades. Comprova a passagem, que o povo manifesta desprezo para com o rico em caso de assalto. Tal é o desgaste da sua posição de superioridade e simultânea indiferença para com os demais. O cantautor, ao invés, assume uma posição de compreensão, de compaixão para com os explorados:

”Se nós somos ladrões /temos razões 
Que não são as suas, /são minhas, tuas/ 
E de outros mais /de muitos muitos mais / 
Olhe pra aqui uma vez /Senhor Marquês 
Do bairro da lata /Está A gente farta 
Senhor Marquês /E o nosso fim do mês 
Passe pra cá a carteira /Da sua algibeira 
Carteira em couro /Relógio de ouro 
Não lhe faz falta /E faz-nos jeito à malta 
Ó da guarda, ladrões /Pelos meus brasões 
Ai meu Deus socorro /Jesus que eu morro 
Grita o Marquês /Ninguém vem desta vez 
Venha por aqui ver isto /Senhor Ministro 
Que estes bandidos /Uns malnascidos 
Ainda sem dentes /E já delinquentes
Meta aqui o nariz /Senhor Juiz 
Nós somos bandidos /ou malnascidos? 
Senhor Ministro /Perdoe se insisto.”

A canção “Que Bom Que É” satiriza, recorrendo ao cómico de situação, presente em momentos vários. Sérgio ironiza os grandes males de que a sociedade, na sua ótica, padece e que urge alterar, nomeadamente o Sebastianismo: Qual faca enterrada nas costas e a consciência das implicações negativas daí geradas: a fome, a ineficácia da crença religiosa, a guerra colonial e a exploração laboral dos operários. A abordagem destes temas comprova a preocupação do cantautor perante uma sociedade anquilosada a necessitar de amplas reformas estruturais. Sérgio Godinho, para suavizar, mitigar as críticas, recorre, uma vez mais, à ironia, ao discurso hiperbólico, ao paralelismo, à repetição, características próprias do dialogismo utilizando expressões do quotidiano de forma a aproximar-se do mundo real. Torna-se uma estratégia com o objetivo de motivar, de se identificar, o mais possível, com as pessoas que se sentem abandonadas:

“Vivo com uma faca espetada nas costas, ai!

Que bom que é /que bom que é /que bom que é 
Sentado à espera de D. Sebastião /A cadeira nem é minha, é do papão 
Que bom que ele é, /que bom que ele é, 
- Um, dois, um-dois-três, paciência, fica pra outra vez 

Vivo com a fome entalada na garganta /Que bom que é
Que bom que é /que bom que é 
Sentado à espera que o céu me dê pão 
A cadeira, emprestou-ma o sacristão 
Que bom que ele é /que bom que ele é 
- Um, dois, um-dois-três, paciência, fica pra outra vez 

Vivo com a guerra a bater à minha porta 
Que bom que é /que bom que é 
Que bom que é /Sentado à espera do obus dum canhão 
A cadeira, emprestou-ma o capitão /que bom que ele é 
Que bom que ele é 
- Um, dois, um-dois-três, paciência, fica pra outra vez 

Vivo a trabalhar nove dias por semana 
Que bom que é /que bom que é 
Que bom que é /Sentado à espera da revolução 
A cadeira, emprestou-ma o meu patrão /que bom que ele é 
Que bom que ele é 
- Um, dois, um-dois-três de Oliveira & quatro 
Vivo com uma faca enterrada nas costas, ai! 
Que bom que é /que bom que é 
Que bom que é /Sentado à espera de D. Sebastião 
A cadeira nem é minha, é do papão 
Que bom que ele é /que bom que ele é 
- Um, dois, um-dois-três, esta agora vai de vez “.

O tema: “O Charlatão” aborda a temática do enriquecimento do vendedor de ilusões numa sociedade estigmatizada por um grave problema social: a ausência dos maridos que, ou estão presos por crimes cometidos, ou cumprem serviço militar na Guerra do Ultramar, onde ou já faleceram ou se encontram feridos. Finalmente, a ausência do marido poder-se-á dever ao facto de ter ido para o estrangeiro à procura de uma ambicionada solução para a vida familiar, com as inerentes dificuldades de adaptação a uma sociedade que apresenta difíceis condições de adaptação: uma nova língua, um trabalho diversificado, uma outra habitação, em síntese, um emigrante a viver, isolado de sua família, uma experiência num país com costumes e tradições diferentes:

“Numa ruela de má fama /faz negócio um charlatão 
Vende perfumes de lama /anéis de ouro a um tostão 
Enriquece o charlatão 

No beco mal afamado /as mulheres não têm marido 
Um está preso, outro é soldado /um está morto e outro ferido 
E outro em França anda perdido”

O retrato do país apresentado pelo cantor no tema “O charlatão “testemunha o protótipo do político comparável ao vendedor da ” banha da cobra” que, com a sua mentira, consegue ludibriar as pessoas com as artimanhas utilizadas; contudo, a realidade é mais complexa:

“Como esta narração não bastasse: ”os catraios passam fome /têm os dentes enterrados no pão que ninguém mais come /os catraios passam fome /entre a rua e o país /vai um passo de um anão.

Destas imagens extraímos uma sociedade doente, perdida, sem rumo onde as pessoas aceitam a ilusão de um charlatão que ocupa “o trono”: Vai rei que ninguém quis/vai tiro de um canhão /e o trono é do charlatão.
Parece-nos que esta ideia de considerar o político um charlatão perdurou ao longo dos anos. Esta noção é reveladora de uma total descredibilização da classe política do regime salazarista.

Enquanto as crianças vivem em más condições de salubridade e passam fome, o charlatão exibe a sua ostentação ocupando a cadeirado poder. Concluindo, o Charlatão é o representante do governo fascista.

[…]
Na ruela de má fama /o charlatão vive à larga 
Chegam-lhe toda a semana /em camionetas de carga 
Rezas doces, paga amarga 

No beco dos malfadados /os catraios passam fome 
Têm os dentes enterrados /no pão que ninguém mais come 
Os catraios passam fome 

P’rá rua saem toupeiras /entra o frio nos buracos 
Dorme a gente nas soleiras /das casas feitas em cacos 
Em troca de alguns patacos […] 

Entre a rua e o país /vai o passo de um anão 
Vai o rei que ninguém quis /vai o tiro dum canhão 
E o trono é do charlatão 

Entre a rua e o país /vai o passo de um anão 
Vai o rei que ninguém quis /vai o tiro dum canhão 
E o trono é do charlatão.”

O Tema “Pode alguém ser quem não é” apresenta uma mulher que lamenta a partida do seu marido para o Brasil. É no jogo dos deícticos que se estabelece a dicotomia entre os dois países:
“-Senhora de preto aqui é quase Inverno/aí quase Verão 

Mês d’Abril, águas mil 
No Brasil também tem 
Noites de S. João e mar”

Contudo, o “leit motif” reside no facto de o poeta questionar-se como ele próprio poderá sentir-se livre no Brasil quando o seu compatriota se sente perseguido, preso impedido de emitir livremente a sua opinião:

Diga o que lhe dói, é dor ou saudade/que o peito lhe rói 
O que tem, o que foi/o que dói no peito? 
-É que o meu homem partiu 
[…] 
Pode alguém ser livre/se outro alguém não o é 
a algema dum outro/serve-me no pé 
Nas duas mãos, / sonhos vãos, pesadelos 
Diz-me: /pode alguém ser quem não é?”

O sofrimento persiste no tema “Já A Vista Me Fraqueja”. Neste, o cantautor enuncia que não tem medo da morte. O que mais o afronta é sentir o mesmo que o seu irmão.

 Na canção “O Barnabé”, Sérgio Godinho evidencia a inteligência e a experiência populares que perante pseudo-doutas pessoas não se deixam ludibriar. O cantautor pretende valorizar o realismo, a humildade, a experiência de um povo que já não se deixa seduzir por promessas vãs ou doces quimeras anunciadas pela classe dirigente:

Vieram profetas/vieram doutores 
Santos milagreiros, poetas, cantores 
Cada qual com um discurso diferente 

P'ra curar a vida da gente/e a gente parada 
Fez orelhas moucas/que com falas dessas 
As esperanças são poucas/mas quando o Barnabé cá chegou 
Toda a gente arribou 
Toda a gente arribou 
Que é que têm o Barnabé que é diferente dos outros…”

O único discurso que mobilizou as pessoas foi o do Barnabé; foi diferente dos outros visto que o seu objetivo era “falar verdade”. O discurso político não era credível aos olhos do povo.

O grito da canção ”Eh meu irmão” é um alerta para o medo de ter medo ou seja, pretende encorajar o homem a vencer as suas fobias. Destacamos a estrofe que anuncia um povo que se manifesta, nesse momento, sem receios na rua, espaço que lhe pertence e onde devia poder expressar livremente a sua opinião:

Eh, meu irmão, que é que tens, /parece que viste o diabo! 
Vi mesmo, bateu à porta/disse que o povo estava na rua 
E que a rua era do povo/que é pra quem ela foi feita 
E o povo somos nós todos/e eu, então gritei: 
Ai o diabo!

O irmão, apesar de ser incentivado a lutar contra o medo, não conseguiu ultrapassar essa barreira. Por essa razão, faleceu numa prisão qualquer, sem ter vivido verdadeiramente a sua vida contudo recebendo a respectiva e habitual bênção religiosa:

(…) Eh, meu irmão que é que tu tens/o que é que te pôs assim! 
Foi o medo da água fria/o medo da vida, o medo da morte 
O medo da lua cheia/o medo da lua nova 
O medo até de ter medo/que me faz gritar 
Ai, que medo! 

E assim com medo de tudo/perdeu meu irmão a vida 
E assim com medo de tudo/viveu-a e não foi vivida 
Meteram-no num caixão/às duas por três, num dia de Verão 
Desceram-no p’ra uma cova/deitaram terra por cima 
Espetaram-lhe uma cruz/ ita missa est, Ámen”.

Sérgio Godinho no tema: “Que Força é Essa” abandona o estilo irónico para optar por uma linha reivindicativa e denunciadora de uma exploração dos operários, classe dos mais desfavorecidos.

É uma canção que apela aos trabalhadores para reivindicarem os seus direitos perante um esforço que não é devidamente recompensado. O “amigo”, porque tem por obrigação agradar ao seu patrão, independentemente das condições familiares, sociais e económicas, sente-se revoltado.
A sua tarefa é, única e exclusivamente, obedecer ao seu superior de quem recebe o seu reduzido salário.

Vi-te a trabalhar o dia inteiro/Construir as cidades para os outros 
Carregar pedras, desperdiçar/Muita força p'ra pouco dinheiro 
Vi-te a trabalhar o dia inteiro/Muita força P’ra pouco dinheiro 

Que força é essa/que força é essa 
Que trazes nos braços/Que só te serve para obedecer
Que só te manda obedecer/Que força é essa, amigo 
Que força é essa, amigo/Que te põe de bem com os outros 
E de mal contigo 
Que força é essa, amigo 
Que força é essa, amigo.

Finalmente, o poeta instiga o “amigo trabalhador” a exprimir a sua revolta, o seu poder reivindicativo a fim de debelar as injustiças de que é vítima.

Não me digas que não me compreendes/Quando os dias se tornam azedos
Não me digas que nunca sentiste/Uma força a crescer-te nos dedos 
E uma raiva a nascer-te nos dentes/Não me digas que não me compreendes 
Que força é essa…

Como corolário deste espírito de incentivo à coragem, a uma nova estratégia de esperança na transformação da sociedade há muito desejada, podemos analisar o poema musicado “Maré Alta”. O cantautor” concita metaforicamente o companheiro a aprender a nadar, ou seja, a estar atento aos movimentos que conduzem a uma nova realidade política, designada de democracia. Esta lançará por terra “a maré baixa” gerida sobre a pobreza, sobre a miséria, sobre a exploração e sobre a repressão. Destacamos o facto de o poema se apresentar em maiúsculas como forma de atrair todas as atenções para o grande momento que se perspetiva. É um alerta que prenuncia a vinda da democracia que terá lugar em 25 de Abril de 1974 (Registe-se o facto de a composição estar em maiúsculas em forma de grito):

“APRENDE A NADAR COMPANHEIRO 
APRENDE A NADAR COMPANHEIRO 

QUE A MARÉ SE VAI LEVANTAR 
QUE A MARÉ SE VAI LEVANTAR 

QUE A LIBERDADE ESTÁ A PASSAR POR AQUI 
QUE A LIBERDADE ESTÁ A PASSAR POR AQUI 

MARÉ ALTA 
MARÉ ALTA 
MARÉ ALTA”.
  

José Manuel Cardoso Belo. Vila Real, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2010, pp. 87-96.


Poderá também gostar de:
    
 Os Demónios de Alcácer Quibir (1976) é um filme português de longa-metragem deJosé Fonseca e Costa que, na linha do cinema militante, se embrenha na ficção, misturando situações verosímeis com fantasia histórica.
  
  
Realizada por José Fonseca e Costa e rodada entre julho e agosto de 1975, a longa-metragem Os Demónios de Alcácer Quibir estreou a 9 de abril de 1977, em Lisboa. Refletindo a imagem de um país que mergulha na memória de um passado recente (a vivência do regime fascista) e no espaço mitológico dos fantasmas que povoam o inconsciente nacional, é um filme onde se destacam as interpretações de António Beringela, Ana Zanatti, Sérgio Godinho (que aqui se estreia no cinema português), João Guedes e Zita Duarte. Destacam-se também o trabalho de câmara e a fotografia.
Os Demónios de Alcácer Quibir. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. [Consult. 2014-09-14]. Disponível na www:

  
 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   

      

[Post orignal: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/09/18/os-demonios-de-alcacer-quibir.aspx]

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

QUEDA DO IMPÉRIO (Vitorino)


  



QUEDA DO IMPÉRIO

Perguntei ao vento 
Onde foi encontrar 
Mago sopro encanto 
Nau da vela em cruz 
Foi nas ondas do mar 
Do mundo inteiro 
Terras da perdição 
Parco império mil almas 
Por pau de canela e Mazagão 

Pata de negreiro 
Tira e foge à morte 
Que a sorte é de quem 
A terra amou 
E no peito guardou 
Cheiro da mata eterna 
Laranja Luanda 
Sempre em flor.
    
Vitorino, Flor de la mar (LP, EMI, 1983)



Ficha de abordagem sobre o tema musical “Queda do Império”



1. Este texto é um poema musicado. Transforma o primeiro grupo de versos em prosa, utilizando a devida pontuação.
2. Que representou o  “mago  sopro  encanto ”(  l.3)  para  o  poeta?  Quais  foram  as consequências?
3. Identifica  e  destaca  a  expressividade  da  figura  de  estilo  presente  na  expressão: “Laranja Luanda”(penúltimo verso)
4. Justifica a razão do título estabelecendo  uma  relação  com  as  suas  características musicais (ritmo, melodia e harmonia).
5. Partindo da temática desta canção, estabelece um paralelismo com a última frase do sermão do Pe. António Vieira: “Como não sois capazes de glória, nem de graça, não acaba o vosso sermão em graça e glória “.
  
José Manuel Cardoso Belo. Vila Real, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2010, p. 179.


Textos de apoio
       
A Simbiose Sinestésica Intertextual da Poesia Musicada em Sala de Aula: “Queda do Império” (letra e música de Vitorino)
Ritmo ‑ Ternário em estilo de valsa
Melodia ‑ suave e intuitiva
Harmonia ‑ Rica com harpejos simples.
Análise Semântica ‑ “A Queda do Império” de Vitorino, do álbum “Flor dela mar” de 1983, simboliza a presença portuguesa que se espalhou pelos quatro cantos do mundo durante a época dos descobrimentos.
O  canto  versa  a  sedução  que  as  terras  descobertas  exerceram  sobre  os portugueses. O ritmo lento, suave, ao estilo da valsa, com melodia agradável, empresta ao tema uma sensação de nostalgia por parte de que mamou verdadeiramente a terra – Luanda,  como  sinédoque  das  terras  descobertas  pelos portugueses.  Este  tema musical conduz-nos  a  uma  reflexão  sobre  a  queda  do  império  português,  as razões  de  um fracasso  em  terras  prósperas  das  quais  nos  poderíamos  vangloriar caso  tivéssemos realizado uma colonização sem escravatura, sem a exploração desmedida dos recursos das diversas colónias. Também as notícias que relatavam navios que se afundaram por excesso  de  carga.  Em  muitas  delas  estão  comentadas na  Peregrinação de  Fernão Mendes Pinto e também interpretadas no álbum de Fausto Bordado Dias – Crónicas da Terra Ardente nos temas: “O mar, a Ilha e de um miserável naufrágio que passamos”. O mágico “sopro encanto” conduziu os portugueses à terra de perdição, restando somente a  consolação  do  cheiro  da  mata  angolana  como símbolo  de  todos  quantos  realmente puderam  viver  um  amor  recíproco  em detrimento  do  espírito  mercantilista  da exploração, quer de pessoas quer de bens.
É, deste modo, que Vitorino, através de um tema nostálgico para os portugueses, o ultramar, testemunha a queda do império tão caro à nossa identidade cultural.
      
José Manuel Cardoso Belo. Vila Real, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2010, p. 129.
         

         

 Flor de La Mar será novamente um trabalho marcante a todos os títulos, chegando o seu autor a explanar uma variedade de acompanhamentos instrumentais que rompia com os limites habituais da 'canção de palavra' nacional. Nesse período, surgiu outra das canções que ajudou a definir a categoria e a atitude de uma carreira - canção chamada "Queda do Império".
         
          
Poderá também gostar de:
   
 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro



                     


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/09/17/queda-do-imperio.aspx]

terça-feira, 16 de setembro de 2014

E DEPOIS DO ADEUS


  



E DEPOIS DO ADEUS


Quis saber quem sou 
O que faço aqui 
Quem me abandonou 
De quem me esqueci 
Perguntei por mim 
Quis saber de nós 
Mas o mar 
Não me traz 
Tua voz. 
Em silêncio, amor 
Em tristeza e fim 
Eu te sinto, em flor 
Eu te sofro, em mim 
Eu te lembro, assim 
Partir é morrer 
Como amar 
É ganhar 
E perder. 
Tu vieste em flor 
Eu te desfolhei 
Tu te deste em amor 
Eu nada te dei 
Em teu corpo, amor 
Eu adormeci 
Morri nele 
E ao morrer 
Renasci. 
E depois do amor 
E depois de nós 
O dizer adeus, o ficarmos sós 
Teu lugar a mais, tua ausência em mim 
Tua paz que perdi 
Minha dor que aprendi 
de novo vieste em flor 
Te desfolhei... 
E depois do amor e depois de nós 
O adeus 
O ficarmos sós.

Letra: José Niza
Música: José Calvário
Interpretação: Paulo de Carvalho, Festival da Canção, 1974


Ficha de abordagem do tema musical “E depois do Adeus”

       



1. A melodia apresenta uma dicotomia ao longo da canção.

a) Identifica-a.

b) Relaciona-a com o texto.

2. Identifica o interlocutor do poeta. Justifica.

3. Aponta a figura de estilo presente na expressão: “Tua ausência em mim”, verso 33. Destaca a sua expressividade.

4. Reportando-te à época em que foi interpretada a canção salienta a importância do desejo do poeta ao referir “…o ficarmos sós” (no último verso).

5. Identifica a  personagem  da  peça  Frei  Luís  de  Sousa  que  melhor  se  ajusta  à mensagem expressa nos nove primeiros versos. Justifica.

       
José Manuel Cardoso Belo. Vila Real, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2010, p. 177.

       

       

Texto de apoio

           Génese da canção

«A cantiga nasceu com o José Niza, autor da letra, e o José Calvário, autor da música, para concorrerem ao festival da canção. Entrelinhas tentava-se dar alguns recados às pessoas daí o ´quis saber quem sou, o que faço aqui`. Não era direta, tinha alguns recados, mas era essencialmente uma canção de amor. A letra tem coisas muito bonitas que pouca gente sabe, conta Paulo de Carvalho, em entrevista à Câmara Municipal de Lisboa, que pode ver na íntegra nesta página.

O José Niza fez a tropa em Angola, durante a guerra do Ultramar e este ´quis saber quem sou, o que faço aqui, quem me abandonou, de quem me esqueci` são alguns escritos que ele fez para a Blo, a sua companheira, a sua mulher, em cartas que era o que ele pensava, as questões que ele punha.

Depois, o José Calvário agarrou na música e ambos construíram esta cantiga que venceu aquele festival da RTP e depois foi escolhida para o que foi. Só anos depois é que eu soube porque é que foi, como foi, tudo isso.»

«’E depois do adeus’. A senha da revolução, explicada por Paulo de Carvalho», https://www.lisboa.pt/atualidade/noticias/detalhe/e-depois-do-adeus-a-senha-da-revolucao-explicada-por-paulo-de-carvalho, 25.04.2021    

A Simbiose Sinestésica Intertextual da Poesia Musicada em Sala de Aula: “E Depois do Adeus” (Letra de José Niza e música de José Calvário)

Ritmo ‑ Quaternário majestoso

Melodia ‑ Muito rica, elaborada à base de piano e orquestra. Verifica-se mudança de tom entre as estrofes e o refrão. Enquanto as primeiras quadras estão em tom menor, por sua vez, o refrão está em tom maior. De fácil memorização, a melodia revela emoção em crescendo e termina reforçada com o refrão em apoteose.

Harmonia ‑ Elaborada, com multi-acordes, entrelaçados com a orquestra e a voz.

Análise Semântica ‑ O poeta questiona-se sobre a sua própria identidade, desejando um país  de  quem  não  tem  resposta:  “quis  saber  de  nós  mas  o  mar não  me  traz  tua  voz”. Perante uma ausência prolongada, surge um sentimento nostálgico de sofrimento.

O  discurso  metafórico  prossegue  com  a  imagem  de  um  país  projetado  numa flor desfolhada pelo poeta que adquiriu forças de uma Fénix renascida. Surge, após o amor, a ausência, a pena, a revolta colmatada com alembrança de um momento feliz – o reencontro.

O cantautor termina com a vontade de ficarem sós desfrutando da união, da “partilha amorosa” com o seu país.

De salientar a existência de alguns versos curtos, alguns trissilábicos, outros de cinco sílabas, em ritmo vivo, em frases que transparecem energia, vontade em atingir o seu  grande objetivo através do grito: “o  ficarmos sós”, o reencontro com o país, testemunhado  pela  parte  final  da  música  em  apoteose. Finalmente,  o  destaque para  a utilização  de  uma  linguagem  metafórica  para,  desta  forma,  poder  passar pelo  “lápis azul” da censura.

José Manuel Cardoso Belo. Vila Real, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2010, p. 130.


       

Duas canções, uma revolução: a história de "Grândola Vila Morena" e "E Depois do Adeus"


      

Há 40 anos, a operação militar que alteraria o curso da História de Portugal foi desencadeada por duas canções com origens e vozes diferentes. Porquê "Grândola Vila Morena" e "E Depois do Adeus" no 25 de Abril de 1974?


        
Otelo Saraiva de Carvalho revelou-se um estratega capaz dirigindo as operações militares que resultaram na revolução de 25 de Abril de 1974, mas não se pode dizer que a estratégia musical empregue na escolha das senhas da revolução tenha sido delineada de forma igualmente brilhante pelo militar. 

Quarenta anos depois da revolução dos cravos, Paulo de Carvalho explica à BLITZ que "E Depois do Adeus", o tema com que venceu o Festival RTP da Canção realizado a 7 de março de 1974, esteve para não ser a primeira senha do 25 de Abril: "sei hoje que houve uma reunião no Apolo 70 entre o Otelo, o Costa Martins, que foi Ministro do Trabalho no tempo de Vasco Gonçalves, e o [radialista] João Paulo Diniz [que à altura trabalhava nos Emissores Associados de Lisboa e no Rádio Clube Português]. A ideia do Otelo era que a primeira senha fosse o "Venham Mais Cinco", do José Afonso, mas foi o João Paulo Diniz que o convenceu de que essa canção, de um autor proibido pelo regime, poderia levantar suspeitas. E foi ele também que sugeriu o "E Depois do Adeus", que poderia ser tocado sem fazer soar nenhum tipo de alarme". 

Num documento secreto onde se explicava aos comandantes operacionais a estratégia para a madrugada de 25 de Abril, Otelo Saraiva de Carvalho indicava as duas senhas de transmissão radiofónica que espoletariam as operações militares da revolução que se seguiria: "Às vinte e duas horas e cinquenta e cinco minutos (22H55) do dia 24 Abr 74 será transmitida pelos "Emissores Associados de Lisboa" uma frase indicando que faltam cinco minutos para as vinte e três horas (23H00) e anunciado o disco de Paulo de Carvalho, "E Depois do Adeus"". O tema de José Afonso deveria ouvir-se mais tarde: "entre as zero horas (00H00) e a uma hora (01H00) do dia 25 Abr 74, através do programa da Rádio Renascença, será transmitida a seguinte sequência: Leitura da estrofe do poema "Grândola Vila Morena" "Grândola Vila Morena / Terra de fraternidade / O povo é quem mais ordena / Dentro de ti ó cidade"; Transmissão da canção do mesmo nome interpretada por José Afonso". 

"E Depois do Adeus" é um tema com letra de José Niza e música de José Calvário. Paulo de Carvalho recorda hoje que a canção foi escrita por aquela dupla com a sua voz em mente. "Achei a cantiga muito bonita e aceitei logo cantá-la. O texto foi feito com a escolha de pequenas frases das cartas que o Niza enviava à sua mulher, Isabel, quando se encontrava estacionado em Angola: "Quis saber quem sou", "O que faço aqui?", "Quem me abandonou?", "De quem me esqueci?"". 

Nessa altura, "costumávamos encontrar-nos no Penedo, em casa do [jornalista] António Rolo Duarte, e era aí que tomava conhecimento das canções que iam sendo escritas". Uma delas foi "E Depois do Adeus", tema que se revelou vencedor no XI Grande Prémio TV da Canção 1974 (vulgo Festival da Canção), mas que em Brighton, no Festival da Eurovisão, se quedou pelo último lugar da tabela: "a RTP nunca quis ganhar o Festival", lamenta o cantor. "Nem havia onde realizar o festival por cá. Não estou a ver um autocarro de 50 lugares a estacionar à frente do Coliseu para descarregar a delegação de Israel e toda a segurança que levava para todo o lado". 

Outra vida e outra gestação teve "Grândola Vila Morena", tema que José Afonso escreveu a 17 de Maio de 1964, praticamente dez anos antes da revolução, quando conduzia um automóvel com que regressava a Lisboa, acompanhado pelos guitarristas Fernando Alvim e Carlos Paredes, de uma apresentação na inspiradora vila alentejana. O tema seria depois gravado em França, em 1971, como parte do álbum Cantigas do Maio, que contou com produção de José Mário Branco. Francisco Fanhais, que juntamente com o guitarrista Carlos Correia, José Afonso e José Mário Branco foi um dos quatro envolvidos na gravação da canção, recordou à BLITZ a história desse registo, no famoso estúdio do Chateau d'Hérouville: "aqueles passos que se ouvem no início não são de soldados, foram captados em estúdio numa espécie de encenação do tipo de ambiente criado pelos grupos corais alentejanos. Foi esse o ambiente que o Zé Mário quis reproduzir". 

O tema passou incólume pelas malhas da censura, que se revelaram apertadas sobre outras obras de José Afonso, e obteve luz verde para ser interpretado no Primeiro Encontro da Canção Portuguesa, evento que contou com marca da Casa da Imprensa, acontecendo em finais de março de 1974 no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, quando já sopravam fortes os ventos revolucionários. Francisco Fanhais estava então em França e tomou conhecimento da revolução na manhã de 25 de Abril: "Fiquei na dúvida, tal como muita gente, se era um golpe da direita ou de democratas que queriam alterar o regime. As dúvidas desfizeram-se quando percebi o papel da "Grândola Vila Morena": nenhum fascista teria escolhido um tema assim para uma revolução". 


              

Poderá também gostar de:

              
 “José Niza: E Depois do Adeus?”, uma mini série de 3 programas dedicados ao músico José Niza. Realização de Armando Carvalhêda e António Macedo. Primeira Emissão: 2011-12-25. 3º programa disponível em: http://www.rtp.pt/play/p785/e67986/jose-niza-e-depois-do-adeus




 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   

                        


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/09/16/e-depois-do-adeus.aspx]
Última atualização: 13-03-2024