sábado, 1 de agosto de 2015

Reencontrar o leitor (Rosa Maria Martelo)

RELÂMPAGO N.º 12  4|2003
Director deste Número: Fernando Pinto do Amaral.
Conselho Editorial: Carlos Mendes de Sousa, Gastão Cruz, Paulo Teixeira.




REENCONTRAR O LEITOR
Rosa Maria Martelo


(...)
O que faz a poesia?
Remir por certo tipo de palavras

certo tipo de coisas certo tipo
de asas flap flap flap certo tipo
de razões desesperadas.

Luís Quintais, Angst

(...)
Que o poema promete e compromete,
é filho e como filho obriga a tanto:

ser um filho emprestado a guerra alheia,
outra bomba a estalar revoluções
na perigosa ternura de outro olhar.

Ana Luísa Amaral, Minha Senhora de Quê


Poucos tópicos terão sido tão recorrentemente evocados nas últimas décadas do século XX como a descrição benjaminiana do Angelus Novus, de Paul Klee, nas Teses sobre a Filosofia da História. Retomada ou glosada em inúmeras formas de arte e de reflexão crítica - do mesmo modo que o "Angelus Novus" tem servido frequentemente de motivo ou de designação para obras e actividades de variada índole -, a parábola do Anjo da História, proposta por Benjamin, parece constituir uma das melhores e mais produtivas sínteses da sensibilidade e do pensamento contemporâneos.
É um facto sem dúvida sintomático do questionamento que hoje envolve ideias como as de progresso ou de emancipação, quando articuladas com as possibilidades de se aprender, ou não, com a História, mas trata-se certamente também de um sintoma da vulgarização de uma versão-de-mundo que, no início do século, parecia confinar-se nas fronteiras de certas formas agudas de consciencialização, sobretudo visíveis em práticas estéticas de âmbito restrito, situáveis na tradição da Modernidade estética.
A perplexidade e a impotência com que o Anjo da História contempla as ruínas do passado, sem que lhe seja possível intervir sobre a paisagem desolada que se estende diante dos seus olhos espantados, enquanto é empurrado, de costas, pela tempestade que o leva a caminho do futuro, são, de resto, aproximáveis de um outro tema das reflexões benjaminianas nos finais da década de 30 - a descrição que Baudelaire fez de si mesmo numa conhecida passagem de Fusées:
Perdu dans ce vilain monde, coudoyé par les foules, je suis comme un homme lassé dont I'oeil ne voit en arrière, dans les années profondes, que désabusement et amertume, et devant lui qu'un orage où rien de neuf n'est contenu, ni enseignement, ni douleur: (1975, I: 667)

Para Benjamin, esta auto-representação do poeta, com a qual a descrição do Anjo da História mantém, aliás, significativas afinidades, era reveladora do preço pago por Baudelaire para aceder à sensação de modernidade: "a destruição da aura na experiência vivida do choque" (Benjamin, 2000, III: 390), tido por inevitável a partir do momento em que a imaginação do artista se aproximava do presente e, por isso mesmo, se cruzava também com a alienação e a barbárie decorrentes do "progresso". No entanto, hoje, as mesmas palavras e, acima delas, a experiência vivencial que traduzem não sugeririam uma situação tão incomum. Mais ainda do que o tópico do "Angelus Novus", elas produziriam facilmente um efeito de "déjà vu", porquanto, de muitas maneiras, a solidão experimentada pelo poeta "moderno", no meio da multidão urbana, bem como o olhar niilista e não projectivo que lança à sua volta são agora reconhecíveis em inúmeras descrições do nosso mundo habitual. Em meados da década de 90, Marc Augé observava que a "surmodernité" era isto mesmo: a transformação da experiência dos artistas da modernidade num destino comum e mais prosaico (Augé, 1995: 97-98).
Tal como é caracterizada por Marc Augé, a vulgarização existencial do que teria começado por corresponder a um processo de consciencialização circunscrito a uma elite artística, que, compreensivelmente, por isso mesmo se afastava do público, pode ajudar-nos a compreender tanto a permanência, ao longo do século XX, das temáticas desenvolvidas pela Modernidade estética quanto a progressiva dissipação desse aristocratismo que Baudelaire considerava inerente à experiência do "belo" (Baudelaire, 1976, II: 686) ou, mais concretamente, ao reconhecimento da "beleza misteriosa" envolvida na valorização estética do "transitório", do "fugitivo" e do "contingente", para recordar os termos com que o poeta francês definiu a "Modernité" (idem: 695).
Embora de âmbito muito geral, e com implicações que, tanto do ponto de vista cronológico como em termos de poética, vão muito para além do âmbito deste breve estudo, estas considerações, e as sugestões de trabalho que contêm, podem servir-nos de eixo condutor para uma leitura da poesia portuguesa mais recente e levar-nos a um melhor entendimento das razões pelas quais esta tem desenvolvido uma relação de cumplicidade com o leitor que a Modernidade estética não pudera senão excluir, tal como necessariamente excluía a possibilidade de explorar qualquer sugestão de realismo ou de sinceridade. Situemo-nos então, para começar, no século XXI, tanto mais que, assim como os desígnios estéticos do século XX se fizeram anunciar ainda no século anterior, é de crer que também o século XXI tenha começado já a desenhar-se perante nós há mais tempo do que os parcos anos que, num plano estritamente cronológico, lhe dão existência. E, embora o reconhecimento desta possibilidade não nos confira quaisquer capacidades especiais de antecipação, tem pelo menos a vantagem de alertar para a necessidade hermenêutica de não encerrar desde já a década de 90 nas balizas cronológicas do século XX.
Muito recentemente, Manuel de Freitas reuniu num volume antológico (ou colectivo - as duas possibilidades são reconhecidas pelo organizador) uma selecção de poemas de nove autores contemporâneos. Poetas sem Qualidades é o título do livro, publicado em 2002, e tanto o título como o Prefácio merecem particular atenção. "O Tempo dos Puetas" [sic], assim se denomina o prefácio em causa, apresenta-se como um texto de recorte programático, facto por si só digno de nota, na medida em que, provavelmente - e mesmo aí num registo diferente, porque estritamente pessoal - , seria necessário recuar à intervenção crítica e à poesia de Joaquim Manuel Magalhães nas décadas de 70/80 para encontrar, na poesia portuguesa do último quartel do século XX, o mesmo grau de explicitação de um programa poético. Construído como uma espécie de defesa da despoetização da poesia e, nessa medida, como defesa de uma poesia sem qualidades poéticas - tendo o termo "qualidades" aqui um sentido essencialmente retórico - o Prefácio de Poetas sem Qualidades desenvolve uma estratégia argumentativa extremamente interessante.
Um dos motivos de interesse diz respeito ao modo como Manuel de Freitas recorda precisamente um tópico fundador da Modernidade estética: a descrição baudelairiana da perda da auréola pelo poeta no meio da velocidade (e da ferocidade) urbana. O poeta que perde a aura, para usar um termo de Benjamin, é aquele que assumidamente mergulha na História e na circunstancialidade do presente; todavia, se Baudelaire parece identificar-se com este novo estatuto de poeta, tal não exclui que, como faz notar Matei Calinescu, este autor seja "o exemplo quase perfeito da alienação do artista em relação à sociedade e à cultura oficial da sua época" (1999: 60). Na verdade, atribuindo à poesia uma capacidade de somatização estrutural que lhe permite relacionar-se com o mundo, fora de qualquer lógica de representação, ·Baudelaire é também aquele que, em virtude da "cedência de iniciativa às palavras", dá um primeiro sinal do futuro "desaparecimento elocutório do poeta", para recordar a célebre formulação de Mallarmé (1945: 366); ou seja, é aquele que anuncia a emergência do lirismo abstracto que irá constituir uma dominante da Modernidade.
Ora, é precisamente reportando-se a Baudelaire e à figura do poeta sem aura - e valorizando uma das dimensões fundadoras da Modernidade estética, a "do predomínio do temporal sobre o eterno" (Freitas, 2002: 11) - que Manuel de Freitas toma posição contra as possíveis remanescências de outra das dimensões dessa mesma tradição de Modernidade. Sobre os poetas antologiados, diz o antologiador:
Estes poetas não são muita coisa. Não são, por exemplo, ourives de bairro, artesãos tardo-mallarmeanos, culturalizadores do poema digestivo, parafraseadores de luxo, limadores das arestas que a vida deveras tem. Podemos, pelo contrário, encontrar em todos eles um sentido agónico (discretíssimo, por vezes) e sinais evidentes de perplexidade, inquietação ou escárnio perante o tempo e o mundo em que escrevem. Não serão, de facto, poetas muito retóricos (embora à retórica, de todo, não se possa fugir), mas manifestam força - ou admirável fraqueza - onde outros apenas conseguem ter forma ou uma estrutura anémica. Comunicam, em suma (...). (Freitas, 2002: 14)

Ao mesmo tempo que reitera a relação do poeta com a História e com o presente, Manuel de Freitas recusa qualquer entendimento aristocrático da poesia, e é nesse contexto que valoriza uma escrita poética que, embora tematize tópicos da tradição da Modernidade pós-baudelairiana, designadamente o sentido agónico e a descrença perante ideias como as de emancipação e de progresso, o faz de acordo com uma lógica outra, que é a de comunicar uma experiência partilhável pelo leitor - o que, de facto, só é possível porque essa experiência se transformou, entretanto, num destino comum e, nessa medida, se tornou reconhecível para o leitor enquanto mundo habitual.
É uma proposta que, não sendo inédita, apresenta com clareza programática nova uma consciência que se foi agudizando no último quartel do século XX e que implicou uma inflexão efectivamente inovadora na poesia contemporânea. Com efeito, é neste desejo de comunicar, agora acentuado por Manuel de Freitas como extensivo a um conjunto de poetas, que radica uma importante renovação do lirismo, no último quartel do século XX, frequentemente articulável com a valorização de uma relação mais imediata, ou mais legível, com a experiência e, por consequência, capaz de uma maior cumplicidade com o leitor. Em Portugal, a exploração deste tipo de opções poéticas tem sido situada na sequência do fim do regime do Estado Novo (como em Espanha o tem sido por relação com o fim do Franquismo), mas poderá ser compreendida de modo mais amplo em relação com o final do período do pós-guerra. Outro modo de enquadramento desta questão passaria ainda pela autonomização do conceito de pós-modernismo, conceito de que me limito a recordar o sentido fundador, a nível do debate literário, ou seja, o que lhe foi atribuído em 1959-60 por Irving Howe e Harry Levin, ao constatarem que a literatura da sua época denotava, quando confrontada com obras como as de Yeats, Eliot, Pound e Joyce, uma menor capacidade de inovação, acentuando, aliás nostalgicamente, essa diferença. Como é sabido, é justamente essa diferença que virá a ser apresentada de uma forma positiva nos anos 60 por críticos como Leslie Fiedler e Susan Sontag, insistindo estes na importância de um princípio de diversidade como fundamental para a caracterização da literatura contemporânea, a qual poria em prática "uma pluralidade de linguagens, modelos e processos, não lado a lado, mas, preferencialmente de modo sincrético" (cf. W. Welsch e M. Sandbothe, in Fokkema; Berthens, 1997: 78).
Embora esta última perspectiva seja susceptível de discussão a vários níveis, por agora interessa-me apenas sublinhar que a exploração de novas formas de lirismo e o desenvolvimento de uma poesia da experiência parecem surgir, de facto, em articulação com a desvalorização da ideia de ruptura como condição de evolução estética, e também com uma consciência de crise das utopias e com o reconhecimento da erosão de versões-de-mundo ontologicamente fortes, às quais o recolhimento do sujeito nos horizontes mais circunscritos da individualização da experiência poderia constituir uma possível resposta. Por outro lado, a revalorização da enunciação lírica pode ainda, neste contexto, ser articulada com o facto de estarmos perante um momento de forte questionamento da condição de autonomia do poema, tal como fora formulada no contexto da Modernidade estética e, particularmente pelo Simbolismo e pelo Modernismo e, em certa medida, posteriormente recuperada pelas neo-vanguardas da década de 60.
De resto, reportando-se à poesia espanhola posterior a 1975, Miguel d'Ors reconhece que este tipo de evolução seria mesmo observável na inflexão presente na obra de autores já reconhecidos, que teriam evoluído no sentido de moderar "o esteticismo, o formalismo, o hermetismo, o culturalismo, o irracionalismo e o experimentalismo dos seus inícios, e tenderiam para a recuperação do eu, dos materiais autobiográficos, dos sentimentos e dos «temas eternos» e ainda para uma certa simplificação estilística" (d'Ors, 1994: 10-11).1 Trata-se de uma opinião que reflecte uma leitura razoavelmente consensual. José Luís García Martín propõe mesmo o conceito de "poesia figurativa", criado por analogia com a expressão "pintura figurativa" (tomando por referência o binómio figurativo/abstracto), para caracterizar uma poesia que teria repudiado a tradição das vanguardas (García Martín, 1992: 211), isto é, teria abdicado da tradição da ruptura (na acepção em que esta é utilizada por Octávio Paz para definir a Modernidade estética) em favor da recuperação do sentido, num processo em que críticos e poetas têm vindo a acentuar uma nova capacidade de reencontro com o leitor, designadamente com um leitor não necessariamente especialista ou especializado. 2
Garcia Martín sublinha a emergência de uma poética do contar, em lugar do cantar (idem: 213), na qual são valorizados o coloquialismo, o intimismo e a narratividade. E avança uma relação sugestiva: os poetas das últimas décadas do século XX estariam nos antípodas da tese mallarmeana segundo a qual os poemas se fazem com palavras, e não com ideias, fazendo remontar a poesia a algo de contável, algo que, de algum modo, se situaria também antes do poema, como uma experiência para qual o poema viesse essencialmente remeter (idem: 214). Daí decorreria o tom falado, a emergência de personagens e mesmo de um registo autobiográfico, visíveis na poesia das últimas décadas, embora este último decorra - é importante dizê-lo - dos termos em que são estabelecidos os contratos de leitura e não seja necessariamente detectável em função de um maior ou menor conhecimento que o leitor possa ter da vida do autor.
Note-se que não é muito diferente a perspectiva de Jean-Michel Maulpoix, quando situa a renovação do lirismo na poesia francesa nos inícios da década de 1980:
Le lyrisme revalorise aLors La notion «d'expérience poétique" contre l'affirmation telquelienne de Denis Roche selon laquelle «toute révolution ne peut être que grammaticale ou syntaxique". Ce retour du/au lyrisme se situe pour une part dans un déplacement de l'attention de la page blanche (ou de La table d'écriture) vers le monde. (…) Il implique l'affirmation renouvelée d'une interdépendance étroite entre l'écriture et la vie. (Maulpoix, 1998: 120)

Com efeito, no último quartel do século XX, o lirismo tende a configurar mais nitidamente o sujeito, e a presença da subjectividade surge não apenas enquanto rasto de um processo enunciativo entretanto tornado inacessível ao leitor, mas enquanto presença de um sujeito de enunciação susceptível de ser entendido como actor ou agente num processo discursivo - e não como produto;, ou resultante, ou efeito desse processo. Retomando o conceito de "poesia figurativa", proposto por José Luis García Martín, poderia dizer-se que o lirismo abstracto dominante na tradição da Modernidade pós-baudelairiana tende agora a dar lugar à dominância de um lirismo figurativo. Trata-se, na verdade, de uma revalorização da enunciação lírica (daí as marcas do processo enunciativo estarem mais presentes no enunciado); por isso se poderia falar de um registo modal de teor neo-romântico, desde que ressalvando ser este usado por poetas que, vindos depois da Modernidade, de modo algum pretendem recuperar a aura do poeta romântico, como o indica o tom menor que habitualmente preferem.
Embora a prevalência do lirismo figurativo se manifeste de forma mais coesa nos poetas surgidos na década de 90, e sobretudo naqueles que começaram a publicar já em meados dessa década,3 parece inegável ser esta uma linha de evolução que, na poesia portuguesa, remonta à década de 70 e, muito particularmente, à intervenção crítica e à poesia então publicada por Joaquim Manuel Magalhães. De resto, certos traços que, apesar de não abrangerem a generalidade dos poetas surgidos ao longo da década de 90, são particularmente legíveis na poesia dos últimos anos - a exploração lírica do fragmento narrativo em articulação com a valorização da experiência individual e da memória, a articulação do poema como experiência emocional do mundo, a importância de que se reveste a valorização do circunstancial, do particular e do privado - não são exactamente novos, antes adquirindo um grau de recorrência que lhes confere uma maior legibilidade. Isso mesmo nos é lembrado por Joaquim Manuel Magalhães, ao retomar, já em 2001, o que escrevera a propósito da poesia de António Osório e depois reescrevera no poema "Princípio", de Os Dias, Pequenos Charcos (1981):
(…)
Voltar ao real, sim. Como o disse
quando outros se refugiavam
na linguagem da linguagem.

Nessa altura
mudaram quase todos de registo.
Mas sempre se esqueceram de que lhe chamei
desencanto.
E que tudo nos poemas é suposto
excepto quem os escreve.
Embora dentro das palavras
eu o recebesse em encantamento,
num mundo límpido, à fraude,
à ferrugem, à fuligem, à agressão.
Um canto de euforia, com abatimento
no seu algar; na cilada do enforcador.

Mas nunca, isso não,
o abstracto da referencialidade
só a si, como retardados teóricos
ainda hoje manejam.
(...)
(Magalhães, 2001: 69)

Embora Manuel Gusmão tenha inteiramente razão em encarar com reservas a possibilidade de uma aproximação linear entre a poesia mais recente e a obra de Joaquim Manuel Magalhães, lembrando o modo como esta última "associa a «um saber prosódico muito nítido» uma «vontade de violência»" (in Queirós; Leme, 29 de Março de 2003: 14), que seriam menos visíveis nos poetas mais novos, parece ser inegável o papel desempenhado por este poeta e crítico no processo de reavaliação dos caminhos da poesia portuguesa a partir da década de 70. Apesar da insistência em "que fique claro que não quer [...] ser porta-voz seja do que for" (1981: 260), Joaquim Manuel Magalhães põe em causa, desde muito cedo, as dominantes da poesia neo-vanguardista da década de 60 e sintetiza com grande clareza os novos caminhos que irão determinar o devir da poesia portuguesa:
(…) ultrapassagem do medo sintáctico do discursivo, do medo lírico do confessionalismo e da rasteira limitação, em nome de um ouvidinho musical ou de um olhinho experimental, das explosões declarativas. Contra a necessária, na altura, rarefacção do sentimento, do enunciado e do imaginário, surge na poesia mais recente um ímpeto renovado de se contar, de assumir, por máscara ou directamente, um discurso cuja tensão é menos verbal do que explicitamente emocional. (Idem: 258)

Valorizar a tensão emocional do poema, em detrimento de uma tensão essencialmente verbal, irá implicar uma revalorização da legibilidade do próprio processo de enunciação lírica no enunciado. Daí que Nuno Júdice caracterize os anos 70 como aqueles em que "[o] jogo já não é o da sinceridade dentro do fingimento, como em Pessoa, mas o do fingimento dentro da sinceridade" (1992: 160). Significativamente, um dos aspectos que se torna mais nítido ao longo da década de 90 reside no modo como este tipo de poética também trabalha um efeito de não coincidência entre poesia e poema - sendo que a poesia se constrói também sobre a relação entre subjectividade e experiência - embora sem deixar de sugerir que este é efectivamente um efeito discursivo, uma espécie de jogo ficcional. Algures no espaço incerto da relação entre o poema e uma certa circunstancialidade reconhecível como tal pelo leitor, a poesia valoriza o próprio processo da enunciação lírica e pode aproximar-se facilmente de registos pseudo-autobiográficos, do monólogo e do monólogo dramático. Todavia, o leitor também é levado a compreender que, como resumiu ainda Joaquim Manuel Magalhães, "[o] que é pensado é efeito de sinceridade como verosimilhança (daí a noção de artifício, que tudo em arte tem de ser para ser arte) e nunca como verdade" (1999: 268). Essa é, de resto, uma das razões pelas quais a circunstancialidade não pode ser confundida com o contexto de produção do poema.
Ora o que podemos observar é que a circunstancialidade claramente se acentua em grande parte da poesia do último quartel do século XX, e muito particularmente na década de 90, de tal maneira que tem sido frequente falar-se de realismo ou de novo realismo a seu propósito. Como sublinha Jean-Michel Maulpoix, o lirismo define-se menos pela expressão de um estremecimento íntimo do que pela errância nas periferias do sujeito (1998: 125), no entanto, se tal pode implicar formas de circunstancialidade que actualmente tendem a produzir uma espécie de efeito de realismo, não implicará necessaria mente qualquer projecção autobiográfica. E mesmo se o lirismo dos finais do século XX joga recorrentemente com essa possibilidade, em termos de contrato de leitura, dificilmente o leitor poderá excluir a hipótese de estar perante um ar tifício discursivo. Outra coisa será o modo como a poesia orientada para a experiência e, mais precisamente, a enunciação lírica supõem sempre a configuração de um sujeito na vida e não simplesmente um sujeito de dicção poética.
Há uma razoável diversidade de percursos na poesia mais recente - que pode assumir vertentes mais elegíacas ou mais preocupadas com a denúncia do quotidiano contemporâneo; mais epifânicas, como acontece com a poesia de Daniel Faria, ou mais orientadas para a valorização do "gesto mínimo" (Miranda, 1997: 31) e das "ocasiões mínimas" (Mexia, 1999: 53); notoriamente herdeiras de uma tradição poética com a qual estabelecem diálogos mais ou menos irónicos, como é perceptível na obra de Ana Luísa Amaral, que também desenvolve uma espessura discursiva que outros preferem assumidamente evitar. No entanto, parece inegável que, na sua generalidade, os poetas surgidos na década de 90 são claramente avessos a desenvolver um registo lírico de matriz abstracta, ou a aceitar uma concepção autotélica da linguagem poética. O movimento geral desta poesia é o de uma aproximação mais emocional e mais circunstancial ao que chamamos "mundo".
Num ensaio relativo aos anos 70/80, em Um Século de Poesia, Fernando Pinto do Amaral valorizava na poesia desses dois decénios o que definiu como "o regresso ao sentido":
Dito isto, é bom frisar que a poesia portuguesa das últimas décadas se foi construindo como um regresso ao sentido. Com isto quero dizer três coisas: o retorno a processos de escrita apoiados num fio condutor; isto é, menos voltados para malabarismos verbais do que para a simples afirmação de linhas de sentido (o significado tenta impor-se de novo ao significante); em segundo lugar, a retoma de um lirismo assumido sem complexos e de uma emocionalidade relativamente explícita, o que nos dá a ilusão de um discurso mais sentido; e finalmente a exploração de áreas semânticas ligadas à fisicidade, ao uso vivido de sensações materiais e directas a que podemos associar os nossos (muito mais do que cinco) sentidos. Tudo isto a par da redescoberta de um fôlego discursivo que se serve de uma sintaxe menos rebuscada e mais fiel, por isso mesmo, ao fluir dos ritmos do corpo ou da alma: os versos deixam de estar centrados sobre si mesmos e tentam exprimir seja o que for, recorrendo com frequência a um tom da linguagem oral. Daí outra mudança, a que se chamaria um retorno à narratividade, um "regresso às histórias simples" (AI Berto) que alguns poetas vão aproveitando para se reaproximarem do real. (Amaral, 1988: 161)

Se pensarmos nos muitos efeitos de rarefacção implicados neste regresso - rarefacção do sentido e da experiência dos sentidos através da tematização de um mundo evanescente e de contornos pouco definidos, rarefacção do discurso, que facilmente se suspende num estreito momento narrativo, distância reflexiva inscrita pela ironia e por uma certa derisão, deveremos reconhecer que as novas formas de lirismo não pretendem ignorar nem as problemáticas nem as temáticas da Modernidade, embora procurem reequacioná-las de um modo discursivamente diferente e sobretudo em função de outro tipo de contratos de leitura, pelos quais se reaproximam do leitor (e de um leitor não necessariamente erudito, já que uma das características da poesia mais recente passa pela existência de processos de sobrecodificação que permitem explorar vários níveis de leitura).
*
Limitei-me a observar algumas tendências que me parecem particularmente representativas na poesia contemporânea, sem me deter nas especificidades dos percursos poéticos dos diferentes autores que lhes dão forma.4 O meu objectivo primordial era o de mostrar que o retomar de uma poética transitiva, de modos diferentes por poetas por vezes tão diferentes entre si, radica num quadro de mudança, em processo desde os anos 70 e particularmente visível nos anos 90, no qual a opção pela enunciação lírica parece deter agora a função que Mallarmé atribuía à sintaxe: a de ser uma (a) garantia. E porquê? Em primeiro lugar, porque as versões-de-mundo sobre as quais esta poesia trabalha não deixariam grande margem para outras estratégias que não a do recolhimento nas fronteiras de uma experiência do mundo assumidamente filtrada pela subjectividade. Christian Prigent dá-nos uma boa síntese do tipo de mundo com o qual a poesia contemporânea se confronta, e ao qual procura contrapor-se enquanto forma outra de discurso e de representação:
Quelles sont les formes de représentation du monde qui affluent désormais devant nous: la fugacité du spectaculaire, la précipitation cynique ou frivole qui fait sevanouir le réel dans le bric-à-brac enjoué de la trash-TV ou dans la tautologie obscene des reality-shows.
Quelle que soit notre soumission désabusée au charme de ces représentations, quelle que soit notre volonté de nous y asservir, nous savons bien que tout cela est faux, que ça n'est que du toc, un théâtre d'ombres qui n'épuisent en rien notre sensation du réel et ne nous en donnent aucune intelligence que celle d'une mythologie pour nouveaux primitifs. (...) Et les temps que nous y vivons ne s'alignent jamais comme naus le montrent les scenarios chromos qui sont censés nous en donner symboliquement la sensation. (Prigent, 1995: 21 -22)

Em segundo lugar, porque este reconhecimento de que toda a realidade, mesmo nas suas representações mais comuns, tende a ocultar o real é precisamente o que permite a possibilidade do estabelecimento de um contrato de leitura de tipo realista, não de acordo com uma lógica positivista, naturalmente, mas no estrito sentido de se constituir sobre a pressuposição do reconhecimento, por parte do leitor, do seu mundo habitual. Se pensarmos neste termos, não nos é difícil compreender que a revalorização da enunciação lírica sob uma perspectiva figurativa permite refazer, em termos mais imediatos, uma relação entre poesia e comunicação. Ao desenvolver novas formas de cumplicidade discursiva com o leitor, e com o mundo do leitor, a poesia continua, assim, a assumir a mesma capacidade de resistência enquanto forma que Adorno observa na arte da Modernidade. Mas, num mundo onde a exploração da intransitividade dos discursos se tornou tão quotidiana quanto insuportável, a forma procurada é necessariamente outra, e a questão essencial parece ser, agora, a de inventar uma linguagem verdadeiramente "limpa". E comunicante.

Referências bibliográficas
Amaral, Fernando Pinto do, "O regresso ao sentido", Um Século de Poesia (1888-1998) - A Phala, edição especial, Lisboa, Assírio & Alvim, 1988.
Baudelaire, Charles, Oeuvres, I e II, Paris, Gallimard, coI. Bibliotheque de la Pléiade, 1975 e 1976.
Benjamin, Walter, Oeuvres, III, Paris, Gallimard, 2000 (1972).
Calinescu, Matei, Cinco Faces da Modernidade, Lisboa, Vega, 1999.
D'Ors, Miguel, En Busca del Público Perdido, Aproximación a la última poesia espanola joven (1975-1993), Granada, Impredisur, 1994.
Fokkema, Douwe e Berthens, Hans (org.) - International Post-modernism, Theory and Literary Practice, John Benjamins Publishing Company Amsterdam/ Philadelphia, 1997.
Freitas, Manuel de (org.), Poetas sem Qualidades, Lisboa, Averno, 2002.
Garcia Martín, José Luís, La Poesia Figurativa, Crónica parcial de quince años de poesía española, Sevilha, Renacimiento, 1992.
Júdice, Nuno, O Processo Poético, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992.
Mallarmé, Stéphane, Oeuvres Completes , Paris, Gallimard, coI. Bibliothèque de la Pléiade, 1945.
Magalhães, Joaquim Manuel, Os Dois Crepúsculos, Sobre poesia portuguesa actual e outras crónicas, Lisboa, A Regra do Jogo, 1981.
Magalhães, Joaquim Manuel, Rima Pobre, Lisboa, Presença, 1999.
Magalhães, Joaquim Manuel, Alta Noite em Alta Fraga, Lisboa, Relógio d'Água, 2001.
Mexia, Pedro, Duplo Império, s.l., ed. do autor, 1999.
Miranda, Paulo José, A voz que nos Trai, Lisboa, Cotovia, 1997.
Maulpoix, Jean-Michel, La Poésie Comme l'Amour, s.l., Mercure de France, 1998.
Prigent, Christian, À Quoi Bon Encore des Poètes?, Paris, P.O.L., 1996.
Queirós, Luís Miguel; Leme, Carlos Câmara, "Uma nova geração de poetas portugueses", Público, supl. Mil Folhas, 29 de Março de 2003.

___________________
1. Tradução minha.
2. É uma posição que, no contexto português, tem sido claramente defendida por Joaquim Manuel Magalhães. Veja-se, por exemplo, o seguinte excerto do poema "Sangramento" (Magalhães, 2001: 21):
(…)
Melhor seria que não me lessem nunca
os que por costume lêem poesia.
Muito além deles conseguir falar
ao que chega a casa e prefere o álcool,
a música de acaso, a sombra de alguém
com o silêncio das situações ajustadas.

Não ser lido por quem lê. Somente
pelos que procuram qualquer coisa
rugosa e rápida a caminho de uma revista
onde fotografaram todo o ludíbrio da felicidade.
Que um poema meu lhes pudesse entregar,
ademais da morte,
um alívio igual ao de atirar os sapatos
que tanto apertam os pés desencaminhados.
(...)
3. Num artigo recente, assinado por Luís Miguel Queirós e Carlos Câmara Leme (Público , suplemento MilFolhas, 29 de março de 2003), procurava-se testar a "hipótese de estarmos a assistir, sensivelmente desde meados dos anos 90, ao aparecimento de um conjunto de poetas que, com tudo o que os distingue uns dos outros, corporizam uma geração, no sentido forte do termo". Significativamente, a quase totalidade dos poetas referenciados tinha nascido depois de 1965, tendo, na generalidade dos casos, começado a publicar apenas na segunda metade da década.

4. Tal não exclui, no entanto, a valorização das particularidades desses percursos, alguns dos quais procurei anteriormente descrever em "Anos 90", in Maria de Fátima Marinho e Óscar Lopes (org.), História da Literatura Portuguesa, vol. 7, Lisboa, Alfa, 2002.



clique para entrar

   

sexta-feira, 31 de julho de 2015

"Nova poesia" e "poesia nova" (Gastão Cruz)




"Nova poesia" e "poesia nova"
Gastão Cruz

Quando procuramos hoje uma "nova poesia portuguesa", a primeira coisa que poderá surpreender-nos é a inexistência de autores, já suficientemente visíveis, com idades situadas entre os vinte e os trinta anos.
Alguns dos principais nomes que viriam a formar a magnífica constelação de poetas revelados na segunda metade do século XX, ou mesmo um pouco antes, se recuarmos até à década de quarenta, afirmaram-se cedo; alguns exemplos: estreando-se aos vinte e três anos (Perseguição, 1942), Jorge de Sena publica aos vinte e sete o seu primeiro grande livro, Coroa da Terra (1946); Sophia, aos vinte e cinco, Poesia (1944); Eugénio de Andrade, As Mãos e os Frutos (1948), também aos vinte e cinco; Ramos Rosa afirma-se, a partir de 1951, nas páginas da Árvore, com vinte e sete; Cesariny publica, com a mesma idade, Corpo Visível (1950); Fiama e Luiza Neto Jorge têm, respectivamente, vinte e três e vinte e dois anos em 1961 (Morfismos e Quarta Dimensão, que não são sequer as suas primeiras obras); Nuno Júdice, a primeira estreia marcante da década de 70, torna-se imediatamente, aos vinte e três anos, com A Noção de Poema (1972), um poeta conhecido; Luís Miguel Nava ganha, aos vinte e um, o Prémio Revelação da APE de 1978, com Películas (1979).
É certo que um dos poetas presentes neste número de Relâmpago - e dos mais representativos, Luís Quintais ‑ alcançou, com vinte e sete anos, uma relativa projecção, quando o seu primeiro livro, A Imprecisa Melancolia, foi publicado simultaneamente em português e em tradução castelhana, depois da obtenção do Prémio Aula de Poesia de Barcelona, em 1995. E que também Daniel Faria, desaparecido em 1999, com vinte e oito anos, deixou um considerável e, sem dúvida, importante conjunto de poemas, distribuído por três livros principais, tendo o último, e acaso o mais relevante, Dos Líquidos, saído postumamente, em 2000. Objecto de uma discreta consagração, logo após a morte, o seu lugar, no panorama da poesia portuguesa mais recentemente revelada, parece não ter parado de consolidar-se, o que, suponho, continuará a acontecer.
Onde estão, porém, neste momento, os poetas portugueses com idade inferior a trinta anos? Ainda por publicar? À espera de serem descobertos nas páginas de livros mal divulgados? E por que não existem, quase, vozes poéticas femininas jovens?
Esperemos que venha a haver, em breve, resposta factual para estas perguntas.
Se não podemos falar, propriamente, de jovem poesia, falemos então de nova poesia portuguesa. E a primeira questão que se coloca é a seguinte: será a nova poesia uma poesia nova?
Ruy Belo, um dos poetas que mais penetrantemente pensaram o fenómeno poético (e será conveniente voltar a sublinhar, contra a sectária miopia de certos detractores, a extraordinária importância da sua obra teórica e crítica, constituída, quer pelos textos reunidos no volume, recentemente reeditado, Na Senda da Poesia, quer pelos prefácios aos seus próprios livros de poemas, sem dúvida, ao lado das de Sena e Ramos Rosa, uma das que mais contribuíram para uma verdadeira reflexão sobre a poesia moderna e contemporânea, em Portugal), defendeu, num ensaio fundamental, de 1961, "Poesia Nova - Tentativa de Caracterização da Poesia", que poderia ser lido com proveito por alguns poetas actuais, como "característica essencial de toda a poesia a novidade".
Sabemos como a produção do novo, como pressuposto de validação da obra de arte, não somente do poema, passou a ser vista com suspeição, em tempos mais ou menos recentes, marcados por essa espécie de contra-reforma que tem dado pelo nome de pós-modernidade.
Todavia a exigência de novidade não foi exclusiva do modernismo ou das várias vanguardas novecentistas: novo foi Sá de Miranda (cf. Jorge de Sena, "Reflexões sobre Sá de Miranda ou a arte de ser moderno em Portugal", in Da Poesia Portuguesa, Ática, Lisboa, 1959), novos foram Cesário Verde ou Camilo Pessanha - novo terá de ser, hoje, qualquer poeta que queira escrever alguma coisa capaz de superar o descritivismo morno, a observação rasteira do que o cerca (ou ele decide que o cerca), a má (ou menos má...) prosa disfarçada de poema.
Um sector do que podemos chamar "nova poesia portuguesa", ou, talvez mais exactamente, o teorizado r de uma poesia "sem qualidades", Manuel de Freitas, tem procurado impor um conceito de poesia que, recusando as "qualidades" que terão andado associadas à chamada poesia moderna, tal como a conhecemos desde meados do século XIX, lhes contrapõe a ausência delas ("Estes poetas não são muita coisa. Não são, por exemplo, ourives de bairro, artesãos tardo-mallarmeanos", diz-se no prefácio do organizador, M. de Freitas, à pequena antologia Poetas sem Qualidades), ecoando a curiosa tese de Joaquim M. Magalhães, precisamente num artigo de exaltação da poesia de M. de Freitas, de que "vieram os finais do séc. XIX e quase toda a extensão do séc. XX estragar tudo isto e pôr os leitores a milhas da poesia" (Público, 3/8/2002).
Não poderia falar de "nova poesia portuguesa" sem me deter um pouco na estranha postura de Manuel de Freitas, dado o protagonismo que, em contradição flagrante com uma pouco convincente encenação de marginalidade, a sua intervenção vem assumindo. Trata-se de uma actividade que no plano crítico se baseia, por norma, em meras execuções sumárias, como, por exemplo, a que de Nuno Júdice procura fazer no prefácio à antologia referida, sem qualquer fundamentação ou desenvolvimento de pontos de vista, numa recusa sistemática de toda a poesia que não esteja de acordo com a sua inconsistente teorização (e, com a quase exclusiva ressalva de J. M. Magalhães e de alguns poetas do grupo do próprio M. de Freitas, nenhuma estará), o que conduziu mesmo à espantosa afirmação, referida a Herberto Helder, de que "a um génio tudo se perdoa" (até o pecado de ter "dado voz a uma quase esmagadora intemporalidade"). Não parece, obviamente, que, por não se enquadrar na poética preconizada por M. de Freitas, Herberto careça do seu perdão.
Voltemos à afirmação de J. M. Magalhães. Também para tal encontramos resposta noutro ensaio do mesmo livro de Jorge de Sena, "Sobre Modernismo": "No fundo, e hoje e aqui, a questão do "modernismo" é a questão do tão chorado abismo entre as artes e o povo. Sem dúvida que é digno verter lágrimas dessas, tentar encher de lágrimas o abismo. Diga-se de passagem que se tem procurado enchê-lo com palavras, ainda que humedecidas, e com mediocridades, ainda que bem intencionadas."
Na verdade, temores como esse de "pôr os leitores a milhas da poesia" só conduzem, como, por vezes, sucedeu nos tempos a que Sena se refere, ao culto da mediocridade, da banalidade, à ausência de risco, ao recuo perante qualquer veleidade de invenção verbal, em suma, a uma poesia (realmente) "sem qualidades".
Não creio que, na prática, seja isso o que se tem passado, pelo menos nos melhores casos, com a "nova poesia". O trabalho poético, o ofício cantante, a aplicação artesanal, não estão sequer excluídos da escrita de dois ou três dos poetas que aceitaram figurar sob a designação de "poetas sem qualidades": José Miguel Silva, Rui Pires Cabral ou mesmo Manuel de Freitas (aliás não integrado na antologia), pelo menos no seu melhor livro, Game Over, procuram, sem dúvida, fugir ao amadorismo a que o seguimento à letra da defesa de uma poesia "sem qualidades", tão desajeitadamente teorizada, forçosamente conduziria. O prefácio a Poetas sem Qualidades reclama-se, aliás, de Baudelaire e de T S. Eliot, inexcedíveis artesãos da poesia - e bem conscientes da necessidade de que o poeta seja um fabbro.
Bons artesãos, nos seus bons momentos, talvez uma maior ousadia na produção de imagens, uma dimensão metafórica mais ambiciosa, alguma desconstrução textual, lhes elevasse a "temperatura poética", para me servir da expressão de Ruy Belo, ainda do ensaio "A Poesia Nova", do qual seria agora oportuno citar o seguinte: "Temos, portanto, que a palavra, tomada no sentido lato que lhe dá Frei Luís de Leão, apresenta essas duas maneiras de ser: uma, no pensamento; a outra, na boca. A primeira, o sermo interior da Escolástica, natural; a segunda, posta, inventada, feita. É dentro deste último sector que, como estamos a ver, se recruta a palavra sobre a qual nos vimos debruçando. Palavra surpreendida no momento de soar e não no momento de estar. Palavra dinâmica, instável. Palavra de arte. E a palavra de arte é sempre uma palavra surpreendida, apanhada em flagrante delito de criação." Talvez a poesia de Carlos Bessa, com um discurso mais desconstruído e mais imprevisível no domínio das imagens, pratique com especial eficácia esse" delito".
Ao observarmos a "nova poesia portuguesa", não podemos deixar de notar a diversidade e a quantidade de casos dignos de atenção. Uma geração (releve-se o uso do impreciso, mas inevitável, conceito) que pode ostentar obras tão diferentes como, por exemplo, as de Luís Quintais, José Tolentino Mendonça, José Mário Silva, José Ricardo Nunes, Carlos Bessa ou Rui Coias, apresenta uma dinâmica que inevitavelmente impressiona, sobretudo se compararmos a actual proliferação de nomes (outros ainda poderiam, provavelmente, ter sido acrescentados aos que figuram nas páginas deste número de Relâmpago, que não pretende, de forma alguma, estabelecer o cânone da "nova poesia portuguesa") com a muito menor abundância de poetas interessantes surgidos na fase imediatamente anterior, aproximadamente entre 1980 e 1995. Não será fácil destacar, nesse período, muito mais de cinco nomes: Luís Miguel Nava, Paulo Teixeira, Fernando Luís Sampaio, Adília Lopes, Fernando Pinto do Amaral - todos nascidos entre 1957 e 1962 (Luís Filipe Castro Mendes, AI Berto, Fátima Maldonado, Manuel Gusmão, entre outros, cujas obras se afirmaram também entre 80 e 95, pertencem, verdadeiramente, a gerações anteriores).
Além de Manuel de Freitas, outros dois poetas têm exercido actividade crítica, com alguma regularidade ou extensão, José Ricardo Nunes e Pedro Mexia, tendo o primeiro reunido, em 9 Poetas para o Século XXI (2002), abordagens das obras poéticas de Carlos Bessa, Daniel Faria, João Luís Barreto Guimarães, Jorge Gomes Miranda, José Tolentino Mendonça, Luís Quintais, Paulo José Miranda, Pedro Mexia e Rui Pires Cabral, o que faz dele o principal estudioso da poesia da sua geração.
Tanto J. Ricardo Nunes como Pedro Mexia cultivam, em geral, o poema curto, contido, procurando uma sobriedade de escrita que é comum a José Mário Silva. Se - e, de novo, como diz Ruy Belo - "nunca a extensão do poema foi garantia de alta temperatura poética", é igualmente certo que o poema menos extenso requer uma forte carga expressiva, uma concentração de energia, uma intensidade, sem as quais dificilmente funcionará. Ruy Belo: "Dois ou três versos convenientemente isolados ferem-nos mais, muitas vezes, do que abundantes versos, em contínuo perigo de descambarem na prosa."
O "perigo de descambarem na prosa" espreita, por vezes, os versos, quer em poemas curtos, quer em mais longos, de alguma da actual produção poética portuguesa - e já não me refiro apenas à "nova poesia". O desejo de tornar os textos acessíveis, de poupar esforço ao leitor, tem dado, por vezes, origem a uma poesia light, constituída por apontamentos ligeiros, pequenas piadas, observações inócuas do quotidiano, com o consequente definhamento da linguagem poética.
É evidentemente possível escrever grande poesia a partir do "real quotidiano": têm-no feito poetas tão diversos como Sophia de Mello Breyner, Jorge de Sena, Mário Cesariny, Fiama Hasse Pais Brandão, Carlos Drummond de Andrade, entre tantos outros. Numa carta de 1915, dirigida a Armando Cortes-Rodrigues, diz Fernando Pessoa: "Chamo insinceras às cousas feitas para fazer pasmar, e às cousas, também – repare nisto, que é importante - que não contêm uma fundamental ideia metafísica, isto é, por onde não passa, ainda que como um vento, uma noção de gravidade e do mistério da Vida. Por isso é sério tudo o que escrevi sob os nomes de Caeiro, Reis, Álvaro de Campos. Em qualquer deles pus um profundo conceito da vida, diverso em todos três, mas em todos gravemente atento à importância misteriosa de existir."
A ausência de uma "fundamental ideia metafísica", de "um profundo conceito da vida", associada à incapacidade de transfiguração do real, é o que, em geral, compromete a validade de uma poesia a que em Espanha se tem chamado "de la experiencia" e que, entre nós, alguns têm procurado imitar. Como escreveu também Ruy Belo: "A palavra poética é universal porque abstracta. Embora haja um facto concreto na sua origem, não está vinculada a esse facto. É mais e é coisa diferente desse facto. Despida das circunstâncias que rodearam o seu nascimento, existe como mensagem de uma experiência não só do poeta mas de todos os homens. Por isso estes podem reconhecer nessa palavra a sua própria palavra." Ou, como ironicamente comentava um poeta espanhol: "Mucha experiencia, poca poesia".
Felizmente apercebemo-nos de que, em alguns dos novos poetas portugueses, é cada vez maior a consciência de que a poesia tem de ser algo mais do que o mero cliché de uma marginalidade de papelão, com as constantes e inevitáveis referências ao álcool, aos bares, etc., ou a simples observação directa do que ocorre no centro comercial, no supermercado ou no café. Neste mesmo número de Relâmpago existem elucidativos exemplos da ultrapassagem do puramente acidental, mesmo por parte de poetas cujos textos procuram normalmente cingir-se a uma realidade low profile, desprovida, a um primeiro olhar, de quaisquer atributos especiais. Penso, particularmente, em José Ricardo Nunes ou em Rui Pires Cabral, o primeiro enveredando por uma certa leitura simbólica do mundo circundante, mesmo quando o ponto de partida do poema é, por exemplo, um "Mercado", o segundo procurando descobrir uma dimensão metafísica em acontecimentos vulgares e assegurando que "a realidade/defenderá até à morte/os seus mistérios".
Noutros mundos se moveu, desde o começo, a poesia de Luís Quintais. E encontramos, na sua obra mais recente, quer em Angst (2002), provavelmente, com Dos Líquidos de Daniel Faria, um dos dois mais importantes livros da "nova poesia", quer na sua presente colaboração nesta revista, uma respiração metafísica cada vez mais ampla, a busca de "uma perfeição de palavras". Tentando decifrar "uma atmosfera de encanto e morte" ou invejando "o remorso de Onegin", a poesia de Quintais procura uma interpretação para o mundo, reflecte sobre "a importância misteriosa de existir" de que falava Pessoa: "aqui sonhas a tua origem e o teu fim/aqui repousas o eixo do fátuo enigma./Nada foste. Nada és, animal cego e piedoso."
É numa zona afim desta, embora com um tom muito diferente, que se desenvolve a poética de José Tolentino Mendonça. A sua poesia aproxima-se com humildade do real, como eloquentemente nos diz numa arte poética que faz lembrar as de Sophia: "A poesia é um procedimento humano, uma maneira que mimetiza outras ainda mais puras, um gesto que repete o arco de outro gesto: coisas tão simples como varrer um pátio ou lançar o balde ao poço ou traçar caminhos num bosque. A poesia não é feita de invenção, mas de repetição. (...) O lugar ínfimo da poesia é o lugar que no mundo ocupa o espírito."
Afectado por uma "imprecisa inquietação", por entre "a vazia escuridão", "os redemoinhos imperceptíveis", "como se estivesse para ser morto/às mãos do próprio Deus", "enquanto a alma repete a pergunta eterna", Tolentino Mendonça vê a vida com um dramatismo crescente: uma “combustão” de que o amor é um dos ingredientes. E creio que esta "combustão", esta intensidade emotiva e expressiva, contraria, de alguma maneira, a modéstia do papel meramente repetitivo da realidade mais pura que Tolentino Mendonça reivindica para a poesia.
Não me é possível, nem é esse o objectivo desta reflexão sobre os novos percursos da poesia portuguesa, deter-me no trabalho de cada um dos autores mais recentemente revelados. Como já disse, o panorama é vasto e diversificado. Mas penso que se justifica uma referência particular a Rui Coias, pelo lugar isolado que me parece ocupar.
Num momento em que muita poesia revela algum empobrecimento em termos de imaginação, de criação metafórica, de espessura verbal, o livro que Rui Coias publicou em 2000, A Função do Geógrafo, e que tem evidente continuidade nos poemas com que colabora nesta revista, delineou um rumo diferenciado e autónomo, que talvez se inscreva numa nova zona surrealizante da poesia portuguesa, marcada por uma diversa, acaso mais controlada, confiança no poder das imagens, enraizadas em lugares concretos reproduzidos pela memória: "Farei da memória a função do geógrafo".
Se não quiser deixar-se arrumar no armazém das inutilidades fúteis (e não há nada menos inútil do que a poesia), uma "nova poesia" não poderá deixar de ser uma "poesia nova" – a "palavra de poesia" que, no ano já remoto de 61 , Ruy Belo redefiniu e caracterizou como essencialmente metafórica. É dessa palavra que, em tempos bem recentes, nos falou igualmente, neste poema admirável, Daniel Faria:

Escrevo do lado mais invisível das imagens
Na parede de dentro da escrita e penso
Erguer à altura da visão o candeeiro
Branco da palavra com as mãos

Como a paveia atrás do segador
Vejo os pés descalços dos que correm
E escrevo para os que morrem sem nunca terem provado o pão
Grito-lhes: imaginai o que nunca tivestes nas mãos

Correi. Como o segador seguindo o segador
Numa ceifa terrestre, tombando. Digo:
Imaginai





clique para entrar

http://www.relampago.pt/

RELÂMPAGO N.º 12.  4|2003
Director deste Número: Fernando Pinto do Amaral.
Conselho Editorial: Carlos Mendes de Sousa, Gastão Cruz, Paulo Teixeira.