RELÂMPAGO N.º 12 4|2003
Director deste Número: Fernando Pinto do Amaral.
Conselho Editorial: Carlos Mendes de Sousa, Gastão Cruz, Paulo Teixeira.
Director deste Número: Fernando Pinto do Amaral.
Conselho Editorial: Carlos Mendes de Sousa, Gastão Cruz, Paulo Teixeira.
REENCONTRAR
O LEITOR
Rosa
Maria Martelo
(...)
O que faz a poesia?
Remir por certo tipo de palavras
certo tipo de coisas certo tipo
de asas flap flap flap certo tipo
de razões desesperadas.
Luís Quintais, Angst
(...)
Que o poema promete e compromete,
é filho e como filho obriga a tanto:
ser um filho emprestado a guerra
alheia,
outra bomba a estalar revoluções
na perigosa ternura de outro olhar.
Ana Luísa Amaral, Minha Senhora de
Quê
Poucos
tópicos terão sido tão recorrentemente evocados nas últimas décadas do século XX
como a descrição benjaminiana do Angelus Novus, de Paul Klee, nas Teses
sobre a Filosofia da
História. Retomada ou glosada em
inúmeras formas de arte e de reflexão crítica - do mesmo modo que o
"Angelus Novus" tem servido frequentemente de motivo ou de designação
para obras e actividades de variada índole -, a parábola do Anjo da História,
proposta por Benjamin, parece constituir uma das melhores e mais produtivas
sínteses da sensibilidade e do pensamento contemporâneos.
É um facto sem dúvida
sintomático do questionamento que hoje envolve ideias como as de progresso ou
de emancipação, quando articuladas com as possibilidades de se aprender, ou
não, com a História, mas trata-se certamente também de um sintoma da
vulgarização de uma versão-de-mundo que, no início do século, parecia
confinar-se nas fronteiras de certas formas agudas de consciencialização,
sobretudo visíveis em práticas estéticas de âmbito restrito, situáveis na
tradição da Modernidade estética.
A
perplexidade e a impotência com que o Anjo da História contempla as ruínas do
passado, sem que lhe seja possível intervir sobre a paisagem desolada que se
estende diante dos seus olhos espantados, enquanto é empurrado, de costas, pela
tempestade que o leva a caminho do futuro, são, de resto, aproximáveis de um
outro tema das reflexões benjaminianas nos finais da década de 30 - a descrição
que Baudelaire fez de si mesmo numa conhecida passagem de Fusées:
Perdu dans ce vilain monde, coudoyé par les foules, je suis
comme un homme lassé dont I'oeil ne voit en arrière, dans les années profondes,
que désabusement et amertume, et devant lui qu'un orage où rien de neuf n'est
contenu, ni enseignement, ni douleur: (1975, I: 667)
Para
Benjamin, esta auto-representação do poeta, com a qual a descrição do Anjo da
História mantém, aliás, significativas afinidades, era reveladora do preço pago
por Baudelaire para aceder à sensação de modernidade: "a destruição da
aura na experiência vivida do choque" (Benjamin, 2000, III: 390), tido por
inevitável a partir do momento em que a imaginação do artista se aproximava do
presente e, por isso mesmo, se cruzava também com a alienação e a barbárie
decorrentes do "progresso". No entanto, hoje, as mesmas palavras e,
acima delas, a experiência vivencial que traduzem não sugeririam uma situação
tão incomum. Mais ainda do que o tópico do "Angelus Novus", elas produziriam
facilmente um efeito de "déjà vu", porquanto, de muitas maneiras, a
solidão experimentada pelo poeta "moderno", no meio da multidão
urbana, bem como o olhar niilista e não projectivo que lança à sua volta são
agora reconhecíveis em inúmeras descrições do nosso mundo habitual. Em meados
da década de 90, Marc Augé observava que a "surmodernité" era isto
mesmo: a transformação da experiência dos artistas da modernidade num destino
comum e mais prosaico (Augé, 1995: 97-98).
Tal
como é caracterizada por Marc Augé, a vulgarização existencial do que teria
começado por corresponder a um processo de consciencialização circunscrito a
uma elite artística, que, compreensivelmente, por isso mesmo se afastava do
público, pode ajudar-nos a compreender tanto a permanência, ao longo do século
XX, das temáticas desenvolvidas pela Modernidade estética quanto a progressiva
dissipação desse aristocratismo que Baudelaire considerava inerente à
experiência do "belo" (Baudelaire, 1976, II: 686) ou, mais
concretamente, ao reconhecimento da "beleza misteriosa" envolvida na valorização
estética do "transitório", do "fugitivo" e do
"contingente", para recordar os termos com que o poeta francês definiu
a "Modernité" (idem: 695).
Embora
de âmbito muito geral, e com implicações que, tanto do ponto de vista
cronológico como em termos de poética, vão muito para além do âmbito deste
breve estudo, estas considerações, e as sugestões de trabalho que contêm, podem
servir-nos de eixo condutor para uma leitura da poesia portuguesa mais recente e
levar-nos a um melhor entendimento das razões pelas quais esta tem desenvolvido
uma relação de cumplicidade com o leitor que a Modernidade estética não pudera
senão excluir, tal como necessariamente excluía a possibilidade de explorar
qualquer sugestão de realismo ou de sinceridade. Situemo-nos então, para
começar, no século XXI, tanto mais que, assim como os desígnios estéticos do
século XX se fizeram anunciar ainda no século anterior, é de crer que também o
século XXI tenha começado já a desenhar-se perante nós há mais tempo do que os
parcos anos que, num plano estritamente cronológico, lhe dão existência. E,
embora o reconhecimento desta possibilidade não nos confira quaisquer
capacidades especiais de antecipação, tem pelo menos a vantagem de alertar para
a necessidade hermenêutica de não encerrar desde já a década de 90 nas balizas
cronológicas do século XX.
Muito
recentemente, Manuel de Freitas reuniu num volume antológico (ou colectivo - as
duas possibilidades são reconhecidas pelo organizador) uma selecção de poemas
de nove autores contemporâneos. Poetas sem Qualidades é o título do
livro, publicado em 2002, e tanto o título como o Prefácio merecem particular atenção.
"O Tempo dos Puetas" [sic], assim se denomina o prefácio em
causa, apresenta-se como um texto de recorte programático, facto por si só
digno de nota, na medida em que, provavelmente - e mesmo aí num registo
diferente, porque estritamente pessoal - , seria necessário recuar à
intervenção crítica e à poesia de Joaquim Manuel Magalhães nas décadas de 70/80
para encontrar, na poesia portuguesa do último quartel do século XX, o mesmo
grau de explicitação de um programa poético. Construído como uma espécie de defesa
da despoetização da poesia e, nessa medida, como defesa de uma poesia sem
qualidades poéticas - tendo o termo "qualidades" aqui um sentido
essencialmente retórico - o Prefácio de Poetas sem Qualidades desenvolve
uma estratégia argumentativa extremamente interessante.
Um
dos motivos de interesse diz respeito ao modo como Manuel de Freitas recorda
precisamente um tópico fundador da Modernidade estética: a descrição
baudelairiana da perda da auréola pelo poeta no meio da velocidade (e da
ferocidade) urbana. O poeta que perde a aura, para usar um termo de Benjamin, é
aquele que assumidamente mergulha na História e na circunstancialidade do
presente; todavia, se Baudelaire parece identificar-se com este novo estatuto
de poeta, tal não exclui que, como faz notar Matei Calinescu, este autor seja
"o exemplo quase perfeito da alienação do artista em relação à sociedade e
à cultura oficial da sua época" (1999: 60). Na verdade, atribuindo à
poesia uma capacidade de somatização estrutural que lhe permite relacionar-se
com o mundo, fora de qualquer lógica de representação, ·Baudelaire é também
aquele que, em virtude da "cedência de iniciativa às palavras", dá um
primeiro sinal do futuro "desaparecimento elocutório do poeta", para
recordar a célebre formulação de Mallarmé (1945: 366); ou seja, é aquele que
anuncia a emergência do lirismo abstracto que irá constituir uma dominante da
Modernidade.
Ora,
é precisamente reportando-se a Baudelaire e à figura do poeta sem aura - e valorizando
uma das dimensões fundadoras da Modernidade estética, a "do predomínio do
temporal sobre o eterno" (Freitas, 2002: 11) - que Manuel de Freitas toma
posição contra as possíveis remanescências de outra das dimensões dessa mesma
tradição de Modernidade. Sobre os poetas antologiados, diz o antologiador:
Estes poetas não são muita
coisa. Não são, por exemplo, ourives de bairro, artesãos tardo-mallarmeanos,
culturalizadores do poema digestivo, parafraseadores de luxo, limadores das
arestas que a vida deveras tem. Podemos, pelo contrário, encontrar em todos
eles um sentido agónico (discretíssimo, por vezes) e sinais evidentes de perplexidade,
inquietação ou escárnio perante o tempo e o mundo em que escrevem.
Não serão, de facto, poetas muito retóricos (embora à retórica, de todo, não se
possa fugir), mas manifestam força - ou admirável fraqueza - onde
outros apenas conseguem ter forma ou uma estrutura anémica. Comunicam, em
suma (...). (Freitas, 2002: 14)
Ao
mesmo tempo que reitera a relação do poeta com a História e com o presente,
Manuel de Freitas recusa qualquer entendimento aristocrático da poesia, e é
nesse contexto que valoriza uma escrita poética que, embora tematize tópicos da
tradição da Modernidade pós-baudelairiana, designadamente o sentido agónico e a
descrença perante ideias como as de emancipação e de progresso, o faz de acordo
com uma lógica outra, que é a de comunicar uma experiência partilhável pelo
leitor - o que, de facto, só é possível porque essa experiência se
transformou, entretanto, num destino comum e, nessa medida, se tornou
reconhecível para o leitor enquanto mundo habitual.
É uma proposta que, não
sendo inédita, apresenta com clareza programática nova uma consciência que se
foi agudizando no último quartel do século XX e que implicou uma inflexão
efectivamente inovadora na poesia contemporânea. Com efeito, é neste desejo de comunicar,
agora acentuado por Manuel de Freitas como extensivo a um conjunto de
poetas, que radica uma importante renovação do lirismo, no último quartel do
século XX, frequentemente articulável com a valorização de uma relação mais
imediata, ou mais legível, com a experiência e, por consequência, capaz de uma
maior cumplicidade com o leitor. Em Portugal, a exploração deste tipo de opções
poéticas tem sido situada na sequência do fim do regime do Estado Novo (como em
Espanha o tem sido por relação com o fim do Franquismo), mas poderá ser
compreendida de modo mais amplo em relação com o final do período do
pós-guerra. Outro modo de enquadramento desta questão passaria ainda pela
autonomização do conceito de pós-modernismo, conceito de que me limito a
recordar o sentido fundador, a nível do debate literário, ou seja, o que lhe
foi atribuído em 1959-60 por Irving Howe e Harry Levin, ao constatarem que a
literatura da sua época denotava, quando confrontada com obras como as de
Yeats, Eliot, Pound e Joyce, uma menor capacidade de inovação, acentuando,
aliás nostalgicamente, essa diferença. Como é sabido, é justamente essa
diferença que virá a ser apresentada de uma forma positiva nos anos 60 por
críticos como Leslie Fiedler e Susan Sontag, insistindo estes na importância de
um princípio de diversidade como fundamental para a caracterização da
literatura contemporânea, a qual poria em prática "uma pluralidade de
linguagens, modelos e processos, não lado a lado, mas, preferencialmente de
modo sincrético" (cf.
W. Welsch e M. Sandbothe, in Fokkema; Berthens, 1997: 78).
Embora
esta última perspectiva seja susceptível de discussão a vários níveis, por
agora interessa-me apenas sublinhar que a exploração de novas formas de lirismo
e o desenvolvimento de uma poesia da experiência parecem surgir, de facto, em
articulação com a desvalorização da ideia de ruptura como condição de evolução estética,
e também com uma consciência de crise das utopias e com o reconhecimento da erosão
de versões-de-mundo ontologicamente fortes, às quais o recolhimento do
sujeito nos horizontes mais circunscritos da individualização da experiência
poderia constituir uma possível resposta. Por outro lado, a revalorização da
enunciação lírica pode ainda, neste contexto, ser articulada com o facto de estarmos
perante um momento de forte questionamento da condição de autonomia do poema,
tal como fora formulada no contexto da Modernidade estética e, particularmente
pelo Simbolismo e pelo Modernismo e, em certa medida, posteriormente recuperada
pelas neo-vanguardas da década de 60.
De
resto, reportando-se à poesia espanhola posterior a 1975, Miguel d'Ors
reconhece que este tipo de evolução seria mesmo observável na inflexão presente
na obra de autores já reconhecidos, que teriam evoluído no sentido de moderar
"o esteticismo, o formalismo, o hermetismo, o culturalismo, o
irracionalismo e o experimentalismo dos seus inícios, e tenderiam para a
recuperação do eu, dos materiais autobiográficos, dos sentimentos e dos «temas
eternos» e ainda para uma certa simplificação estilística" (d'Ors, 1994:
10-11).1 Trata-se de uma opinião que reflecte uma leitura
razoavelmente consensual. José Luís García Martín propõe mesmo o conceito de
"poesia figurativa", criado por analogia com a expressão
"pintura figurativa" (tomando por referência o binómio
figurativo/abstracto), para caracterizar uma poesia que teria repudiado a
tradição das vanguardas (García Martín, 1992: 211), isto é, teria abdicado da
tradição da ruptura (na acepção em que esta é utilizada por Octávio Paz para
definir a Modernidade estética) em favor da recuperação do sentido, num
processo em que críticos e poetas têm vindo a acentuar uma nova capacidade de
reencontro com o leitor, designadamente com um leitor não necessariamente
especialista ou especializado. 2
Garcia
Martín sublinha a emergência de uma poética do contar, em lugar do cantar
(idem: 213), na qual são valorizados o coloquialismo, o intimismo e a
narratividade. E avança uma relação sugestiva: os poetas das últimas décadas do
século XX estariam nos antípodas da tese mallarmeana segundo a qual os poemas
se fazem com palavras, e não com ideias, fazendo remontar a poesia a algo de
contável, algo que, de algum modo, se situaria também antes do poema, como uma
experiência para qual o poema viesse essencialmente remeter (idem: 214).
Daí decorreria o tom falado, a emergência de personagens e mesmo de um registo
autobiográfico, visíveis na poesia das últimas décadas, embora este último
decorra - é importante dizê-lo - dos termos em que são estabelecidos os
contratos de leitura e não seja necessariamente detectável em função de um
maior ou menor conhecimento que o leitor possa ter da vida do autor.
Note-se
que não é muito diferente a perspectiva de Jean-Michel Maulpoix, quando situa a
renovação do lirismo na poesia francesa nos inícios da década de 1980:
Le lyrisme revalorise aLors La notion «d'expérience
poétique" contre l'affirmation telquelienne de Denis Roche selon laquelle
«toute révolution ne peut être que grammaticale ou syntaxique". Ce retour
du/au lyrisme se situe pour une part dans un déplacement de l'attention de la
page blanche (ou de La table d'écriture) vers le monde. (…)
Il implique l'affirmation renouvelée d'une interdépendance étroite entre
l'écriture et la vie. (Maulpoix, 1998: 120)
Com
efeito, no último quartel do século XX, o lirismo tende a configurar mais
nitidamente o sujeito, e a presença da subjectividade surge não apenas enquanto
rasto de um processo enunciativo entretanto tornado inacessível ao leitor, mas
enquanto presença de um sujeito de enunciação susceptível de ser entendido como
actor ou agente num processo discursivo - e não como produto;, ou resultante,
ou efeito desse processo. Retomando o conceito de "poesia
figurativa", proposto por José Luis García Martín, poderia dizer-se que o
lirismo abstracto dominante na tradição da Modernidade pós-baudelairiana tende
agora a dar lugar à dominância de um lirismo figurativo. Trata-se, na verdade,
de uma revalorização da enunciação lírica (daí as marcas do processo
enunciativo estarem mais presentes no enunciado); por isso se poderia falar de
um registo modal de teor neo-romântico, desde que ressalvando ser este usado
por poetas que, vindos depois da Modernidade, de modo algum pretendem recuperar
a aura do poeta romântico, como o indica o tom menor que habitualmente
preferem.
Embora
a prevalência do lirismo figurativo se manifeste de forma mais coesa nos poetas
surgidos na década de 90, e sobretudo naqueles que começaram a publicar já em
meados dessa década,3 parece inegável ser esta uma linha de evolução
que, na poesia portuguesa, remonta à década de 70 e, muito particularmente, à
intervenção crítica e à poesia então publicada por Joaquim Manuel Magalhães. De
resto, certos traços que, apesar de não abrangerem a generalidade dos poetas
surgidos ao longo da década de 90, são particularmente legíveis na poesia dos
últimos anos - a exploração lírica do fragmento narrativo em articulação com a
valorização da experiência individual e da memória, a articulação do poema como
experiência emocional do mundo, a importância de que se reveste a valorização
do circunstancial, do particular e do privado - não são exactamente novos,
antes adquirindo um grau de recorrência que lhes confere uma maior legibilidade.
Isso mesmo nos é lembrado por Joaquim Manuel Magalhães, ao retomar, já em 2001,
o que escrevera a
propósito da poesia de António Osório e depois reescrevera no poema "Princípio",
de Os Dias, Pequenos Charcos (1981):
(…)
Voltar ao real, sim.
Como o disse
quando outros se
refugiavam
na linguagem da
linguagem.
Nessa altura
mudaram quase todos de
registo.
Mas sempre se
esqueceram de que lhe chamei
desencanto.
E que tudo nos poemas
é suposto
excepto quem os
escreve.
Embora dentro das
palavras
eu o recebesse em
encantamento,
num mundo límpido, à
fraude,
à ferrugem, à fuligem,
à agressão.
Um canto de euforia,
com abatimento
no seu algar; na
cilada do enforcador.
Mas nunca, isso não,
o abstracto da referencialidade
só a si, como
retardados teóricos
ainda hoje manejam.
(...)
(Magalhães, 2001: 69)
Embora
Manuel Gusmão tenha inteiramente razão em encarar com reservas a possibilidade
de uma aproximação linear entre a poesia mais recente e a obra de Joaquim
Manuel Magalhães, lembrando o modo como esta última "associa a «um saber
prosódico muito nítido» uma «vontade de violência»" (in Queirós; Leme, 29
de Março de 2003: 14), que seriam menos visíveis nos poetas mais novos, parece
ser inegável o papel desempenhado por este poeta e crítico no processo de reavaliação
dos caminhos da poesia portuguesa a partir da década de 70. Apesar da
insistência em "que fique claro que não quer [...] ser porta-voz seja do
que for" (1981: 260), Joaquim Manuel Magalhães põe em causa, desde muito
cedo, as dominantes da poesia neo-vanguardista da década de 60 e sintetiza com
grande clareza os novos caminhos que irão determinar o devir da poesia
portuguesa:
(…) ultrapassagem do medo sintáctico do discursivo, do
medo lírico do confessionalismo e da rasteira limitação, em nome de um
ouvidinho musical ou de um olhinho experimental, das explosões declarativas.
Contra a necessária, na altura, rarefacção do sentimento, do enunciado e do
imaginário, surge na poesia mais recente um ímpeto renovado de se contar, de
assumir, por máscara ou directamente, um discurso cuja tensão é menos verbal do
que explicitamente emocional. (Idem: 258)
Valorizar
a tensão emocional do poema, em detrimento de uma tensão essencialmente verbal,
irá implicar uma revalorização da legibilidade do próprio processo de
enunciação lírica no enunciado. Daí que Nuno Júdice caracterize os anos 70 como
aqueles em que "[o] jogo já não é o da sinceridade dentro do fingimento, como
em Pessoa, mas o do fingimento dentro da sinceridade" (1992: 160).
Significativamente, um dos aspectos que se torna mais nítido ao longo da década
de 90 reside no modo como este tipo de poética também trabalha um efeito de não
coincidência entre poesia e poema - sendo que a poesia se constrói também sobre
a relação entre subjectividade e experiência - embora sem deixar de sugerir que
este é efectivamente um efeito discursivo, uma espécie de jogo ficcional.
Algures no espaço incerto da relação entre o poema e uma certa
circunstancialidade reconhecível como tal pelo leitor, a poesia valoriza o
próprio processo da enunciação lírica e pode aproximar-se facilmente de
registos pseudo-autobiográficos, do monólogo e do monólogo dramático. Todavia,
o leitor também é levado a compreender que, como resumiu ainda Joaquim Manuel
Magalhães, "[o] que é pensado é efeito de sinceridade como verosimilhança
(daí a noção de artifício, que tudo em arte tem de ser para ser arte) e nunca
como verdade" (1999: 268). Essa é, de resto, uma das razões pelas quais a
circunstancialidade não pode ser confundida com o contexto de produção do poema.
Ora
o que podemos observar é que a circunstancialidade claramente se acentua em
grande parte da poesia do último quartel do século XX, e muito particularmente
na década de 90, de tal maneira que tem sido frequente falar-se de realismo ou
de novo realismo a seu propósito. Como sublinha Jean-Michel Maulpoix, o lirismo
define-se menos pela expressão de um estremecimento íntimo do que pela errância
nas periferias do sujeito (1998: 125), no entanto, se tal pode implicar formas de
circunstancialidade que actualmente tendem a produzir uma espécie de efeito de
realismo, não implicará necessaria mente qualquer projecção autobiográfica. E
mesmo se o lirismo dos finais do século XX joga recorrentemente com essa
possibilidade, em termos de contrato de leitura, dificilmente o leitor poderá
excluir a hipótese de estar perante um ar tifício discursivo. Outra coisa será
o modo como a poesia orientada para a experiência e, mais precisamente, a
enunciação lírica supõem sempre a configuração de um sujeito na vida e não
simplesmente um sujeito de dicção poética.
Há
uma razoável diversidade de percursos na poesia mais recente - que pode assumir
vertentes mais elegíacas ou mais preocupadas com a denúncia do quotidiano
contemporâneo; mais epifânicas, como acontece com a poesia de Daniel Faria, ou
mais orientadas para a valorização do "gesto mínimo" (Miranda, 1997:
31) e das "ocasiões mínimas" (Mexia, 1999: 53); notoriamente
herdeiras de uma tradição poética com a qual estabelecem diálogos mais ou menos
irónicos, como é perceptível na obra de Ana Luísa Amaral, que também desenvolve
uma espessura discursiva que outros preferem assumidamente evitar. No entanto,
parece inegável que, na sua generalidade, os poetas surgidos na década de 90
são claramente avessos a desenvolver um registo lírico de matriz abstracta, ou
a aceitar uma concepção autotélica da linguagem poética. O movimento geral
desta poesia é o de uma aproximação mais emocional e mais circunstancial ao que
chamamos "mundo".
Num
ensaio relativo aos anos 70/80, em Um Século de Poesia, Fernando Pinto
do Amaral valorizava na poesia desses dois decénios o que definiu como "o
regresso ao sentido":
Dito isto, é bom frisar que a poesia portuguesa das últimas
décadas se foi construindo como um regresso ao sentido. Com
isto quero dizer três coisas: o retorno a processos de escrita apoiados num fio
condutor; isto é,
menos voltados para malabarismos verbais do que para a
simples afirmação de linhas de sentido (o significado
tenta impor-se de novo ao significante); em segundo lugar, a retoma de um lirismo
assumido sem complexos e de uma emocionalidade relativamente explícita, o que
nos dá a ilusão de um discurso mais sentido; e finalmente a exploração
de áreas semânticas ligadas à fisicidade, ao uso vivido de sensações materiais
e directas a
que podemos associar os nossos (muito mais do que cinco) sentidos.
Tudo isto a par da redescoberta de um fôlego discursivo que se serve de uma
sintaxe menos rebuscada e mais fiel, por isso mesmo, ao fluir dos ritmos do
corpo ou da alma: os versos deixam de estar centrados sobre si mesmos e tentam
exprimir seja o que for, recorrendo com frequência a um tom da linguagem oral.
Daí outra mudança, a que se chamaria um retorno à narratividade, um "regresso
às histórias simples" (AI Berto) que alguns poetas vão aproveitando
para se reaproximarem do real. (Amaral, 1988: 161)
Se
pensarmos nos muitos efeitos de rarefacção implicados neste regresso -
rarefacção do sentido e da experiência dos sentidos através da tematização de
um mundo evanescente e de contornos pouco definidos, rarefacção do discurso,
que facilmente se suspende num estreito momento narrativo, distância reflexiva
inscrita pela ironia e por uma certa derisão, deveremos reconhecer que as novas
formas de lirismo não pretendem ignorar nem as problemáticas nem as temáticas
da Modernidade, embora procurem reequacioná-las de um modo discursivamente diferente
e sobretudo em função de outro tipo de contratos de leitura, pelos quais se
reaproximam do leitor (e de um leitor não necessariamente erudito, já que uma das
características da poesia mais recente passa pela existência de processos de
sobrecodificação que permitem explorar vários níveis de leitura).
*
Limitei-me
a observar algumas tendências que me parecem particularmente representativas na
poesia contemporânea, sem me deter nas especificidades dos percursos poéticos
dos diferentes autores que lhes dão forma.4 O meu objectivo
primordial era o de mostrar que o retomar de uma poética transitiva, de modos
diferentes por poetas por vezes tão diferentes entre si, radica num quadro de
mudança, em processo desde os anos 70 e particularmente visível nos anos 90, no
qual a opção pela enunciação lírica parece deter agora a função que Mallarmé atribuía
à sintaxe: a de ser uma (a) garantia. E porquê? Em primeiro lugar, porque as versões-de-mundo
sobre as quais esta poesia trabalha não deixariam grande margem para outras
estratégias que não a do recolhimento nas fronteiras de uma experiência do
mundo assumidamente filtrada pela subjectividade. Christian Prigent dá-nos uma boa
síntese do tipo de mundo com o qual a poesia contemporânea se confronta, e ao qual
procura contrapor-se enquanto forma outra de discurso e de representação:
Quelles sont les formes de représentation du monde qui affluent
désormais devant nous: la fugacité du spectaculaire, la précipitation cynique
ou frivole qui fait s‘evanouir le réel dans le
bric-à-brac enjoué de la trash-TV ou dans la tautologie obscene des
reality-shows.
Quelle que soit notre soumission désabusée au charme de ces
représentations, quelle que soit notre volonté de nous y asservir, nous savons
bien que tout cela est faux, que ça n'est que du toc, un théâtre d'ombres qui
n'épuisent en rien notre sensation du réel et ne nous en donnent aucune
intelligence que celle d'une mythologie pour nouveaux primitifs. (...)
Et les temps que nous y vivons ne s'alignent jamais comme naus le montrent
les scenarios chromos qui sont censés nous en donner symboliquement la
sensation. (Prigent, 1995: 21 -22)
Em segundo lugar, porque este reconhecimento de que toda a
realidade, mesmo nas suas representações mais comuns, tende a ocultar o real é
precisamente o que permite a possibilidade do estabelecimento de um contrato de
leitura de tipo realista, não de acordo com uma lógica positivista,
naturalmente, mas no estrito sentido de se constituir sobre a pressuposição do
reconhecimento, por parte do leitor, do seu mundo habitual. Se pensarmos neste
termos, não nos é difícil compreender que a revalorização da enunciação lírica
sob uma perspectiva figurativa permite refazer, em termos mais imediatos, uma relação
entre poesia e comunicação. Ao desenvolver novas formas de cumplicidade
discursiva com o leitor, e com o mundo do leitor, a poesia continua, assim, a
assumir a mesma capacidade de resistência enquanto forma que Adorno observa na
arte da Modernidade. Mas, num mundo onde a exploração da intransitividade dos
discursos se tornou tão quotidiana quanto insuportável, a forma procurada é
necessariamente outra, e a questão essencial parece ser, agora, a de inventar
uma linguagem verdadeiramente "limpa". E comunicante.
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Prigent, Christian, À Quoi Bon Encore des Poètes?, Paris,
P.O.L., 1996.
Queirós, Luís Miguel; Leme, Carlos Câmara, "Uma nova
geração de poetas portugueses", Público, supl. Mil Folhas, 29
de Março de 2003.
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1. Tradução minha.
2. É uma posição que, no
contexto português, tem sido claramente defendida por Joaquim Manuel Magalhães.
Veja-se, por exemplo, o seguinte excerto do poema "Sangramento"
(Magalhães, 2001: 21):
(…)
Melhor seria que não me lessem nunca
os que por costume lêem poesia.
Muito além deles conseguir falar
ao que chega a casa e prefere o álcool,
a música de acaso, a sombra de alguém
com o silêncio das situações ajustadas.
Não ser lido por quem lê. Somente
pelos que procuram qualquer coisa
rugosa e rápida a caminho de uma revista
onde fotografaram todo o ludíbrio da felicidade.
Que um poema meu lhes pudesse entregar,
ademais da morte,
um alívio igual ao de atirar os sapatos
que tanto apertam os pés desencaminhados.
(...)
3. Num artigo recente, assinado
por Luís Miguel Queirós e Carlos Câmara Leme (Público , suplemento MilFolhas, 29 de março de 2003), procurava-se testar a "hipótese de
estarmos a assistir, sensivelmente desde meados dos anos 90, ao aparecimento de
um conjunto de poetas que, com tudo o que os distingue uns dos outros,
corporizam uma geração, no sentido forte do termo". Significativamente, a quase
totalidade dos poetas referenciados tinha nascido depois de 1965, tendo, na generalidade
dos casos, começado a publicar apenas na segunda metade da década.
4. Tal não exclui, no entanto,
a valorização das particularidades desses percursos, alguns dos quais procurei anteriormente
descrever em "Anos 90", in Maria de Fátima Marinho e Óscar Lopes
(org.), História da Literatura Portuguesa, vol. 7, Lisboa, Alfa, 2002.
http://www.relampago.pt/
RELÂMPAGO N.º 12. 4|2003
ARTES POÉTICAS
NOVA POESIA PORTUGUESA
ENSAIO
NOVA POESIA PORTUGUESA
António Guerreiro – Alguns aspectos da poesia contemporânea
Fernando Pinto do Amaral – A porta escura da poesia
Gastão Cruz – “Nova poesia” e “poesia nova”
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