sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Psicanálise: um século de atraso


Por Mario Bunge
Publicado no Cien Ideas
A psicanálise nasceu à luz do ano 1900, com a publicação de A Interpretação dos Sonhos, de Sigmund Freud. Ernest Jones, seu fiel discípulo e principal biógrafo inglês, nos conta que este livro, que Freud sempre considerou sua obra-prima, foi reeditada oito vezes em sua vida. Ele afirma que “não houve nenhuma mudança fundamental, nem havia qualquer necessidade para fazê-la”.
Tal imutabilidade é suficiente para levantar a suspeita de qualquer mente crítica. Por que não foi necessário modificar nada essencial em uma doutrina psicológica no decurso de três décadas? Será que é porque não houve investigação psicanalítica dos sonhos? Ou porque o primeiro laboratório de estudos científicos dos sonhos foi fundado apenas em 1963, na Universidade de Stanford, e sem a participação de psicanalistas? E se assim for, será que a psicanálise não seria mais literatura fantástica do que ciência?
Este não é o lugar adequado para fazer uma investigação detalhada da teoria e nem da terapia freudiana: esta tarefa já foi feita por dezenas de psicólogos e psiquiatras científicos, àqueles que não pregam em templos psicanalíticos que são certas faculdades de psicologia latino-americanas. Vou resumir apenas uma dúzia de resultados das análises de alguns dos mitos mais populares inventados por Freud. Aqui estão eles:
1. Inferioridade intelectual e moral da mulher, inveja do pênis, complexo de castração, orgasmo vaginal e normalidade do masoquismo feminino.
Puros contos. Não há dados clínicos e nem experimentais que os apoiam. A única coisa que há são efeitos psicológicos da discriminação contra a mulher na sociedade atual.
Mas isto está desaparecendo a medida que, contrariamente ao notório machismo de Freud, reconhecemos a paridade dos sexos.
2. Todo sonho possui conteúdo sexual, já manifestado e latente.
Incomprovável, já que, se em um sonho não aparecer nada sexual, o analista “interpretará” algo no sonho como um símbolo sexual. Mas outro analista o “interpretará” de maneira diferente. Igual aos velhos almanaques dos sonhos, os psicanalistas não apresentam evidências de suas interpretações; mas, ao contrário deles, os psicanalistas não propõem regras explícitas que sirvam, por exemplo, para jogar em apostas.
3. Complexo de Édipo e de Electra, e repressão dos mesmos.
Não há dados confiáveis, nem clínicos e antropológicos, que indiquem a existência de tais complexos. Enquanto que a hipótese de repressão apenas serve para proteger a hipótese anterior: quanto mais enfaticamente negar ódio ao meu pai, mais forte estarei confirmando o ódio. Isto é como dizer que o campo gravitacional é muito mais intenso quanto menos acelera os corpos em queda.
4. Todas as neuroses são causadas por frustrações sexuais, ou por episódios infantis relacionados com o sexo (p. ex., abuso sexual e ameaça de castração).
Pura fantasia. A frustração sexual causa stress, não neuroses (que, aliás, não foram bem definidas por Freud). Não foi provado que os abusos sexuais sofridos durante a infância deixam marcas mais profundas do que privações, espancamentos, humilhações ou orfandades. Tampouco é plausível que todo esquecimento resulte da censura por parte do fantasmagórico superego. Se esquece o que não se reforça. O que se provou é que a chamada técnica de “recuperação” (implantação) de memórias reprimidas foi um negócio lucrativo. Em qualquer caso, os transtornos psicológicos têm múltiplas fontes, e, portanto, múltiplos tratamentos possíveis. Algumas delas (p. ex., micção noturna e fobias) são tratadas com êxito a partir da terapia comportamental. Outras (p. ex., depressão e esquizofrenia) respondem às drogas. E outras mais (p. ex., violência patológica) podem necessitar de intervenção cirúrgica (na tireoide ou amídala cerebral).
5. A violência (guerra, greve, et cetera) é a válvula de escape para a repressão do instinto sexual.
Exceto em casos patológicos, tratáveis com neurocirurgia, a violência tem raízes sociais e culturais: pobreza, expansão econômica, fanatismo político ou religioso, et cetera. Por ter causas sociais, a violência coletiva tem remédios sociais. Por exemplo, a delinquência diminui com a ocupação.
6. Sexualidade infantil.
Mito. De fato, a sexualidade reside no cérebro, não em órgãos genitais. Sem o hipotálamo e os hormônios que este sintetiza (oxitocina e vasopressina) não haveria nenhum desejo ou prazer sexual. E o cérebro infantil não tem a maturidade fisiológica necessária para sentir prazer sexual. Para entender a sexualidade é necessário realizar investigações psiconeuroendocrinológicas e antropológicas, ao invés de fantasiar-se incontrolavelmente.
7. O tipo de personalidade é efeito do modo de aprendizagem do controle do esfíncter.
Falso. A investigação tem mostrado a inexistência desta correlação: as personalidades “oral” e “anal” são produtos das fantasias descontroladas de Freud. Existem muitos tipos de personalidade, e todas são produtos do genoma, do ambiente e do próprio esforço. Além disso, longe de ser inalterável, a personalidade pode ser transformada radicalmente por doenças cerebrais, acidentes vasculares cerebrais, drogas e reaprendizagem.
8. Os atos falhos (lapsos de linguagem) revelam desejos reprimidos.
Apenas em alguns casos, e que são poucos. A maioria das transposições de palavras são erros inocentes. Para provocá-las deliberadamente se armam de trava-línguas.
Além disso, alguns indivíduos são mais propensos do que outros a cometê-los.
9. O superego reprime todos os desejos e recordações vergonhosas que se armazenam no inconsciente. O analista descobre com o método de livre associação.
Os experimentos mais notáveis sobre o tema, incluindo da famosa pesquisadora Elizabeth Loftus (que não é psicanalista), não demonstraram a existência de repressão. E a experiência clínica mostra que não existe livre associação, uma vez que o analista transmite ao seu cliente as suas próprias hipóteses e expectativas. A medida que se aprende o jargão freudiano, o cliente “confirma” o que analista espera dele.
10. O ser humano é basicamente irracional: está dominado por seu inconsciente.
O inconsciente freudiano, como o diabo cartesiano, jogaria arbitrariamente com nossas vidas e por trás de nossa consciência. Esta visão pessimista da humanidade não se baseia e nem pode se basear em dados empíricos. O que não significa que alguns processos mentais escapam, de fato, da consciência. Mas Sócrates já argumentara sobre algumas das coisas que não estamos conscientes. E o tratado O Inconsciente, de Eduard von Hartmann, apareceu quando Freud tinha quatorze anos, e foi um best-seller em alemão e francês durante uma geração. (Eu o herdei de meu tio Carlos Octavio, que por sua vez pode ter herdado de seu pai.) Em qualquer caso, se é verdade que muitas vezes temos impulsos irracionais, também é verdade que, às vezes, conseguimos controlá-los. Por isso, construímos mecanismos de educação e controle social. E para isso, existem aqueles que fazem a verdadeira ciência ou técnica: para ascender do irracional para o racional.
Em resumo, as fantasias psicanalíticas são de duas classes: as incomprováveis e as comprováveis. As primeiras não são científicas. E as segundas são de duas classes: as que foram testadas e as que não foram investigadas cientificamente. Todas as fantasias do primeiro grupo foram falseadas. E, evidentemente, as do segundo grupo continuam no limbo.
O que resta de um século de psicanálise? Nada além de fantasia descontrolada. Os psicanalistas não fazem experimentos e nem usam estatísticas de seus tratamentos. Além disso, ignoram por princípio as descobertas da psicobiologia e da psiquiatria biológica. Sua psicologia é de cadeira e sofá, porque são prisioneiros do mito primitivo da alma imaterial que não pode ser captada por meios materiais, tais como a ressonância magnética funcional e outros métodos de visualização de processos mentais.
A psicanálise é a teoria das que não têm teorias científicas mentais ou culturais. E é um curandeirismo irresponsável que explora a credulidade. Como disse Sir Peter Medawar, Prêmio Nobel de Medicina, a psicanálise é “um estupendo embuste intelectual”. Nenhum outro embuste do século passado conseguiu deixar essa marca na cultura popular.
O êxito comercial da psicanálise se explica porque (a) não requer conhecimentos prévios; (b) não exige rigor conceitual ou empírico; (c) pretende explicar tudo com um punhado de princípios: desde neuroses a rebeldia adolescente à religião e guerra; (d) é um substituto da religião; (e) preenche lacunas deixadas até recentemente pela psicologia científica, em particular a sexualidade, as emoções e os sonhos; (f) se orgulha de curas inexistentes; e (g) segundo o próprio Freud, os psicanalistas fazem o favor as seus clientes em cobrar a consulta: não fazem trabalho social.
Mas o êxito comercial e a penetração da cultura de massas não são os mesmos do triunfo científico. Cem anos de fantasias psicanalíticas não produziram resultados equivalentes a uma semana de pesquisas no laboratório de neurociência cognitiva.
Além disso, hoje contamos com a psiconeuroendocrinoimunofarmacologia. Abreviemos para PNEIF. Esta sigla designa-se à ciência aplicada que busca fármacos que prometem reparar os transtornos do sistema neuroendocrinoinmune que se sentem como transtornos mentais, tais como a dor e o pânico, a confusão e a amnésia, a alucinação e a depressão.
O caso da PNEIF é um dos poucos onde se conhece a data exata do nascimento de uma ciência: 1955. Naquele ano, foi descoberto o primeiro fármaco neuroléptico para o tratamento de uma doença mental: a depressão. Antes se conheciam apenas estimulantes, tais como a cafeína, a benzedrina e a cocaína; analgésicos, tais como o ópio; e drogas que, como o álcool e o tabaco, a princípio estimulam e, em seguida, inibem.
A ciência básica correspondente é a psiconeuroendocrinoimunologia, ou PNEI, uma fusão de quatro disciplinas que antes estavam apenas relacionadas. Não foi só no curso das últimas décadas que alertaram que as fronteiras entre distintas ciências do cérebro são em grande parte artificiais, porque cada uma delas estuda uma parte ou aspecto de um único supersistema.
Por exemplo, foi descoberto que o órgão da emoção (o sistema límbico) detém, por vezes, e outras dificulta, as atividades do órgão de conhecimento (o córtex cerebral). Sem motivação, não há aprendizagem; por sua vez, o motivo pode ser emocional, tal como o desejo de agradar ou incomodar alguém. E se a emoção for muito forte, como é o caso do pânico, o raciocínio falha.
Tudo isso tem sido conhecido desde que os seres humanos começar a se interessar por seus processos mentais. O que não sabiam antes é que estes processos são muito bem localizados no cérebro. Por exemplo, um ser humano que tem uma grave lesão no córtex pré-frontal (atrás dos olhos) tem o julgamento moral comprometido. Este é o caso, felizmente muito raro, dos psicopatas.
A PNEIF está na moda porque está abordando e resolvendo uma pilha de enigmas da vida mental, e porque seu uso médico promete curar ou pelo menos aliviar a angústia dos doentes mentais e acabar com o psicoembuste e a psicocurandeiria.
Por exemplo, com uma pílula diária fomos capazes de controlar um esquizofrênico que, por sua vez, deixou sem trabalho tanto bruxo que afirmava que este era é um caso de possessão demoníaca, assim como o psicoterapeuta que assegura que o transtorno é o resultado de um episódio na infância, e que acredita tratar de seu paciente com meras palavras.
A PNEIF é a versão mais recente, rigorosa e eficaz da medicina psicossomática. A psicanálise está tão atrás como o curandeirismo, exceto como superstição popular e como um negócio rentável.
Para comprovar o que eu disse basta perguntar a um farmacêutico que pílulas são prescritas com algum êxito para tratar angústias, obsessões, depressões, esquizofrenias e outros transtornos mentais. E quem quiser saber que fundamento tem tais receitas, deverá consultar as revistas científicas que lidam com a mente e seus distúrbios, assim como as semanais científicas gerais Nature e Science.
Estas publicações estão cheias de novos resultados sobre a psique. Nenhuma delas aceita embustes psicanalíticos. Os psicanalistas usam apenas revistas psicanalíticas: constituem uma seita marginal em relação à comunidade científica. Sua alquimia não transmuta a ignorância em conhecimento, mas transforma mito em ouro.
A popularidade da psicanálise entre os escritores pós-modernos é, em parte, porque não exige conhecimento científico. E, em parte, também porque os pós-modernos, como os filósofos hermenêuticos e os praticantes das “ciências” ocultas, suspeitam que tudo é símbolo de alguma outra coisa. No entanto, até Freud admitiu que, às vezes, um charuto é um charuto.
http://www.universoracionalista.org/psicanalise-um-seculo-de-atraso/
2015-09-22

domingo, 24 de janeiro de 2016

CE N'EST PAS MOI QUI CHANTE











Ce n'est pas moi qui chante
C'est les fleurs que j'ai vues
Ce n'est pas moi qui rit
C'est le vin que j'ai bu
Ce n'est pas moi qui pleure
C'est mon amour perdu

Jacques Prévert, Paroles, 1946
Música: Serge Reggiani
















Poèmes et chansons de Jacques Prévert. Desenho de Serge Bloch, 2015





quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Gloomy Sunday («Domingo Sombrio» ou «Domingo Lúgubre»)

Szomorú Vasárnap száz fehér virággal,
Vártalak, kedvesem, templomi imával,
Álmokat kergető vasárnap délelőtt,
Bánatom hintaja nélküled visszajött.
Azóta szomorú mindig a vasárnap,
Könny csak az italom, kenyerem a bánat...
Szomorú vasárnap.
Utolsó vasárnap, kedvesem, gyere el;
Pap is lesz, koporsó, ravatal, gyászlepel,
Akkor is virág vár, virág és - koporsó,
Virágos fák alatt utam az utolsó.
Nyitva lesz szemem, hogy még egyszer lássalak,
Ne félj a szememtől, holtan is áldalak...
Utolsó vasárnap.
On a sad Sunday with a hundred white flowers,
I was waiting for you, my dear, with a church prayer,
That dream-chasing Sunday morning,
The chariot of my sadness returned without you.
Ever since then, Sundays are always sad,
tears are my drink, and sorrow is my bread...
Sad Sunday.
Last Sunday, my dear, please come along,
There will even be priest, coffin, catafalque, hearse-cloth.
Even then flowers will be awaiting you, flowers and coffin.
Under blossoming (flowering in Hungarian) trees my journey shall be the last.
My eyes will be open, so that I can see you one more time,
Do not be afraid of my eyes as I am blessing you even in my death...
Last Sunday.


Szomóru Vasárnap é a música que abreviou a vida de muitos ouvintes. Traduzida em várias versões, corresponde a Gloomy Sunday na versão inglesa. Rezsõ Seress, compositor e pianista húngaro, deparou-se com a controvérsia e efeitos adversos da sua própria criação.
Segundo reza a história, Rezsõ Seress foi um compositor húngaro que falhou. Falhar também faz parte do processo de criação. Seress viveu a maior parte da sua vida em Budapeste e sonhava tornar-se num compositor famoso. Intransigente e convicto dos seus objetivos, brigava constantemente com a sua namorada. Esta não conseguia aguentar a insegurança de uma vida ambiciosa. Os insucessos vividos pelo compositor e o término da relação do casal fizeram com que, certo domingo, Rezsõ observasse a janela. O céu cobriu-se em tons de cinza e a tempestade revelou os rabiscos do que viria a ser o Domingo Sombrio.
It is autumn and the leaves are falling All loved has died on earth The wind is weeping with sorrowful tears My heart will never hope for a new spring again My tears my sorrows are all in vain People are heartless, greedy and wicked..”
Esta seria a letra original que embalou Seress de forma melancólica em 1933 (traduzida em Inglês). A letra foi reescrita (em húngaro) pelo seu amigo Lázlo Javor que contribuiu para uma melhoria do valor artístico da letra quando traduzida. Seja qual for a língua, os sentimentos de desespero e tristeza são universais.
Gloomy Sunday conta a história de um homem que declara que a única prova de ser devoto ao seu amor (que recusa acreditar nos seus sentimentos) é abreviando a sua vida num domingo sombrio.
Seress contactou a primeira editora para publicar a sua música. Rejeitado. Voltou a tentar outra editora. Aceite. Ficou entusiástico.
Nada fazia antever que, dias depois, surgisse uma sucessão de suicídios com o ressoar da melodia, como se de um último grito se tratasse. Seress, numa tentativa de pedido de reconciliação à sua namorada, verifica que esta se tinha envenenado, transportando consigo uma cópia de Gloomy Sunday. Questionado pelos efeitos da sua música, o músico responde:
Estou no meio deste sucesso mortífero como um homem sendo acusado. Esta fama fatal magoa-me. Chorei todas as decepções do meu coração nesta canção e parece que outros, com o mesmo sentimento que eu, encontraram nela a sua própria dor”.
Segundo o New York Times (1968), pouco depois de completar os seus sessenta e nove anos Seress suicidou-se, saltando de uma janela. A influência da música no aumento do número de suicídios fez com que a sua transmissão fosse proibida pelos chefes da BBC. Nos Estados Unidos, algumas estações de rádio e discotecas adoptaram o mesmo boicote.
Terá a música Gloomy Sunday todo este valor epidémico ou será uma mera coincidência? Comvém não esquecer que em 1930 assiste-se à Grande Depressão. Terá o Domingo sombrio sido abafado pela segunda e terça feira negra em que se verifica um incremento da taxa de suícidios e falência/desespero de acionistas com a queda da Bolsa de Valores? Serão os efeitos de uma recessão económica, elevadas taxas de desemprego, quedas do PIB – próprios da Grande Depressão? Repare-se: um cenário muito próximo do vivido atualmente!
A música em húngaro poderá ser escutada nesta página do Youtube.


© Portishead (Wikicommons: José Goulão).


© Sarah McLachlan (Wikicommons: Stephen Samuel).

Portishead, Sarah Mclachlan, Billie Holiday , Bjork, Emilie Autumn e Sarah Brightman são alguns cantores que homenageiam Seress com as suas versões da atualidade.

Gloomy Sunday
Sunday is gloomy, My hours are slumberless Dearest the shadows I live with are numberless Little white flowers Will never awaken you Not where the black coach of Sorrow has taken you Angels have no thought Of ever returning you Would they be angry If I thought of joining you?

Gloomy Sunday
Gloomy is Sunday, With shadows I spend it all My heart and I Have decided to end it all Soon there’ll be flowers And prayers that are said I know Let them not weep Let them know that I’m glad to go Death is no dream For in death I’m caressin’ you With the last breath of my soul I’ll be blessin’you

Gloomy SundayDreaming, I was only dreaming I wake and I find you asleep In the deep of my heart, dear Darling I hope That my dream never haunted My heart is tellin’ you How much I wanted you Gloomy Sunday


© Billie Holiday (Wikicommons)


Billie Holiday gravou sua versão de “Domingo Sombrio” em 1941:

Sunday is gloomy, my hours are slumberless;
Dearest, the shadows I live with are numberless;
Little white flowers will never awaken you,
Not where the black coach of sorrow has taken you;
Angels have no thought of ever returning you;
Would they be angry if I thought of joining you?
Gloomy Sunday.

Gloomy is Sunday; with shadows I spend it all;
My heart and I have decided to end it all;
Soon there'll be candles and prayers that are sad, I know,
Let them not weep, let them know that I'm glad to go.

Death is no dream, for in death I'm caressing you;
With the last breath of my soul I'll be blessing you.
Gloomy Sunday.

Dreaming, I was only dreaming;
I wake and I find you
Asleep in the deep of my heart, dear.

Darling, I hope that my dream never haunted you;
My heart is telling you how much I wanted you.
Gloomy Sunday.
  

© Bjõrk (Wikicommons: Cristiano Del Riccio).

Domingo Sombrio
O domingo é sombrio/obscuro As minhas horas são despertas (sem sono) Queridas são as inúmeras sombras Com as quais convivo Pequenas flores brancas Nunca te acordarão Nem onde o coche negro Da dor te levou Os anjos não pensam Alguma vez em te devolver Ficariam eles zangados Se pensasse juntar-me a ti?

Domingo sombrio
O domingo é sombrio Com sombras, eu despendi de tudo O meu coração e eu Decidimos acabar com tudo Em breve haverá flores E orações que dizem saber Não as deixem chorar Deixem saber Que estou feliz por partir A morte não é um sonho Na morte eu te acarinho Com o último suspiro da minha alma Eu te abençoarei

Domingo sombrio
Sonhando Eu estava apenas sonhando Acordo e encontro-te a dormir No fundo do meu coração Querida, eu espero Que o meu sonho nunca te assombre O meu coração revela O quanto eu te quis Domingo Sombrio


© Emilie Autumn (Wikicommons: Jan Blok).


© Sarah Brightman (Wikicommons: Sherry Main).


Este foi o som da morte. Pelo menos para a BBC

Nos anos trinta, um pianista húngaro compôs uma canção sobre amor e morte. A partir daí, vários suicídios estiveram associados à obra, levando a BBC a bani-la dos ecrãs até 2002.

Lá, sol, lá, sol, sol, fá, mi. “Sombrio é o domingo, gasto-o todo com sombras. O meu coração e eu decidimos acabar com tudo isso”. 
Estes são os primeiros acordes da música composta em 1933 pelo pianista húngaro Rezso Seress e fala sobre o desgosto de um homem abandonado pela mulher que ama e que pondera matar-se. Uma história triste, com certeza, mas sabia que a BBC a proibiu por 61 anos porque provocaria suicídios em massa?

Tudo começou com uma partitura composta por Rezso Seress chamadaVége a Világnak, que se traduz para português como “o mundo acabou-se”, conta o El País. Era uma canção demasiado forte, por isso a letra foi repensada: a melodia passou a acompanhar um poema de Lászlo Jávor chamado Szomorú Vsárnap, isto é, “domingo sombrio”. Foi esta a versão que veio a público em 1935, com a voz de Pal Kalmar a cantar“num triste domingo com centenas de flores brancas, eu estava à tua espera, minha querida, com uma oração”.
Podia ser uma música melancólica, mas tornou-se mais do que isso no ano seguinte ao lançamento, quando a Time noticiou uma onda de suicídios na Hungria relacionados com “Gloomy Sunday”. Começou com um sapateiro, Joseph Keller, que a polícia teria encontrado morto junto a um bilhete onde tinha escrito alguns versos daquela canção. Depois, no rio Danúbio, vários corpos teriam sido vistos a boiar com a partitura da música nas mãos. E dois outros suicídios, perpetrados com arma de fogo, também estiveram associados a “Gloomy Sunday”.
Ainda na década de trinta, a imprensa norte-americana deu conta que a onda de suicídios já tinha chegado aos Estados Unidos. Nesta altura, a canção já era conhecida como “canção húngara do suicídio”, mas tornou-se mais famosa quando a estrela do jazz Billie Holiday a cantou. A partir daí, 19 suicídios teriam acontecido depois de as vítimas terem ouvido “Gloomy Sunday”. A BBC decidiu, então, tomar medidas extremas: a “canção húngara do suicídio” passou a ser proibida na programação. A censura começou em 1941 e esteve em vigor até 2002.
O mistério prosseguiu: uns acreditavam piamente que aquelas mortes tinham sido provocadas pela canção de Rezso Seress, que em 1968 se suicidou enforcando-se com um arame, depois de ter tentado o suicídio atirando-se de uma janela. Nesse ano, o cantor escolhido para interpretar “Gloomy Sunday” – na altura considerado o Rei do Tango – perdeu a voz depois de uma operação à garganta. Ainda assim, muitos continuavam céticos sobre a relação entre uma e outra coisa.
Quarenta anos depois de o criador da canção ter morrido, dois investigadores lançaram um artigo sobre o assunto na Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos. Nele escreveram que não descobriram uma relação de causa-consequência entre a audição da música e a tendência para o suicídio, nem conseguiram dados suficientes para averiguar se tinha havido um aumento no número de suicídios nos anos 30. Mas fazem uma ressalva: caso o número de pessoas que se mataram com as próprias mãos tenha aumentado nesse período, era possível que tal se tivesse devido ao panorama que a Europa vivia naquele momento – com a ascensão do nazismo. 
Ao longo da História, nem só o heavy metal esteve relacionado com uma suposta tendência para o suicídio: foi o caso de Efeito Werther, uma obra de Johann Wolfgang von Goethe, que terá causado uma onda de mortes no século XVIII. Mas os especialistas sublinham que o poder da música pode fazer-se sentir, não porque esta tem uma natureza fantasmagórica, mas antes porque pode haver uma queda para comportamentos suicidas nas pessoas que escutam a canção. 
http://observador.pt/2015/10/30/som-da-morte-pelo-menos-bbc/



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► "A depressão contada num poema do século XVI", Vício da poesia, 2016-04-09.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

NOITES DE POESIA

Beber um copo de vinho e ouvir poesia – uma nova forma de sair à noite

A moda começou no Porto mas em Lisboa também já se pode sair à noite para ir ouvir poesia. São cada vez mais os bares que oferecem esta nova forma de saborear a vida noturna da cidade.
As noites de poesia no bar Irreal, organizadas pelo poeta e editor Nuno Moura, têm sempre convidados para as leituras.
MIGUEL SOARES/OBSERVADOR
Se para si o sinónimo de uma saída à noite cultural é ir ouvir fado numa tasca, está a perder um dos fenómenos emergentes mais instigantes da vida noturna das cidades: as noites de poesia.
Pior: se pensa que a poesia é uma coisa chata dita por gente demasiado monótona ou demasiado exaltada, é porque ainda não descobriu como ela pode ser divertida, comovente, e que as suas melodias escondidas são o melhor acompanhamento que há para um copo de vinho tinto.
No Porto, as noites de poesia já se fazem há mais de 20 anos e já têm os seus lugares icónicos como o Pinguim, o Piolho ou as Quintas de Leitura no Teatro do Campo Alegre. Em Lisboa, começaram no bar do teatro A Barraca, animadas pelo poeta Miguel Martins, mas nos últimos dois anos têm nascido como cogumelos. Neste momento há pelo menos sete noites de poesia espalhadas pela capital, uma para cada dia da semana. Nada de pretensioso: um bar, boa poesia, bom vinho, às vezes musica a acompanhar. Vale a pena percorrer estas capelinhas onde nasce uma nova forma de “estar na noite”para gente de todas as idades.

Bar do teatro A Barraca (Santos)

Ao poeta Miguel Martins e ao bar do teatro A Barraca devemos o início deste movimento das noites de poesia em Lisboa. Ali, todas as quintas-feiras, pelas 22h00, há uma sessão de leituras de poesia: é a Poesia às Quintas. Miguel Martins é o anfitrião mas há sempre um convidado e, por vezes, um músico. Aqui a poesia de culto é a portuguesa (como se compreende) mas podem ouvir-se líricas de outras línguas. Desde poetas mainstream aos clássicos, dos rebeldes às estrelas pop/rock.
Quintas de poesia do bar A Barraca. Fotografia retirada do Facebook Bar A Barraca

Povo (Cais do Sodré)

A semana no Cais do Sodré não começa sem uma noite de poesia. Todas as segundas-feiras às 22h00, mais coisa menos coisa, há uma sessão temática de poesia. As noites que ganharam o nome de Poetas do Povo são organizadas pelo músico Alex Cortez (ex-Rádio Macau) e têm como anfitrião o jornalista Nuno Miguel Guedes. Acontecem há mais de dois anos, passam por lá famosos e desconhecidos, e há espaço para todo o tipo de poesia a acompanhar com bons vinhos e bons queijos. Vá cedo porque a casa enche, e prepare a garganta, se quiser — estas noites de poesia têm uma segunda parte de “microfone aberto” onde cada um pode ir ler alguns poemas da sua autoria, ou simplesmente algum poeta de que goste. Na próxima segunda-feira, dia 21 de dezembro, vai haver poesia de Leonard Cohen. Podemos pedir mais?

Manuel João Vieira foi um dos convidados recentes para ler poesia no Povo.
Fotografia retirada do Facebook Poetas do Povo

Sagrada Família (Alfama)

As sessões de poesia na Sagrada Família começaram quando este espaço estava na avenida Duque de Loulé e continuaram quando se mudou para a Rua dos Remédios, em Alfama. A conduzir estas noites por onde passam sobretudo poetas portugueses, como Mário Henrique Leiria, Cesariny e Alexandre O’Neill, está o músico e poeta Tiago Gomes. Estasspoken words acontecem duas vezes por mês, sempre à terça-feira. A partir de janeiro passam a acontecer às quartas e ganham o nome de “Quartas da Palavra”. Na Sagrada Família também se pode jantar ao som de poesia, pelas 21h00.

Tiago Gomes, o poeta das palavras ditas na Sagrada Família. DR

Pratinho Feio (Bairro Alto)

Tiago Gomes assegura também as novas noites de poesia no Bairro Alto. Acontecem uma vez por mês no restaurante Pratinho Feio, pelas 21.30. Assim, tal como na Sagrada Família, pode jantar a ouvir poesia. Aqui faz-se cozinha portuguesa, confecionada de forma criativa. Às palavras dos poetas junta-se a música.

Irreal (Poço dos Negros)

Descendo a Calçada do Combro e entrando no Poço dos Negros vai ter ao Irreal, um bar muito palpável. Pequeno, charmoso, parece feito à medida para sessões de poesia ao fim da tarde. O poeta e editor Nuno Moura, que parece ter nascido para ler poesia e fazer do verbo carne, movimento e dança, costuma ter sempre um convidado. Na passada quinta-feira houve poesia acompanhada por Carlos Paredes tocado em cravo por Joana Bagulho. As sessões com Nuno Moura & guestsacontecem duas vezes por mês, sempre às quintas. O poeta António Poppe assegura a poesia duas quartas-feiras por mês. O espaço é pequeno e tem um público fidelizado, por isso vá cedo para saborear um vinho, uma cerveja e arranjar uma cadeira.
Joana Bagulho a tocar cravo numa das sessões de poesia do bar Irreal.
Foto: MIGUEL SOARES/OBSERVADOR

Primeiro Andar (Portas de Santo Antão)

A arca de Babel abre-se uma vez por mês no bar Primeiro Andar, no edifício do Ateneu Comercial, nas Portas de Santo Antão. Chama-seBabel’s Curse-poetry Sessions e é organizada pelo jovem poeta Vasco Macedo. Vasco é do Porto, cresceu a ir às sessões do Piolho e do Pinguim e quis fazer as noites de poesia mais marginais de Lisboa. Começou com as “Terças da Poesia Clandestina” no bar da Universidade Nova de Lisboa. Agora tem o Babel’s Curse que acontece uma vez por mês. Estas noites são sempre dedicadas à poesia de uma das línguas do mundo e têm um anfitrião convidado. O próximo curso é no dia 30 de dezembro e vai ouvir-se poesia cubana do século XX. Apesar do nome, não espere encontrar aqui uma “coisa académica”. Sem capas, batinas nem tunas, no Primeiro Andar ouve-se também boa música e pratica-se poesia como valor universal.
As noites de poesia do mundo no Primeiro Andar acontecem uma vez por mês.
Fotografia retirada do Facebook Babel’s Curse Poetry Session


Taberna Galegas (Cais do Sodré)

É um dos mais recentes spots para ouvir poesia: a tasca Galegas (no nº 7 da travessa da Ribeira Nova), acolhe o projeto Galegas 7 da autoria do escritor Valério Romão e de Marta Raquel Fonseca. Aqui leem-se textos em prosa de poetas e de não poetas. Podem ouvir-se também romancistas, dramaturgos entre outros. Nestas noites “galegas” já se ouviu Sarah Kane, Manuel de Castro, Fernando Assis Pacheco. Cada sessão tem um ou mais convidados para fazer as leituras. Pelas 19h00, duas terças-feiras por mês.

Na  tasca Galegas leem-se textos de poetas e não poetas.
http://observador.pt/2015/12/22/beber-um-copo-vinho-ouvir-poesia-nova-forma-sair-noite/

domingo, 20 de dezembro de 2015

AMAI-LA


Não obstante o reconhecimento do Fado como a expressão da sentimentalidade lusitana, da sua angústia coletiva, foi considerado, inicialmente, como marginal e ligado à prostituição, principalmente durante a Primeira República, com referências explícitas à fadista Severa. Nascido nos bairros mais pobres da Lisboa do século XIX, entre os escravos e criados, marinheiros e operários, marialvas e vadios, dentro e fora dos prostíbulos dos arredores da capital, o Fado foi ascendendo socialmente, deixando de se identificar com o lado marginal da sociedade e passando a frequentar os salões da burguesia e da aristocracia, até chegar à canção nacional, adotada pelo Estado Novo, a partir de 1937. Essa imagem imoral do Fado só terminaria nessa altura, em que também o fadista passou a ser encarado como artista e porta-voz do Fado, símbolo nacional. Esta situação tornou-se mais célere, graças à carreira em ascensão, inclusivamente a nível internacional, de Amália Rodrigues, a qual se converteria, por excelência, não só na mais famosa representante do Fado, como também na cantora nacional de Portugal.

Com Amália, as letras do Fado abandonam a dimensão de narrativa cantada e, progressivamente, os poemas passaram a existir enquanto criação estética, individualizada. Por seu turno, as músicas eram feitas para acompanharem determinados poemas. Exemplo disso foi o compositor francês Alain Oulman, que compôs inúmeros trechos musicais para musicar os poemas de Camões – v. g. Erros meus, má fortuna, amor ardente” – para serem cantados por Amália. No entanto, Amália também cantou muitos poemas feitos propositadamente para si, nomeadamente por Alberto Janes, tendo este abordado, nos seus versos, o tema da saudade, tão característico do idioma fadista, como se exemplifica:


Tenho a janela do meu peito

Aberta para o passado

Todo feito de fadistas e de fado!

Espreita a alma na janela,

Vai o Passado a passar,

Ao ver-se nela, a alma fica a chorar.

 

Ler mais em: O fado e a questão da identidade, Vilma Silvestre. Lisboa, Universidade Aberta, 2015, 2 volumes.

 


 



Em artigo publicado no 
Diário de Notícias de 7 de Outubro de 2009, assinalando os dez anos do falecimento da fadista portuguesa, o poeta e escritor Vasco Graça Moura escreve sobre «um dos aspectos, talvez o menos referido e tratado», do «milagre» de Amália Rodrigues.      


POÉTICA DE AMÁLIA
(…) Em conversa com [o jornalista] Manuel Halpern, do Jornal de Letras, a propósito da poesia de Amália Rodrigues, falei da qualidade da escrita dela, que não tinha tido qualquer espécie de educação formal. Não me ocorreu então que, na sua segunda carta a Vitorino Nemésio, ela assumia a confirmação disso mesmo: «Ai, meu querido professor/Eu nunca fui sua aluna/Não tenho instrução nenhuma,/Como é que posso entender/O que o senhor quis dizer/Sem saber ler nem escrever?» E esse é um dos aspectos, talvez o menos referido e tratado, do milagre de Amália. Nos seus versos, ela soube lançar mão de uma escrita poética intuitiva e certeira, formalmente muito ancorada na tradição da matriz popular, com uma grande fluência, belos achados e, por vezes, algumas agudezas quase maneiristas.  
A chave para entender o fenómeno, na parte em que ele pode ser entendido, creio que está precisamente nessa aliança de gosto apurado, sentido da musicalidade e do ritmo, simplicidade verbal e naturalidade de expressão que Amália soube processar com requintada destreza entre a ingénua frescura da tradição e da poesia do povo (da toada beirã às criações dos letristas populares que cantava) e o trato aturado com a poesia mais elaborada dos escritores que foi incorporando no seu repertório. A influência das oficinas de David Mourão-Ferreira e a de Pedro Homem de Mello nalguns dos seus temas próprios parece-me evidente. Mas as coisas não ficam por aí e há outros aspectos que surpreendem, como, em Flores do Verde Pinho, esta habilíssima utilização de uma forma verbal arcaica: «Ai, flores do verde pinho,/dizei que novas sabedes/da minha alma, cujas sedes/ma perderam no caminho!»
E há momentos de grande eficácia técnica. Recordo os meus dois fados favoritos de que Amália escreveu a letra, Estranha Forma de Vida e Lágrima, o primeiro com a sua intensificação repetitiva pela retoma do primeiro verso de cada quintilha no remate dela, a acentuar a "estranheza" da vida daquele "coração independente", o segundo com a reiteração sincopada da primeira metade de cada verso, como se o próprio avançar do poema fosse depender desse "tactear", desse recomeçar da procura da maneira de dizer para chegar à máxima intensidade lírica, a exprimir a fragilidade com que o ser humano se expõe desamparadamente na paixão. O texto de Lágrima, obra-prima da Amália letrista, poderia ser quase integralmente reduzido a quatro quadras, mas a sua transfiguração dramática deve-se a essa espécie de leixa-pren, de retomar insistente e fraturante do teor de cada verso, reforçando uma dialéctica muito fadista que poderia esquematizar-se cruamente desta maneira: realidade/sonho, sofrimento de amor/disponibilidade para morrer.
Nos poemas não cantados (reporto-me à excelente edição de Versos, organizada em 1997 por Vítor Pavão dos Santos)mantêm-se muitas destas características, a que acresce em geral uma nota de humor e de auto-ironia muito pessoal (por exemplo: «Cá por dentro da cabeça/vazia como eu a tenho/por estranho que pareça/atendendo ao seu tamanho»…). Esse humor surge com frequência nas peças de matriz mais popular e também no pequeno bestiário da autora (gafanhotos, grilo, bicho-de-conta, mosquitos, cabra e vários outros animais aí incidentalmente referidos).
Noutros fados, como Lavava no Rio, Lavava Quando Se Gosta de Alguém, a repetição é utilizada com excelentes efeitos, no primeiro, a recordar a toada das cantigas de amigo e do romanceiro, no segundo, explorando contradições e perplexidades cujo sentido se reforça exactamente pela engenhosa recondução das questões ao mesmo pressuposto inicial («quando se gosta de alguém»). Já em Amor de Mel, Amor de Fel, a sequência qualificativa e modulada do amor sentido entre os seus pólos de contentamento e amargura joga com anáforas, com oposições, com hipérboles, com alusões à relação tonal de fado maior e fado menor e, por esta via, com a ambiguidade entre o sentido de fado (canção) e o de fado (fatum, destino).
Enfim, o que em Amália vive e sente está pensando e recordando, como ela escreve em Depois Disto… desisto, redondilhas que começam assim: «Tantas coisas que já li/Outras tantas que vivi/Fazem de mim o que sou/Ai, se eu tivesse esquecido/Tudo o que tenho vivido/E o coração decorou
Fonte
Artigo publicado no Diário de Notícias de 7 de outubro de 2009.


A biografia do Fado, embora dúbia, constitui motivo de orgulho para o povo português e, desde que começou a ser interpretado como porta-voz da nossa nação, vários têm sido os autores e compositores que honram esta canção nacional, graças às letras de Fado por eles criadas. As tradições podem eventualmente sofrer adaptações e reinvenções para as gerações mais jovens, as quais se encarregam de as transmitir como legado cultural.

Será que o Fado se reinventou entre as várias gerações de uma nação que vivenciou inúmeras vicissitudes sociopolíticas, nos últimos duzentos anos?

Pelo conhecimento que temos da história do Fado, é indubitável que este sofreu um enorme salto qualitativo, estimulado essencialmente pela união desta forma de expressão artística, genuinamente portuguesa, à poesia que os nossos poetas maiores produziam. Como porta-bandeira desta caminhada, encontramos Amália Rodrigues, cujas voz e performance souberam corporizar o espírito nacional, integrando os poetas eruditos. Amália sempre teve ao seu lado os grandes poetas nacionais; ainda na década de 50, interpretou o Fado “Primavera”, com o poema de David Mourão Ferreira. A partir da década de 60, partilhou essa vocação com Alain Oulman. O facto de Amália editar um álbum com poesia camoniana intitulado “Amália Canta Camões” gerou bastante controvérsia, sobretudo na imprensa escrita e até em debates televisivos, provavelmente porque era inusitada esta associação, e porque o público não acede facilmente às mudanças. Em Camões, um dos mais fortes símbolos de identidade da nossa pátria, a presença do fado como destino é mais evidente e constitui, inclusivamente, uma das temáticas da sua poesia lírica. Amália deu voz a um dos sonetos camonianos onde o Fado é o tema abordado: “Com que voz”, numa interpretação reveladora do sentimento que o Fado tradicionalmente expressa, como uma música triste, versando geralmente, uma temática taciturna, nostálgica e fatalista. Efetivamente, o fatum (Destino) era o tema em evidência, na sua aceção etimológica. Logo, a avaliar pelas letras dos fados, percebemos uma mensagem de sofrimento que perpassa essa alma dolorosa e plangente dos fadistas. A capacidade que Amália demonstrava na interpretação dos poemas era notável e conferia-lhe uma excecional densidade dramática, o que fez com que todos os tabus criados em seu redor se dissipassem, levando à criação de uma época ímpar na música ligeira portuguesa. Amália corporizava os sentimentos mais dolentes da alma portuguesa, numa vivência muito subjetiva, o que lhe conferiu o título de musa do Fado.

 

Ler mais em: “O fado e a questão da identidade”, Vilma Silvestre. In: Atas das I Jornadas de Estudos Portugueses [Em linha], Ana Piedade e Paulo Silva. Lisboa, Universidade Aberta, 2021. 185 p. (eUAb. Ciência e Cultura; 12). ISBN 978-972-674-890-8

 

(Última atualização: 2022-10-11)