Não obstante o
reconhecimento do Fado como a expressão da sentimentalidade lusitana, da
sua angústia coletiva, foi considerado, inicialmente, como marginal e ligado à prostituição,
principalmente durante a Primeira República, com referências explícitas à fadista
Severa. Nascido nos bairros mais pobres da Lisboa do século XIX, entre os escravos
e criados, marinheiros e operários, marialvas e vadios, dentro e fora dos prostíbulos
dos arredores da capital, o Fado foi ascendendo socialmente, deixando de se identificar
com o lado marginal da sociedade e passando a frequentar os salões da burguesia
e da aristocracia, até chegar à canção nacional, adotada pelo Estado Novo, a partir
de 1937. Essa imagem imoral do Fado só terminaria nessa altura, em que também o
fadista passou a ser encarado como artista e porta-voz do Fado, símbolo
nacional. Esta situação tornou-se mais célere, graças à carreira em ascensão,
inclusivamente a nível internacional, de Amália Rodrigues, a qual se
converteria, por excelência, não só na mais famosa representante do Fado, como
também na cantora nacional de Portugal.
Com Amália, as letras do
Fado abandonam a dimensão de narrativa cantada e, progressivamente, os poemas
passaram a existir enquanto criação estética, individualizada. Por seu turno,
as músicas eram feitas para acompanharem determinados poemas. Exemplo disso foi
o compositor francês Alain Oulman, que compôs inúmeros trechos musicais para musicar
os poemas de Camões – v. g. “Erros meus,
má fortuna, amor ardente” – para serem
cantados por Amália. No entanto, Amália também cantou muitos poemas feitos propositadamente
para si, nomeadamente por Alberto Janes, tendo este abordado, nos seus versos,
o tema da saudade, tão característico do idioma fadista, como se exemplifica:
Tenho
a janela do meu peito
Aberta
para o passado
Todo
feito de fadistas e de fado!
Espreita
a alma na janela,
Vai
o Passado a passar,
Ao
ver-se nela, a alma fica a chorar.
Ler mais em: O fado e a questão
da identidade, Vilma Silvestre. Lisboa, Universidade Aberta, 2015, 2
volumes.
Em artigo publicado no Diário de Notícias de 7 de Outubro de 2009, assinalando os dez anos do falecimento da fadista portuguesa, o poeta e escritor Vasco Graça Moura escreve sobre «um dos aspectos, talvez o menos referido e tratado», do «milagre» de Amália Rodrigues.
A biografia do Fado,
embora dúbia, constitui motivo de orgulho para o povo português e, desde que
começou a ser interpretado como porta-voz da nossa nação, vários têm sido os
autores e compositores que honram esta canção nacional, graças às letras de
Fado por eles criadas. As tradições podem eventualmente sofrer adaptações e reinvenções
para as gerações mais jovens, as quais se encarregam de as transmitir como
legado cultural.
Será que o Fado se
reinventou entre as várias gerações de uma nação que vivenciou inúmeras
vicissitudes sociopolíticas, nos últimos duzentos anos?
Pelo conhecimento que
temos da história do Fado, é indubitável que este sofreu um enorme salto qualitativo,
estimulado essencialmente pela união desta forma de expressão artística,
genuinamente portuguesa, à poesia que os nossos poetas maiores produziam. Como
porta-bandeira desta caminhada, encontramos Amália Rodrigues, cujas voz
e performance souberam corporizar o
espírito nacional, integrando os poetas eruditos. Amália sempre teve ao seu
lado os grandes poetas nacionais; ainda na década de 50, interpretou o Fado “Primavera”,
com o poema de David Mourão Ferreira. A partir da década de 60, partilhou essa
vocação com Alain Oulman. O facto de Amália editar um álbum com poesia
camoniana intitulado “Amália Canta Camões” gerou bastante controvérsia,
sobretudo na imprensa escrita e até em debates televisivos, provavelmente
porque era inusitada esta associação, e porque o público não acede facilmente
às mudanças. Em Camões, um dos mais fortes símbolos de identidade da nossa
pátria, a presença do fado como destino é mais evidente e constitui,
inclusivamente, uma das temáticas da sua poesia lírica. Amália deu voz a um dos
sonetos camonianos onde o Fado é o tema abordado: “Com que voz”, numa
interpretação reveladora do sentimento que o Fado tradicionalmente expressa, como
uma música triste, versando geralmente, uma temática taciturna, nostálgica e fatalista.
Efetivamente, o fatum (Destino) era o tema em
evidência, na sua aceção etimológica. Logo, a avaliar pelas letras dos fados,
percebemos uma mensagem de sofrimento que perpassa essa alma dolorosa e
plangente dos fadistas. A capacidade que Amália demonstrava na interpretação
dos poemas era notável e conferia-lhe uma excecional densidade dramática, o que
fez com que todos os tabus criados em seu redor se dissipassem, levando à
criação de uma época ímpar na música ligeira portuguesa. Amália corporizava os
sentimentos mais dolentes da alma portuguesa, numa vivência muito subjetiva, o
que lhe conferiu o título de musa do Fado.
Ler mais em: “O fado e a
questão da identidade”, Vilma Silvestre. In: Atas
das I Jornadas de Estudos Portugueses [Em linha], Ana Piedade e
Paulo Silva. Lisboa, Universidade Aberta, 2021. 185 p. (eUAb. Ciência e
Cultura; 12). ISBN 978-972-674-890-8
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