sábado, 25 de maio de 2019

Chico Buarque


CHICO BUARQUE É O GRANDE VENCEDOR DO PRÊMIO CAMÕES 2019

O músico, dramaturgo, escritor e autor brasileiro Chico Buarque de Hollanda é o grande vencedor da 31ª edição do Prêmio Camões. O anúncio foi feito nesta terça-feira, 21 de maio, às 16h, no prédio sede da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, pelos membros do júri composto por seis integrantes após reunião que durou pouco mais de uma hora.

A ata redigida pelos integrantes do júri expressa os motivos que levaram à escolha do autor: “O Júri decidiu, por unanimidade, atribuir o Prémio Camões a CHICO BUARQUE DE HOLLANDA pela qualidade e transversalidade da sua obra, tanto através de gêneros e formas, quanto pela sua contribuição para a formação cultural de diferentes gerações em todos os países onde se fala a língua portuguesa. O Júri reconheceu o valor e o alcance de uma obra multifacetada, repartida entre poesia, drama e romance. O seu trabalho atravessou fronteiras e mantém-se como uma referência fundamental da cultura do mundo contemporâneo”.
Nesta edição 2019, o júri foi formado pelos brasileiros Antonio Carlos Hohlfeldt e Antonio Cicero Correia Lima; pelo moçambicano Nataniel Ngomane; pelos portugueses Clara Rowland e Manuel Frias Martins; e pela angolana Ana Paula Tavares.
O Prêmio Camões foi criado em 1988 por um protocolo Adicional ao Acordo Cultural entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil com o objetivo de eleger anualmente um autor de língua portuguesa que tenha contribuído para o enriquecimento do patrimônio literário e cultural da língua comum. O prêmio busca estreitar os laços culturais entre os vários países lusófonos. Os governos dos dois países conferem ao |Prêmio distinção máxima a um escritor de literatura lusófona, acontecimento de grande relevância política e cultural para as duas partes.
21 de maio de 2019 - os jurados do Prêmio Camões: Manuel Martins (Portugal), Antonio Carlos Hohlfeldt (Brasil), Ana Paula Tavares (Angola), Clara Rowland (Portugal), Nataniel Ngomane (Moçambique) e Antonio Cicero Correia Lima (Brasil).


Comentários dos jurados

O jurado brasileiro Antonio Hohlfeldt – doutor em letras, com pós-doutorado em Jornalismo pela Universidade do Porto – esclareceu que o nome de Chico Buarque de Hollanda foi consensual para os integrantes do júri que se reuniu na tarde desta terça-feira. Segundo ele, a indicação surgiu naturalmente e obteve respaldo de todos. “A diversidade da obra de Chico Buarque em temos de música, romance e dramaturgia é inigualável. Também pesaram na escolha do nome fatores como a difusão e circulação do nome do autor nos países de língua portuguesa”. Antonio Hohlfeldt termina indagando: “Quem não escutou Chico Buarque?” Para o acadêmico, o Prêmio Camões é o principal reconhecimento que um autor de língua portuguesa pode alcançar na carreira. “Consulte uma relação dos escritores já reconhecidos com o Prêmio para entender sua dimensão. Cada um desses autores tem uma importância específica, cada um enriquece a língua portuguesa à sua maneira. Isso se confirma mais uma vez agora com a indicação do Chico Buarque”.
O jurado moçambicano Nataniel Ngomane, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP) afirma que “o Prêmio é importante para a valorização da língua e suas diversas culturas, contemplando autores de diversos países de língua portuguesa. Nomes como Raduan Nassar, Mia Couto e João Cabral de Mello Neto atestam a elevada qualidade desse reconhecimento”.
A portuguesa Clara Rowland, professora associada no Departamento de Estudos Portugueses da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa declara que “a transversalidade de Chico Buarque expande as próprias fronteiras estritamente literárias do Prêmio Camões”.
Para o autor e compositor brasileiro Antonio Cicero – desde 2017, membro da Academia Brasileira de Letras –, “a obra do Chico Buarque de Hollanda é conhecida no Brasil e em Portugal, uma obra de alto nível. Sem dúvida, é um nome que atravessa fronteiras, e a ata da reunião transmite isso”.
Biblioteca Nacional, 2019-05-21



CHICO BUARQUE ENSINOU O QUÊ?

Quando recebi no telemóvel o alerta "Chico Buarque ganha o Prémio Camões" senti-me no direito de comemorar uma vitória: "ganhei eu, caramba, ganhei eu!".
Fui ler a notícia. Os seis membros do júri explicavam a razão desta atribuição do galardão literário pela "contribuição para a formação cultural de diferentes gerações em todos os países onde se fala a língua portuguesa".
E o que é que este português, de 55 anos, que escreve estas linhas, aprendeu com Chico Buarque?
Aos cinco anos de idade o meu corpo saltitava sempre que no rádio grande do meu pai soava "A Banda", a música que, quando passava, diz o verso final do refrão, ia "cantando coisas de amor". Chico Buarque impulsionou-me a dança.
Aos 10 anos de idade percebi como um indivíduo sozinho nada pode contra o cerco violento da indiferença. Bastou-me ouvir a história circular do operário de "Construção", que "morreu na contramão atrapalhando o sábado". Chico Buarque ensinou-me a identificar a injustiça social.
Aos 11 anos de idade percebi a inutilidade da divindade quando o coro masculino MPB4 repetia, em Partido Alto, "Diz que Deus dará/ Não vou duvidar, ô nega/E se Deus não dá?/Como é que vai ficar, ô nega?". Chico Buarque deu-me razões para ser ateu.
Aos 12 anos de idade intui, com os versos de Fado Tropical, como a brutalidade da colonização sangrou a pele dos povos e como as cicatrizes prevalecentes demoram séculos a fechar: "E o rio Amazonas/Que corre Trás-os-montes/E numa pororoca/Desagua no Tejo/Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal/Ainda vai tornar-se um Império Colonial". Chico Buarque ofereceu-me uma identidade, um medo e uma esperança na Lusofonia.
Aos 13 anos de idade percebi, pela letra do pseudónimo Julinho da Adelaide (um autor inventado, usado para ludibriar a censura da ditadura brasileira, que até falsas entrevistas deu aos jornais...), que confiar na polícia pode ser perigoso, como constata Acorda Amor: "Tem gente já no vão de escada/Fazendo confusão, que aflição/São os homens/E eu aqui parado de pijama/Eu não gosto de passar vexame/Chame, chame, chame, chame o ladrão, chame o ladrão". Com Chico Buarque descobri que, às vezes, está tudo certo se se ficar do lado errado.
Aos 14 anos de idade conspirei o sentido da canção O Que Será (À Flor da Pele): "Será, que será?/O que não tem decência nem nunca terá/O que não tem censura nem nunca terá/O que não faz sentido..." Chico Buarque revelou-me o secreto significado da palavra "liberdade".
Aos 15 anos de idade compreendi, ao ouvir Mulheres de Atenas, que a minha mãe, a minha irmã e a minha namorada viviam num mundo pior do que o meu: "Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas/Geram pro seus maridos os novos filhos de Atenas/Elas não têm gosto ou vontade/Nem defeito nem qualidade/Têm medo apenas". Chico Buarque justificou-me o feminismo.
Aos 16 anos de idade espantei-me com o atrevimento de O Meu Amor. "Eu sou sua menina, viu?/E ele é o meu rapaz/Meu corpo é testemunha/Do bem que ele me faz". Chico Buarque fez-me entender como o sexo pode, ou não, fazer um par com a palavra afeto.
Aos 17 anos comovi-me com Geni, a prostituta que salva a cidade mas que a cidade despreza: "Joga pedra na Geni!/Joga bosta na Geni!/Ela é feita pra apanhar!/Ela é boa de cuspir!/Ela dá pra qualquer um/Maldita Geni!". Chico Buarque confrontou-me com a dignidade dos indignos.
Aos 18 anos de idade a história de O Malandro exemplificou-me como é sempre o mexilhão que se lixa: um tipo que foge de um tasco sem pagar a cachaça que bebeu provoca uma crise mundial. Mas, no final das crises, há sempre um bode expiatório: "O garçom vê/Um malandro/Sai gritando/Pega ladrão/E o malandro/Autuado/É julgado e condenado culpado/Pela situação". Chico Buarque antecipou-me a globalização e fez de mim um comunista.
Aqueles anos foram os tempos do meu caminho até à chegada à idade adulta, uma época anterior aos romances que Chico Buarque escreveu e que completam, com a verdadeira poesia de muitas das suas canções, um currículo mais do que suficiente para a atribuição do mais importante prémio literário em Língua Portuguesa.
Aqueles anos foram os tempos que moldaram o meu carácter.
Aqueles foram os tempos que moldaram o carácter de tantos outros e de tantas outras que, como eu, cresceram a ouvir estas canções mas que entenderam nelas tantas coisas que eu não entendi, que compreenderam nelas tantas coisas que eu não percebi, que tiraram conclusões destes textos muito diferentes das que eu tirei.
Mas, tenho a certeza, apesar de pensarem e sentirem de maneiras tão diferentes da minha, ontem, milhões de vós, ao saberem da notícia do Prémio Camões atribuído a Chico Buarque, tiveram o mesmo impulso que eu e comemoram: "ganhei eu, caramba, ganhei eu!".
Pedro Tadeu, Diário de Notícias, 2019-05-22





“Chico Buarque” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 25-05-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/05/chico-buarque.html


quinta-feira, 25 de abril de 2019

25 DE ABRIL, VEZES MAIS DE MIL




Versos de Silvino Figueiredo comemorativos do 25 de Abril, Correio do Douro, 07/04/2000





“25 de Abril, vezes mais de mil” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 25-04-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/04/25-de-abril-vezes-mais-de-mil.html


sábado, 6 de abril de 2019

Me so' mbriacato, Alessandro Mannarino



ME SO' MBRIACATO

Quando io sono solo con te sogno
immerso in una tazza di tè
ma che caldo qua dentro
ma che bello il momento.
Quando sono con te
non so più chi sono perché
crolla il pavimento e mi sciolgo di dentro.
Quando penso a te mi sento denso perché
io ti tengo qua dentro di me
io ti tengo qua dentro con me.

Me so' mbriacato de na donna
quanto è bono l'odore della gonna
quanto è bono l'odore der mare
ce vado de notte a cercà le parole
quanto è bono l'odore der vento
dentro lo sento dentro lo sento
quanto è bono l'odore dell’ombra
quanno c’è er sole che sotto rimbomba
come rimbomba l'odore dell’ombra come rimbomba come rimbomba
e come parte e come ritorna
come ritorna l'odore dell’onda.

Quando io sono solo con te
io cammino meglio perché
la mia schiena è più dritta
la mia schiena è più dritta.
Quando sono con te
io mangio meglio perché
non mi devo sfamare
non mi devo saziare con te.

Me so' mbriacato de na donna
quanto è bono l'odore della gonna
quanto è bono l'odore der mare
ce vado de notte a cercà le parole
quanto è bono l'odore der vento
dentro lo sento dentro lo sento
quanto è bono l'odore dell’ombra
quanno c’è er sole che sotto rimbomba
come rimbomba l'odore dell’ombra
come rimbomba come rimbomba
e come parte e come ritorna
come ritorna l'odore dell’onda.

Alessandro Mannarino, “Me so' mbriacato” in Bar della rabbia, 2009
ME SO' MBRIACATO
Alessandro Mannarino

ESTOU EMBRIAGADO

Quando estou sozinho contigo sonho
imerso numa chávena de chá
mas que calor aqui dentro
mas que belo o momento.
Quando estou contigo
não sei mais quem sou porque
desaba o chão e derreto por dentro.
Quando penso em ti sinto-me denso porque
eu tenho-te aqui dentro de mim
eu tenho-te aqui dentro comigo.

Estou embriagado de uma mulher
como é bom o cheiro da saia
como é bom o cheiro do mar
onde vou de noite procurar as palavras
como é bom o cheiro do vento
dentro o sinto dentro o sinto
como é bom o cheiro da sombra
quando há o sol que por baixo ribomba
como ribomba o cheiro da sombra como ribomba, como ribomba
e como parte e como retorna
como retorna o cheiro da onda.

Quando eu estou sozinho contigo
eu caminho melhor porque
a minha coluna fica mais direita
a minha coluna fica mais direita.
Quando estou contigo
eu como melhor porque
não preciso alimentar-me
não preciso saciar-me contigo.

Estou embriagado de uma mulher
como é bom o cheiro da saia
como é bom o cheiro do mar
onde vou de noite procurar as palavras
como é bom o cheiro do vento
dentro o sinto dentro o sinto
como é bom o cheiro da sombra
quando há o sol que por baixo ribomba
como ribomba o cheiro da sombra
como ribomba, como ribomba
e como parte e como retorna
como retorna o cheiro da onda.

“Me so' mbriacato”, Bar della rabbia, 2009


domingo, 24 de março de 2019

NÉVOA, Fernando Pessoa

Fernando Pessoa, Diário dos Açores, 1930-07-17, p. 1.



O poema de Fernando Pessoa que andou esquecido durante 80 anos


A nova edição da poesia em vida por Fernando Pessoa inclui pela primeira vez o poema “Névoa”, que foi publicado nos Açores em 1930 e que por lá ficou esquecido até que um investigador o descobriu.

Em 1930, Fernando Pessoa publicou num do jornal açoriano um poema até então inédito. “Névoa” apareceu junto a “Minuete Invisível”, que tinha sido apresentado pela primeira vez no primeiro (e único) número da Portugal Futurista, e a um texto de apresentação assinado pelo jornalista Rebelo de Bettencourt. Depois dessa data, o poema não voltou a ser publicado. Caiu no esquecimento, até que um investigador o encontrou, por acaso, mais de 80 anos depois. Agora, entrou finalmente para o corpus pessoano, ao ser incluído no mais recente volume da edição crítica da Imprensa Nacional-Casa da Moeda (INCM).
A única versão que se conhece de “Névoa” foi publicada na página “Letras” do Diário dos Açores, o mais antigo jornal diário do arquipélago, a 17 de julho de 1930, cinco anos antes da morte de Pessoa. O suplemento trazia um texto sobre o poeta, intitulado apenas “Fernando Pessôa”, retirado do livro O Mundo das Imagens: Crónicas, de Rebelo de Bettencourt. O jornalista açoriano, seis anos mais novo do que Pessoa, tinha participado na Portugal Futurista com um texto sobre Santa-Rita Pintor, de quem era amigo. A revista, publicada em 1917, “excedia tudo quanto em audácia e originalidade se tinha até então publicado”, de acordo com o próprio Bettencourt.
Enquanto redator principal da Lisboa Galante, Rebelo Bettencourt tinha defendido, contra Sousa Lopes, que os pintores modernistas deviam ser representados no Museu de Arte Contemporânea. Um ano antes, em 1928, tinha publicado pela editora Ressurgimento o livro de onde foi retirado o excerto usado pelo Diário dos Açores, onde descreveu a obra de Fernando Pessoa, um poeta que tinha “o dom de pensar”, como “fragmentária”. “As suas imagens são ainda pensamentos, e o próprio ritmo dos seus versos é também uma série de ideias – ideias postas em música”, referiu no texto reproduzido pelo diário açoriano, fundado em 1870.
Considerando que a personalidade de Pessoa era “tão complexa ou tão completa” que tinha de se desdobrar em Álvaro de Campos, o jornalista considerou que a obra do poeta estava praticamente esquecida, mas que “o seu espírito original e criador, a subtileza do seu pensamento” não haveriam de “morrer tão cedo”. “Antes estarão sempre, como amparo e guia, ao lado de todos quantos, sentindo na sua inteligência a necessidade quase física de ser uma outra coisa, mais completa e perfeita, nele hão-de sentir o precursor dum grande movimento e a origem duma nova vida”, declarou.

O poema que foi esquecido e descoberto por acaso

Depois da sua publicação no Diário dos Açores, “Névoa” ficou esquecido durante várias décadas, até que o investigador e editor Vasco Rosa o encontrou. Questionado pelo Observador sobre a descoberta, Rosa admitiu já não se lembrar ao certo em que circunstâncias se deparou com o poema, mas que provavelmente terá sido por causa de “qualquer pesquisa que estava a fazer na época, sobre Raul Brandão ou sobre António Dacosta”, dois autores sobre os quais tem vindo a trabalhar.
“Fui folhear anos a fio esse jornal açoriano e tendo encontrado o poema verifiquei no exaustivo inventário pessoano organizado por José Blanco que não estava identificado, e em seguida que não estava em qualquer outro livro, do Fernando Pessoa ou dos heterónimos”, afirmou o investigador, salientando que “a vantagem de se percorrerem exaustivamente publicações periódicas é que se vão encontrando curiosidades variadas, e como a imprensa açoriana é tida como periférica, a ninguém pareceu útil ir ver o que por lá havia”.
Vasco Rosa sugeriu a sua publicação aos editores da Pessoa Plural, Paulo de Medeiros e Jerónimo Pizarro, que estava então a arrancar. Foi assim que, 82 anos depois de ter aparecido nas páginas do Diário dos Açores,que “Névoa” voltou a ser publicado no n.º 1 da revista de Estudos Pessoanos editada pela Brown University, Warwick University e Universidad de los Andes. “Para mim, é sempre muito gratificante passar a outros o que lhes pode ser útil nos seus próprios trabalhos”, afirmou Rosa, que acredita que a “originalidade” do poema se deve “certamente a Armando Côrtes-Rodrigues, o amigo açoriano de Pessoa e um dos elementos de Orpheu”. Côrtes-Rodrigues, que participou nos dois números da revista modernista, terá, presumivelmente, conhecido Rebelo de Bettencourt.
Luiz Fagundes Duarte, responsável pela edição crítica dos poemas publicados em vida por Fernando Pessoa que inclui pela primeira vez “Névoa”, acredita que é “pouco provável” que uma descoberta como a que foi feita por Vasco Rosa se repita. “Pessoa já foi de tal maneira esquadrinhado que qualquer texto assinado por ele, publicado em qualquer algures, dificilmente passaria despercebido”, afirmou, em entrevista ao Observador, admitindo, no entanto, que este poema “em concreto” tinha permanecido “esquecido”. “Por isso, devemos ser cuidadosos e admitir, sempre, que o corpus pessoano, mesmo o publicado em vida, pode não estar fechado.”
O poema, na íntegra:
“A névoa involve a montanha,
Húmido, um frio desceu.
O que é esta mágoa estranha
Que o coração me prendeu?
Parece ser a tristeza
De alguém de quem sou actor,
Com fantasiada viveza
Tornada já minha dor.
Mas, não sei porquê, me dói
Qual se fora eu a ilusão;
E há névoa em tudo o que foi
E frio em meu coração.”

A primeira edição crítica dos poemas publicados em vida e da Mensagem

Desde 1988, quando foi criado o grupo de trabalho responsável pelas edições críticas da obra de Fernando Pessoa, a INCM já publicou mais de duas dezenas de livros. Desta lista não constava, no entanto, a Mensagem. A primeira edição crítica da obra foi apenas publicada pela INCM no passado mês de fevereiro, juntamente com os outros poemas que o poeta deu a conhecer em vida. A edição é de Luiz Fagundes Duarte, que coordena a coleção das obras completas de Vitorino Nemésio, publicadas pela mesma editora em parceria com a açoriana Companhia das Ilhas.
Fernando Pessoa era “um rapaz planeado” e “muito produtivo”, mas durante a sua vida só publicou 129 poemas, entre 1902 e 1935. Poemas soltos mas também alguns conjuntos, com título e coesão interna, mas compostos em momentos diferente, como explicou Fagundes Duarte na introdução do novo volume da INCM. A Mensagem, por exemplo, é composto por poemas escritos entre 1913 e, provavelmente, 1934. Isto significa que o único livro publicado pelo poeta, um ano antes da sua morte, ocupou dois terços de toda a sua carreira literária.
Isto significa que em Mensagem e Poemas Publicados em Vida é possível encontrar textos de períodos muito diferentes, que “Fernando Pessoa, num dado contexto histórico, social e estético, entendeu publicar com o seu nome”. O volume, que foi apresentado no passado dia 12 de março na Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa, está dividido em três partes:
  • Uma primeira, composta pelos poemas, soltos ou em pequenos conjuntos, publicados entre 1902 e 1935, ano da morte de Pessoa, “respeitando os conjuntos e a devida cronologia de publicação”, como frisou Fagundes Duarte;
  • Uma segunda, onde foi colocada a Mensagem com a sua estrutura original;
  • E uma terceira, com as traduções feitas e publicadas por Pessoa, organizadas por ordem cronológica de publicação.
Além de “Névoa”, o volume tem outras novidades. Uma delas é a publicação de cinco poemas em francês e em inglês: “Trois Chansons Mortes”, publicados na revista Contemporânea em janeiro de 1923, e “Meantime” e “Spell”, dados a conhecer na The Athenaeum (Londres), a 30 de janeiro de 1920, e na Contemporânea, em março de 1923. O livro inclui também as traduções feitas por Pessoa, nomeadamente de poemas dos uruguaios Ramón de Santiago e Alejandro Margariños Cervantes.

Rita Cipriano, Observador, 2019-03-23



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Desce a névoa da montanha,
Desce ou nasce ou não sei quê...
Minha alma é a tudo estranha,
Quando vê, vê que não vê.
Mais vale a névoa que a vida...
Desce, ou sobe: enfim, existe.
E eu não sei em que consiste
Ter a emoção por vivida,
E, sem querer, estou triste.

2-9-1935
Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa. (Direcção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno.) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993).
  - 134.

 

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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. 

 

 


Névoa, Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 24-03-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/03/nevoa-fernando-pessoa.html