António
Gedeão, Poemas Escolhidos, 12.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 2010, p. 62.
Notas:
êmbolos
(verso 6) – discos ou cilindros com movimento de
vaivém dentro dos tubos de um motor ou de uma máquina a vapor.
gomoso
(verso 14) – que destila ou contém goma; viscoso.
Ofélia
(verso 15) – personagem de Hamlet,
peça de William Shakespeare; após ser rejeitada pelo príncipe Hamlet, e ao
saber que este matou o seu pai, Ofélia enlouquece; cai num ribeiro, enquanto
apanha flores, e, cantando, deixa-se ir a flutuar ao sabor da corrente, até
morrer afogada.
nenúfar
(verso 16) – planta aquática flutuante, com
grandes flores, geralmente brancas.
Questionário:
1.
Estabeleça uma relação entre o título do poema e
o discurso do sujeito poético nas duas primeiras estrofes.
2.
Indique duas características que diferenciam a
terceira estrofe das estrofes anteriores.
3.
Proceda à análise formal do poema, no que
respeita à estrutura estrófica e aos tipos de rima.
4.
Releia a última estrofe do poema de António
Gedeão e a nota sobre Ofélia. Em seguida, observe a reprodução do quadro de
John Everett Millais.
No
poema e no quadro, o fim trágico de Ofélia é representado de modos distintos,
pondo em evidência aspetos diferentes.
Justifique
esta afirmação, com base em dois aspetos relevantes.
John Everett Millais, Ophelia, 1851-1852, Tate Britain, in www.tate.org.uk (consultado em 09/11/2020).
Chave
de correção do questionário sobre o poema “Lição sobre a água”:
1.
Na resposta, devem ser desenvolvidos os dois tópicos seguintes, ou outros
igualmente relevantes.
A
relação entre o título do poema e o discurso do sujeito poético nas duas
primeiras estrofes pode ser estabelecida a partir dos aspetos seguintes:
− a reprodução de um
modelo de apresentação escolar, tradicionalmente associado à transmissão de conhecimentos
em contexto de aula;
− o uso de linguagem
científica (objetiva e impessoal), com a intenção de descrever as propriedades
da água (num enunciado com valor aspetual genérico).
2.
Na resposta, devem ser desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros
igualmente relevantes.
As
características que diferenciam a terceira estrofe das estrofes anteriores são
as seguintes:
− o aparecimento de
uma personagem literária com uma conotação trágica («o cadáver de Ofélia» – v.
15), que diverge da neutralidade impessoal predominante nas estrofes
anteriores;
− a presença do
discurso metafórico («sob um luar gomoso e branco de camélia» – v. 14), por
oposição ao discurso científico e objetivo das duas primeiras estrofes;
− a mudança de tempo
verbal (do presente do indicativo, nas duas estrofes iniciais, para o pretérito
perfeito do indicativo, na última estrofe), que assinala a passagem de um modo
expositivo para um modo narrativo.
3.
Na resposta, devem ser desenvolvidos os dois tópicos seguintes.
No
que respeita à estrutura estrófica e aos tipos de rima, o poema:
− é constituído por
uma primeira estrofe com sete versos (sétima), uma segunda estrofe com cinco
versos (quintilha) e, por fim, uma terceira estrofe com quatro versos (quadra);
− apresenta rima
interpolada, rima emparelhada e versos brancos.
4.
Na resposta, devem ser desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros
igualmente relevantes.
Os
aspetos diferentes postos em evidência na representação do fim trágico de
Ofélia, nas duas obras, são os seguintes:
− no poema de António
Gedeão, a morte de Ofélia é inserida num ambiente noturno, em que se destaca a
referência ao luar (que acentua o carácter trágico e simbólico do episódio
aludido); no quadro de John Everett Millais, a luz do ambiente diurno revela os
pormenores do meio natural em redor de Ofélia;
− no poema, não
ocorrem referências a traços físicos de Ofélia; no quadro, é possível observar
a beleza e a juventude de Ofélia;
− no poema, Ofélia é
descrita «com um nenúfar na mão» (v. 16), o que reforça a importância simbólica
do meio aquático; no quadro, Ofélia é representada tendo na mão (direita)
algumas flores que colhera.
À
entrada da adolescência, tinha eu doze anos, um austero professor fez-me
descobrir o sortilégio das experiências de química, a tal ponto que, qual
pesquisador da pedra filosofal, Instalei no terraço de casa um pequeno
laboratório, com o beneplácito de meu pai, que tinha uma paciência infinita
para as minhas fantasias, e dei início à minha actividade experimental. Como
era de esperar, fruto da ignorância, a coisa correu mal, e depois de um
desastre sem consequências graves, fui levado a desmontar o laboratório e
esquecer as experimentações domésticas. Mas o entusiasmo ficou cá.
De entre as variadas coisas que ensinei, o que recordo com uma ternura
nostálgica são umas aulas de laboratório de química, e o prazer de fazer
descobrir aquele mundo mágico a sucessivas camadas de adolescentes. Hoje é a
lembrança dessas experiências que me faz trazer ao blog o poema de António Gedeão
(1906-1997), Lição sobre a água.
O poema, no seu propósito didáctico, assume um tradição que
remonta à medicina árabe medieval, na qual os tratados médicos (os únicos que o
mundo medieval cristão conheceu) eram escritos em verso para facilitar a sua
assimilação. O mas notável será o Poema da Medicina, de Avicena.
Ainda que o Químico, o Prof. Rómulo de Carvalho,
que escreveu poesia sob o pseudónimo de António Gedeão, tenha esquecido a
biologia e o papel da água como fonte da vida, na estrofe final do poema
associa toda esta ciência à mente humana e ao que ela pode ter de mais
dilacerante: a loucura e o suicídio por transtornos emocionais entre família,
dever, e desejo. Evoca aí o poeta a morte de Ofélia, paixão (?)
de Hamlet,
na peça homóloga de Shakespeare.
A cena descrita na última estrofe do poema foi pretexto para uma
famosa pintura de John Everett Millais (1829-1896), com cuja imagem abre o
artigo. A pintura original pertence à Tate Britain.
Luís de Camões, Rimas,
edição de Álvaro J. da Costa Pimpão, Coimbra, Almedina, 1994, p. 168.
Notas:
1enturbaram – tornaram turvas.
2intratável – inacessível; intransitável.
3 estio
– tempo quente e seco.
4fementidos – enganosos.
5regimento – governo.
6desvario – loucura; inquietação; excesso.
7natura – natureza humana.
Questionário:
1. Explique o
modo como a passagem do tempo é representada nas duas primeiras estrofes.
2. «Tem o tempo
sua ordem já sabida; / o mundo, não» (versos 9 e 10).
Explicite a
oposição presente nestes versos, tendo em conta a globalidade do poema.
3. Selecione a
opção de resposta adequada para completar as afirmações abaixo apresentadas.
Neste soneto,
além do tema da mudança, também se destaca o tema ………………. Perante a realidade que perceciona,
o sujeito poético evidencia um sentimento de ……………….
(A) da
reflexão sobre a vida pessoal … indiferença
(B) da
reflexão sobre a vida pessoal … descrença
(C) do
desconcerto … indiferença
(D) do
desconcerto … descrença
Chave de correção do questionário de interpretação do soneto:
1.Para que a resposta
seja considerada adequada, devem ser abordados dois
dos tópicos seguintes, ou outros igualmente
relevantes:
‒ a referência à
sequência das estações do ano através da caracterização de elementos da
natureza (em «Correm turvas as águas deste rio, / que as do Céu e as do monte
as enturbaram» – vv. 1-2, remete‑se
para o inverno; em «os campos florecidos» – v. 3, aponta-se para a primavera;
em «os campos [...] se secaram» – v. 3, indicia-se o verão; em «intratável se
fez o vale, e frio» – v. 4, sugere-se o outono);
‒ a referência aos
efeitos que a passagem do tempo provoca na natureza/a referência às
transformações ocorridas na natureza resultantes da passagem inevitável do
tempo (como o turvar das águas do rio ou o secar dos campos florescidos);
‒ a associação entre a
passagem do tempo e a ideia de mudança, evidente no recurso aos verbos «passar»
e «trocar» (vv. 5-6).
Nota – Os tópicos podem ser abordados separadamente ou
de forma integrada.
2.Devem ser abordados
os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:
‒ a previsibilidade/a
constância natural da passagem do tempo, evidenciada pelo ritmo cíclico das estações
do ano;
‒ a imprevisibilidade
da natureza humana/dos comportamentos humanos, provocando tal desconcerto no mundo
que «parece que dele Deus se esquece» (v. 11).
3. (D)
Neste soneto, além do tema da mudança, também se
destaca o tema do desconcerto. Perante a realidade que perceciona, o sujeito
poético evidencia um sentimento de descrença.
O soneto “Correm
turvas as águas deste rio” pode ser lido em
perspectiva a “Verdade, Amor, Razão, Merecimento”, inclusive pela ocorrência em
ambos de uma palavra-chave, “regimento”. Neste texto, basto-me no acima
transcrito, que propõe uma cisão entre “mundo” e “tempo”. O “mundo”, realidade
tangível à experiência do sujeito lírico, é “confuso”, enquanto o tempo mantém
sua ordem. Há, portanto, um divórcio entre tempo e espaço, duas instâncias em
desejada relação que, quando apartadas, criam no poeta uma espécie de precipício
subjetivo. A partir do “tudo posso ver” que se encontra no citado “Que poderei do
mundo já querer”, entendo real como dado espaciotemporal, mas, em “Correm turvas
as águas deste rio”, isso se complica, pois, enquanto o tempo segue seu curso,
o mundo é um “desvario” – por isso, o eu, além da natureza, se encontra perto desse
estado, e a última palavra do segundo quarteto não deixa de ser um verbo em primeira
do singular.
Por essas e outra, “parece” que Deus
“se esquece” do mundo, o que me faz repetir algo do começo deste texto: escrevi
imo para tentar indicar algo que pode ser tão superficial como qualquer
banalidade, mas cuja não evidência precisa da atenção de uns olhos afiados que
lhe permitam (seja ele, o imo, profundo ou superficial), ser visto, ou dado a
ver. A aparência é do esquecimento de Deus, dada à percepção do poeta no mundo
em “desvario”, o que enseja, por sua vez, outra aparência: nesta vida, talvez
não haja nada além da própria aparência, sem imo, sem essência, sem
profundidade. Maria Helena Ribeiro da Cunha, muito dedicada a pensar as bases
filosóficas de que Camões lançou mão, afirma: “Camões percorre o conceito
aristotélico do verosímil, que lhe abre a possibilidade de invocar
continuamente o estranhamento diante de uma realidade contraditória e não
explicada pelo entendimento” (1989, p. 97), o que o leva a formular o próprio desentendimento
diante da desconfortável realidade.
Um
detalhe desse soneto é magistral e revelador: em dois versos, “que parece que dele
Deus se esquece” e “que não há nela mais que o que parece”, há incômoda
proximidade de ocorrências do pronome “que”, não obstante a diferenças das
respectivas funções sintáticas. A aspereza sonora e visual expressa a gagueira
do poeta e do poema, incapazes de dizer maciamente de um desconcerto do mundo
que toca Deus. O atrito dos “que” reforça a incompreensão acerca desse Deus que
poderia concertar e o real, dando-lhe bom regimento: o problema é o da
incognoscibilidade de Deus ou de Sua apatia? Dizendo, ou perguntando, de outro
modo: se “parece” que “Deus se esquece” do mundo, e se, na “vida”, a aparência
(“pareça”) é a de “que não há nela mais que o que parece”, há uma essência
atrás da aparência? Não perco de vista as três ocorrências dessa ideia a partir
do décimo primeiro verso, tampouco que Deus não aparece à Máquina do Mundo. Uma
pergunta feita ao futuro: será possível investigar Deus em Camões tendo como
apetrecho inclusive a ideia de indecidível?
“Camões e o real”, Luis Maffei. Faculdade de
Letras da UFRJ, Metamorfoses (Revista de Estudos Luso Afro-Brasileiros
da Cátedra Jorge de Sena), v. 14, n.º 1, 2017. https://doi.org/10.35520/metamorfoses.2017.v14n1a10504
* * *
Tiempo-caos: angustia
en Camões
Al leer los sonetos líricos
de Luís de Camões encontramos que en su mayoría éstos se encuentran construidos
sobre una base temática bimembre. Los dos componentes de esta arquitectura son el
tiempo en su paso inexorable y el caos resultante. Esta relación dialéctica
trae consigo el contínuo mutar de los órdenes, situación que produce en el poeta
un sentimento angustioso; éste, a su vez, resultado de la anulación de aquellos
valores o normas que ofrecen al hombre seguridad en un momento histórico determinado.
Nuestro propósito es presentar
el desarrollo y tratamiento de estos elementos en el soneto "Correm turvas
as águas deste rio."(Luís
de Camões, Obras completas I. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1956, págs. 255-6).
A la vez, trataremos
de situar esta expresión poética dentro de las corrientes estético filosóficas en
que se desenvuelve el poeta.
Desde el primer verso del soneto
eje de nuestro análisis, Camões introduce la idea de movimiento que será trabajada
en el primer cuarteto. Metafóricamente se proyecta hacia el lector por medio de
dos símbolos: el río y la tierra que, al mismo tiempo, están relacionados con la
fertilidade y la vida. La imagen referente a las estaciones: "Os campos florescidos
se secaram; /Intratável se fez o vale e frio.", señala la perpetuidad temporal
de sus elementos dada su naturaleza cíclica y, por contraste, lo efímero del género
humano. Junto a este gran tema, fuerza generadora del soneto, Camões sugestivamente
desarrolla el segundo componente temático: el caos. Visualmente éste se presenta
en la figura del agua: "Correm turvas as aguas deste rio", turbulencia
que ha alterado la intrínseca diafanidad de la misma. Podemos notar que el caos
aquí está presentado a base de elementos físicos, agua-río, no por ello descartando
una posible interpretación filosófica, como veremos más
adelante.
El segundo verso establece
una concatenación de acciones que expresan movilidad: "que as do céu e as do
monte as enturbaram;" y, a la vez, se reitera la idea de trastoque en la esencia.
La lluvia cristalina produce el enturbamiento del río; del orden al desorden, del
equilibrio al caos. Como señaláramos, un segundo nivel intelectivo permite recrear
la imagen del río como símbolo de vida, enmarcando la expresión en un contexto religioso
que recuerda las coplas de Jorge Manrique. Esta interpretación nos permite establecer
un paralelo que vincula la tradición literária renacentista con la medieval.
Establecido el acercamiento
al primer cuarteto, vemos como los dos temas presentados son tratados por Camões
a dos niveles, el físico específico y el filosófico-universal.
La intensificación del primer
elemento arquitectónico la encontramos en el segundo cuarteto. El tiempo, presente
en el primer cuarteto, será objeto de análisis retrospectivo desde la inmediatez.
Presenciamos el movimento temporal hacia el pasado: "passou, se trocaram".
Camões presenta ahora la idea cambio-caso no ya de manera particular, sino
universal: "Uas cousas por outras se trocaram", estableciendo nuevamente
la relación entre causa y efecto. Lo caótioco en este cuarteto es presentado en
un marco mítico-filosófico; el destino (Fados) es el responsable del desordenado
mutar ya que, al abondonar el control del mundo, ha legado en el hombre la dirección
del mismo. Por medio de la mitología pagana Camões da la visión renacentista del
hombre como hacedor de su destino. Sin embargo, el cambio de una visión
teocéntrica a una antropocêntrica parece presentarse negativa al poeta pues el hecho
señala la pérdida de la armonía preexistente.
En el primer terceto se
intensifica la idea de organicidad y perpetuidad, relacionándola al plano temporal.
Nuevamente, el poeta señala que sólo aquello externo al hombre continúa su
estado armónico en su eterno devenir: "Tem o tempo sua orden já sabida".
El planteamiento es en estos momentos desde una perspectiva social: "O mundo
não; mas anda tão confuso". Sin embargo, Camões no parece encontrar una explicación
a dicha confusión social y, al encontrarse sin asidero ideológico expresa: "...
parece que Deus se esquece", anguistia hecha verbo que en el plano religioso
tendría ecos de blasfemia.
Esta desorientación provoca
en el poeta una actitud negativa que alcanza su punto álgido en el segungo terceto
expresándola en una visión totalizadora a base de la enumeración: "casos, opinões,
natura e uso". Después de establecidos los elementos, el poeta, como último
intento de encontrar una explicación, los recimina por ser, desde su
perspectiva, los causantes del caos del mundo. Al haber agotado las posibilidades
de encontrarle sentido al mundo concluye diciendo que la vida es sólo un cúmulo
de apariencias: "Fazem que nos pareça desta vida/Que não há nela mais que o
que parece." Expresión que encubre la anguistia experimentada ante la inseguridad
y el caos que no consigue comprender.
Qual é a realidade de Camões? Da
oposição entre o contentamento (supostamente) passado e o descontentamento
presente, do contraste entre o empiricamente impossível e o empiricamente real,
Camões encaminha-se para uma formulação metafísica do problema da crise
subjectiva do tempo psicológico e do desconcerto do mundo, numa tentativa de
escapar à conformação ou aceitação do absurdo da vida e à sua dupla verdade,
numa busca desesperada da Verdade, que o liberte de todas as aporias e o
encaminhe numa solução com sentido.
Tal é a tentativa de Camões para
resolver (pelo menos explicar) o problema do desconcerto objectivo do mundo –
aquele que se refere à distribuição desencontrada de prémios e castigos –, que
adopta uma solução mística para poder justificar a presença de acontecimentos
ou de casos que contribuem (aparentemente) para a ausência da ordem ou do
regimento do mundo visível, ao sabor dos caprichos e das incongruências da
Fortuna, e fazem com que os homens se julguem perseguidos pelos efeitos do
desconcerto de um mundo tão confuso, que parece que Deus se esquece dele (“Tem
o Tempo a sua ordem já sabida, / o mundo não, mas anda tão confuso / que parece
que dele Deus se esquece. / Casos, opiniões, Natura e Uso / fazem que nos
pareça desta vida / que não há nela mais que o que parece.”25). Mas estas
perseguições são na verdade transcendentes à compreensão da mente humana, pois
que a razão é impotente para integrar a experiência, solucionar e transcender a
aparência do desconcerto do mundo; na verdade este desconcerto não é aparente,
está antes justamente determinado pelos desígnios de Deus (desde o pecado
original): o que para Deus é justo parece injusto aos homens (“(...) dedicai,
se quereis, ao Desconcerto / novas honras e cegos sacrifícios, / que por
castigo igual de antigos vícios / quer Deus que andem as cousas por acerto. /
Não caiu neste modo de castigo / quem pôs culpa à Fortuna, quem somente / crê
que acontecimentos há no mundo. / A grande experiência é grão perigo, / mas o
que Deus é justo e evidente / parece injusto aos homens e profundo.”26).
A razão humana só pode restringir-se à
experiência fenomenológica, à observação dos factos e dos fenómenos da natureza
que envolvem todas as contradições vivenciais, conceptuais, éticas, morais e
axiológicas (“Verdade, Amor, Razão, Merecimento, / qualquer alma farão segura e
forte. / Porém Fortuna, Caso, Tempo e Sorte / têm do confuso mundo o regimento.
/ Efeitos mil revolve o pensamento / e não sabe a que causa se reporte, / mas
sabe que o que é mais que vida e morte / que não o alcança humano
entendimento.”27).
A essência do desconcerto só poderá ser equacionada pelo entendimento humano,
através da crença fideísta na acção divina. Porém, acreditar em Deus não
significa descobrir uma razão no desconcerto do mundo; significa, sim, aceitar
a sua irracionalidade no plano da experiência e confiar numa razão profunda
inacessível aos homens. Ter muito visto e experimentado é melhor, mais válido,
do que acreditar nas razões vãs dos doutos, pois que há coisas que se crêem e
não acontecem e há coisas que acontecem e não se crêem; por isso, dada a
incapacidade da razão para compreender este paradoxo entre a teoria racional
positiva e a experiência fenomenológica negativa, entre o que se passa, o que realmente
acontece, e a sede de verdade, de justiça, melhor ainda é crer em Cristo
(“Doctos varões darão razões subidas, / mas são experiências mais provadas / e por
isso é melhor ter muito visto. / Cousas há i que passam sem ser cridas, / e
cousas cridas há sem ser passadas. / Mas o milhor de tudo é crer em Cristo”.28). Ao evocar Deus
como a causa última lógica e racional do mundo, Camões não se deixa de conformar
com a ideia do absurdo; simplesmente a racionalidade que não está no mundo está
em Deus; até a necessidade de um universo (aparentemente) ilógico está em Deus;
a inteligibilidade dos actos de Deus não existe no plano racional da teoria nem
na experiência da realidade empírica mas sim na síntese mística e na solução
volitiva do plano divino. Assim, só através da superação metafísico-religiosa
do desconcerto do mundo e do dissídio vivencial, mental e espiritual é que se
pode descobrir o processo da Verdade transcendente e encontrar um sentido
ontológico e gnoseológico para a existência humana: se nos reportarmos ao mundo
inteligível através da solução derradeira que irrompe da Graça divina, o
desconcerto desaparece e o tempo fica iliminado; a saudade e a esperança perdem
a esta luz a sua natureza empírica e temporal; a alma deixa de estar sujeita
aos efeitos da mudança e inscreve-se num plano metacronológico de plenitude
escatológica. É a partir desta solução fideísta (de matriz augustiniana e não
neoplatónica ou antineoplatónica) – que não deixa de - ser também, na Lírica
camoniana, uma solução estética, pela criação fictícia de um universo utópico
de beleza, liberdade e fé, através do canto divino de libertação e ascensão espirituais
–, que Camões se encontra para resolver as suas contradições, antinomias e
tensões nas redondilhas “Sôbolos Rios” – aliás, já aludido na primeira parte da
dissertação. É através do acto volitivo da fé, só possível com a ajuda da
Graça, que Camões se separa do mundo sensível e alcança o mundo inteligível (e
não pela simples contemplação intelectual, de matriz platónica). Como afirma Aguiar
e Silva, “nas últimas quintilhas do poema exprime-se uma visão sombriamente
pessimista e uma valoração radicalmente negativa de tudo quanto procede do mundo
visível e da carne que encanta(s), / filha de Babel tão feia, ao mesmo tempo
que se exalta, num triunfalismo furiosamente penitencial, a destruição de todo
o afecto, de todo o deleite, de todo o liame, enfim, que possa prejudicar ou
retardar o apelo e a acção da Graça. O clímax deste triunfalismo exicial por
ser salvífico, encontra-se nestes versos (...): E beato quem tomar / seus pensamentos
recentes / e em nacendo os afogar, / por não virem a parar / em vícios graves e
urgentes. / Quem com eles logo der / na pedra do furor santo, / e, batendo, os
desfizer / na Pedra, que veio a ser enfim cabeça do Canto. Estes versos
significam um sacrificium intellectus (...)”29
As redondilhas “Sôbolos Rios” são por
isso uma solução de superação da síntese de fundamentação e dinâmica
neoplatónicas (tese recebida por herança cultural e desmentida pelo mundo
empírico que o poeta experimentou) e exprimem um momento dramático que se
resolve não por obra da inteligência mas por decisão e volição do recurso à
Graça Divina. Tal como o faz para se libertar da obsessão do desconcerto do
mundo, Camões escolhe (decide) crer em Cristo para poder resolver as suas
contradições e encontrar, pela reminiscência e pela estética (poética) da
utopia, a ordem do universo num lugar pré-terreno (Paraíso perdido), de onde
foi o homem feliz. Contrapondo-se à sequência de paradoxos que atestam o
desconcerto do mundo, em termos utópicos, o poeta vai projectar o sonho da
verdadeira felicidade, em busca de um sonho apaziguador de regresso às origens.
Para isso impõe-se uma recusa desse presente histórico injusto, corrompido e
pervertido, babélico, desconcertante e sufocante, e projecta-se a esperança e o
sonho de um mundo melhor no futuro – como o retorno da primitiva Idade De
Ouro.
(29)
Cf. Vítor Manuel de Aguiar e Silva, “Amor e mundividência na lírica camoniana”,
in Camões: labirintos e fascínios, Lisboa, Cotovia, 1994, pp. 176, 177.
CARREIRO, José. “Correm
turvas as águas deste rio, Camões”. Portugal, Folha de Poesia,
10-09-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/09/correm-turvas-as-aguas-deste-rio-camoes.html
José Joaquim Cesário Verde nasceu a 25 de
fevereiro de 1855, num terceiro andar da Rua dos Fanqueiros, ou seja, em plena
Baixa pombalina.[1] O país atravessava um período
de relativa estabilidade, mas, se o pano de fundo era otimista, o mesmo se não
pode dizer da conjuntura. As chuvas anormais da Primavera haviam provocado uma
crise nos cereais, o que, num país sem caminhos-de-ferro, implicava literalmente
a fome.
Nesse domingo - dia em que se celebrava
São Cesário – as cheias tinham alagado grande parte do país, incluindo a zona à
volta de Lisboa, onde o pai possuía terras. As exportações de vinho e de azeite
estavam estagnadas. Corriam boatos, absurdos é certo, mas tidos como verdadeiros,
de que o governo se preparava para mandar soldados para a guerra da Crimeia. Por
causa das pestes - primeiro a da cólera e, depois, a da febre-amarela - que
invadiram o país em 1856 e 1857, Cesário passou uma longa temporada na quinta
que a família possuía em Linda-a-Pastora.
O pai, José Anastácio Verde
(1813-1888), era um lavrador dos arredores de-Lisboa e o único proprietário da
firma «J. A. Verde», uma
loja de ferragens fundada em 1808. Ao contrário do que se supõe, isto não fazia
dele um pequeno-burguês. Pelo contrário: José Anastácio pertencia ao importante
grupo dos «negociantes» de Lisboa matriculados no Tribunal do Comércio, o que lhe
conferia um status superior. Para além dos artigos de ferro, a sua loja vendia
um pouco de tudo: camisolas de algodão, chinelas de trança, botinas de duraque,
fazendas e oleados. Mas não era apenas dela que retirava o seu rendimento: este
vinha também, talvez até sobretudo, das quintas que explorava nos arredores de
Lisboa.
Os Verdes estavam a meio da escala
social, mais próximos das camadas superiores do que das inferiores.[2]
Basta olhar o local onde estava situado o seu estabelecimento comercial, com
quatro grandes portas sobre a rua, ou as casas que habitaram – especialmente a de
Linda-a-Pastora - para nos apercebermos de que viviam bem. Em 1878, quando,
pretendendo construir um forte no Alto de Caxias, o Estado quis expropriar
algumas das terras que a família trazia arrendadas ao Marquês de Pombal, Cesário
avaliá-las-ia em 2 contos de réis, uma quantia bastante elevada. Numa carta
datada de 29 de maio de 1878, declarava fazerem os ditos terrenos parte «dum prazo
do qual eu pago ao Marquês de Pombal 303,5 litros de trigo e 303,5 de cevada
com laudémio de vintena». Quanto à soma por ele calculada, dizia-a justa, não
só por as terras serem muito férteis, mas por as ter tratado, no anterior mês
de outubro, «com adubos caros, que tiveram importantes despesas de transporte»,
e ainda por estarem guarnecidas de oliveiras, uma boa fonte de receita.[3]
A família Verde era oriunda de Génova. Provavelmente
fugidos de uma das convulsões políticas ocorridas naquela cidade-estado, os Verdes
tinham emigrado, no século XVIII, para Portugal. Cesário era trineto de
Giovanni Maria Verde, o genovês que, em 1731, se casara com Ana Maria de Pré,
tendo decidido, pouco depois, vir para Lisboa. Fora um filho destes, de seu nome
Manuel Baptista, quem montara a loja, ao Alto de Santa Catarina, que José Anastácio
mudaria para um local mais central. Em 1842, este herdaria ainda a quinta de seu
tio, João Baptista, morto sem deixar filhos.
Cesário viria a mudar de residência
ainda em criança. Foi viver para o prédio que o pai comprara no começo da Rua do
Salitre, ao lado do Passeio Público (atual Avenida da Liberdade), um local tido
como mais salubre do que a Rua dos Fanqueiros. Aos dez anos fez, com êxito, o
exame de instrução primária. Por morar na freguesia do Sagrado Coração de Jesus,
foi examinado por uma das mesas organizadas na Academia das Ciências. Não se
sabe que tipo de estabelecimento escolar frequentou, mas é possível que tenha aprendido
a ler com base no manual de António Feliciano de Castilho, o mais popular à época.[4]
Uma vez que o pai insistira em que ele deveria aprender contabilidade, bem como
francês e inglês, é possível que tenha frequentado igualmente a Aula de Comércio, à Boavista.
Cesário não se limitou a estudar o que lhe
iam ensinando na escola: gostava de ler tudo o que lhe vinha parar às mãos. Em
casa (tal como, mais tarde, entre os amigos), ouvira falar de autores – Montesquieu,
Quinet, Balzac, Taine, Spencer, Dickens, Byron, Daudet, Baudelaire, Zola,
Mérimée – que o deliciaram. Desde cedo o pai notou que o primogénito se interessava
pelas artes, um gosto, imaginou, que teria herdado do
tio-avô João Baptista (amigo e cunhado do pintor Domingos Sequeira, e ele próprio
um pintor), o qual possuía uma boa biblioteca.[5]Não creio que, como Eça ou Batalha Reis, Cesário fosse sócio
do Grémio Literário, mas, além de ter ao seu dispor os livros do tio,
frequentava as livrarias da Baixa.
O pai nunca pretendeu cortar-lhe as
asas. Liberal em política, era tolerante em casa.[6]
Apesar de ter planeado que o filho viesse a dirigir a loja, deixava-lhe uma grande
margem de liberdade. Aliás, a família era singularmente culta. Cesário já não
conhecera o tio-avô, nem, muito menos, Domingos Sequeira, mas vira alguns dos
quadros deste, entre os quais o bonito óleo da sua prima-segunda, Maria
Benedita Vitória, sentada ao cravo.[7]
As conversas com João de Sousa Araújo, o filho de um comerciante de Coimbra que
a família imaginava poder vir a casar com Júlia (a irmã mais velha de Cesário),
estimularam-no, o que não quer dizer que o mundo estivesse a seus pés. Cesário não
frequentara Coimbra,
não havendo tido acesso, portanto, às novidades literárias
que chegavam de Paris. Mesmo o que acontecia nos círculos intelectuais lisboetas
lhe passava, em grande parte, ao lado. Era adolescente quando se realizaram as
Conferências do Casino, mas não há qualquer indicação que nos permita pensar
que delas tenha ouvido falar. A sua vida social reduzia-se ao círculo familiar.
A adolescência de Cesário foi marcada
pelo anticlericalismo, um traço herdado do pai. Aos dezasseis anos, dizia ele
ao presumível cunhado: «Eu fujo a sete pés de tudo o que é sério, sisudo,
severo etc. etc. porque lhe acho um cheirozinho a incenso, que me faz lembrar
as antigas naves dos lúgubres conventos, que repercutiam o eco dos fúnebres
passos dos ferais monges.» Os Verdes pertenciam aos sectores das classes médias
atraídos pelos ventos revolucionários que vinham da Europa.
Fisicamente, Cesário não parecia
português. Era loiro e tinha olhos azuis, facto a que o sangue (francês e genovês)
que lhe corria nas veias não seria alheio. Alguns anos depois, um amigo
descrevia-o como «um rapaz alto, direito, elegante, simpático, cabelo curto, alourado,
olhos azuis, vestindo sempre fato azul, de jaquetão, de corte inglês, sapatos
amplos, com todo um ar britânico, que ele parecia querer aparentar».[8]
Todas as fontes indicam ter-se preocupado com a indumentária, uma forma de se
destacar dos empregados de escritório que, a seu lado, circulavam pela Baixa. Muitos
anos depois da sua morte, Macedo Papança contaria ao filho que Cesário
misturava o estilo dandy com o boémio, o que se traduzia nas calças aos quadrados,
no jaquetão azul-marinho e na lavallière vermelha que costumava usar.[9]
O desgosto provocado pela morte da
irmã, que tinha dezanove anos, coincidiu com o fim da adolescência de Cesário.[10]
Pouco depois era introduzido, pelo pai, nos mistérios do comércio. A loja do
Sr. José Anastácio ocupava o rés-do-chão do prédio de gaveto entre a Rua dos Fanqueiros
e a Rua da Alfândega, facto que permitia a Cesário ter uma vista privilegiada sobre
o Terreiro do Paço. O escritório, onde fazia a escrita, transformou-se num
posto de observação. Mas não se pense que descurava as funções de escriturário.
A primeira carta sobre negócios que redigiu, com data de 17 de janeiro de 1872,
seguia as regras do ofício. Nem nesta, nem nas centenas que depois escreveu, se
nota qualquer sinal de enfado. Tudo indica, pelo contrário, que apreciava aquela
vida regrada, a ponto de ter começado a imaginar novos empreendimentos, tais
como o aumento de exportação da fruta das quintas para Inglaterra e para a Alemanha,
países de onde a firma importava artigos fabris.
Ao contrário de Fernando Pessoa, com
quem por vezes é comparado, Cesário não era um assalariado comercial, mas o
filho do patrão, e tanto quanto podemos avaliar teve uma infância feliz. Mesmo
sendo verdade que a vida nem sempre lhe sorriu, manteve a sua placidez: gostava
do emprego, sentia-se bem entre os seus e apreciava as mudanças sazonais de
domicílio. Como outros, teve de enfrentar provações – desde mortes na família ao
não reconhecimento do seu talento -, mas isso não o conduziu a lamúrias sobre a
pátria. A sua melancolia era sossegada, o seu pensamento, claro, e não acreditava
em Deus porque nunca o vira. Sabia que a realidade era apenas aquilo que tinha diante
dos olhos: nunca albergou sonhos metafísicos. O seu objetivo era tão-só pôr em
palavras, as mais adequadas, o que sentia quando se passeava pelas ruas de
Lisboa ou pelo campo saloio:
Eu tudo encontro alegremente exacto.
Lavo, refresco, limpo os meus sentidos,
Etangem-me, excitados, sacudidos,
O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o
olfacto!
[…]
Apesar de ser o maior poeta da sua
geração, quando, a 19 de julho de 1886, morreu, ninguém deu por nada. Na
Sociedade Recreio Operário, na Rua dos Remédios (tão perto da casa onde tinha vivido),
uma banda abrilhantou o baile proletário; na Nova Rossini, na Rua do Sol ao
Rato, a filarmónica dos Alunos de Guilherme Cossul deliciou os pequeno-burgueses;
no Jardim da Estrela, no de São Pedro de Alcântara e no Largo de Belém,
ouviram-se concertos ao ar livre; o cavaleiro Alfredo Tinoco fez as delícias do
público tauromáquico; na Esplanada dos Recreios, viu-se um bruxo fazendo
truques de prestidigitação e, no Teatro Chalet, representou-se, mais uma vez, a
peça O Duque de Viseu, de Henrique Lopes de Mendonça. Imperturbável, a cidade
continuou a sua lida.
Não apenas a cidade, mas os intelectuais.
Não fosse Silva Pinto, e os poemas de Cesário apenas existiriam, dispersos, em jornais
esquecidos. Do seu rosto, apenas se conhecem duas fotografias, o que finalmente
pouco importa, uma vez que temos o admirável esboço de Columbano, no qual ele surge
com um ar espantado.[11]
Cesário
Verde, um génio ignorado, Maria Filomena
Mónica. Lisboa, Alêtheia Editores, 2007, pp. 15-23, 149, 150.
[1] Alguns autores afirmam ter Cesário nascido na
Rua da Padaria, mas não é correto. Ver o artigo de Pedro da Silveira, «As casas
de Cesário», Diário de Notícias, 22 de junho de 1986, em que diz
ser mais provável ter ele nascido na esquina da Rua dos Fanqueiros com a da
Alfândega, uma vez que o batismo foi registado na Igreja Paroquial da Madalena
(a que aquela rua pertencia). Aparentemente, o pai instalara a loja nos números
2 a 8 da Rua dos Fanqueiros, tendo decidido ir morar para o prédio que ocupa o
atual n.º 9 (ao invés do que sucede com o da loja, o imóvel deve ter sido
deitado abaixo).
[2] Entre 1822 e 1842, data da sua morte, João
Baptista Verde fora acionista do «Banco de Lisboa», o que evidentemente o
colocava acima da pequena burguesia (em 1822, tinha 12, em 1824, 24, e, em
1835, 30 ações; ver Registo Geral dos Accionistas, 1822-1846). Agradeço
a Jaime Reis a informação.
[3] A correspondência manteve-se durante meses,
com o Estado a oferecer apenas 1 600 000 réis, quantia que Cesário julgou
diminuta, não sendo possível saber-se qual o resultado final. Ver Joel
Serrão, Cesário Verde: Obra Completa, Lisboa, Horizonte,
2003, pp. 245-46. Além destes terrenos e da quinta de Linda-a-Pastora, a
família possuía outras terras perto (no Casal de Liceia e no do Rodízio). Em
1849, o pai de Cesário arrendara ainda terrenos, em Vale de Nogueira, Caneças,
pelos quais pagava um foro anual de 1200 réis. Ver Gonçalo Monjardino Nemésio,
«Os Verdes, uma família genovesa em Portugal», separata de Genealogia e
Heráldica, n.º 9/ 10, 2003.
[4] António Feliciano de Castilho, Método
Castilho para o ensino do ler e do escrever, Lisboa, Imprensa
Nacional, 1853 (2.ª ed.).
[5] Como se vê pelo testamento, foi este tio que
deixou ao pai de Cesário as terras, em Caxias, que arrendava à família Rio
Maior (a qual entroncava na do Marquês de Pombal). Os Verdes eram, portanto,
vizinhos de Isabel, condessa de Rio Maior, com quem não conviveriam, dada a
diferença entre o respetivo estatuto social. Ver Maria Filomena Mónica
(org.), Isabel,Condessa de Rio Maior; Lisboa,
Quetzal, 2002. Fardado de Voluntário Real do Comércio, João Baptista Verde
seria pintado pelo seu futuro cunhado, Domingos Sequeira, junto à irmã, Maria
Benedita Vitória (o quadro encontra-se no Museu Nacional de Arte Antiga).
[6] Há quem, como Rocha Martins, tenha afirmado
que o pai de Cesário era miguelista – o que Joel Serrão reproduz –, mas tudo
indica o contrário. Ver Joel Serrão, «A infância de Cesário Verde», Diário
Popular, 26 de fevereiro de 1959. Como nota João Pinto de Figueiredo,
além das suas relações com o tio e com Domingos Sequeira, ambos liberais, as
convicções anticlericais do patriarca tornam a tese improvável. Ver a
interessante obra de João Pinto de Figueiredo, Cesário Verde, Lisboa,
Presença, 1986. Lamenta-se que o autor tenha decidido não incluir notas de
rodapé.
[7] De facto, está a tocar numa espineta, um
antepassado do cravo. Além deste óleo, existe outro da mesma menina, ao lado do
irmão mais novo, no Museu Nacional de Arte Antiga.
[8] Henrique Marques, Memórias de um
Editor, citado em Joel Serrão (org.), Obra Completa de Cesário
Verde, Lisboa, Portugália, s.d., p. 116.
[9] Alberto de Monsaraz, Cesário Verde e
Macedo Papança, separata da Revista Municipal, n.º
66, 1956.
[10] A irmã de Cesário morreria em 1872, pelo que
o casamento com João de Sousa Araújo nunca se realizou.
[11] Feito de memória, este desenho aparece, em
gravura, na primeira edição do Livro de Cesário Verde.
O dia em que
Cesário Verde morreu
No princípio de julho, começara a debandada dos ricos; ficar em Lisboa era
o cúmulo da ignomínia social. Centenas de poemas e folhetins pequeno-burgueses
denunciam a miséria, atacam os ricos e troçam dos padres: a 19, às cinco horas
da manhã, com os pulmões destruídos pela tuberculose, morreu Cesário Verde.
Tinha 31 anos e vira o fim chegar "como um medonho muro".
Em 1886, Portugal era um país predominantemente rural. Fora de Lisboa e do Porto, não havia verdadeiramente
cidades. A maior parte da população - 8 em cada 10 portugueses - vivia no
campo, trabalhando uma terra pouco fértil mal distribuída. A norte do Mondego
predominava a pequena propriedade, cultivada por camponeses e rendeiros pobres;
a sul, o latifúndio. Ao contrário do que sucedia nalguns países europeus, a
maioria dos senhores residia nas cidades, administrando as suas terras por
intermédio de feitores; só um punhado de proprietários rurais se interessava o
suficiente pelas suas explorações para aí tentar introduzir as inovações que
sabia estarem a ser utilizadas no estrangeiro. Mas, num país que dispunha de
uma mão-de-obra barata inesgotável, como Portugal, a mecanização raramente foi
um êxito. Apesar de, em 1843, na Granja Real de Mafra, terem sido exibidas
várias máquinas agrícolas, quarenta anos mais tarde o seu número era
extremamente reduzido. Dos três produtos cultivados em grande escala, o trigo,
a vinha e o arroz, só com o primeiro era possível utilizá-las. Assim, a maioria
dos trabalhos agrícolas continuou a ser feita por trabalhadores rurais,
camponeses ou assalariados, com os métodos que os seus pais e avós usavam há
séculos.
Nas cidades, a Civilização penetrou mais facilmente. Depois das tempestades da primeira metade do século,
Portugal atravessou um período calmo, durante o qual um grupo de políticos
enérgicos se entregou à exaltante tarefa de modernizar o País. Durante alguns
anos, a realidade correspondeu às expectativas. A indústria desenvolveu-se:
Lisboa especializou-se na estamparia de tecidos e na metalurgia; o Porto, na
fiação e tecelagem de algodão. Apesar do esforço do Fontismo no que diz
respeito a vias de comunicação, o mercado interno estava longe de se encontrar
unificado. Em muitas aldeias, os camponeses continuavam a comer o que produziam
e a vestir o que o artesanato local Ihes fornecia, como sempre haviam feito.
No litoral, as fábricas produziam alguns bensde consumo simples, tecidos, pás e enxadas,
tabaco, papel e rolhas. Apenas se exportavam conservas de peixe e cortiça.
Entre 1850 e 1880, a indústria crescera vagarosamente, mas crescera: em 1850, o total de cavalos-vapor
existentes era de 938; em 1880 subira para 7000. No têxtil, cortiças e tabacos,
existiam agora fábricas com mais de 500 operários. Infelizmente, Portugal estava
suficientemente perto da Europa para que os progressos destes países ensombrecessem
o que aqui se passava. Em 1881, um membro da comissão do Inquérito Industrial
que o Governo mandou efetuar escrevia desencantadamente: "Levam-nos um
grande avanço as nações industriais, tocaram quase a meta, quando nós
principiámos ainda a caminhar", e acrescentava "Esforços e energias
de que valem, se os passos que nós damos para diante são sempre fartamente
compensados por outros mais largos e mais rápidos que eles dão no mesmo
sentido?".
Na agricultura, as coisas não tinham corrido mal. O Minho exportava quantidades razoáveis de vinho e
gado para os ricos mercados europeus; o Sul, laranjas, maçãs, figos, azeite e
amêndoas. Mas em meados de 1880, Portugal começou a ter rivais temíveis nos
mercados europeus. A exportação de gado ressentiu-se imediatamente, sofrendo o
Minho uma severa recessão: nos "leilões dos estrangeiros", o
concorrente consegue vencer-nos "por uma cotação que nos desvia". O
modelo fontista entrava em crise.
Na indústria também havia problemas: o mercado interno estava a ser invadido por produtos
estrangeiros que aqui chegavam a preços baixíssimos. Os velhos pólos artesanais
estagnavam. Mesmo as fábricas urbanas se sentiam ameaçadas. Serralheiros e
tecelões, caldeireiros e marceneiros apelam ao Governo para que faça qualquer
coisa por eles, nomeadamente que dificulte a importação dos produtos
estrangeiros; mas ainda teriam de aguardar alguns anos, antes que uma resolução
fosse tomada. O relativo liberalismo do Fontismo no que diz respeito ao
comércio externo colapsava.
Mais grave do que tudo isto era a situação das
finanças do Estado. Em 1886, o Governo regenerador tentara
alterar os impostos, mas defrontou-se com enormes resistências. A braços com um
motim declarado entre Braga e Guimarães, devido a rivalidades locais, decidiu
não forçar a reforma tributária. Pediu antes ao rei que adiasse as Cortes. Mas
este considerou que, ao fim de 5 anos, o governo de Fontes estava
"gasto". Apesar de o ano agrícola ter sido bom, o otimismo da
Regeneração desaparecera. Mais ou menos conscientemente, toda a gente se
apercebia que o futuro seria negro.
Em fevereiro desse ano, o chefe dos progressistas, José Luciano de Castro, era chamado ao poder. Poucas
semanas depois, o rei D. Luís dava-lhe o que havia recusado ao seu antecessor,
isto é, a dissolução do Parlamento. No Verão de 1886, vivia-se um daqueles
intervalos ditatoriais que atravessaram a vida do constitucionalismo
monárquico. (…)
Fontes Pereira de Melo foi muito criticado por ter corrompido tudo e todos.
Enquanto as libras foram chegando, tudo correra de feição. Mas os banqueiros
estrangeiros tinham-lhe fechado as portas. O cenário mudava.
De facto, assistia-se ao começo de uma grave crise, que atingiria o seu máximo em 1891. O clima de
tolerância em que os Portugueses tinham vivido nas últimas décadas iria
desaparecer. Ouviam-se já os gritos de "Vida Nova", os apelos
autoritários que com a subida de D. Carlos ao trono atroariam os ares. Um dia
viria, em que os "povos humilhados" se levantariam, de punhais
aguçados, para derrubar uma monarquia odiada.
Em 1886, Lisboa era uma cidade muito diferente do que
tinha sido trinta anos antes.
A sua população, trezentos mil habitantes, tinha dobrado. Do campo, haviam
chegado milhares, os homens primeiro, para trabalhar como estivadores ou
pedreiros, a família depois. Em parte devido à pressão dos recém-chegados, em
parte porque o alargamento dos limites urbanos era uma forma de obter novas
receitas para o Estado, a cidade alastrava. Ao lado de uma indústria
incipiente, visível sobretudo para os lados de Xabregas e Alcatra, a cintura
saloia espraiava-se por todo o lado, Mafra, Benfica, Lumiar.
Os laços ao campo permaneciam fortes. A infância rural deixava saudades que não desapareciam
facilmente. Com os seus espaços apertados e o tempo normalizado, a cidade
parecia asfixiante aos novos habitantes. Não surpreende, pois, que, nos quentes
dias de Verão, o povo deixasse a capital, com cestos repletos de talhadas de
melão, damascos e pão-de-ló, a caminho das hortas. Para os que ficavam, havia
os bailes "campestres" sob as parreirinhas dos cafés e das sociedades
recreativas, além da música ao ar livre nos coretos pintados de fresco. No dia
18 de julho de 1886, um domingo, não faltavam distrações. No Beco das Olarias,
o "baile campestre" era acompanhado por uma banda tocando um
"variadíssimo reportório"; na sociedade Recreio
Operário, na Rua dos Remédios à Lapa, a banda "abrilhantava"
o baile proletário; na Nova Rossini, na Rua do Sol ao Rato,
entre o bazar e o lanche, a filarmónica dos "Alunos de Guilherme
Cossoul" deliciava os ouvintes pequeno-burgueses. Nos Jardins da Estrela,
de S. Pedro de Alcântara e no Largo de Belém, entre as 5 e as 7 da tarde, os
domingueiros podiam ouvir belos concertos ao ar livre. De entre as solicitações
do dia, a mais popular era certamente a tourada que, nessa tarde, se realizaria
no Campo Santana, e na qual tomavam parte os irmãos Roberto e o conhecido
cavaleiro Alfredo Tinoco. Os espetáculos noturnos também eram aliciantes. Na
Esplanada dos Recreios, poder-se-ia ver um bruxo que fazia truques de
prestidigitação ou, no Teatro Chalet, a peça "O Duque de
Vizela".
Em 1886, já tinham sido introduzidas em Lisboa algumas
das inovações que facilitavam a vida urbana: em 1848,
tinham aparecido os primeiros candeeiros a gás e, em 1878, haviam sido
instalados, no Chiado, seis candeeiros elétricos. Não se pense, contudo, que
esses melhoramentos se propagaram rapidamente. Grande parte das ruas da cidade
eram de terra, malcheirosas e escuras. A muitas das suas vielas e escadinhas, a
civilização não chegara. A 18 de Julho, um grupo de habitantes de Alfama pedia
insistentemente à Câmara de Lisboa que mandasse regar as ruas do bairro, pois o
vento estava a levantar enormes ondas de poeira, que invadiam casas e lojas.
Nos bairros antigos, a higiene era deplorável. Com traseiras, pátios e quintais apinhados de
galinhas, coelhos e porcos, as casas estavam infestadas de parasitas. Apesar de
a recente captação do rio Alviela ter permitido instalar uma rede de
distribuição de água ao domicílio, o benefício chegava a poucas casas. Nos
mercados, as condições sanitárias eram péssimas, fazendo com que muitos dos
géneros consumidos pelas classes populares estivessem estragados. Os fiscais
tentavam pôr cobro à situação, mas não chegavam para as encomendas. No mercado
central, a 17 de julho, tinham sido inutilizadas, como impróprias para consumo,
81 pescadas, 76 peixes-espadas e 1200 carapaus: era uma gota no oceano.
Com os seus pregões e cheiros, gritos e correrias, a
vida nestes bairros era animada. Até
certo ponto, o bairro reproduzia a aldeia originária, com as suas redes de
lealdades e rivalidades. Muita gente nascia e morria ali, sem ter saído dos
seus limites estreitos: era ali que trabalhava, namorava e se zangava. Como em
todos os universos fechados, as brigas eram frequentes, assumindo por vezes um
carácter violento. A 18 de julho, um casal da Mouraria fora atacado, na cama,
por uma vizinha que brandindo um garfo os feriu de tal forma que tiveram de ser
conduzidos ao Hospital de S. José. Um pouco acima, António Martins socava
barbaramente a sua amante Maria Engrácia; noutro ponto da cidade, o padeiro
José Dias da Silva era preso por arremessar à amante, Ana de Jesus, uma bilha
que lhe despedaçou a cara. Certas zonas da cidade, depois do sol posto, Alfama,
a Mouraria ou o Bairro Alto, eram particularmente perigosas. O policiamento era
ineficaz. Só os criminosos mais azarentos, como o Bexiga, acabavam presos. O
povo de Lisboa era uma amálgama muito particular. Juntava gente variada, do
operário fabril ao descarregador, da criada ao artesão, do pequeno funcionário
ao caixeiro. Formavam a massa dos "pequenos", da "ralé", da
"canalha", que ganhava o pão com o suor do seu rosto. Se entre o
pequeno lojista e o operário havia um mundo de diferenças, estas tendiam a
esbater-se quando os poderosos entravam em cena. Era contra os da
"alta" que os "pequenos" se definiam.
Cidade portuária, a zona ribeirinha era uma das mais ativas
de Lisboa. Pelas docas de Alcântara, Ihe chegava o
carvão que consumia nas suas fábricas; pela de Santos, as mercadorias
coloniais; pela do Cais do Sodré, os melões e o vinho de Almeirim, o trigo do
Alentejo, as melancias de Setúbal, o peixe que abastecia a cidade. Fragateiros,
varinas e descarregadores povoavam este cenário luminoso e febril. Todos os
dias atracavam grandes transatlânticos, despejando mercadorias. No sábado, o
movimento da alfândega fora, como de costume, intenso: para o Maranhão,
seguira, no Bragança, um carregamento de feijão; para Hamburgo,
no Davis, 171 fardos de cortiça; para Liverpool, no Ter, 147
caixas de maçãs, 630 caixas de cebolas e 17 caixas de tomates; para Bordeaux,
no Mokla, 226 caixas de sardinhas. De Newcastle, a bordo
do Catarino Richard, chegara um carregamento de carvão.
Os contrastes entre ricos e pobres eram enormes. É verdade que os milionários portugueses eram
patéticos quando comparados com os seus parceiros europeus, mas em face da
miséria indígena qualquer ser com o mínimo de sensibilidade se chocaria. No
centro da cidade, entre portais e vãos de escada, amontoavam-se cegos,
estropiados, crianças abandonadas e velhos paralíticos. Para muitos, os pobres
faziam parte da ordem do Universo e a injustiça social de que eram vítimas era
tão natural como o facto de um sobreiro não ter nascido um pinheiro, como mais
tarde escreveria Fernando Pessoa. Os miseráveis eram objectos que Deus colocara
no caminho dos ricos para que estes pudessem exercer a caridade, nas festas e
nos bazares variados, como o que, na véspera, tivera lugar no passeio da
Estrela, durante o qual as senhoras da Lapa leiloaram entre si os despojos
oferecidos.
Mas não havia caridade que bastasse para este caudal imenso de costureiras pálidas e
tísicas, artesãos desempregados de olhar rebelde, vendedeiras esmagadas pelo
peso da carga, velhas abandonadas que falavam sozinhas, coxos, cegos e manetas.
Nesse Verão de 1886, os albergues noturnos abarrotavam de gente suja e
esfarrapada que, aos milhares, ali ia em busca de uma sopa e de uma enxerga. Os
jornais transmitem os gritos dos que viviam aflições: a Assunção da Glória,
viúva, moradora na Trav. de S. João de Deus apelava ao público para que lhe
desse qualquer coisinha, pois não tinha família que lhe valesse; a Amália
Vidal, moradora na Rua da Mouraria, pedia a uma alma caridosa que lhe pagasse o
quarto escuro donde estava em risco de ser despejada. Havia outros recursos,
mas eram mais arriscados. Nesse dia, o marítimo José Maria fora preso, por ter
roubado dois gorazes do mercado da 24 de Julho.
Os trabalhadores ganhavam salários irrisórios e estavam sempre à beira do desemprego.
Alimentavam-se, ano após ano, a pão, sopa e batatas, uma ementa insuficiente
que ajuda a explicar as altíssimas taxas de mortalidade de Lisboa e do Porto.
As doenças que mais mortes causavam eram a tuberculose pulmonar e as
pneumonias. Havia quem não aguentasse esperar: Luísa, criada de servir,
atirava-se, na tarde de 18 de julho, de um terceiro andar na Rua do Oiro para a
rua após ter sido despedida; o cozinheiro Cândido da Silva lançava-se ao Tejo.
As condições de trabalho eram atrozes: a duração do dia de trabalho era longuíssima e a
segurança nas oficinas inexistente. Todos os dias se verificavam acidentes:
fiandeiras que ficavam sem dedos, pedreiros que caíam de andaimes, vidreiros
que arruinavam os pulmões, mineiros que ficavam soterrados. A 18 de Julho,
quando trabalhava na construção de uma linha de caminho-de-ferro, Sebastião
Pereira, de 30 anos, fora subitamente esmagado por um penedo que se soltara, enquanto
Manuel do Ó caia de uma tábua durante um descarregamento no cais. Perante este
espetáculo, até os mais acérrimos defensores do liberalismo foram forçados a
vergar. A ideia de que o Estado tinha de intervir para proteger os mais fracos
foi-se espalhando.
O nível cultural da população era baixíssimo: oito em cada dez portugueses não sabia ler nem
escrever, situação que na Europa só encontrava paralelo nos mais remotos cantos
do Império Austro-Húngaro. Apesar da retórica, o regime não tinha sido capaz de
melhorar a instrução do povo. Apenas em Lisboa e no Porto se tinham verificado
alguns progressos, mas mesmo esses eram ridículos. Nas cidades, organizados
pelos operários e pelos republicanos, alguns organismos faziam esforços
louváveis para educar as massas, mas a tarefa era grande de mais para os seus
fracos recursos. Muitas vezes, a atividade destas associações limitava-se a
conferências doutrinárias, como a que, nesse domingo, Manuel de Arriaga,
proferia na Associação Escolar e Eleitoral de Sacavém.
No meio de todas estas desgraças, os ricos gozavam
imperturbavelmente os frutos da terra.
Os contratos com o Estado, as grandes companhias monopolistas, os
"negócios" tinham gerado os famosos "barões" da
Regeneração, os "novos ricos" de quem surdamente toda a gente sentia
inveja. Existia também uma camada de burgueses com tradições, ricos e cultos,
muitos deles estrangeirados, de entre os quais se destacava o conde de Daupias,
dono da fábrica de lanifícios que o seu avô Ratton fundara em 1839, ao Calvário.
No seu belo palacete, mesmo ao lado da fábrica, Daupias mantinha um salão
permanentemente aberto, em que os seus amigos, alguns pertencentes à melhor
nobreza do Reino, se reuniam para ouvir bons concertos e para se deliciar com
os jantares que o cozinheiro francês lhes preparava. Acima deles, havia uma
velha aristocracia "caquética e caturra", como Eça de Queirós lhe
chamava, ciosa dos seus pergaminhos, mas minada nos seus fundamentos pela
abolição dos morgadios. Estes aristocratas levavam geralmente uma vida
recatada, apenas entrecortada por bailes diplomáticos ou receções no Paço.
Viviam em palácios decrépitos, paredes meias com os pobres que, em momentos de
magnanimidade, gostavam de proteger.
À volta do rei, uma pequena corte de amigos e dependentes
partilhava rotinas e hábitos.
No Verão, seguiam para Sintra, Cascais ou Mafra. A família real passara essa
semana de julho, em Sintra. Depois de ter ouvido a missa dominical na capela
real, durante a qual se tocara a polka que o mestre de música
de Caçadores 2 compusera em honra da recém-chegada noiva do príncipe herdeiro,
decidira partir para Mafra: estavam todos ansiosos pela caçada planeada para o
dia seguinte na Real Tapada, durante a qual a princesa D. Amélia de Orléans se
destacaria, ao matar três dos nove veados nesse dia abatidos.
O centro de todo este mundo era o S. Carlos. Era aqui que os ricos faziam os seus casamentos,
conspiravam, mostravam as toilettes vindas de Paris. Além
deste convívio familiar, havia o recém-fundado clube, O Turf, onde
os homens iam jogar e discutir política. Mas nesse domingo de Verão, ambos
estavam desertos: o S. Carlos fechara as suas portas por alguns meses e os
membros do Turf estavam quase todos fora da capital.
No princípio de julho começara a debandada dos ricos:
ficar em Lisboa era o cúmulo da ignomínia social. Os mais invejados eram os que
partiam para o estrangeiro. A 18 de Julho, o movimento dos carros de aluguer
era intenso nas estações de caminho-de-ferro, levando e trazendo os que chegavam,
de "Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!". De umas curtas
férias em Vichy, chegara o "abastado capitalista" Policarpo dos Anjos, diretor
da Associação Comercial de Lisboa, com a sua esposa e sogra; o
primeiro-ministro, José Luciano, viera de Sintra, onde fora descansar, com a
mulher e as filhas, durante uns dias; os condes de Casal Ribeiro regressavam da
sua quinta em Braga. Outros partiam, felizes: o príncipe D. Afonso embarcava no
paquete Araucária, a caminho de Bordéus; a rainha D. Maria Pia
preparava-se para ir passar uma temporada às Caldas. O conselheiro Martens
Ferrão trocava a sua casa na capital pela sua quinta no Poço do Bispo. O
conhecido banqueiro H. Moser partia para Paris. Até os republicanos repousavam
dos seus afazeres revolucionários: Teófilo Braga partia para o Minho, enquanto
o "dedicado correligionário" Miguel Braga passava uns tempos em
Vizela. O interesse por toda esta movimentação estival era tal que nas Novidades existia
mesmo uma coluna, "Praias e Caldas", onde se forneciam ao leitor
listas nominais de quem chegava e partia.
Os pequeno-burgueses ficavam-se por Linda-a-Pastora,
Belas ou Caneças, sítios aprazíveis, de belas quintas
muradas e aldeias lavadas, com bons ares, boa luz, bons alimentos. Quem não
alugaria a casa que a 18 de Julho o Diário Popular anunciava:
"Aluga-se fora de portas, mas próximo de Arroios, sitio saudável, tem água
da Companhia, excelente escada, 9 compartimentos, muito limpos e espaçosos,
incluindo despensa e quarto para criado, passam-lhe à porta de 1/2 em 1/2 hora
carros Riped e outros. Renda até ao fim do ano:
50.000$00"?
Entalados entre os ricos e os pobres, estes
pequeno-burgueses dividiam-se nos seus hábitos, comportamentos políticos e
cultura. Os mais ambiciosos tentavam imitar o
estilo de vida aristocrático, enquanto as camadas inferiores, que não podiam
acalentar tais ambições, se consumiam num ressentimento social que aumentava
com a crise económica e com a prolongada marginalização. Em 1886, muitos
estavam já descrentes de que o regime monárquico lhes desse o que pretendiam:
consideração social e participação politica. Alguns começaram a aderir ao
movimento republicano que exprimia maravilhosamente o seu ódio aos privilégios
sociais.
Os jornais populares espelham a sua visão do mundo. O contraste entre a vida dos ricos e dos pobres é
celebrado até à exaustão: de um lado, a família burguesa, envolta em seda e
arminhos; do outro, a pobre, tiritando de frio e fome. Centenas de poemas e
folhetins pequeno-burgueses denunciam a miséria, atacam os ricos e troçam dos
padres: é o grande fresco dos humilhados e ofendidos, a retórica lacrimejante
tão apreciada em reuniões populares. Os títulos destes poemas,
"Contrastes", "A Miséria", "A Prostituta",
"O Desgraçado", são indicativos do conteúdo. Cesário Verde faz parte
desta tradição: o que distingue é o génio.
A influência da Igreja na sociedade portuguesa era
considerável, o que inevitavelmente fez dela um dos
alvos preferidos dos republicanos. Nos campos, os párocos controlavam os
grandes rituais da vida, além de servirem de intermediários entre os camponeses
e o poder. Em Lisboa, a Igreja defrontava-se com obstáculos crescentes. Para os
trabalhadores e para as classes médias, era evidente que a Igreja estava do
lado dos ricos. Não existindo, como nos países protestantes, possibilidade de
se criarem novas igrejas, a única saída que lhes restava era o
livre-pensamento. A capital passou a estar dividida entre uma maioria que
aceitava passivamente a doutrina da Igreja e uma minoria ativa que defendia as novas
ideias contra tudo e todos.
Nesse domingo de julho, os católicos tinham uma
escolha variada: na Igreja de S. José, como em tantas outras, havia primeira
comunhão de meninos, seguida de missa, durante a qual pregaria o Rev. Gaspar
Borges; pelas 6 h. da tarde um Te Deum com o Rev. Duarte do Rosário. Na Igreja
dos Anjos, realizava-se a novena ao Coração de Jesus e, nas Chagas, ensino de
doutrina, ladainha e bênção. Alguns resistiam heroicamente a estas influências:
em tribunal, o caldeireiro de ferro, Paulo Rodrigues do Amaral, recusara-se, na
antevéspera, a prestar juramento sobre os Evangelhos, alegando que era ateu.
Por seu lado, a "Associação Antijesuítica" andava muito atarefada com
o seu projeto de criação de um colégio de meninas que lhes ministrasse os
conhecimentos necessários para as colocar "ao abrigo das tentações e
seduções jesuíticas". Para salientar bem que o perigo era real, noutra
página, O Século noticiava o rapto da bela sobrinha do prior de Belas,
misteriosamente desaparecida de madrugada, depois de ter deixado ao namorado
uma nota angustiada: na povoação, claro, toda a gente atribuía a façanha aos
Jesuítas.
Quem, a 19 de julho de 1886, abrisse, de manhã,
a janela, perceberia que o dia iria estar quente. No Norte trovejara, mas nos
arrabaldes da capital, entre as ribeiras e os montes, o clima estava ameno. Nos
pomares, cantavam os pintarroxos, nos prados as vacas leiteiras pastavam
pachorrentamente e, entre pedregulhos luzidios, as mulheres saloias
preparavam-se para lavar as últimas peças de roupa que, no dia seguinte, teriam
de entregar nas casas ricas da capital. Famílias aperaltadas partiam para a
missa dominical. O silêncio era apenas entrecortado pelas chocas da manada e
pelos carros de bois que desciam do outeiro. Foi no meio deste esplendor que,
às 5 h da manhã, com os pulmões destruídos pela tuberculose, "sem querer,
aflito e atónito", morreu José Joaquim Cesário Verde. Tinha 31 anos e vira
chegar o fim "como um medonho muro".
“Para uma síntese da obra
de Cesário Verde” - apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para
análise literária da lírica de Cesário Verde, por José Carreiro. In: Folha
de Poesia, 2018-04-22. <https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/04/cesario-verde.html>
CARREIRO, José. “Cesário
Verde - o homem e o seu tempo”. Portugal, Folha de Poesia, 08-09-2021.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/09/biografia-de-cesario-verde.html