terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Green god, Eugénio de Andrade


Green man inspired, upload by ingrid newman



Green god

 

Trazia consigo a graça

das fontes, quando anoitece.

Era o corpo como um rio

em sereno desafio

com as margens, quando desce.

 

Andava como quem passa,

sem ter tempo de parar.

Ervas nasciam dos passos,

cresciam troncos dos braços

quando os erguia do ar.

 

Sorria como quem dança.

E desfolhava ao dançar

o corpo, que lhe tremia

num ritmo que ele sabia

que os deuses devem usar.

 

E seguia o seu caminho,

porque era um deus que passava.

Alheio a tudo o que via,

enleado na melodia

de uma flauta que tocava.


Eugénio de Andrade, As mãos e os frutos (1948)

 




Textos de apoio

 

Ake Art


Correntes neomodernistas em Portugal - Eugénio de Andrade

 

Neste [primeiro] ciclo, em que aquisições neorrealistas e surrealistas, ou heranças de cancioneiro ancestral e de neobarrorroquismo hispânico, se sobrepõem aos influxos estéticos do Modernismo, emergem os veios fundamentais da poesia de Eugénio de Andrade: o amor e o desejo, a sensibilidade à terra, sua configuração e seus frutos, o metaforismo produzido a partir dos motivos elementais, sobretudo os da água e do ar, a limpidez de uma expressão que se articula com a perfeição imagística e com o apurado sentido da musicalidade, a euforia de uma vivência das coisas e dos seres em termos vibrantemente sensuais. Sublinhe-se, todavia, que esse ciclo lírico já combinava o potencial insurgente com o aprofundamento estético do trabalho na linguagem, remodernizada pela imbricação de ritmo e metáfora. Com sua extraordinária unidade poemática, As Mãos e os Frutos permanecerá o livro mais emblemático - pela forma de exaltação do corpo amoroso e do desejo e pela transfusão da comunhão erótica para todo o entorno natural, qual «Green God» justamente celebrizado, mas também pela derrogação de costumeiros escapismos («Não canto porque sonho. Canto porque és real.») e pela consequente tensão da euforia libidinal com fatores disfóricos figurados em «noite», em «sombra», em «morte», geradores de melancolia e de tonalidades elegíacas do canto.

José Carlos Seabra Pereira, As Literaturas em Língua Portuguesa (Das origens aos nossos dias). Lisboa, Gradiva, dezembro de 2019 (1.ª edição), pp. 427-429.

 


Fauno dançante, jardim do Museu Sorolla, Madrid


Uma leitura de As Mãos e os Frutos

 

O deus ― Green God, que passa sorrindo e dançando, que se vem aproximando mas ―alheio a tudo o que o rodeia, divino no seu andar musical, na vida que emana e que gera, passos fazem nascer a erva e saem-lhe troncos dos braços, é essencialmente ritmo e dança. O deus passa pelo meio das coisas e, tal como o ser amado ou o próprio amor, altera aquilo que toca.

Graciosidade, vida, dança ou música emergem deste melodioso poema em que o jovem deus, personagem principal e única, faz parte integrante do cenário que transforma à sua passagem. […]

Torna-se aqui particularmente visível a articulação dos planos semântico e formal na construção da mensagem poética. Este é o único poema que apresenta uma métrica (quatro quintilhas heptassilábicas) e rima (abccb) regulares, o que contribui para o seu ritmo ―dançante e musical, ao que se alia o campo semântico evocativo da arte dos sons: dança, dançar, ritmo, melodia, flauta, tocava. Também o aspecto fónico, com a recorrência às consoantes líquidas e sibilantes, introduz no poema uma sensação de fluidez, de melodia que acompanha o dançar do jovem deus e que sugere o som da flauta que tocava.

Esta naturalidade musical anuncia-se logo nos versos iniciais, associando o corpo à ―graça/ das fontes quando anoitece e ao rio que, serenamente, segue o seu curso. É significativa a referência temporal, já que a beleza das fontes sobressai no momento em que a vida se silencia e adormece. E, tal como uma flor, o corpo, tremendo ao ritmo dos deuses, desfolha-se graciosamente na sua passagem.

 

‘As Mãos e os Frutos’ de Eugénio de Andrade e de Lopes-Graça, Ana Oliveira. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2010

 

Fauno dançante, Pompeia, casa do Fauno (100 a. C.)


 

Eugénio de Andrade - um eu lírico entre o uno e múltiplo

 

Já sobre «Green God», Eduardo Prado Coelho notara que «O amor é ator: o que faz crescer» (COELHO, E. P., 2006: 34); e, ainda em «Green God», esse deus que passa pelo meio das coisas e as fecunda à sua passagem é para esse autor um aspeto nuclear da poesia de Eugénio de Andrade: «Essa ideia de que é preciso ir pelo meio das coisas é nuclear.

Aquele que vai pelo meio das coisas pertence às próprias coisas. As coisas estão dentro dele» (ibid.). O sujeito passa pelo meio das coisas para as poder contagiar e se deixar contagiar por elas, o que de certa forma define a maneira como a sensação de plenitude é elaborada na poesia de Eugénio.

 

Eugénio de Andrade: uma proposta de plenitude, Maria de Fátima Cordeiro. Universidade Aberta, 2010, pp. 41-42

 

Chris Hemsworth, Ego Rodriguez Illustration, 2020


 

Eugénio de Andrade: um dizer rente à turbulência

 

Algumas reflexões sobre a presença do corpo, a ambiguidade sexual e o afeto na produção poética de Eugênio de Andrade.

 

A construção de um corpo masculino sedutor e atraente, movendo-se entre o dinamismo e a fluidez, o natural e o ideal, realidades aparentemente dispersas, articula-se a uma ideologia de valorização do masculino na sociedade ocidental desde o século XIX.

A novidade para a cena portuguesa era, sem dúvida, falar do corpo masculino com uma desenvoltura erótica inusitada, realçando de forma agressiva uma certa fixação em elementos fálicos (no caso, a “flauta que tocava”, em outros poemas, os braços (do parceiro) “deslumbrados”, “nus e suados”; em Obscuro domínio, alude-se à “sombra de um lírio entre as pernas”). A fortuna crítica deste poema é notável. Jorge de Sena refere-se, entre outras coisas, à última estrofe:

 

Note-se que o ele ir “enleado na melodia/ de uma flauta que tocava” pode aludir falicamente, de uma maneira notavelmente transposta, à sexualidade não-disponível da jovem personagem masculina deificada no poema: vai embebido em tocar-se o sexo (...), sem que isso signifique que o faz deliberadamente para atrair a atenção dos circunstantes para a sua virilidade.2

 

Eduardo Lourenço, fundamentado em convicções filosóficas e essencialistas, preferiu ver no poema a “imersão do divino no natural e do natural no divino”.3 Convincente como elaboração filosófica, a análise de Lourenço hoje cheira a mofo, tendo em vista o crescente desenvolvimento dos estudos de homocultura, ainda mais em face de um texto paradigmático de uma concepção vincadamente gay. A comparação do corpo do outro (o parceiro) a um rio retorna no poema XVIII, acentuando a idéia de integração de dois corpos:

“Impetuoso, o teu corpo é como um rio/ onde o meu se perde. / Se escuto, só oiço o teu rumor. / De mim, nem o sinal mais breve”. Símbolo antigo da fertilidade, o rio relaciona-se a música, sugerindo não apenas a união de dois rios (os dois corpos), mas a união harmoniosa. Alexandre Pinheiro Torres comenta:

 

Curioso é verificar que ambos os corpos são comparados a rios, pelo que haverá que concluir que um rio desaguará noutro rio. Este ponto não é tão irrelevante como poderá parecer. Recordem-se que os rios em Lorca não vão dar ao mar. Acabam em tanques. E o tanque é, por sua vez, símbolo da esterilidade.4 (grifos do autor)

 

A idéia de esterilidade, em As mãos e os frutos, inscreve-se na metáfora da folha, se relacionada a flor e fruto. No poema 24, num cenário de “silêncio e solidão”, somos comparados a “folhas breves”, uma vez que frágil e passageira é toda vida; somos ainda identificados a folhas “incapazes de ser flor”, portanto estéreis:

 

Somos folhas breves onde dormem

aves de silêncio e solidão.

Somos só folhas ou o seu rumor.

Inseguros, incapazes de ser flor,

até a brisa nos perturba e faz tremer.

 

Importa observar que nesse mundo de esterilidade passa o amado “entre as folhas”, operando uma geral transformação, fazendo tudo nascer ou renascer: “Quando em silêncio passas entre as folhas, / uma ave renasce da sua morte/ e agita as asas de repente”. Um atributo, entretanto, é próprio da folha, a sensibilidade. De acordo com Torres: “A folha simboliza certamente, na sua fragilidade, na facilidade com que estremece, a capacidade humana para a emoção, talvez para o terror, qualquer coisa que apenas uma brisa bastará para perturbar”.5

Desde então esta poesia, aparentemente frágil em termos de militância gay, instaura-se como espaço de ambigüidade sexual, na medida em que intersecciona a celebração de uma experiência erótica interdita à melancólica expressão desta interdição. Ao construir uma escrita poética visceralmente ligada ao corpo, o sujeito de enunciação tem-se marcado por insistir nos traços reveladores “da melancolia face às repressões”, de acordo com a análise de Joaquim Manuel Magalhães,6 uma melancolia quase sempre articulada a uma luminosa perspectiva de desejo e de prazer. Desde esse livro de fulgurantes claridades, entretanto, os olhos surgem “carregados de sombra”, para um sujeito consciente de que “Só as tuas mãos trazem os frutos”, como se afirma num dos poemas, sugerindo a idéia de que a produção e a fertilidade (as mãos e os frutos) são atributos do outro, aquele que impedirá a desertificação do corpo. A tônica dos poemas constitui a idéia de que a existência é transformada pela oferta simbólica dos frutos realizada pelo outro. As palavras interditas (1951) é um livro marcado pela experiência da guerra, o que não significa afastamento da temática amorosa:

(...)

As palavras que te envio são interditas

até, meu amor, pelo halo das searas;

se alguma regressasse, nem já reconhecia

o teu nome nas suas curvas claras.

 

Dói-me esta água, este ar que se respira,

dói-me esta solidão de pedra escura,

estas mãos nocturnas onde aperto

os meus dias quebrados na cintura.

 

E a noite cresce apaixonadamente.

Nas suas margens nuas, desoladas,

cada homem tem apenas para dar

um horizonte de cidades bombardeadas.7

 

As marcas da guerra (“este ar que se respira”, “cidades bombardeadas”) não conseguem eliminar a rigorosa articulação entre poesia (“as palavras que te envio”) e vivência amorosa (“a noite cresce apaixonadamente”).

Tem sido muito debatida a rasura da nomeação explícita do referente amoroso na poesia de Eugênio de Andrade. A ocultação do gênero sexual do parceiro é uma constante nesta poesia. As inspiradas relações amorosas se ressentem de uma explicitação da opção sexual, ou o parceiro é referido através de uma zona vazia ou um pronome neutro. A excessiva cobrança de uma visibilidade homoerótica nem sempre leva em conta, entretanto, o contexto repressivo da sociedade portuguesa dos anos 50 aos 70. Joaquim Manuel Magalhães tem discutido essa rasura da visibilidade homoerótica com argumentos que variam da irritação à tentativa de inserção da poesia de Eugênio de Andrade num projeto político.

 

....[os livros subseqüentes a Limiar dos pássaros] afirmam uma linha de tristeza, mesmo que face a circundantes esplendores, que é simultaneamente pessoal e política. E política não apenas por se inscrever numa história colectiva de quotidiano reprimido pela organização totalitária do Estado, mas por ter de calar uma história pessoal reprimida pela moral maioritária: “As palavras que te envio são interditas”.8

 

Um aspecto decisivo nesta poesia é sua gradual evolução no sentido de incorporar a inclinação homoerótica. Além de se tornarem mais constantes, as alusões à cultura gay revestem-se por vezes de um tom sombrio e negativo, como possibilitam alterações lexicais ou de imagens. Um dos poemas de As mãos e os frutos sofreu importantes modificações na edição subseqüente. Para acompanhar o que se segue, é necessário uma remissão ao poema VIII daquele livro:

 

Foi para ti que criei as rosas.

Foi para ti que lhes dei perfume.

Para ti rasguei ribeiros

e dei às romãs a cor do lume.

 

Foi para ti que pus no céu a lua

e o verde mais verde nos pinhais.

Foi para ti que deitei no chão

um corpo aberto como os animais.

 

O último verso na edição de 1948 dizia: “uma mulher pura como os animais”. Esta variante – “um corpo aberto como os animais” - passa a circular a partir de 1968 (Poemas) quando cinco poemas sofrem profundas modificações. Mesmo reconhecendo que nenhuma delas tenha afetado “o arranjo estrófico dos versos”, Jorge de Sena considera-as reveladoras de mudanças da “personalidade do poeta”,9 complementando algumas observações sobre a “curiosíssima” alteração:

 

Na primeira forma, “mulher pura” era uma sugestão violenta mas corrente (a violência vinha do contraste com “animais”, antes de o leitor se aperceber de que “pura” significava “livre de pecado”, logo não-humana, ou seja não restringida pelas convenções morais e sexuais que limitam e deformam o humano, ou o impedem de ser, sem pecado, natural, um natural em que se inclui qualquer “contra-natura”, definida por aquelas convenções). “Corpo aberto”, na experiência, é-o muito menos [violento], mas implica generalidade e ambigüidade quanto ao sexo da personagem que o poeta declara haver deitado no chão para a pessoa desejada; e é sem dúvida uma imagem (ou metáfora) mais incisiva.10

 

Mais do que curiosíssima, a variante definitiva afasta-se de juízos morais presentes em “mulher pura”, eliminando também a notação de gênero (mulher), ainda que mantenha a “generalidade” referida por Sena (um corpo aberto tanto pode ser de homem como de mulher). Não deixa também de ser enriquecedora a nota de rodapé no texto de Jorge de Sena:

 

Corpo aberto significará ou sugerirá “corpo que se abre”, “corpo que se entrega”, “corpo que não resiste à posse”, “corpo sensualmente apaixonado” - o que é reforçado por como os animais: “corpo sem inibições de ordem moral”, “corpo de que nenhuma parte se fecha ou retrai ante as mais diversas formas do contacto erótico”.11 (grifos do autor)

 

Sena reclamava no mesmo texto da “irregularidade lógica” da variante “corpo aberto como os animais” (para ele, deveria ser “corpo aberto como os dos animais”). Não seria ocioso mencionar a aliança homem/natureza como retificadora da fórmula preferida pelo poeta, destacando o fato de o corpo aberto e desejante ser incapturável pelo pensamento lógico. A variante evidencia ainda as intensidades e as desproporções que assolam as sensações do corpo – esse grande ausente dos debates filosóficos do Ocidente.

 

O corpo (...) perdurou “ausente” nos pares categoriais (morais e disciplinares) das ficções do humano e da animalidade, da cultura e da barbárie, do real e do simbólico, e assim sucessivamente na história das filosofias e nas crenças humanas e sociais.12

 

O corpo passa a ser visto na moderna masculinidade como elemento aglutinador de valores extraídos pela classe média de vários estratos socioeconômicos (a ética do trabalho e da família, herança da burguesia; a solidez, a coragem e a generosidade, herança da aristocracia; a beleza e a harmonia de formas, herança da antiguidade clássica). Nomeando o corpo desejante, dionisíaco, aquele que não se deixa domesticar pela filosofia e pelos aparelhos de controle ou de vigilância estatal, o poema de Eugênio de Andrade distancia-se ainda do senso de culpa e de qualquer contaminação edipiana, apagando as ressonâncias e formas de tirania e opressão, mesmo as pequenas, de que nem nos damos conta, de tal forma a elas nos habituamos. O “corpo aberto como os animais”, corpo sem cérebro e à deriva, sela o poema com uma chave alegre e inusitada, sugerindo a fruição do prazer vivido intensamente, em direção a uma experiência e a uma tecnologia do desejo não mais freudiana e sim de tendência deleuziana. Além das formas colossais de fascismo, existem as “formas pequenas que fazem a amarga tirania de nossas vidas cotidianas”,13 de que fala Foucault a respeito do livro O anti-Édipo, de Gilles Deleuze. Nesse mesmo texto, Foucault afirma que o livro referido “não concebe oposição entre o homem e a natureza, a natureza e a indústria, mas simbiose e aliança”, tal como ocorre em “corpo aberto como os animais”.

 

É desagradável ter que dizer coisas tão rudimentares: o desejo não ameaça uma sociedade porque é desejo de deitar com a mãe, mas porque é revolucionário. E isto quer dizer, não que o desejo é outra coisa diferente da sexualidade, mas que a sexualidade e o amor não vivem no quarto de dormir de Édipo, eles sonham mais com uma grande amplidão, e fazem passar estranhos fluxos que não se deixam estocar em uma ordem estabelecida. O desejo não “quer” a revolução, ele é revolucionário por si mesmo e como que involuntariamente, querendo o que quer.14

 

Data de fins do séc. XIX, mais precisamente do processo de Wilde (1885), a crise em torno do masculino, com o deslizamento semântico (ou melhor, confusão) provocado pelas identidades de gênero e identidades sexuais (heterossexual e efeminado, homossexual e efeminado, homossexual e viril) com profundas conseqüências no pensamento e ciência modernos.

 

...muitas das mais importantes articulações do pensamento e do conhecimento na cultura ocidental do séc. XX como um todo estão estruturadas – na realidade, fraturadas, – por uma crise crônica, agora endêmica, de definição homo/heterossexual, nomeadamente masculina, que data do fim do séc. XIX.15

 

A partir da primeira década do século XX começa-se a falar de homossexualidade para definir a sexualidade das pessoas cujo objeto de amor preferencial era uma pessoa do mesmo sexo. A psicanálise freudiana revela dificuldade em reconhecer a opção sexual calcada na diferença, corroborando uma milenar exclusão moral. Vista como exceção ao desenvolvimento paradigmático da libido, a homossexualidade é tratada como patologia no romance realista. Até meados do século XX, em geral, as relações homossexuais aparecem na literatura de forma sombria e carregadas de senso de culpa (Proust, Gide, Wilde, Thomas Mann), quase sempre como o amor que não ousa declarar-se. A partir dos anos 70 do século passado, o homoerotismo passa a ser visto como uma vertente específica de uma cultura minoritária, diante de um grupo heterossexual majoritário, mais ou menos opressivo.

Uma evidência se impõe, o controle da sociedade burguesa patriarcal sobre grupos minoritários, o que leva Georges Chauncey a afirmar que “o controle da homossexualidade não é senão um aspecto do controle da heterossexualidade”.16 Outra evidência incontornável: o papel destacado que o homoerotismo masculino ocupa no cânone literário ocidental. Os gay and lesbian studies tentam provar que as opções sexuais seriam conseqüências de uma construção cultural, implicando escolhas e estratégias diferentes.

A poesia de Eugênio de Andrade, visceralmente ligada ao corpo, ele próprio atravessado pelas astúcias da sedução e do desejo, apresenta uma evolução no trato com o homoerotismo, Se nos damos ao cuidado de verificar que As mãos e os frutos é de 1948, em pleno contexto de repressão moral e política, cumpre reconhecer as estratégias de ocultação de uma sensibilidade gay, apesar de jamais apagadas. As variantes aplicadas aos poemas apontam não limitações de linguagem, mas estratégias mediadoras de visibilidade homoerótica, a se revelar entre o sinal de mais e o de menos. Cumpre mencionar, noutra modificação efetuada em outro poema à edição original, cujo universo semântico se aproxima ao do verso que se está comentando (corpo aberto/ corpo que se abre; mulher pura, madrugada pura), que a variante dada como definitiva (de 1968) representa um retrocesso em termos de visibilidade homoerótica. Trata-se do verso “O teu corpo, completo, abre na madrugada”, modificado para “Que palavra/ abre a noite à mais pura madrugada?” Diante dessa variante empobrecedora insurge-se, perplexo, Jorge de Sena:

 

Mas qual a razão, por certo fortíssima, de ser substituído um verso lindíssimo como O teu corpo completo, abre na madrugada, com a sua sugestão de corpo que se abre, para a entrega amorosa, e se abre completo, dando-se inteiro, tal como as flores que abrem no amanhecer?17

 

Desde As mãos e os frutos (1948), Os amantes sem dinheiro (1950), As palavras interditas (1951), Mar de setembro (1961), Véspera da água (1973), Limiar dos pássaros (1976), Rente ao dizer (1992), entre muitos outros títulos, Eugênio de Andrade vem construindo uma obra densa de alusões a Eros na vida cotidiana. A simplicidade dos recursos, a proximidade do afeto, a descrição maliciosa, a integração com os elementos naturais, o discurso ciciado nas margens e fronteiras da fruição amorosa, a ambigüidade sexual transparecem nos seus poemas. Referência tutelar na expressão mítica do homoerotismo, quase sempre caudatária de um grito libertário, mais sugerido que enunciado, sua poesia influencia sobremaneira uma sensibilidade poética que vai surgir nos anos setenta, com a celebração do corpo e de uma sexualidade terrivelmente dispersa.

Para concluir esta incursão por alguma poesia de Eugênio de Andrade, como subsídio, trago depoimentos do próprio poeta, em vários momentos manifestando circunstâncias ligadas à sexualidade em sua aproximação com a Espanha. Os testemunhos, de grande valia biográfica para a compreensão da sexualidade nesta poesia, dispensam comentários. O primeiro depoimento vem em Os afluentes do silêncio: “aconteceu-me o que tinha que acontecer para que Espanha se tornasse em mito: o amor e a poesia iam encontrar-se e reconhecer-se”. (“Com Angel Crespo por vários caminhos”). Outro depoimento aparece em Rosto precário: “(...) por razões que quero calar, a partir de 1961, após umas férias no País Basco, onde escrevi em grande parte Mar de setembro (eis a dívida maior com a Espanha: uma paixão e um livro)”. O terceiro depoimento é uma entrevista escrita pelo poeta a Joaquim Manuel Magalhães. À pergunta: Como foi sua relação com Espanha?, responde Eugênio de Andrade:

 

Foi, antes de mais, afectiva. E ligação de juventude, que atingiu o seu zênite nos anos 50. Mas começa com uma avó materna, de Valverde del Fresno (eu nasci perto da fronteira), e com idas freqüentes, ainda menino de colo, a Cória, onde meu avô se encarregava de obras de construção civil. Em casa dizia-se que foi em Espanha que me nasceram os primeiros dentes. A relação afectiva prossegue em Lisboa, teria eu onze/ doze anos, com um rapazito das bandas de Compostela, três ou quatro anos mais velho, que se hospedara na nossa casa. Além de uns rudimentos de sexualidade, devo-lhe a leitura do Quixote, coisas ambas que tiveram para mim a sua importância.18

 

Notas:

1 ANDRADE. Antologia breve, p.19.

2 SENA. Observações sobre As mãos e os frutos, p. 273-274.

3 LOURENÇO. AAVV. 21 ensaios sobre Eugênio de Andrade.

4 TORRES. O conflito entre o instinto e a sociedade em As mãos e os frutos de Eugênio de Andrade, p. 6.

5 TORRES. O conflito entre o instinto e a sociedade em As mãos e os frutos de Eugênio de Andrade, p. 8.

6 MAGALHÃES. Os dois crepúsculos, p. 107.

7 ANDRADE. Antologia breve, p. 39-40.

8 MAGALHÃES. Os dois crepúsculos, p. 109-110.

9 SENA. Observações sobre As mãos e os frutos, p. 251.

10 SENA. Observações sobre As mãos e os frutos, p. 272-273.

11 SENA. Observações sobre As mãos e os frutos, p. 273.

12 ESCOBAR. Dossier Deleuze, p. 151.

13 ESCOBAR. Dossier Deleuze, p. 84.

14 DELEUZE e GUATTARI. O anti-Édipo, p. 151-152.

15 SEDGWICK. Epistemology of the Closet, p. 1.

16 CHAUNCEY. Genres, identités sexuelles et conscience homosexuelle dans l’Amérique du XX siècle, p. 107.

17 SENA. Observações sobre As mãos e os frutos, p. 281-282.

18 MAGALHÃES. Rima pobre - poesia portuguesa de agora, p. 284-285.

 

Eugênio de Andrade: um dizer rente à turbulência”, Edgard Pereira. Aletria: Revista De Estudos De Literatura, n.º 9, 2002, pp. 117–125



Pan, Joe Phillips, 2021

 


Outros textos de apoio

 

 

 

 

  



Il Fauno, Vilela Valentin, 2017






Fauno, Gianpiero Averna



CARREIRO, José. “Green god, Eugénio de Andrade”. Portugal, Folha de Poesia, 07-12-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/12/green-god-eugenio-de-andrade.html



sábado, 4 de dezembro de 2021

Greta Benitez


 

89

 

Sou tão velha que meus amantes já são nomes de ruas

Sou tão velha que minhas vontades já estão nuas

Sou tão velha que minhas verdades já são as suas.

 

Eu sou do tempo em que se fumava no cinema.

 

Sou tão velha que minha voz agora é boa para ler um poema.

 

Sou livre:

Posso fazer o que quiser que ninguém liga.

 

Parte de mim

Mora numa foto antiga.

 

Greta Benitez, Canção Antiqüe. Patuá, 2013


Greta Benitez 

 


BORDADO

 

Hoje estou fácil para você.

na vitrine, de graça (quase).

Cantando na praça

Bordando uma frase

Tricotando passos à sua procura pelas ruas

Hoje, mas só por hoje,

                  Minhas tatuagens são suas.

 

Greta Benitez (Curitiba, 1971)




CARREIRO, José. “Greta Benitez”. Portugal, Folha de Poesia, 04-12-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/12/greta-benitez.html


sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Frederico Pedreira

 


Repetem-se suaves as armações da manhã,

em gestos e mensagens limados,

abrindo-se no meu Peito. Procurar

os outros e neles uma voz semelhante,

o peso de ter nascido assim.

 

Ter a tua palavra na minha.

Regresso, porque tenho de regressar,

à vergonha de ter sido simples,

um corpo que larga fumo branco.

 

Ninguém me pede para continuar.

Sento-me no canteiro cansado de azul,

a cabeça no teu colo, uma boca lenta

a escavar a estranheza da tua,

pedindo-te as coisas mais simples.

 

E por vezes somos dois num assobio

alucinado em direção ao mistério

do próximo a passar: ainda não desfiz

o último coração da memória.

 

Frederico Pedreira

https://leitor.expresso.pt/diario/14-11-2014/html/caderno-1/cultura/09_Cultura_Poesia

 

 


 

CORAÇÃO LENTO

 

II.

 

Fósforo a fósforo

ilumino o teu rosto

como se fosse um fruto

lustroso, húmido das chuvas,

e a tua pele, como esse negro fruto

que me depuseram nas mãos,

descasca-se lentamente,

como se fosse apagando aos poucos

o seu próprio coração,

embora não seja extinção,

mas algo mais brando

o que o ilumina esta noite,

pousado em silêncio

sobre os meus joelhos.

 

X.

 

Jogavam xadrez junto ao mar.

Ela segurava uma romã,

ouvia-se o marulhar das águas

que nada separavam.

A sua camisola azul,

tudo rebrilhava, vermelho e azul,

nuns lábios de algodão.

As mãos dir-se-ia que ensanguentadas,

a vítrea cor dos olhos não temia

o adivinhar das próximas mortes

no suave declínio do amor.

 

XVI.

 

Houve um tempo em que me perdi

na esquina do desamor, outro houve

em que nada quis que não tivesse,

e nessa volta lenta dos derrotados

procurei sempre um sinal de luz

que me contasse os traços do teu rosto

num clarão de brevidade impossível –

como agora faço, acendendo palavras

fósforo a fósforo para nos ver sorrir

entre a roda dos cães soturnos.

 

XXXI.

 

Todas as personagens são,

por enquanto, um peso morto

na minha imaginação.

Só vejo cenários,

apetece a poesia possível

desses enredos onde ninguém pôs o pé.

Não gosto de falar ao ouvido

das personagens para que façam o que eu digo.

Nesta escrita pobre e dura,

angulosa como um caroço sem graça

ou mérito científico,

é ao meu ouvido que falo: repete

o mar, o bote nessas águas,

desdenha em paz de outros lugares.

 

Frederico Pedreira, Coração Lento

Lisboa, Assírio & Alvim, 2021




Esta arte do que não pode ser dito

Um livro de poesia construído no trilho de engenhosos contrastes

 

Coração Lento é um livro construído sob a órbita de uma certa negatividade. A qual, no entanto, é amiúde questionada pela afirmação de impulsos vários em sinal contrário, surgidos na esfera do vital. O que implica, ao longo do mais recente livro de Frederico Pedreira, que à consideração dos elementos constituintes de um polo se sucedam apelações do outro lado da argumentação. Há, por isso, um encadeamento de avanços e recuos, entre anúncios de luz e exibições de obscuridade. De resto, o elemento visual é uma das matrizes deste livro. Palavras como “olhar”, “olho[s]”, mas também “retina”, além de vocábulos correlatos, repetem-se numa cadência frequente e deliberada. Desde (pelo menos) os pré-socráticos que se tem glosado a prevalência da visão sobre todos os outros sentidos: “os olhos são, de facto, testemunhas mais precisas” (Fragmentos Contextualizados, Heraclito, IN-CM, 2005, trad. Alexandre Costa). E é, precisamente, sobretudo por via da visão que os poemas estabelecem o xadrez de opostos, os cambiantes, o ciclo da afirmação e do negado — tão admiravelmente patentes em Coração Lento. Uma disposição que se pode já notar no primeiro poema do livro. Esta composição de sinais opostos, conjunto de proposições construídas por inviabilidades, falhas, lacunas, revela, desde logo, o seu engenho na forma de tematizar o empobrecimento da paisagem, dos modos de vida, dos lastros conviviais, da perda — “A praia impossível onde te vi enfim/ descalça e feliz como poucos teriam ousado/– pétala tremendo muito de frio ao de leve/ e de uma fome que não vem neste século nem no seguinte./ Contaram-nos histórias, essas ondas íngremes/ que o povo quase todo dizia ter escalado,/ talvez dom os peixes apertados na boca.” (p.13) A citação (longa, de toda a segunda estância do poema), como se perceberá da leitura de Coração Lento, constitui a antecipação de uma súmula. O reforço de sentido trazido pela presença contígua de “não” e “nem”, mas também a expressão da impossibilidade, da fome, sublinham a negação, que o poema reforçará, no que ficou por citar, com a “brevidade”, o “insolúvel”, o “informe”. Ainda neste poema inicial se começa a delinear a importância dos lugares, assinalada, ao longo do livro, por uma ruralidade agreste. Mas a escassez traduzida nos poemas, o desamparo e a privação que atravessam Coração Lento, não se fundem num cenário de relativismo, nem tão-pouco se inscrevem nas redes de um projeto demagógico de segundas e terceiras intenções. Nem panfletarismo, nem decorativismo, são, portanto óbices a estes versos. A categoria do espaço é antes um dos constituintes da aproximação à realidade que esta poesia promove. Sem esquematismos, nem a facilidade de uma identificação excessivamente sentimental, ou manipuladora.

Hugo Pinto Santos, 2021-06-04

https://www.publico.pt/2021/06/04/culturaipsilon/critica/arte-nao-1964846


Frederico Pedreira, https://www.publico.pt/2021/06/04/culturaipsilon/critica/arte-nao-1964846


Frederico Pedreira. E tudo isto é fado

 

O recente livro de Frederico Pedreira, Coração Lento, é um bom exemplo de uma tendência para reduzir tudo a um cinzentismo que não parece deixar grande saída.

 

Uma certa poesia contemporânea portuguesa parece ter inaugurado, nos últimos anos, uma nova modalidade, um novo tom: o tristonho - é acompanhada nisso por um certo discurso crítico. Quem veja nesta uma nova Stimmung, para usar um conhecido conceito que convém deixar no original, quem veja nesta uma nova forma de as coisas nos surgirem e nos falarem, uma abertura do mundo, engana-se. Tal como o “poético”, que é essa característica que não chega a ser característica, também o tristonho é uma tonalidade, um modo de dizer que se agarra a todo e qualquer objeto - e toda e qualquer coisa, por mais entusiasmante ou entusiasmada que seja, pode ser rapidamente reconvertida e assumir essa cor própria ao tristonho. É um olhar, doente e dolente, que se abate sobre tudo (os termos, aqui, contam bastante) e que arrasta todas as coisas, uma música de fundo cinzenta que não conseguimos deixar de ouvir. Não é melancólica - falta-lhe a beleza convulsiva, falta-lhe mover-se na extremidade da língua, uma certa agitação que abala as coisas. Não é tristeza - pelo menos aquela, adolescente, de que falava Ginzburg relativamente a Pavese, também ela um extremo sem saída. É um tom menor, que se encaminha para o silêncio mas que nunca lá chega, um modo quase sussurrante de acabar os versos (basta ouvir tantos a declamar para ver que os versos acabam sempre na mesma ausência de tom, na mesma música de elevador de baixa intensidade).

O recente livro de Frederico Pedreira (Coração Lento, ed. Assírio & Alvim) é, a esse nível, exemplar. Exemplar porque este dispositivo encontra uma cristalização que nos permite pensar esta tendência recente, exemplar porque Frederico Pedreira tem uma oficina poética bastante bem feita, com um rigor na construção do poema que falta a muitos - mas a culpa não é deles, muitas vezes, mas da ausência de uma outra figura que desapareceu sem deixar rasto do panorama literário, o editor. Mas exemplar, também, porque Coração Lento permite perceber as limitações que esta tonalidade tem, esta, para citar Kafka - que não tem nada que ver com esta história -, “cinza que não é capaz de tomar um aspeto de vida”. 

A imagem que comparece no segundo poema tem algum interesse (“fósforo a fósforo/ ilumino o teu rosto”), deixando ver o cuidado que Frederico Pereira tem em limar o conteúdo imagético - os poemas são, nos seus melhores momentos, pequenos cristais autocontidos aos quais não se poderia acrescentar mais nada. O problema, no entanto, é que esse rigor na construção acaba por ser contrabalançado, arrastado, por um dispositivo retórico que está constantemente a ser usado e que se abate sobre praticamente todos os poemas de Coração Lento: é o poema “que não vale / mais que uma assinatura”, o “desengonçado estaleiro”, a “pobreza do verbo”, a “volta lenta dos derrotados”, o verso onde se vê “o verde dos olhos dissipar-se/ na chama triste do papel em branco”, a “pobre arte da oratória”, o coração “romântico, lasso, um pouco baço”, as palavras que “vogam acabrunhadas”.

Esta derrota, este derrotismo, esta impotência generalizada que capturou e que se abateu sobre uma parte considerável da poesia portuguesa contemporânea, em que o poema nunca vale “mais que uma assinatura”, em que o verso vê algo dissipar-se na “chama triste do papel em branco”, onde o poeta é este constante derrotado sabe-se lá bem do quê, esta modalidade tristonha que não conhece outra música que não seja esse baixo contínuo sempre igual e sempre o mesmo - tudo isto é um dispositivo retórico ou, pior, não passa de uma autocomiseração através da qual uma certa poesia se regozija pela sua própria impotência. 

Autocomiseração poderá ser, dispositivo retórico é, certamente. Poderá haver aqui uma referência velada a um diagnóstico epocal - a poesia, afinal, desapareceu, ou quase, é hoje um fenómeno marginal - mas esta derrota não precisa de cair necessariamente nesta tonalidade tristonha (ouçam Camões, que tanta derrota conheceu: “acenda-se com gritos um tormento/ que a todas as memórias seja estranho”) e pode assumir outros movimentos e declinações: o protesto, o grito, o entusiasmo, tudo menos esta autocomiseração cinzenta que mais não é que o poeta a assumir o lugar que outros lhe deram (Kafka também poderia dizer-nos algo: “Como um cão! - exclamou ele, para que a vergonha lhe sobrevivesse.” E é preciso que a vergonha sobreviva, dita e escrita). Mas é dispositivo retórico, antes de mais, porque esta tonalidade só poderia ter um fim ao qual se recusa sempre: o silêncio puro e simples, o calar-se de vez. 

Basta abrir um pouco ao acaso Coração Lento para ver funcionar esta retórica, esta “ladainha dos lábios”. 

“A cidade ilumina-se sincera

nas sucessivas cabeças da vitória.

Mal-amados os que esperam 

a dádiva beata na sarjeta.

Milhares de luzes: teço e desteço

o fio de Ariadne, uns olhos de peixe 

amarrados na ponta.

Somos detestados por todos. 

Nem a entrada no radical museu

nos é permitida.

O sangue uma miragem que

já não interessa.

Teremos chegado ao fim, 

nem espinhos nem rosas, 

só uma temperatura morna,

aquilo que a custo compramos,

a vera infelicidade”

Nos seus melhores momentos, a poesia de Frederico Pedreira lembra um certo João Miguel Fernandes Jorge, aquele modo quase narrativo de dar conta de encontros fugazes que deixam algo na memória, pequenos cristais de tempo que o poeta vai limando (veja-se, por exemplo, o poema 38, onde se relata um encontro numa taberna). Há inclusive um poema (o 22º da primeira parte), com o seu “lendo tudo do lado errado da pauta”, a “flauta furada pelo vento”, o “soluço apanhado à sorte”, que consegue escapar um pouco a esta tonalidade tristonha que deflagra em todos os momentos de Coração Lento (mas isto é porque evoca em mim a memória distante de uma “fífia” de que falava um poeta a que volto sempre). Mas a poesia de João Miguel Fernandes Jorge, para continuarmos com uma possível afinidade de Frederico Pedreira, nunca cai nesse tom tristonho, vagamente nostálgico (“Houve um tempo (...) em que não se chamava versos/ às coisas em que um homem pensava ou sentia”, como se lê no último poema da segunda parte), assume outros e variadas tonalidades, nunca se fica por essa “temperatura morna”, “nem espinhos nem rosas”.

O dispositivo que se repete de poema para poema é aliás verificável por aquele que citei: começa por se delinear uma possibilidade (“tomara que”, como começa o poema 6 da segunda parte), por contar uma história (“estavam os três numa praia.”, como diz outro poema), por abrir uma situação em particular. Mas depressa essa possibilidade, essa abertura, se fecha irremediavelmente, depressa se abate sobre o poema esta tonalidade cinzenta que não é isto nem aquilo. O verso chave do poema, aliás, poderia ser esse “já não interessa”, sendo o resto uma declinação tautológica dessa ausência de interesse que o tristonho, enquanto modalidade, impõe (vejo agora que as notas que fui tomando dizem quase todas respeito ao final dos poemas). Seria interessante, aliás, ver como é que na economia dos diversos poemas se joga essa arquitetura cuidada, essa delimitação rigorosa de uma situação concreta e particular, com esta deflagração do “coração (...) lasso, um pouco baço”, que, a meu ver, é mais baço que lasso e que, consequentemente, acaba por contaminar o resto do poema - que fica sempre e irremediavelmente com essa “temperatura morna” que não é “vera infelicidade” nenhuma.

Que este dispositivo se repita em quase todos os poemas acaba por ter duas consequências desastrosas: a primeira é que, findo o livro, todos os poemas acabam por se equivaler, por se tornarem iguais (é o problema do tristonho: tudo é cinzento, tudo é subsumido a uma equivalência geral, todas as situações, todos os encontros, acabam nesta “temperatura morna”); a segunda é esta tonalidade sempre igual, sempre a mesma, que se abate sobre todo e qualquer poema. É um problema típico do tristonho: não conhece qualquer variação, não conhece outra velocidade, não aumenta nem diminui o som, mas mantém-se sempre na mesma música, sempre nesse tom médio, que não é nem muito alto nem muito baixo (a estrutura “nem...nem” pode ter outros usos, como se sabe), onde tudo é arrastado para essa baça “ladainha dos lábios”. É uma poesia epilogal à qual apetece dizer: e tudo isto é fado.

 

João Oliveira Duarte, 11/06/2021

https://ionline.sapo.pt/artigo/737374/frederico-pedreira-e-tudo-isto-e-fado


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Entrevista ao autor Frederico Pedreira, vencedor do Prémio União Europeia de Literatura 2021, com o seu livro A Lição do Sonâmbulo.


@ Os_Livros_da_Lena, 2021

Entrevista patrocinada por EUPLPrize (Prémio União Europeia de Literatura).


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«Numa lufa-lufa entre o coração e a cabeça» — Entrevista a Frederico Pedreira

 

Tânia Pinto Ribeiro, 2017-07-07 

https://imprensanacional.pt/numa-lufa-lufa-entre-o-coracao-e-a-cabeca-entrevista-frederico-pedreira/




CARREIRO, José. “Frederico Pedreira”. Portugal, Folha de Poesia, 03-12-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/12/frederico-pedreira.html



Eucanaã Ferraz

https://pt.wikipedia.org/wiki/Eucana%C3%A3_Ferraz

 

CALENDÁRIO

 

Maio, de hábito, demora-se à porta,

como o vizinho, o carteiro, o cachorro.

Das três imagens, porém, nenhuma diz

 

do que houve, para meu susto, àquele ano.

O quinto mês pulou o muro alto do dia

como só fazem os rapazes, mas logo

 

pelos quartos e sala convertia o ar em águas

definitivamente femininas. Eu

tentava decifrar. Mas

 

deitou-se comigo e, então, já não era isso

nem seu avesso: a camisa azul despia

azuis formas que eu não sabia, recém-saídas

 

de si mesmas, eu diria, e não sei ter

em conta senão que eram o que eram. Partiu

do mesmo modo, em bruto, coisa sem causa.

 

Maio, maravilha sem entendimento,

demora-se à porta, como o vizinho,

o carteiro, o cachorro. Porém,

 

nenhuma das três imagens, tampouco

este poema, diz do que houve, para meu susto,

àquele ano.

 

Eucanaã Ferraz, Cinemateca. São Paulo: Companhia das Letras, 2008

 

 

O ATOR

 

Pensei em mentir, pensei em fingir,

dizer: eu tenho um tipo raro de,

estou à beira,

 

embora não aparente. Não aparento?

Providências: outra cor na pele,

a mais pálida; outro fundo para a foto:

 

nada; os braços caídos, um mel

pungente entre os dentes.

Quanto à tristeza

 

que a distância de você me faz,

está perfeita, fica como está: fria,

espantosa, sete dedos

 

em cada mão. Tudo para que seus olhos

vissem, para que seu corpo

se apiedasse do meu e, quem sabe,

 

sua compaixão, por um instante,

transmutasse em boca, a boca em pele,

a pele abrigando-nos da tempestade lá fora.

 

Daria a isso o nome de felicidade,

e morreria.

Eu tenho um tipo raro.

 

Eucanaã Ferraz, Cinemateca. São Paulo: Companhia das Letras, 2008

 

 

POR VEZES, NÃO RARO

 

Por vezes, não raro,

basta um gesto, sua borracha,

um quase nada de alvaiade,

um rasgo e só.

 

No entanto, o carvão

de certas palavras,

de alguns nomes,

não se apaga fácil.

 

Afogá-lo, inútil:

o maralto traz

de volta cada sílaba

em sal fortalecida.

 

Enterrá-lo? Logo renascerá:

árvore alta, trigo, praga.

No fogo, irrompe a letra,

inda mais sólida liga.

 

Há que esperar do esquecimento

o dente miúdo

e lento roer a nódoa na língua,

o travo no peito.

 

Eucanaã Ferraz, Dessassombro. Rio de Janeiro: Editora Sette Letras, 2002

 

UM FIO DE LUZ

 

Um fio de luz:

tesoura que baste

para tornar nítido

o que

 

sobre a cômoda,

sobre a mesa:

um lápis, uma pera,

um cálice,

 

que nossos olhos

podem anotar

sem complicação,

sem gula ou fastio.

 

Mesmo da morte a repentina

ternura, se vista de tal modo:

num vaso, haste, pétala

que cede.

 

Sobre a cômoda, sobre a mesa,

belezas que um nosso gesto

pode anexar ao peito

sem grande peso.

 

Ou, ainda, o peso nenhum

de quando nenhum atavio:

tábua

sem nada em cima.

 

Eucanaã Ferraz, Dessassombro. Rio de Janeiro: Editora Sette Letras, 2002, p. 23

 

 

POESIA E SOBREVIVÊNCIA

A imagem de abertura do livro Desassombro é de um fio de luz que penetra o espaço íntimo da casa, recortando sutilmente essa penumbra até evidenciar, sobre a mesa, coisas tão comuns como “um lápis, uma pera, / um cálice”. Objetos de uso cotidiano, frutas que apodrecem; coisas que qualquer pessoa poderia ter em casa e que revelam a medida das nossas necessidades: escrever, comer, embriagar-se. Nesse espaço íntimo e assombrado pela consciência da finitude, uma luz tênue traz a possibilidade de reencantamento pelas coisas simples, pequenas e belas que foram deixadas sobre a mesa. Por outro lado, essa alegria implica simultaneamente no reconhecimento da morte, do fundo trágico da existência.

Ao notar a beleza das coisas que podemos sentir sem grande peso, como esses objetos domésticos, o homem toma consciência de que o seu destino é perdê-los. O enfrentamento com a morte parte de reconhecer que o peso, afinal, será suprimido por uma leveza que não cabe aos vivos. Esse “peso nenhum / de quando nenhum atavio: / tábua / sem nada em cima”, que se refere ao fim das tensões entre luz e sombra, alegria e penar. É especialmente notável a forma como o poeta consegue atenuar a tragicidade da morte ao afirmá-la enquanto ausência de peso, ausência de imagem. Uma leitura pouco atenta poderia inclusive confundir o sentido da estrofe final com a anterior, onde o que se afirma, ao contrário, é possibilidade da beleza e da alegria – apesar de toda precariedade. Os versos curtos e sutilmente recortados – que estabelecem um vínculo entre a forma do poema e a imagem do fio de luz – ajudam a suavizar o aspecto trágico que serve de fundo à alegria; a sombra que permite o aparecimento das pequenas cintilações.

No capítulo anterior, havíamos percebido alguns contrastes semelhantes em um poema de Eugénio Montale citado por Ítalo Calvino, assim como nos pequenos lucciole de origem luciferina descobertos em Bolonha por Pasolini. No entanto, como vimos, esses contrastes são agora articulados em um ambiente íntimo, longe da luz abrasadora dos postes públicos, nessa zona de apagamento onde o desejo pode se refazer em silêncio. No poema, a certeza do fim não é substituída por um otimismo ingênuo, mas também não dissipa o presente em pura negatividade. O permanente contato entre luz e sombra é não apenas necessário, como concerne apenas ao reino dos vivos, reino da imanência. Como afirma Silviano Santiago em seu texto “Um fio de luz: o poema, a esperança”, que apresenta o livro:

 

Entre assombros e desassombros (vale dizer: silêncio e palavra, entre trevas e luz, entre temor e coragem, entre descanso e trabalho, entre decadência e trabalho, entre o belo e o feio, etc.) se recheia o livro de poemas que estamos lendo. (SANTIAGO, 2002, p.11)

 

O mundo de que fala Eucanaã Ferraz não é desvinculado de seu entorno, nem da necessidade de trabalhar e cumprir os ritos do contemporâneo. O homem que experimenta a beleza ínfima dos objetos iluminados é o mesmo que se vê obrigado a reconhecer na finitude o fundamento da alegria. Mas “mesmo da morte a repentina / ternura, se vista de tal modo: / num vaso, haste, pétala / que cede” (FERRAZ, 2002, p.23). A experiência da morte só se torna fundamental na medida em que permite perceber os clarões que iluminam nossa precariedade; no peso da nossa condição trágica, alguns frágeis atavios.

 

Ler mais em: Sobrevivência da delicadeza na contemporaneidade e a poesia de Eucanaã Ferraz, Marcelo Mello. Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2014.




CARREIRO, José. “Eucanaã Ferraz”. Portugal, Folha de Poesia, 03-12-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/12/eucanaa-ferraz.html