domingo, 24 de julho de 2022

pratica-te como contínua abertura, Herberto Helder


pratica-te como contínua abertura,

o mais atento que custe,

com uma volta sobre ti mesma até eu aparecer no outro lado do rosto,

quando te olhas,

espera que desapareça o ruído em cada palavra,

e agora só a ela se ouça,

e então aumenta tanto quanto possas se escutas

que me aproximo,

a género de abrasadura mulheril,

a cálculo lírico infundido nas lides de ar e fogo,

edoi lelia doura,

que o mênstruo coza e a seda escume,

à luz que nasce da roupa,

e os substantivos perfeitos respirem uns dos outros na têmpera

e frescor da língua indestrutível,

e então estendo por ti acima o melhor do meu braço,

se é que posso fulgurar,

e enquanto crio, cria-me, e cria-te como começo de mim mesmo,

isto: que unas o avulso,

se te puderes mover como o ar que respiro, ó

irrepetível, inenarrável, inerente

 

HELDER, Herberto. “A faca não corta o fogo”.

In: Ofício Cantante – poesia completa.

Lisboa: Assírio & Alvim, 2009. p. 537.

 

 

 

TEXTOS DE APOIO

TEXTO 1

 

O verso “edoi lelia doura” serve de título à Antologia das Vozes Comunicantes da Moderna Poesia Portuguesa organizada por Herberto Helder (Lisboa: Assírio & Alvim,1985).



Edoi lelia doura” é um conhecido refrão da cantiga trovadoresca galego-portuguesa “Eu velida nom dormia”, de Pedro Anes Solaz/Pedr'Eanes Solaz, que teve diferentes interpretações ao longo do tempo:

«Por exemplo, Braga (1878: CII) afirmaba con certa contundencia que se trataba dunha onomatopea galega, mais desde a década de 60 do século XX concluíuse que estaba en árabe, embora as traducións sobre o que o texto árabe (se callar, cun fragmento en romandalusí?) diría foron mudando co tempo. Para Brian Dutton (1964: 1-9) e Olga Novo (2013: 82 e 86) sería sobre a noite que dura e se fai longa, unha idea que ten ligazóns directas con outras composicións dos nosos códices, como as lindísimas «Sen meu amigo manh’eu senlheira» (B 1165 / V 771) e «Aquestas noitas tan longas, que Deus fez en grave dia» (B 1176, V 782), ambas de Juião Bolseiro.

Por outra banda, para Rip Cohen e Federico Corriente o refrán significiaría «it’s my turn» (Cohen & Corriente, 2002: 27), ‘é a miña vez’.»

 

Carlos Callón. SCRIPTA, Revista internacional de literatura i cultura medieval i moderna, núm. 15 / juny 2020 / pp. 1 – 15 ISSN: 2340-4841· doi:10.7203/SCRIPTA.15.17551

 

 



TEXTO 2

 

O verso “edoi lelia doura” aparece no meio do poema, cortando a sequência de imagens sobre o ato de criação. Inscreve, no meio de um diálogo entre um "eu", poeta e criatura textual, e um "tu", musa e texto, uma dupla referência: por um lado, evoca Pedro Eanes Solaz que abre a antologia de "vozes comunicantes". Por outro lado, evocando esta antologia, dialoga não só com o trovador, como também com toda a história da poesia lírica portuguesa, “cálculo lírico”; e claro, H. Helder alude ao seu próprio trabalho de poeta, à sua própria antologia de poesia portuguesa. A citação permite imaginar que o interlocutor do poeta seria uma espécie de arqui-antologia, a própria obra sobre a qual o poeta concentra sua atenção, "o melhor do [seu] braço". A obra é praticada como uma “abertura contínua”, um corpo que “cresce” até um certo tamanho que é medido pelo “desaparecimento” do ruído das palavras, deixando apenas o som da própria palavra.

O trabalho de abertura, que é o de criação, é também um trabalho circular, “uma volta sobre ti mesma”. O fruto desse trabalho é o "rosto" do eu; então, o próprio "eu" torna-se a obra. Apontamos a estreita relação entre o eu e o texto, especialmente em “A Faca Não Corta o Fogo”. Percebemos que, mais do que uma coincidência de corpos, é uma coincidência entre seu sopro vital e o texto. O pneuma é referido três vezes no poema: as batalhas de "ar e fogo", a respiração dos substantivos e o ar que o poeta respira. Note que o sopro vital é, portanto, o sopro do trabalho, o sopro do texto e o sopro do criador. Trata-se de respirar, às vezes ofegante, às vezes exalação longa, como mostra a oscilação entre versos curtos e versos mais longos. Na penúltima linha antes do final, o poeta enfatiza que a tarefa do interlocutor é reunir o que está separado; em outras palavras, é tarefa da antologia.

 

Daniel Rodrigues. Les démonstrations du corps. L’œuvre poétique de Herberto Helder. Littératures. Université de la Sorbonne nouvelle - Paris III, 2012, pp. 208-210.

 

TEXTO 3

 

O primeiro verso revela-nos uma aspiração, um pedido do sujeito poético: “pratica-te como contínua abertura,”. A quem ele solicita a prática da “contínua abertura”? Temos que ele se refira à arte poética, à poesia. O sujeito almeja a constituição de poemas abertos, ou seja, que aludam a uma totalidade, a um inacabamento que sugira o infinito, o absoluto em poesia. […]

Os versos “com uma volta sobre ti mesma até eu aparecer no outro lado do rosto,/ quando te olhas,” corroboram o exercício da arte poética como uma atividade centrada em si mesma. A expressão “com uma volta sobre ti mesma” enfatiza a metapoesia, sugestionada no emprego do termo circular “volta”, ou seja, daquilo que gira em torno de si mesmo. Na sequência, o sujeito poético indica um trabalho em conjunto entre ele e a obra em processo, pois solicita que ela dê uma volta sobre si mesma até que ele apareça no outro lado “do rosto” ou “do poema” cuja fisionomia já supostamente se entrevê. A questão da metapoesia retorna novamente, pois o verso quarto insiste nela: “quando te olhas”, quando a poesia volta-se sobre si mesma.

Supõe-se que o sujeito poético passa a narrar o processo criativo, e então ele continua: “espera que desapareça o ruído em cada palavra,/ e agora só a ela se ouça,/ e então aumenta tanto quanto possas se escutas/ que me aproximo/ a gênero de abrasadura mulheril,/ a cálculo lírico infundido nas lides de ar e fogo,”. O sujeito se dirige à obra em processo, equiparando-a a uma mulher, a saber: “uma volta sobre ti mesma”, “a gênero de abrasadura mulheril”, são expressões que a enquadram no âmbito do feminino. Quando se pede para que espere o desaparecimento do “ruído em cada palavra”, enfatiza-se o processo de depuração da palavra poética. A purificação da palavra atinge o seu ápice no momento em que “só a ela se ouça”, e como o processo criativo envolve o trabalho concomitante do sujeito e da obra, tem-se a reversibilidade do ato de um no outro, de modo que existe uma co-participação fundamental entre os dois e da qual dependerá o futuro poema: “e então aumenta tanto [a voz da obra] quanto possas se escutas/ que me aproximo [o sujeito poético]”.

De que modo deve efetivar-se o entrelaçamento entre obra e autor para que se obtenha o poema? Os versos “a gênero de abrasadura mulheril/ a cálculo lírico infundido nas lides de ar e fogo” nos respondem. Primeiramente, com a força do erotismo feminino, visto que se fala em “abrasadura mulheril” – o processo criativo do poema equipara-se ao erotismo-sexual, já que poeta e palavras se aproximam e se entrelaçam, de modo análogo aos corpos dos amantes. Em seguida, encontramos a expressão “cálculo lírico” que, por sua vez, corrobora o sentido do segundo verso “o mais atento que custe”. O termo “cálculo” refere-se ao trabalho “matemático” executado pelo poeta no que diz respeito ao processo compositivo do poema, destacando a importância do papel da dimensão reflexiva. Por fim, este “cálculo lírico” é “infundido”, ou seja, inspirado, o que também aponta para a importância do papel do dom na confeção do texto. Ambos, dom e trabalho atuam de maneira igualmente relevante “nas lides [lutas, combates com as palavras] de ar e fogo”, isto é, no processo poético.

O verso “edoi lelia doura” faz referência a um livro de Herberto Helder, publicado em 1985 e de mesmo nome. Na verdade, a expressão “edoi lelia doura” é encontrada numa cantiga de amigo do século XIII e de autoria do jogral Pedro Eanes Solaz. O poema herbertiano retoma esta cantiga e a coloca como uma espécie de epígrafe ao seu livro de antologia de vozes comunicantes da poesia portuguesa. A expressão “edoi lelia doura” por muito tempo foi compreendida como um refrão onomatopaico, apresentando-se como uma cadeia sonora ou rítmica sem um significado específico. Na década de 60, estudiosos passaram a sugerir que o refrão desta cantiga de amigo se trata, na realidade, de um refrão em língua árabe e que se traduz por “e a noite roda” ou “a noite é longa”. No poema herbertiano, a expressão “edoi lelia doura” alude, portanto, ao encontro do sujeito poético com a faceta noturna do processo criativo e que antecede ao dia: o poema.

Logo a seguir, deparamo-nos com o verso “que o mênstruo coza e a seda escume”, o que novamente transpõe a obra em processo para o âmbito do feminino, em razão do aparecimento do termo “mênstruo”. A mulher que menstrua é potencialmente fértil e o desejo ou ordem para “que o mênstruo coza” denota igualmente o desejo de que a obra em processo resulte no poema. Que o “mênstruo” ou o “sangue da fertilidade” “coza”, isto é, que prepare o poema, que o possibilite. O verso continua e pede-se para que a “seda escume”, que a tessitura do poema aconteça. Continuando a leitura do poema, encontramos “à luz que nasce da roupa”. A palavra “luz” indica o aparecimento do poema, indica o momento em que a mescla de dom e trabalho ou de sujeito e obra é bem-sucedida. No caso, o surgimento do poema encontra-se ainda na esfera do desejo. Na obra herbertiana, o termo “roupa” apresenta-se muito recorrente e tem a ver com poema, na medida em que este é costurado ou tecido como a roupa. O texto poético é um artefacto humano, seda tecida pelas mãos do poeta.

O desejo de que a “luz” nasça da roupa continua a ser narrado, a ser detalhado. Para isso, é preciso que “os substantivos perfeitos respirem uns dos outros na têmpera”, quer dizer, que os “substantivos perfeitos” - a palavra poética, os nomes – entrelacem-se, “respirem” uns nos outros do modo mais exato, vital. Que as palavras entrem em pleno acordo, que as conexões entre elas sejam as mais eficazes possíveis. Como o poema é um animal, um corpo, um ser vivente, natural que as palavras “respirem” umas nas outras. Para tal intento, o poeta deve conferir o “tratamento térmico” adequado para que o poema surja. Se lembrarmos de que a figura do poeta pode ser, entre tantas, a do forjador de metais, temos que ele trabalha o metal, principalmente o aço, conferindo-lhe a consistência desejada por meio da operação de “têmpera”. Torna então o metal mais consistente, submetendo-o a um banho que consiste num choque térmico. Sob este aspecto, o poeta realiza a operação de “têmpera” sobre as palavras, tornando-as mais consistentes ou “substantivos perfeitos”, resultando desta operação “o frescor da língua indestrutível”, tal como o aço.

Narrando ainda a experiência poética, o sujeito poético enuncia “e então estendo por ti acima o melhor do meu braço,/ se é que posso fulgurar,”. Disto, depreende-se que o sujeito faz o melhor que pode para que surja o poema, pois estende o melhor do seu “braço” para a obra em processo, se bem que ele não possui a certeza de que o seu esforço será suficiente para a consecução do poema e, por isso, o verso “se é que posso fulgurar”. Não sabe se a luz, se o brilho, se a fulguração advirá do processo criativo.

Aventando a hipótese do resultado frutífero, o sujeito poético continua e finaliza a sua narração sobre a experiência poética: “e enquanto crio, cria-me, e cria-te como o começo de mim mesmo,/ isto: que unas o avulso,/ se te puderes mover como o ar que respiro, ó/ irrepetível, inenarrável, inerente”.

Trata-se de uma parte crucial do poema, pois aqui os versos evidenciam a reversibilidade entre as categorias de sujeito e objeto. Ambos, sujeito e obra ocupam os dois polos da clássica dicotomia a ponto de não mais podermos distingui-los. […]

Portanto, o papel do trabalho poético consiste em “soldar” esta experiência vivenciada de modo mais integral e repentino pela consciência, soldando os fragmentos que se apresentaram por conta desta experiência sensível: “isto, que unas o avulso,”. Nos poemas herbertianos, constantemente a afirmação da busca da unidade entre as coisas fundamenta o canto poético. O poeta deve unir o avulso, soldar os fragmentos a fim de compor o poema, empregando a linguagem analógica. Quando Herberto Helder publica o seu prefácio para o livro de António José Forte, temos que ele tece um comentário que vale para a sua própria poética:

 

Como muita poesia surrealista ou afim, a de Forte molda-se num corpus de fragmentos soldados por pontos magnéticos de analogia imagística ou verbal, por enlaces rítmicos: uma colagem orgânica de fragmentos. O continuum, sempre perfeito, denota a ágil intuição dos recursos de escrita, uma oficina atenta. (HELDER, Herberto. “Nota inútil”. In: FORTE, António José. Uma faca nos dentes. Lisboa: Parceria A. M. Pereira, 2003. p. 14.)

 

Portanto, a finalidade é conectar, soldar o avulso, confecionando a “colagem orgânica de fragmentos”, ou melhor, o poema. Eis a linguagem analógica, a que procura entrever semelhanças entre os heterogêneos. Tudo o que se encontra comumente fragmentado ou separado pode servir de matéria para o espaço do poema, desvelando as relações secretas entre as coisas:

 

(...) o sentido não-intelectual, supra-racional, corporal, do poder da imaginação poética para animar o universo e identificar tudo com tudo. A cultura moderna tornou-se incapaz de tal ênfase, pois trata-se de uma cultura alimentada pelo racionalismo, a investigação e o utilitarismo. Se se pedir à cultura moderna para considerar o espírito enfático da magia, a identificação do nosso corpo com a matéria e as formas, toda a modernidade desaba (...). É forçoso ir longe, aos recônditos do tempo, ir beber nas noites ocultas. Parece que a física, agora, começa a trabalhar no sentido da pergunta poética: as coisas têm entre si relações de mistério, não relações de causa e efeito. Abre-se caminho através da obscuridade, inquirindo, seguindo adiante. (HELDER, Helder. “Herberto Helder: entrevista”. In: Inimigo Rumor, n.º 11. 2.º semestre de 2001, p. 193)

 

O excerto herbertiano supracitado corrobora a relevância da linguagem analógica para a poesia: “identificar tudo com tudo”. Dele, depreende-se que a cultura moderna valoriza demasiadamente uma racionalidade estrita, uma razão do tipo obtusa. Sendo assim, a linguagem analógica bebe de outras fontes que não o racionalismo e o utilitarismo, bebe “nas noites ocultas”, na imaginação produtora. Contrapõe-se assim a cultura moderna fundada na razão e a poesia.

Aliás, a palavra “noite” e suas correlatas têm uma função pontual na obra herbertiana: apontar para o contato do sujeito poético com o campo pré-reflexivo. É sabido que Novalis engendrou uma poética noturna, sendo a obra Hinos à noite sobejamente conhecida. Entre outras razões, o espaço da “noite” é valorizado na poética novalisiana, dado que a “noite” simboliza esse caos fecundante em que as coisas se unem e se apresentam sem distinção por conta da escuridão, enquanto que o “dia” tem a conotação da racionalidade que separa e que distingue tudo em razão de sua luminosidade apolínea.

Para a obra de Herberto Helder, tanto o “dia” quanto a “noite” têm conotações positivas e constituem etapas imprescindíveis do processo criativo, pois enquanto a “noite” aponta para o caos fecundante do campo pré-reflexivo, tem-se que o “dia” ou qualquer outra forma de luminosidade apontam para a possibilidade do surgimento do poema, indicando que o vínculo entre dom e trabalho ao menos parece bem-sucedido. E esta conotação positiva a respeito do “dia” se deve muito ao diálogo da poética herbertiana para com o cinema e a fotografia, tecnologias em que a luz possui um papel técnico fundamental na composição da imagem. Como veremos no capítulo II, esta faceta noturna do processo criativo e que se converte no dia tem também a sua relação com a obra do poeta Hölderlin.

No intuito de finalizar a análise do poema, vimos que o verso “isto: que unas o avulso” suscitou-nos uma grande discussão de cunho teórico para que entendêssemos que a linguagem analógica rege a construção dos poemas herbertianos, deixando-os propositadamente e necessariamente obscuros.

O poema termina com os versos “se te puderes mover como o ar que respiro, ó/irrepetível, inenarrável, inerente”. Caso sujeito poético e obra em processo entrem em concordância, caso estejam na mesma sintonia, tem-se o “irrepetível, inenarrável, inerente”: o poema.

 

Árvore do ouro, árvore da carne: problematização da unidade na obra de Herberto Helder. Análise de poemas d'A faca não corta o fogo, Tatiana Aparecida Picosque. São Paulo: FFLCH/SBD, 2012, pp. 106-117.

  


CARREIRO, José. “pratica-te como contínua abertura, Herberto Helder”. Portugal, Folha de Poesia, 24-07-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/07/pratica-te-como-continua-abertura.html



sábado, 23 de julho de 2022

Dizia la bem talhada, Pedro Anes Solaz (Pedr'Eanes Solaz)

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Dizia la ben talhada:

“Agor’ a viss’ eu penada

ond’ eu amor ei”

 

A ben talhada dizia:

“Penad’ a viss’ eu un dia

ond’ eu amor ei

 

Ca, se a viss’ eu penada,

non seria tan coitada

ond’ eu amor ei

 

Penada se a eu visse,

non á mal que eu sentisse

ond’ eu amor ei

 

Quen lh’ oje por mi dissesse

que non tardass’ e veesse

ond’ eu amor ei

 

Quen lh’ oje por mi rogasse

que non tardass’ e chegasse

ond’ eu amor ei”

 

Pedr'Eanes Solaz/ Pedro Anes Solaz

“Pedr’ Eanes Solaz –1” in 500 Cantigas d’Amigo: Edição Crítica / Critical Edition, Rip Cohen. Porto: Campo das Letras, 2003, p. 285

 

 

MANUSCRITOS (PRESENÇA DA CANTIGA NOS CANCIONEIROS): BN 828, V 414

Dizia la bem talhada, BN_381_175_828


Dizia la bem talhada, V_140_066_0414


As estrofes V-VI aparecem em ordem inversa no Cancioneiro da Biblioteca Nacional, sendo que Rip Cohen seguiu a lição do Cancioneiro da Biblioteca Vaticana.

 

 

NOTAS:

A interpretación desta cantiga admite dúas direccións conforme se considerar que a amiga fala de unha rival, ou, contrariamente, que a voz feminina se dirixe a outra amiga, isto é, que se trate dunha cantiga lésbica (véxase Callón Torres 2017: II, 31; 2018; 2020).

 

1-4

Ao longo do corpus nunca se rexistra ningunha forma de artigo arcaico (lo, la) en inicio de período e/ou de verso. É por isto que nesta cantiga se percibe con clareza o notorio contraste que marca o emprego da forma la do artigo, en contexto posvocálico, na primera cobra, e o uso da forma normal a no inicio da segunda, no verso reflexo (Dizia la ben-talhada vs. A ben-talhada dizia). A manutención de /l/ na forma do artigo indica a procura dunha retórica arcaizante na elaboración de cantigas de amigo (véxase Ferreiro 2008b, 2013), igual que acontece noutras cantigas (587, 609, 704, 735, 781, 864, 891, 892, 903, 969, 1130, 1166, 1167, 1169, 1201, 1206, 1281, 1294, 1297, 1299, 1304 e 1314) e do mesmo xeito que acontece coas correspondentes formas pronominais (véxase nota a 586.5).


"Penada se a eu visse", verso 7, BN

"Penada se a eu visse", verso 7, V


O incipit desta cantiga de Pedr’Eanes Solaz foi aproveitado por Afonso Sanchez noutra cantiga de amigo, cunha intertextualidade reforzada pola aparición da forma la do artigo (véxase 781.5).

 

2-5

Nestes dous versos, na dirección que marcou a edición de Machado, Cohen consolidou a segmentación do pronome feminino en Agor’a e Penad’a, respectivamente, fornecendo fluidez discursiva a un texto que ficaba deficiente na tradicional edición de Nunes (e de Reali e mais de Littera).

 

7-10

Nótese a emenda no pronome feminino que Nunes (nos dous versos), Reali (só no v. 10) e Littera realizaron, inxustificadamente, no texto, talvez para procurar unha presenza masculina que non existe na cantiga (se a eu visse penada, v. 7; Penada se a eu...).

 

13-18

A troca de lugar das estrofas V-VI en Littera carece, en aparencia, de xustificación.

 

Universo Cantigas. Edición crítica da poesia medieval galego-portuguesa, org. Manuel Ferreiro. A Coruña, Universidade da Coruña, https://www.universocantigas.gal/cantigas/dizia-la-ben-talhada [Consulta em: 2022-07-22].

 

PARÁFRASE(S):

vv. 3, 6, 9, 12, 15, 18:

Nas estrofes I e II a construção pode ser assim parafraseada: “Quem me dera vê-la sofrer por quem eu sinto amor.”

Na estrofe III: “Porque se eu a visse sofrer, eu não estaria tão infeliz por quem eu sinto amor...”.

Na estrofe IV: “Não há dor que eu sentisse por quem eu sinto amor...”.

Nas estrofes V-VI: “Queria que alguém dissesse àquele por quem sinto amor que ele (por quem sinto amor) não se atrasasse mas chegasse…” – e aqui ond’ eu amor ei funciona como oração relativa dependente de lh’ e, juntamente com o seu antecedente omitido, constitui o sujeito gramatical de veesse, chegasse e non tardasse (e pode suplementarmente significar “ao lugar de onde”; cf. CSM 26.93-94 que fosse tornar / a alma onde a trouxeron).

 

“Pedr’ Eanes Solaz –1” in 500 Cantigas d’Amigo: Edição Crítica / Critical Edition, Rip Cohen. Porto: Campo das Letras, 2003, p. 285

 

(I) Dicía a amiga fermosa: «Oxalá agora a vise penada alí onde teño amor!».
(II) A amiga fermosa dicía: «Oxalá penada a vise eu un día alí onde teño amor, (III) pois, se a vise penada, non sufría tanto alí onde teño amor!».
(IV) Se a eu vise penada, non sentiría ningún mal, alí onde teño amor!».
(V) Quen hoxe por min lle dixese que non tardase e que viñese alí onde teño amor!».
(VI) Quen hoxe por min lle rogase que non tardase e que chegase alí onde teño amor!».

 

Universo Cantigas. Edición crítica da poesia medieval galego-portuguesa, org. Manuel Ferreiro. A Coruña, Universidade da Coruña, https://www.universocantigas.gal/cantigas/dizia-la-ben-talhada [Consulta em: 2022-07-22].

 

A cantiga comeza cunha enunciación sen identificar (quizais o quen dos vv. 13 e 16?), que é testemuña do que ouviu dicirlle á ben-talhada, á bela, a quen se lle transfire a voz a continuación. A muller expresa o seu desexo de ver penada unha outra figura feminina, no lugar onde ela ten agora amor. No segundo par de cobras, a ben-talhada sinala que se vise que esa figura feminina está triste, ela non estaría tan mal. Xa nas derradeiras estrofas, desexa que alguén lle dixese (suponse que á figura feminina até aí referida) que fose ao seu encontro. O refrán marca o amor topograficamente: o desexo é ver a tristura e o reencontro nun espazo concreto. Transmítesenos ademais o movemento desde o despeito até o desexo da reconciliación, mais sempre a dependencia afectiva.

 

Unha cantiga lésbica amatoria no trobadorismo galego-portugués”, Carlos Callón. SCRIPTA, Revista internacional de literatura i cultura medieval i moderna, núm. 15 / juny 2020 / pp. 1 – 15 ISSN: 2340-4841· doi:10.7203/SCRIPTA.15.17551



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CARREIRO, José. “Dizia la bem talhada, Pedro Anes Solaz (Pedr'Eanes Solaz)”. Portugal, Folha de Poesia, 23-07-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/07/dizia-la-bem-talhada-pedro-anes.html



sexta-feira, 22 de julho de 2022

Eu velida nom dormia, Pedro Anes Solaz (Pedr’Eanes Solaz)

 



            Eu velida1 nom dormia

                   lelia doura2

            e meu amigo venia

                   edoi3 lelia doura.

           

5          Nom dormia e cuidava

                   lelia doura

            e meu amigo chegava

                   edoi lelia doura.

           

            O meu amigo venia

10               lelia doura

            e d'amor tam bem dizia

                   edoi lelia doura.

           

            O meu amigo chegava

                   lelia doura

15        e d'amor tam bem cantava

                   edoi lelia doura.

           

            Muito desejei, amigo,

                   lelia doura

            que vos tevesse comigo

20              edoi lelia doura.

           

            Muito desejei, amado,

                   lelia doura

            que vos tevess'a meu lado

                   edoi lelia doura.

           

25        Leli, leli, par Deus, leli4

                   lelia doura

            bem sei eu que[m] nom diz leli

                   edoi lelia doura.

           

            Bem sei eu que[m] nom diz leli

30              lelia doura

            demo x'é5 quem nom diz leli

                   edoi lelia doura.

Pedro Anes Solaz / Pedr’Eanes Solaz

(trovador ou jogral medieval)

 

AUTOR:

Trovador ativo em meados do século XIII, muito provavelmente natural da região de Pontevedra, Galiza, onde, em Meis, se situava o mosteiro de Nogueira, referido numa das suas composições1. No verdade, o seu apelido, ao contrário do que pensava D. Carolina Michaëlis (que o explicava como alcunha e supunha Pedro Anes jogral)2, deverá ter origem num topónimo atestado na Galiza, indicando a sua eventual pertença a uma família da pequena nobreza da região, estatuto social talvez mais conforme com a colocação das suas composições nos cancioneiros (numa zona de autores nobres). De resto, Ron Fernández3 localizou um indivíduo com o mesmo apelido, um João Solaz, na documentação de Lugo (atestado em 1304). À exceção destes dados indiretos, não possuímos, no entanto, qualquer outro dado que nos permita traçar a biografia mínima do trovador.

 

Referências

1 Oliveira, António Resende de (2001), O trovador galego-português e o seu mundo, Lisboa, Editorial Notícias, p. 200.

2 Vasconcelos, Carolina Michaëlis de (1990), Cancioneiro da Ajuda, vol. II, Lisboa, Imprensa nacional - Casa da Moeda (reimpressão da edição de Halle, 1904), p. 450.

3 Ron Fernández, Xavier (2005), “Carolina Michaelis e os trobadores representados no Cancioneiro da Ajuda”, in Carolina Michaelis e o Cancioneira da Ajuda hoxe, Santiago de Compostela, Xunta de Galicia.
     
 Aceder à página Web

 

Fonte: Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. [Consulta em 2022-07-22] Disponível em: <https://cantigas.fcsh.unl.pt/autor.asp?pv=sim&cdaut=118>.

 

 

PRESENÇA DA CANTIGA NOS CANCIONEIROS: CBN 829, CV 415

 

Cancioneiro da Biblioteca Nacional – manuscrito B 829

Cancioneiro da Vaticana – manuscrito V 415


 

LÉXICO:

1. velida - bela, formosa.

 

2. Na interpretação recente de Rip Cohen e Federico Corriente ("Lelia Doura revisited", in La Corónica: a Journal of Medieval Hispanic Languages, Literatures and Cultures, 2002, vol. 31, n.º 1.), a expressão árabe significará "é a minha vez" ("a noite roda" ou "é longa" eram anteriores propostas de tradução).

Nota de Rip Cohen em 500 Cantigas d’Amigo: Edição Crítica / Critical Edition. Porto: Campo das Letras, 2003, p. 288: «vv. 2, 4, etc.: lelia doura pode ser lido como líya ddáwra “a mim a vez (= é a minha vez)” em árabe andaluz. líya, um alomorfe de li ‘a mim,’ ‘para mim’, é foneticamente /leia/, e lelia pode ser ou um erro por leiia ou, mais plausivelmente, uma transcrição de líya (cinco vezes em Martin Giinzo devemos pronunciar Cecilia como /sesia/ em rima, sendo todas as rimas perfeitas). Ed oi é romance ibérico arcaico < et hodie com vocalização do -t- intervocálico no interior da expressão. Assim ed oi / MUDANÇA DE CÓDIGO / líya ddáwra = “E hoje / MUDANÇA DE CÓDIGO / é a minha vez” – um verso bilingue, como ocorre em tantas kharajat

 

3. "e hoje", ainda segundo Cohen e Corriente, que entendem o termo não como árabe, mas como uma expressão em antiga língua romance, proveniente do Latim "et hodie" – já na anterior interpretação de Brian Dutton("Lelia doura, edoy lelia doura, na arabic refrain in a thirteenth-century galician poem?", in Bulletin of Hispanic Studies, 1964, XLI), tratar-se-ia de um termo árabe, cujo sentido seria "esmoreço".

 

4. Nota de Rip Cohen em 500 Cantigas d’Amigo: Edição Crítica / Critical Edition. Porto: Campo das Letras, 2003, p. 288: «vv. 25, 27, 29, 31: leli pode ser lido em árabe andaluz como layli, o substantivo layl ‘noite’ com sufixo pronominal da primeira pessoa (cf. Dutton 1964, mas o nome é colectivo, não o nomen unitatis, que seria laylati). ya layli é uma expressão comum que significa qualquer coisa como “que noite eu tive”. O primeiro elemento pode ser omitido por razões métricas ou para exprimir emoção intensa.»

 

5. Equivalente ao atual "diabos levem".

 

NOTA GERAL:

Durante muito tempo esta notável cantiga de amigo de Pedro Anes Solaz não encontrou uma explicação cabal, dada a estranheza do seu duplo refrão, que era entendido como puramente onomatopaico (ou seja, como um mero conjunto de sons exclamativos). A sugestão de Brian Dutton (19641) e Firmino Crespo (19672), de que se trataria, na verdade, de um refrão em língua árabe, significando "e a noite roda" ou "a noite é longa" (o que se enquadraria bastante bem na voz da donzela que não consegue dormir), veio trazer mais alguma luz à composição. Já mais recentemente, Rip Choen e Federico Corriente3 interpretaram de forma diferente os versos do refrão, propondo a tradução "é a minha vez" (v. 2), "e hoje é a minha vez" (v. 4) e ainda, quanto a leli (v. 25), a exclamação "A minha noite!".
Por explicar fica esta utilização da língua árabe no refrão, caso único em toda a poesia galego-portuguesa. Este facto, juntamente com as alterações algo bruscas no paralelismo (nas estrofes 5 e 6, e nas estrofes finais), alterações que parecem introduzir inesperados desvios de sentido na voz da donzela, continuam a dificultar uma interpretação cabal da cantiga. Lamento? Canto de júbilo? Original sátira indireta? (nesta última interpretação, o trovador poderia aludir aqui aos amores proibidos entre uma donzela e um muçulmano, talvez um músico, dentre os que sabemos terem estado ao serviço dos soberanos peninsulares). Seja como for, sublinhe-se o facto de estarmos perante uma cantiga de amigo que, sem nada perder do seu notável lirismo, é, na sua originalidade, de difícil classificação.

Referências

1 Dutton, Brian (1964), "Lelia doura, edoy lelia doura, na arabic refrain in a thirteenth-century galician poem?", in Bulletin of Hispanic Studies, XLI.

2 Crespo, Firmino (1967), "Lelia Doura ou o estranho refrão de uma cantiga trovadoresca", in Colóquio, 42, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.
     
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3 Cohen, Rip e Corriente, Federico (2002), "Lelia Doura revisited", in La Corónica: a Journal of Medieval Hispanic Languages, Literatures and Cultures, vol. 31, nº 1.
     
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VERSÕES MUSICAIS:

 

Originais: Desconhecidas

 

Contrafactum:

Eu velida no dormia 

Versão de José Augusto Alegria

 

Composição/Recriação moderna:

Cantar d’amigo (Cantares: op. 28, nº 4-2)      

Versão de Cláudio Carneyro

 

Lelia Doura      

Versões de Amancio Prada

 

Eu belida non durmia       

Versão de X. Paz Antón, Uxía

 

Lelia doura      

Versão de José Mário Branco

  

Fonte: Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. [Consulta em 2022-07-22] Disponível em: <https://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?ling=por&cdcant=838>.

 



 

   Poderá também gostar de:

 

Edição crítica da cantiga medieval “Eu velida nom dormia”, disponível em https://www.universocantigas.gal/cantigas/eu-velida-non-dormia, Coruña, Facultade de Filoloxía, © 2022

 

“Pedro Eanes Solaz”, verbete de http://xacopedia.com/Pedro_Eanes_Solaz. Copyright 2015 © Bolanda.

 

 

Poesia trovadoresca galego-portuguesasíntese didática

 

Sedução e drama nos cantares de amigo.

 

INTERTEXTUALIDADE:

 

  • O verso “edoi lelia doura” serve de título à Antologia das Vozes Comunicantes da Moderna Poesia Portuguesa organizada por Herberto Helder (Lisboa: Assírio & Alvim,1985).

 


CARREIRO, José. “Eu velida nom dormia, Pedro Anes Solaz (Pedr'Eanes Solaz)”. Portugal, Folha de Poesia, 22-07-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/07/eu-velida-nom-dormia-pedro-anes-solaz.html