segunda-feira, 25 de julho de 2022

quando Fiama deixou cair no chão a «Poesia Toda» de Herberto Helder

 


AUTOR FRAGMENTO

 

Da metáfora e veracidade do chão recolho a poesia toda; herberto ou autor, no túnel

do universo pensa no exemplar bilingue de celan ou na vontade

de morrer sensivelmente sem a escrita, no esmalte. Este é a figura

de estilística da mesa ou do ciclo, de lamentos, na corola negra.

Esta é o símbolo da tempestade ou a realidade traduzida

do diálogo sobre a estrela entre os tópicos.

Livros lívidos! Palavra suicídio entre números dígitos de anos, autor! ignorando

como recomeçar o uniforme, o verso e o reverso. Dedica o livro,

levanta-se sobre o verídico1 e desaparece nos precipícios que são os textos,

as estrelas negras na descrição de Autor.

 

1 O chão.

Fiama Hasse Pais Brandão in O Texto de João [sic] Zorro, 1974. 

Apud Herberto Helder, Poesia Toda. Lisboa, Assírio & Alvim, 19812

 

 


 

O retrato do autor quando leitor da nova poesia portuguesa pode ser lido na epígrafe à primeira edição de Poesia toda para a Assírio & Alvim, a de 1981. Trata-se de «Autor  fragmento», de Fiama Hasse Pais Brandão, publicado em O texto de Joao Zorro, de 1974. Em nenhuma das contínuas e mudadas reedições da poesia reunida se encontra de novo o poema.

À maneira de pórtico no livro de cordel de quatro nós ou do embrulho cor-de-rosa-velho de Manuel Rosa (design contemporâneo ao Cartucho Joaquim Manuel Magalhães & Cia 76), os dez versos do poema de Fiama, se divididos em duas metades imperfeitas, podem dar matéria à hipótese de que nos seis primeiros a proposição de uma verdadeira teoria da leitura e escrita fundada na correspondência entre o acidental e o conceptual.

Insistindo nas palavras de Eduardo Prado Coelho, «trata-se de formular uma conceção topológica do texto como lugar onde o sentido se produz». Em termos objetivos, estão dispostos de maneira contígua, mas não necessariamente complementar, os conjuntos binários que movem o discurso: «Autor fragmento» e «poesia toda», «metáfora e veracidade». No primeiro, como em conhecida versão camoniana das teorias aristotélica e platónica do Amor, «Transforma-se o amador na cousa amada», há o registro do acidente que atira literalmente no chão, despencando-o ou desfolhando-o, um volume, a «poesia toda», que remete ao título do poema, o qual regista, contudo, não o todo fragmentado, mas sim o «Autor fragmento», sintagma que surpreende pela unidade não dividida dos dois termos lado a lado em equilíbrio tão estável quanto instável, haja vista que a ausência de pontuação entre eles impõe-lhes a um tempo a circunstância de serem sujeitos de e/ou de estarem sujeitos a inumeráveis transformações. Parodiando Luiza Neto Jorge, o poema ensina o sentido da queda3. O segundo conjunto binário, «metáfora e veracidade», forma de conceito à força acidental que levou «herberto ou autor» ao chão. está rigorosamente na passagem do movimento contínuo para o alternativo a ideia de que a identidade pública conhecida pelo nome Autor é uma categoria em estado permanente de alternância entre o seu nome civil e o trabalho de autoria de um objeto que o distingue. É, pois, na passagem, interativa e/ou alternativa, entre a metáfora e a veracidade é interessante notar a ordem em que Fiama coloca as palavras, indo da representação à natureza do acontecimento que emerge a criação da imagem como um efeito de verosimilhança. Na topologia do texto, o verosímil é o acidente imagético a ser buscado, que entre significações «pensa sensivelmente» o lugar «onde o sen- tido se produz». Ler é isto: colher (por vontade) ou recolher (por obra do acaso) um «exemplar bilingue de celan» ou outro autor de dupla identidade, não obrigatoriamente por escrever numa língua outra à sua nacional, mas sim por absoluta compreensão de que do concetual ao metafórico o transporte da palavra de um lugar social e culturalmente instável para outro igualmente em mudança na linguagem poética (Celan)4. Este deslocamento, ou «realidade traduzida», em primeiro lugar, conduz ao conceito de «figura» 5, que, segundo a definição no poema, se inscreve num repertório pertinente ao campo «de estilística» das metáforas de Herberto Helder: «da mesa ou do ciclo, de lamentos na corola negra»; em segundo lugar, é nesse centro de floração absoluta, «uniforme», porque negra (com donaire à Baudelaire), como em poço profundo ou caverna escura («no túnel do universo»), que se misturam as forças que dão forma às metáforas, às figuras, numa palavra, ao «símbolo», ou seja, aquilo que estruturado por um regime de leituras se reconhece como próprio do universo simbólico do poeta, por exemplo, de Herberto Helder, poeta obscuro 6. Sabe-o bem Fiama Hasse Pais Brandão, como prova a sua configuração de versos no limite da transferência especular entre o claro e o escuro, o obscuro, portanto, o «símbolo da tempestade ou a realidade traduzida», ou mudada, ou sublimada, o entrelugar (in)tenso porque vacilante, alternativo, à beira de ato falho, caso não pareça demasiadamente absurda a ideia de que «do diálogo sobre as estrelas entre os tópicos», de linguagem, pois, pode-se chegar à experiência dos trópicos (nada mais que um tropo afinal), no que neles de luminosa sabedoria inerente à natureza do simbólico em poesia, que por meio de formas no nível do significante alcança inúmeras representações da realidade:  a sua força 7.

Neste ponto da leitura, Eduardo Prado Coelho, num ensaio de A noite do mundo, de 1988, tem importante notícia do dia em que Herberto Helder de uma queda foi ao chão da mão de Fiama Hasse Pais Brandão. A história do acidente que motivou a escrita de «Autor fragmento» está no primeiro parágrafo de «Fiama: o poema como abreviatura total»:

 

Fiama gosta de contar uma história: foi quando passava no Saldanha e levava consigo aquele grande volume de poemas de Herberto Helder que (mentirosamente) se chama Poesia Toda, e, de repente, o deixou cair no chão. Desse acontecimento ficou um verso num livro de Fiama: «Da metáfora e veracidade do chão recolho a poesia toda [sic].» O leitor colocado diante do poema tenderá a interpretá-lo como a dicção de um sentido múltiplo que está para além do que as palavras dizem. A história de Fiama contém uma lição onde se condensa uma pedagogia da leitura dos seus textos: aquelas palavras apenas dizem o que dizem, são para ser recolhidas ao rés-do-chão, literalmente e de uma maneira. Por isso, no que poderíamos obliquamente designar como «o campo da teoria», Fiama combate incessantemente o pendor plural da leitura moderna. (Eduardo Prado Coelho, A noite do mundo. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988: 144).

Assim sendo, com mais uma razão do crítico a favor da sua paradigmática noção topológica do texto para a leitura dos Poetas 61, a segunda metade imperfeita de «Autor fragmento», os quatro últimos versos, é uma apurada invocação, um fino grito que com exclamados is chama de volta à vida o «autor» 8, levantando-o do chão, num gesto tão largo de escrita sobre folhas dispersas e números de páginas e datas de livros e de poemas ao direito e ao avesso, que lidos em voz alta 9 reescrevem ao final o A de Autor em maiúscula, posto em sossego desde o título: «(...) ignorando/ como recomeçar o uniforme, o verso e o reverso», como se à maneira de Camões entre a (sen)tença de Amor ditada por Platão e Aristóteles 10. Recolhido, porém, de novo sobre a mesa de onde caíra ou se suicidara, o autor, ou o livro, no mesmo, é uma coisa sabidamente ignorante, delicada, repete a dedicatória e silencia e diz adeus e vai-se embora até que a mão desconcertada o chame outra vez às falas 11.

Desconcertada mão, como a dessa criança tão brusca, que de tão brusca destrói e aumenta o coração do Poeta.

Criança aqui antecipada, e dolorosa e necessariamente fragmen- tada, de outro ciclo, «O poema do mesmo A colher na boca

 

(...)

Ah, não se deve dizer que um rosto perde

as suas brasas, porque se inclina sobre a penumbra

de uma fonte ou um instrumento rápido.

Porque o rumor ressalta na noite parada, e pode-se

enlouquecer eternamente. Ou porque a colher

pode ligar a terra à violência do espírito.

(...)

eu abaixava-me e tomava como nos braços

essa criança ignota.

(...)

Herberto Helder, Poesia Toda. Lisboa, Assírio & Alvim, 1981, p. 52

 

No fundo, «Autor fragmento» é uma homenagem de Fiama Hasse Pais Brandão a Herberto Helder, ou melhor, é uma leitura comovida da autora de Homenagem à literatura ao autor de A colher na boca. E ele o sabe, como prova a solitária e única epígrafe à Poesia toda de 1981, a primeira una, dando-lhe os ares de pássaro prefaciador 12.

Em literatura nada se prova, mas um sabor especial ao verbo usá-lo em título tão apurado como esta Colher, de ouro já, experimentando as suas muitas e variadas ementas.

Como, e é Fiama mais uma vez, em «A minha vida, a mais hermética», de Novas visões do passado, 1975, na sua iluminada interpretação de verso justamente celebrado de «As musas cegas», o VII poema, mais precisamente.

Vale a pena reler os dois poemas, que não serão, entretanto, detidamente interpretados. Postos lado a lado (força de expressão, na verdade, um após o outro), Herberto Helder e Fiama Hasse Pais Brandão reiteram a metodologia aplicada em sala de aula no ensino da leitura de poesia e neste ensaio, em que a relação dual se quer compreendida no espaço vivo da interlocução prazerosa entre textos de literatura 13. Cabe ao leitor considerar se é justa a hipótese de que afirmações, como as de Fiama a seguir («Nada se opõe, tudo difere, este sistema simbólico/ inclui os gritos, com mais numerosas referências.»), são uma maneira legítima de explicar o que ela dissera ao escrever em versos os seus conceitos de figura e de símbolo sobre o «Autor fragmento», decadente, quer dizer, em modo verídico e metafórico de uma queda ao chão, suspenso entre o literal e o hermético («o símbolo da tempestade ou a realidade traduzida»). Ou se os versos de Herberto («essa criança tem os pés na minha boca / dolorosa») dão mais clareza ao sentido de «Livros lívidos! Palavra suicídio entre números dígitos de anos, autor! ignorando / como recomeçar o uniforme, o verso e o reverso.», lidos pouco, diz-se agora, como uma maneira de meter os pés pelas mãos, quer dizer, de pôr os pés ao invés de a colher na boca. O que, mais objetivamente, quer dizer: a cada (de verso), a cada novo passo em volta de uma obra continuada e obsessivamente dobrada e desdobrada sobre si mesmo, Herberto Helder mais clareza e sentido à sua vida dita cada vez mais hermética 14.

 

AS MUSAS CEGAS VII (fragmento)

 

(...)

Essa criança é uma coisa que está nos meus dedos;

às vezes debruço-me sobre as cisternas, e as vertigens,

e as virilhas em chama.

É a minha vida. Mas essa criança

é tão brusca, tão brusca, ela destrói e aumenta

o meu coração.

No outono eu olhava as águas lentas,

ou as pistas deixadas na neve

de fevereiro, ou a cor feroz,

ou a arcada do céu com um silêncio completo.

Misturava-se o vinho dentro de mim, misturava-se

a ciência da minha carne

atónita. escuta: cada vez a minha vida

é mais hermética.

essa criança tem os pés na minha boca

dolorosa.

(...)

(Herberto Helder, Poesia Toda. Lisboa, Assírio & Alvim, 1981, pp. 112-113)

 

 

A MINHA VIDA, A MAIS HERMÉTICA

 

Este amor literal, o pormenor dos lábios, a aproximação

da consciência é a situação mais nítida sobre a profundidade dos gritos.

Sobre a colina tradicional, sendo a tradição um único

momento, estou na mesma situação de blake e na situação

de mim mesma quando ouvia o infinito no grito das crianças

e quando era evidente. Porém não terminava o crepúsculo, nem os jogos

se estavam a tornar obscuros, nem junto à casa aparecera a fisionomia da imagem

de mãe. Nada se opõe, tudo difere, este sistema simbólico

inclui os gritos, com mais numerosas referências.

 

Tudo o que disse com literalidade deverá parecer,

agora, o aviso de que a minha vida é a mais hermética.

 

(Fiama Hasse Pais Brandão, Novas visões do passado. Lisboa: Assírio & Alvim, 1975, p. 65)

 

Notas:

2 «ignorando», verso 7, com i minúsculo, que Herberto Helder copia corretamente da primeira edição da poesia reunida em 1974. A partir de Obra breve (Teorema, 1991), «Ignorando».

 


3 «O poema ensina a cair» (Jorge, 2008: 64)

 

4 Michael Hamburger: «Celan começou por expressar a experiência extrema a de um poeta nascido numa comunidade judaica de língua alemã na Romênia, alimentado com o «leite negro» do terror sob as ocupações alemã e russa, e sobrevivendo a esse terror para passar a viver em França. Apesar de escrever em alemão, seu purismo artístico tem paralelos mais próximos na poesia francesa contemporânea do que na poesia da Alemanha Ocidental ou Oriental. esse purismo artístico não se contenta com nada menos que ‘ataques de surpresa ao inarticulado’. Seria impertinente especular sobre quanto da prática final de Celan se deve à experiência extrema, quanto se deve ao rigor artístico de um modernista impertinente. O que é certo sobre os últimos poemas de Celan é que exploram os limites da linguagem e os da consciência, tenteando o caminho rumo a uma comunhão que possa ser religiosa ou mística, de vez que seu ponto de par- tida é a solidão total e seu destino está ‘no outro lado da humanidade.’» (2007: 410-411).

 

5 Maria Gabriela Llansol: «(...) identifiquei progressivamente ‘nós construtivos’ do texto a que chamo figuras e que, na realidade, não são necessariamente pessoas mas módulos, contornos, delineamentos. Uma pessoa que historicamente existiu pode ser uma figura ao mesmo título que uma frase (‘este é o jardim que o pensamento permite’), um animal, ou uma quimera. O que mais tarde chamei cenas fulgor (2004: 139-140).

 

6 Título de livro pioneiro de Maria Estela Guedes sobre Herberto Helder.

 

7 eduardo Prado Coelho: «eis a palavra: força. Não estado, mas processo. Não imitação, mas devir. Não ergon, mas energeia. Não representação, mas força. Ao situar-se num espaço comunicacional, Mukarovsky vai desenvolver as categorias necessárias para incentivar o que, alguns anos depois, Barthes havia de considerar a tarefa mais urgente da semiótica: pensar as intensidades. Podemos dizer que, em Portugal, esse trabalho tem sido feito nos textos «teóricos» de Herberto Helder: em especial, Photomaton & Vox (1982: 387).

 

8 Maria Gabriela Llansol: « Um homem a morrer chama-se moribundo, e a um livro?» (2004: 138).

 

9 Herberto Helder: «(...) e eu adormecia e sonhava um homem em voz alta (...)» (1981: 95).

10 Maria de Lurdes Saraiva sobre o «Transforma-se o amador na cousa amada» de Camões, que atravessa toda esta leitura de «Autor fragmento»: «este soneto tem sido investigado por todos os estudiosos das conceções filosóficas de Camões, e é em geral considerado como uma confissão de platonismo. A densidade ideológica desafia a condensação de qualquer perífrase. O que Camões nos diz é que, à força de pensar na amada, acaba por fazer parte dela mesma. Não pode, portanto, querê-la, pois ela está dentro de si. As duas almas são uma. que pode, pois, o corpo desejar? Mas, desta identidade, passa imediatamente à teoria aristotélica de essência e acidente. A essência de Aristóteles é a matéria; mas a matéria é categoria anterior à realidade que, pela inteligência ou pela passagem do virtual ao real (o acidente), se concretiza e realiza. Assim é a situação do Poeta: ideia pura, tão pura com a matéria simples, que busca o acidente que a realize, acidente que é, obviamente, a posse da amada.» (1980: 265). A frase que leva à nota foi escrita sobre dois poemas de Sophia: «Soneto à maneira de Camões» e «Camões e a tença». Sem falar, é claro, nos dois versos iniciais do primeiro poema de «Tríptico», que na edição de 1981 de Poesia toda é um único poema sem título: «‘Transforma-se o amador na coisa amada’ com seu/ feroz sorriso, os dentes, (...)» (1981, 17)

 

11 Sobre a pertinente polêmica questão da «morte do Autor» (Barthes) Fiama tem um notável poema-manifesto, hoje expurgado da sua obra poética. Trata-se de «Prefácio» (mais uma «prova» do seu gosto por A colher na boca), texto em 49 versículos, publicado em Homenagem à literatura, 1976. Por exemplo, p. 9: «Reconsiderar: (...) 4. o aprofundamento da personagem literária ou  simbólica,/ 5. a absoluta unicidade do Autor,/ 6. a absoluta necessidade do Autor, (...)»

 

12 Fiama Hasse Pais Brandão, «A Hugo»: «Ardente, uma palavra itinerante devorada pela Colher / na boca, as elegias, as Folhas de outono. Cantores / oiço, com a plumagem mirífica de parecerem pássaros prefaciadores. (...)» (1974: 257).

 

13 Luis Maffei: «Se poetas podem-se irmanar, Fiama escreve: ‘(...) sendo a tradição um único / momento, estou na mesma situação de blake’: ‘na mesma situação’ de Herberto Helder que, na parte ‘VII’ de ‘As musas cegas’, cronologicamente, portanto, antes do poema de Fiama, escreveu, sem deixar de ter em conta a inocência blakeana: ‘(...) cada vez a minha vida / é mais hermética’. Nesta formidável conversa, o poema de Fiama estanca a progressão do poema herbertiano, pois, no caso de ‘As musas cegas’, um processo, a ‘vida» sendo ‘cada vez’ ‘mais hermética’; isto aponta para um burilamento do próprio fazer poético rumo a um rigor ‘cada vez’ maior, e não perco de vista que, sendo ‘As musas cegas’, originalmente, dos anos 60, havia muita poesia ainda a se escrever no poema contínuo. Por outro lado, ‘o aviso’ de Fiama diz de um hermetismo construído, pronto e posto em perspectiva: ‘a minha vida é a mais hermética’, se não entre todas, pelo menos ‘a mais hermética’ possível. (...)» (2007: 435)

 

14 Izabela Leal: «Muito se tem falado, por exemplo, a respeito do exercício de reescrita ao qual Herberto Helder submete seus poemas. Tal prática poderia dar a impressão, à primeira vista, de estar atrelada a uma busca de perfeição poética, de refi- namento e depuração do texto em direção a um material irredutível. Mas se lembrarmos das alterações às quais o autor submeteu os poemas de Cobra, que eram modificados de exemplar para exemplar sobre o próprio texto impresso, veremos que não se trata de uma simples «correção» dos poemas, mas que tal ato é quase uma performance que visa a mostrar que o poema não é nunca uma realidade em repouso, mas algo que está permanentemente em construção, em movimento. O ato transgressor do poeta sobre o livro impresso aponta, em última instância, para uma dessacralização do poema, ao mostrar que este o é algo definitivo e insubstituível, que o tem uma aura, no sentido benjaminiano. Tudo nele pode ser alterado, remanejado, montado e desmontado. (...)» (2008: 120).

 

Fonte: “Acolher na boca, depois no chão dos olhos: o poema. Ou o dia em que Herberto Helder de uma queda foi ao chão da mão de Fiama Hasse Pais Brandão”, Jorge Fernandes da Silveira. In: Diacrítica. Série Ciências da Literatura. [23:3, 2009], Universidade do Minho. Centro de Estudos Humanísticos, pp. 87-93

 



CARREIRO, José. “quando Fiama deixou cair no chão a «Poesia Toda» de Herberto Helder”. Portugal, Folha de Poesia, 25-07-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/07/quando-fiama-deixou-cair-no-chao-poesia.html



domingo, 24 de julho de 2022

pratica-te como contínua abertura, Herberto Helder


pratica-te como contínua abertura,

o mais atento que custe,

com uma volta sobre ti mesma até eu aparecer no outro lado do rosto,

quando te olhas,

espera que desapareça o ruído em cada palavra,

e agora só a ela se ouça,

e então aumenta tanto quanto possas se escutas

que me aproximo,

a género de abrasadura mulheril,

a cálculo lírico infundido nas lides de ar e fogo,

edoi lelia doura,

que o mênstruo coza e a seda escume,

à luz que nasce da roupa,

e os substantivos perfeitos respirem uns dos outros na têmpera

e frescor da língua indestrutível,

e então estendo por ti acima o melhor do meu braço,

se é que posso fulgurar,

e enquanto crio, cria-me, e cria-te como começo de mim mesmo,

isto: que unas o avulso,

se te puderes mover como o ar que respiro, ó

irrepetível, inenarrável, inerente

 

HELDER, Herberto. “A faca não corta o fogo”.

In: Ofício Cantante – poesia completa.

Lisboa: Assírio & Alvim, 2009. p. 537.

 

 

 

TEXTOS DE APOIO

TEXTO 1

 

O verso “edoi lelia doura” serve de título à Antologia das Vozes Comunicantes da Moderna Poesia Portuguesa organizada por Herberto Helder (Lisboa: Assírio & Alvim,1985).



Edoi lelia doura” é um conhecido refrão da cantiga trovadoresca galego-portuguesa “Eu velida nom dormia”, de Pedro Anes Solaz/Pedr'Eanes Solaz, que teve diferentes interpretações ao longo do tempo:

«Por exemplo, Braga (1878: CII) afirmaba con certa contundencia que se trataba dunha onomatopea galega, mais desde a década de 60 do século XX concluíuse que estaba en árabe, embora as traducións sobre o que o texto árabe (se callar, cun fragmento en romandalusí?) diría foron mudando co tempo. Para Brian Dutton (1964: 1-9) e Olga Novo (2013: 82 e 86) sería sobre a noite que dura e se fai longa, unha idea que ten ligazóns directas con outras composicións dos nosos códices, como as lindísimas «Sen meu amigo manh’eu senlheira» (B 1165 / V 771) e «Aquestas noitas tan longas, que Deus fez en grave dia» (B 1176, V 782), ambas de Juião Bolseiro.

Por outra banda, para Rip Cohen e Federico Corriente o refrán significiaría «it’s my turn» (Cohen & Corriente, 2002: 27), ‘é a miña vez’.»

 

Carlos Callón. SCRIPTA, Revista internacional de literatura i cultura medieval i moderna, núm. 15 / juny 2020 / pp. 1 – 15 ISSN: 2340-4841· doi:10.7203/SCRIPTA.15.17551

 

 



TEXTO 2

 

O verso “edoi lelia doura” aparece no meio do poema, cortando a sequência de imagens sobre o ato de criação. Inscreve, no meio de um diálogo entre um "eu", poeta e criatura textual, e um "tu", musa e texto, uma dupla referência: por um lado, evoca Pedro Eanes Solaz que abre a antologia de "vozes comunicantes". Por outro lado, evocando esta antologia, dialoga não só com o trovador, como também com toda a história da poesia lírica portuguesa, “cálculo lírico”; e claro, H. Helder alude ao seu próprio trabalho de poeta, à sua própria antologia de poesia portuguesa. A citação permite imaginar que o interlocutor do poeta seria uma espécie de arqui-antologia, a própria obra sobre a qual o poeta concentra sua atenção, "o melhor do [seu] braço". A obra é praticada como uma “abertura contínua”, um corpo que “cresce” até um certo tamanho que é medido pelo “desaparecimento” do ruído das palavras, deixando apenas o som da própria palavra.

O trabalho de abertura, que é o de criação, é também um trabalho circular, “uma volta sobre ti mesma”. O fruto desse trabalho é o "rosto" do eu; então, o próprio "eu" torna-se a obra. Apontamos a estreita relação entre o eu e o texto, especialmente em “A Faca Não Corta o Fogo”. Percebemos que, mais do que uma coincidência de corpos, é uma coincidência entre seu sopro vital e o texto. O pneuma é referido três vezes no poema: as batalhas de "ar e fogo", a respiração dos substantivos e o ar que o poeta respira. Note que o sopro vital é, portanto, o sopro do trabalho, o sopro do texto e o sopro do criador. Trata-se de respirar, às vezes ofegante, às vezes exalação longa, como mostra a oscilação entre versos curtos e versos mais longos. Na penúltima linha antes do final, o poeta enfatiza que a tarefa do interlocutor é reunir o que está separado; em outras palavras, é tarefa da antologia.

 

Daniel Rodrigues. Les démonstrations du corps. L’œuvre poétique de Herberto Helder. Littératures. Université de la Sorbonne nouvelle - Paris III, 2012, pp. 208-210.

 

TEXTO 3

 

O primeiro verso revela-nos uma aspiração, um pedido do sujeito poético: “pratica-te como contínua abertura,”. A quem ele solicita a prática da “contínua abertura”? Temos que ele se refira à arte poética, à poesia. O sujeito almeja a constituição de poemas abertos, ou seja, que aludam a uma totalidade, a um inacabamento que sugira o infinito, o absoluto em poesia. […]

Os versos “com uma volta sobre ti mesma até eu aparecer no outro lado do rosto,/ quando te olhas,” corroboram o exercício da arte poética como uma atividade centrada em si mesma. A expressão “com uma volta sobre ti mesma” enfatiza a metapoesia, sugestionada no emprego do termo circular “volta”, ou seja, daquilo que gira em torno de si mesmo. Na sequência, o sujeito poético indica um trabalho em conjunto entre ele e a obra em processo, pois solicita que ela dê uma volta sobre si mesma até que ele apareça no outro lado “do rosto” ou “do poema” cuja fisionomia já supostamente se entrevê. A questão da metapoesia retorna novamente, pois o verso quarto insiste nela: “quando te olhas”, quando a poesia volta-se sobre si mesma.

Supõe-se que o sujeito poético passa a narrar o processo criativo, e então ele continua: “espera que desapareça o ruído em cada palavra,/ e agora só a ela se ouça,/ e então aumenta tanto quanto possas se escutas/ que me aproximo/ a gênero de abrasadura mulheril,/ a cálculo lírico infundido nas lides de ar e fogo,”. O sujeito se dirige à obra em processo, equiparando-a a uma mulher, a saber: “uma volta sobre ti mesma”, “a gênero de abrasadura mulheril”, são expressões que a enquadram no âmbito do feminino. Quando se pede para que espere o desaparecimento do “ruído em cada palavra”, enfatiza-se o processo de depuração da palavra poética. A purificação da palavra atinge o seu ápice no momento em que “só a ela se ouça”, e como o processo criativo envolve o trabalho concomitante do sujeito e da obra, tem-se a reversibilidade do ato de um no outro, de modo que existe uma co-participação fundamental entre os dois e da qual dependerá o futuro poema: “e então aumenta tanto [a voz da obra] quanto possas se escutas/ que me aproximo [o sujeito poético]”.

De que modo deve efetivar-se o entrelaçamento entre obra e autor para que se obtenha o poema? Os versos “a gênero de abrasadura mulheril/ a cálculo lírico infundido nas lides de ar e fogo” nos respondem. Primeiramente, com a força do erotismo feminino, visto que se fala em “abrasadura mulheril” – o processo criativo do poema equipara-se ao erotismo-sexual, já que poeta e palavras se aproximam e se entrelaçam, de modo análogo aos corpos dos amantes. Em seguida, encontramos a expressão “cálculo lírico” que, por sua vez, corrobora o sentido do segundo verso “o mais atento que custe”. O termo “cálculo” refere-se ao trabalho “matemático” executado pelo poeta no que diz respeito ao processo compositivo do poema, destacando a importância do papel da dimensão reflexiva. Por fim, este “cálculo lírico” é “infundido”, ou seja, inspirado, o que também aponta para a importância do papel do dom na confeção do texto. Ambos, dom e trabalho atuam de maneira igualmente relevante “nas lides [lutas, combates com as palavras] de ar e fogo”, isto é, no processo poético.

O verso “edoi lelia doura” faz referência a um livro de Herberto Helder, publicado em 1985 e de mesmo nome. Na verdade, a expressão “edoi lelia doura” é encontrada numa cantiga de amigo do século XIII e de autoria do jogral Pedro Eanes Solaz. O poema herbertiano retoma esta cantiga e a coloca como uma espécie de epígrafe ao seu livro de antologia de vozes comunicantes da poesia portuguesa. A expressão “edoi lelia doura” por muito tempo foi compreendida como um refrão onomatopaico, apresentando-se como uma cadeia sonora ou rítmica sem um significado específico. Na década de 60, estudiosos passaram a sugerir que o refrão desta cantiga de amigo se trata, na realidade, de um refrão em língua árabe e que se traduz por “e a noite roda” ou “a noite é longa”. No poema herbertiano, a expressão “edoi lelia doura” alude, portanto, ao encontro do sujeito poético com a faceta noturna do processo criativo e que antecede ao dia: o poema.

Logo a seguir, deparamo-nos com o verso “que o mênstruo coza e a seda escume”, o que novamente transpõe a obra em processo para o âmbito do feminino, em razão do aparecimento do termo “mênstruo”. A mulher que menstrua é potencialmente fértil e o desejo ou ordem para “que o mênstruo coza” denota igualmente o desejo de que a obra em processo resulte no poema. Que o “mênstruo” ou o “sangue da fertilidade” “coza”, isto é, que prepare o poema, que o possibilite. O verso continua e pede-se para que a “seda escume”, que a tessitura do poema aconteça. Continuando a leitura do poema, encontramos “à luz que nasce da roupa”. A palavra “luz” indica o aparecimento do poema, indica o momento em que a mescla de dom e trabalho ou de sujeito e obra é bem-sucedida. No caso, o surgimento do poema encontra-se ainda na esfera do desejo. Na obra herbertiana, o termo “roupa” apresenta-se muito recorrente e tem a ver com poema, na medida em que este é costurado ou tecido como a roupa. O texto poético é um artefacto humano, seda tecida pelas mãos do poeta.

O desejo de que a “luz” nasça da roupa continua a ser narrado, a ser detalhado. Para isso, é preciso que “os substantivos perfeitos respirem uns dos outros na têmpera”, quer dizer, que os “substantivos perfeitos” - a palavra poética, os nomes – entrelacem-se, “respirem” uns nos outros do modo mais exato, vital. Que as palavras entrem em pleno acordo, que as conexões entre elas sejam as mais eficazes possíveis. Como o poema é um animal, um corpo, um ser vivente, natural que as palavras “respirem” umas nas outras. Para tal intento, o poeta deve conferir o “tratamento térmico” adequado para que o poema surja. Se lembrarmos de que a figura do poeta pode ser, entre tantas, a do forjador de metais, temos que ele trabalha o metal, principalmente o aço, conferindo-lhe a consistência desejada por meio da operação de “têmpera”. Torna então o metal mais consistente, submetendo-o a um banho que consiste num choque térmico. Sob este aspecto, o poeta realiza a operação de “têmpera” sobre as palavras, tornando-as mais consistentes ou “substantivos perfeitos”, resultando desta operação “o frescor da língua indestrutível”, tal como o aço.

Narrando ainda a experiência poética, o sujeito poético enuncia “e então estendo por ti acima o melhor do meu braço,/ se é que posso fulgurar,”. Disto, depreende-se que o sujeito faz o melhor que pode para que surja o poema, pois estende o melhor do seu “braço” para a obra em processo, se bem que ele não possui a certeza de que o seu esforço será suficiente para a consecução do poema e, por isso, o verso “se é que posso fulgurar”. Não sabe se a luz, se o brilho, se a fulguração advirá do processo criativo.

Aventando a hipótese do resultado frutífero, o sujeito poético continua e finaliza a sua narração sobre a experiência poética: “e enquanto crio, cria-me, e cria-te como o começo de mim mesmo,/ isto: que unas o avulso,/ se te puderes mover como o ar que respiro, ó/ irrepetível, inenarrável, inerente”.

Trata-se de uma parte crucial do poema, pois aqui os versos evidenciam a reversibilidade entre as categorias de sujeito e objeto. Ambos, sujeito e obra ocupam os dois polos da clássica dicotomia a ponto de não mais podermos distingui-los. […]

Portanto, o papel do trabalho poético consiste em “soldar” esta experiência vivenciada de modo mais integral e repentino pela consciência, soldando os fragmentos que se apresentaram por conta desta experiência sensível: “isto, que unas o avulso,”. Nos poemas herbertianos, constantemente a afirmação da busca da unidade entre as coisas fundamenta o canto poético. O poeta deve unir o avulso, soldar os fragmentos a fim de compor o poema, empregando a linguagem analógica. Quando Herberto Helder publica o seu prefácio para o livro de António José Forte, temos que ele tece um comentário que vale para a sua própria poética:

 

Como muita poesia surrealista ou afim, a de Forte molda-se num corpus de fragmentos soldados por pontos magnéticos de analogia imagística ou verbal, por enlaces rítmicos: uma colagem orgânica de fragmentos. O continuum, sempre perfeito, denota a ágil intuição dos recursos de escrita, uma oficina atenta. (HELDER, Herberto. “Nota inútil”. In: FORTE, António José. Uma faca nos dentes. Lisboa: Parceria A. M. Pereira, 2003. p. 14.)

 

Portanto, a finalidade é conectar, soldar o avulso, confecionando a “colagem orgânica de fragmentos”, ou melhor, o poema. Eis a linguagem analógica, a que procura entrever semelhanças entre os heterogêneos. Tudo o que se encontra comumente fragmentado ou separado pode servir de matéria para o espaço do poema, desvelando as relações secretas entre as coisas:

 

(...) o sentido não-intelectual, supra-racional, corporal, do poder da imaginação poética para animar o universo e identificar tudo com tudo. A cultura moderna tornou-se incapaz de tal ênfase, pois trata-se de uma cultura alimentada pelo racionalismo, a investigação e o utilitarismo. Se se pedir à cultura moderna para considerar o espírito enfático da magia, a identificação do nosso corpo com a matéria e as formas, toda a modernidade desaba (...). É forçoso ir longe, aos recônditos do tempo, ir beber nas noites ocultas. Parece que a física, agora, começa a trabalhar no sentido da pergunta poética: as coisas têm entre si relações de mistério, não relações de causa e efeito. Abre-se caminho através da obscuridade, inquirindo, seguindo adiante. (HELDER, Helder. “Herberto Helder: entrevista”. In: Inimigo Rumor, n.º 11. 2.º semestre de 2001, p. 193)

 

O excerto herbertiano supracitado corrobora a relevância da linguagem analógica para a poesia: “identificar tudo com tudo”. Dele, depreende-se que a cultura moderna valoriza demasiadamente uma racionalidade estrita, uma razão do tipo obtusa. Sendo assim, a linguagem analógica bebe de outras fontes que não o racionalismo e o utilitarismo, bebe “nas noites ocultas”, na imaginação produtora. Contrapõe-se assim a cultura moderna fundada na razão e a poesia.

Aliás, a palavra “noite” e suas correlatas têm uma função pontual na obra herbertiana: apontar para o contato do sujeito poético com o campo pré-reflexivo. É sabido que Novalis engendrou uma poética noturna, sendo a obra Hinos à noite sobejamente conhecida. Entre outras razões, o espaço da “noite” é valorizado na poética novalisiana, dado que a “noite” simboliza esse caos fecundante em que as coisas se unem e se apresentam sem distinção por conta da escuridão, enquanto que o “dia” tem a conotação da racionalidade que separa e que distingue tudo em razão de sua luminosidade apolínea.

Para a obra de Herberto Helder, tanto o “dia” quanto a “noite” têm conotações positivas e constituem etapas imprescindíveis do processo criativo, pois enquanto a “noite” aponta para o caos fecundante do campo pré-reflexivo, tem-se que o “dia” ou qualquer outra forma de luminosidade apontam para a possibilidade do surgimento do poema, indicando que o vínculo entre dom e trabalho ao menos parece bem-sucedido. E esta conotação positiva a respeito do “dia” se deve muito ao diálogo da poética herbertiana para com o cinema e a fotografia, tecnologias em que a luz possui um papel técnico fundamental na composição da imagem. Como veremos no capítulo II, esta faceta noturna do processo criativo e que se converte no dia tem também a sua relação com a obra do poeta Hölderlin.

No intuito de finalizar a análise do poema, vimos que o verso “isto: que unas o avulso” suscitou-nos uma grande discussão de cunho teórico para que entendêssemos que a linguagem analógica rege a construção dos poemas herbertianos, deixando-os propositadamente e necessariamente obscuros.

O poema termina com os versos “se te puderes mover como o ar que respiro, ó/irrepetível, inenarrável, inerente”. Caso sujeito poético e obra em processo entrem em concordância, caso estejam na mesma sintonia, tem-se o “irrepetível, inenarrável, inerente”: o poema.

 

Árvore do ouro, árvore da carne: problematização da unidade na obra de Herberto Helder. Análise de poemas d'A faca não corta o fogo, Tatiana Aparecida Picosque. São Paulo: FFLCH/SBD, 2012, pp. 106-117.

  


CARREIRO, José. “pratica-te como contínua abertura, Herberto Helder”. Portugal, Folha de Poesia, 24-07-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/07/pratica-te-como-continua-abertura.html



sábado, 23 de julho de 2022

Dizia la bem talhada, Pedro Anes Solaz (Pedr'Eanes Solaz)

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Dizia la ben talhada:

“Agor’ a viss’ eu penada

ond’ eu amor ei”

 

A ben talhada dizia:

“Penad’ a viss’ eu un dia

ond’ eu amor ei

 

Ca, se a viss’ eu penada,

non seria tan coitada

ond’ eu amor ei

 

Penada se a eu visse,

non á mal que eu sentisse

ond’ eu amor ei

 

Quen lh’ oje por mi dissesse

que non tardass’ e veesse

ond’ eu amor ei

 

Quen lh’ oje por mi rogasse

que non tardass’ e chegasse

ond’ eu amor ei”

 

Pedr'Eanes Solaz/ Pedro Anes Solaz

“Pedr’ Eanes Solaz –1” in 500 Cantigas d’Amigo: Edição Crítica / Critical Edition, Rip Cohen. Porto: Campo das Letras, 2003, p. 285

 

 

MANUSCRITOS (PRESENÇA DA CANTIGA NOS CANCIONEIROS): BN 828, V 414

Dizia la bem talhada, BN_381_175_828


Dizia la bem talhada, V_140_066_0414


As estrofes V-VI aparecem em ordem inversa no Cancioneiro da Biblioteca Nacional, sendo que Rip Cohen seguiu a lição do Cancioneiro da Biblioteca Vaticana.

 

 

NOTAS:

A interpretación desta cantiga admite dúas direccións conforme se considerar que a amiga fala de unha rival, ou, contrariamente, que a voz feminina se dirixe a outra amiga, isto é, que se trate dunha cantiga lésbica (véxase Callón Torres 2017: II, 31; 2018; 2020).

 

1-4

Ao longo do corpus nunca se rexistra ningunha forma de artigo arcaico (lo, la) en inicio de período e/ou de verso. É por isto que nesta cantiga se percibe con clareza o notorio contraste que marca o emprego da forma la do artigo, en contexto posvocálico, na primera cobra, e o uso da forma normal a no inicio da segunda, no verso reflexo (Dizia la ben-talhada vs. A ben-talhada dizia). A manutención de /l/ na forma do artigo indica a procura dunha retórica arcaizante na elaboración de cantigas de amigo (véxase Ferreiro 2008b, 2013), igual que acontece noutras cantigas (587, 609, 704, 735, 781, 864, 891, 892, 903, 969, 1130, 1166, 1167, 1169, 1201, 1206, 1281, 1294, 1297, 1299, 1304 e 1314) e do mesmo xeito que acontece coas correspondentes formas pronominais (véxase nota a 586.5).


"Penada se a eu visse", verso 7, BN

"Penada se a eu visse", verso 7, V


O incipit desta cantiga de Pedr’Eanes Solaz foi aproveitado por Afonso Sanchez noutra cantiga de amigo, cunha intertextualidade reforzada pola aparición da forma la do artigo (véxase 781.5).

 

2-5

Nestes dous versos, na dirección que marcou a edición de Machado, Cohen consolidou a segmentación do pronome feminino en Agor’a e Penad’a, respectivamente, fornecendo fluidez discursiva a un texto que ficaba deficiente na tradicional edición de Nunes (e de Reali e mais de Littera).

 

7-10

Nótese a emenda no pronome feminino que Nunes (nos dous versos), Reali (só no v. 10) e Littera realizaron, inxustificadamente, no texto, talvez para procurar unha presenza masculina que non existe na cantiga (se a eu visse penada, v. 7; Penada se a eu...).

 

13-18

A troca de lugar das estrofas V-VI en Littera carece, en aparencia, de xustificación.

 

Universo Cantigas. Edición crítica da poesia medieval galego-portuguesa, org. Manuel Ferreiro. A Coruña, Universidade da Coruña, https://www.universocantigas.gal/cantigas/dizia-la-ben-talhada [Consulta em: 2022-07-22].

 

PARÁFRASE(S):

vv. 3, 6, 9, 12, 15, 18:

Nas estrofes I e II a construção pode ser assim parafraseada: “Quem me dera vê-la sofrer por quem eu sinto amor.”

Na estrofe III: “Porque se eu a visse sofrer, eu não estaria tão infeliz por quem eu sinto amor...”.

Na estrofe IV: “Não há dor que eu sentisse por quem eu sinto amor...”.

Nas estrofes V-VI: “Queria que alguém dissesse àquele por quem sinto amor que ele (por quem sinto amor) não se atrasasse mas chegasse…” – e aqui ond’ eu amor ei funciona como oração relativa dependente de lh’ e, juntamente com o seu antecedente omitido, constitui o sujeito gramatical de veesse, chegasse e non tardasse (e pode suplementarmente significar “ao lugar de onde”; cf. CSM 26.93-94 que fosse tornar / a alma onde a trouxeron).

 

“Pedr’ Eanes Solaz –1” in 500 Cantigas d’Amigo: Edição Crítica / Critical Edition, Rip Cohen. Porto: Campo das Letras, 2003, p. 285

 

(I) Dicía a amiga fermosa: «Oxalá agora a vise penada alí onde teño amor!».
(II) A amiga fermosa dicía: «Oxalá penada a vise eu un día alí onde teño amor, (III) pois, se a vise penada, non sufría tanto alí onde teño amor!».
(IV) Se a eu vise penada, non sentiría ningún mal, alí onde teño amor!».
(V) Quen hoxe por min lle dixese que non tardase e que viñese alí onde teño amor!».
(VI) Quen hoxe por min lle rogase que non tardase e que chegase alí onde teño amor!».

 

Universo Cantigas. Edición crítica da poesia medieval galego-portuguesa, org. Manuel Ferreiro. A Coruña, Universidade da Coruña, https://www.universocantigas.gal/cantigas/dizia-la-ben-talhada [Consulta em: 2022-07-22].

 

A cantiga comeza cunha enunciación sen identificar (quizais o quen dos vv. 13 e 16?), que é testemuña do que ouviu dicirlle á ben-talhada, á bela, a quen se lle transfire a voz a continuación. A muller expresa o seu desexo de ver penada unha outra figura feminina, no lugar onde ela ten agora amor. No segundo par de cobras, a ben-talhada sinala que se vise que esa figura feminina está triste, ela non estaría tan mal. Xa nas derradeiras estrofas, desexa que alguén lle dixese (suponse que á figura feminina até aí referida) que fose ao seu encontro. O refrán marca o amor topograficamente: o desexo é ver a tristura e o reencontro nun espazo concreto. Transmítesenos ademais o movemento desde o despeito até o desexo da reconciliación, mais sempre a dependencia afectiva.

 

Unha cantiga lésbica amatoria no trobadorismo galego-portugués”, Carlos Callón. SCRIPTA, Revista internacional de literatura i cultura medieval i moderna, núm. 15 / juny 2020 / pp. 1 – 15 ISSN: 2340-4841· doi:10.7203/SCRIPTA.15.17551



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CARREIRO, José. “Dizia la bem talhada, Pedro Anes Solaz (Pedr'Eanes Solaz)”. Portugal, Folha de Poesia, 23-07-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/07/dizia-la-bem-talhada-pedro-anes.html