domingo, 11 de setembro de 2022

Canção Breve, Eugénio de Andrade

 



CANÇÃO BREVE

 

Tudo me prende à terra onde me dei:

o rio subitamente adolescente,

a luz tropeçando nas esquinas,

as areias onde ardi impaciente.

 

Tudo me prende do mesmo triste amor

que há em saber que a vida pouco dura,

e nela ponho a esperança e o calor

de uns dedos com restos de ternura.

 

Dizem que há outros céus e outras luas

e outros olhos densos de alegria,

mas eu sou destas casas, destas ruas,

deste amor a escorrer melancolia.

 

Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa (1940-1979), Lisboa, IN-CM, 1980

 

 

Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

- relação entre o passado e o presente;

- valor simbólico das referências espaciais;

- aspetos formais e recursos estilísticos relevantes;

- importância do título na construção do sentido.

 

EXPLICITAÇÃO DE CENÁRIOS DE RESPOSTA

 

Relação entre o passado e o presente

Assinalado pelas formas do pretérito perfeito («dei», «ardi»), o passado é representado como o tempo da paixão, da intensidade e da impaciência de viver, da adolescência feliz.

Através das formas do presente do indicativo («prende», «há», «dura», «ponho», «Dizem», «sou»), sinaliza-se o presente do «eu», tempo da memória, da consciência da fugacidade da vida, do amor experienciado como saudade, como «a esperança e o calor/ de uns dedos com restos de ternura».

Afirmando-se preso à «terra» que foi o lugar do amor-entrega, o «eu» presente define a sua ligação profunda a esse passado de vivências plenas, tempo que o constitui como ser do «amor» e da «terra».

 

Valor simbólico das referências espaciais

As palavras que constituem referências espaciais são as seguintes:

- «terra», «rio», «esquinas», «areias» (1.ª estrofe);

- «céus», «luas», «casas», «ruas» (3.ª estrofe).

Os elementos espaciais da primeira estrofe metaforizam um tempo passado, o da descoberta, da paixão, da ligação à natureza.

Na terceira estrofe, o espaço representado simboliza o tempo do «eu» adulto, consciente da sua pertença a um lugar que é, no presente, o do «amor a escorrer melancolia» e foi, no passado, o da vivência intensa do amor. A recusa de espaços alternativos, que os outros «Dizem» existir, enfatiza a ligação do sujeito à «terra» primordial.

 

Aspetos formais e recursos estilísticos relevantes

De entre os diversos recursos estilísticos, salientam-se:

- a anáfora «Tudo me prende», marcando, pela repetição, a insistência e a veemência;

- a personificação do «rio» e da «luz», convocando metaforicamente múltiplos sentidos (o fluir do tempo, o «eu» adolescente, o processo de descoberta ... );

- a metáfora da paixão representada pelo fogo («ardi») e associada ao Verão («as areias»);

- paralelismos de construção, no recurso, em três momentos, a enumerações tripartidas («o rio», «a luz», «as areias»; «outros céus», «outras luas», «outros olhos»; «destas casas», «destas ruas», «deste amor»), produzindo um ritmo ternário;

- antíteses / oposições («alegria» / «melancolia»; «outros», «outras», «outros» / «destas», «destas», «deste»), estabelecendo contrapontos (entre o próximo e o distante, entre o real e o virtual, entre o próprio e o alheio...);

- …

 

Quanto aos aspetos formais, há que destacar, entre outros:

- composição estrófica em quadras;

- rimas cruzadas em todos os versos, exceto nos versos 1 e 3 (em que há recurso ao verso branco);

- métrica oscilante (com versos de nove, dez e onze sílabas), com predomínio do decassílabo;

- …

 

Nota - Para a atribuição da totalidade da cotação referente ao conteúdo deste tópico do comentário, é considerada suficiente a apresentação de quatro elementos, englobando obrigatoriamente recursos estilísticos e aspetos formais.

 

Importância do título na construção do sentido

O título «Canção Breve», pelas expectativas de leitura que gera, faz sobressair os seguintes traços:

- importância da musicalidade (ritmos repetitivos, toada embaladora, organização em quadras, rimas cruzadas ... ) e da expressão de afetos (visível, desde logo, na diversidade de sentimentos explicitamente convocados: «triste amor», «esperança», «ternura», «alegria», «melancolia»);

- brevidade do texto poético, mas também centralidade do tema da efemeridade da vida (e da fugacidade da paixão);

- caráter celebratório do poema, canto de eternização do amor;

- …

 

(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade (Dec.-Lei nº 286/89, de 29 de agosto). Curso Geral – Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A nº 138 e respetivos critérios de classificação. Portugal, GAVE [IAVE], 2001, 1.ª fase, 2.ª chamada)

 



 

Variações do autor entre “Poema da vida breve” e “Canção breve”


POEMA DA VIDA BREVE


Tudo me prende à terra que te dei

—o sol dependurado nas esquinas,

as crianças descuidadas como um rio

e os olhos rasos de água que cantei.

 

Tudo me prende do mesmo triste amor

que há em saber que a vida pouco dura,

e nela ponho a esperança e o calor

e um pássaro de versos e brancura.

 

Dizem que há outros céus e outras luas

e outros olhos densos de alegria,

mas eu sou destas casas, destas ruas,

deste amor a escorrer melancolia.

 

Eugénio de Andrade, Os amantes sem dinheiro, Lisboa, Centro Bibliográfico, 1950 


“Poema da vida breve”

“Canção breve”

(in Os amantes sem dinheiro, Lisboa 1950)

(in Poemas, Porto 1971; Obra de Eugénio de Andrade / 1, Porto 1973; Poesia e prosa, Lisboa 1990, vol. I)

1. Tudo me prende à terra que te dei

2. —o sol dependurado nas esquinas,

3. as crianças descuidadas como um rio

4. e os olhos rasos de água que cantei.


1. Tudo me prende à terra onde me dei:

2. o rio subitamente adolescente,

3. a luz tropeçando nas esquinas,

4. as areias onde ardi impaciente.


5. Tudo me prende do mesmo triste amor

6. que há em saber que a vida pouco dura,

7. e nela ponho a esperança e o calor

8. e um pássaro de versos e brancura.

5. Tudo me prende do mesmo triste amor

6. que há em saber que a vida pouco dura,

7. e nela ponho a esperança ou o calor

8. de uns dedos com restos de ternura.


No "Poema da vida breve", depois em "Canção breve", todo o primeiro verso introduz alterações macroscópicas. O texto é composto por quatro estrofes (a última não é levada em consideração porque não propõe variantes significativas), está presente em todas as edições consultadas posteriores à primeira que, como no caso anterior, relatam a mesma versão do texto, e não está sujeito a deslocamentos de localização na estrutura geral da coleção.

A ligação declarada com a terra: "Tudo me prende à terra que te dei" depois "Tudo me prende à terra onde me dei" expressa-se na ambivalência dos elementos citados, que se mantém em parte na passagem do primeiro para a segunda versão: as qualidades humanas são atribuídas aos elementos da natureza.

A luz do sol do segundo verso e o rio do terceiro na primeira versão parecem ser o ímpeto a partir do qual a reelaboração começa; o rio, no entanto, não é mais objeto de uma similitude ("as crianças descuidadas como um rio"), mas torna-se ele próprio sujeito de uma transformação repentina ("o rio subitamente adolescente").

A nova elaboração do quarto verso, que provoca o desaparecimento da repetida analogia entre as lágrimas dos olhos e as extensões de água que formam a paisagem ("os olhos rasos de água que cantei"), prefere agora o calor escaldante das areias, onde o desejo frenético do corpo ganhava vida ("as areias onde ardi impaciente"). Ardor da terra e beijos no primeiro exemplo citado, fervor da sexualidade no segundo.

O último verso da segunda estrofe, também radicalmente transformado (só se mantém a rima em -ura: brancura-ternura), afirma a intervenção da fisicalidade, que agora se combina com uma relação diferente com o tempo: o pássaro do verso e da brancura e entre os dedos só resta o calor gerado por algum resquício de ternura. O ardor inicial foi assim transformado no ténue impulso que a memória pode oferecer.

Carlotta Paratore, “Alcune osservazioni sulle varianti d’autore in Os amantes sem dinheiro di Eugénio de Andrade”, Critica del testo, XV / 1, 2012

 



 

Poderá também gostar de:

 


CARREIRO, José. “Canção Breve, Eugénio de Andrade”. Portugal, Folha de Poesia, 11-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/cancao-breve-eugenio-de-andrade.html


sábado, 10 de setembro de 2022

Pequena elegia chamada domingo, Eugénio de Andrade


 

Pequena elegia chamada domingo

 

O domingo era uma coisa pequena.

Uma coisa tão pequena

que cabia inteirinha nos teus olhos.

Nas tuas mãos

estavam os montes e os rios

e as nuvens.

Mas as rosas,

as rosas estavam na tua boca.

 

Hoje os montes e os rios

e as nuvens

não vêm nas tuas mãos.

(Se ao menos elas viessem

sem montes e sem nuvens

e sem rios...)

O domingo está apenas nos meus olhos

e é grande.

Os montes estão distantes e ocultam

os rios e as nuvens

e as rosas.

 

Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa (1940-1979), Lisboa, IN-CM, 1980

 

Nota:

Elegia: poesia de assunto triste ou de lamentação.

 

 

Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

- importância das marcas de tempo;

- valor simbólico dos elementos da natureza;

- recursos estilísticos e aspetos formais significativos;

- traços caracterizadores do estado de espírito do sujeito poético.

 

 

EXPLICITAÇÃO DE CENÁRIOS DE RESPOSTA

 

Importância das marcas de tempo

A importância das marcas de tempo é visível no poema na medida em que:

- o uso exclusivo, na primeira estrofe, do pretérito imperfeito do indicativo («era», «cabia», «estavam» - vv. 1, 3, 5 e 8) e a predominância, na segunda estrofe, do presente do indicativo («vêm», «está», «é», «estão», «ocultam» - vv. 11, 15, 16 e 17), reforçada pelo advérbio de tempo («Hoje» - v. 9), sublinham a oposição passado/presente como uma linha estruturante do texto;

- a inclusão de «domingo» no título salienta, desde logo, a excecionalidade desse dia da semana para o sujeito poético, sugerindo, ainda, pela ligação com «elegia», a ideia de que é um tempo recordado com tristeza;

- a dupla ocorrência do vocábulo «domingo» no corpo do poema (vv. 1 e 15) reforça a importância deste dia, que ganha uma conotação positiva quando associado ao passado e à presença do «tu» (cf. 1.ª estrofe), e um valor negativo quando é lido em função do presente do sujeito, tempo da ausência do ser amado (cf. 2.ª estrofe);

- a oposição passado/presente põe em evidência a perda de um estado emocional eufórico e a presença de um outro disfórico, a passagem de uma temporalidade feliz e intensa para uma temporalidade longa, porque dolorosa («0 domingo era uma coisa pequena.» - v.1, «0 domingo [...] é grande» - vv. 15-16);

- …

 

Valor simbólico dos elementos da natureza

A natureza representada no texto assume diversos sentidos simbólicos. Assim, pode:

- configurar, por via das metáforas utilizadas («montes», «rios», «nuvens» e «rosas»), um lugar edénico que o «eu» perde na ausência do «tu»;

- tornar-se obstáculo que impede o sujeito de recuperar o lugar e o tempo paradisíacos, pois os «montes», «distantes», «ocultam/ os rios e as nuvens/ e as rosas» (vv. 17-19);

- fornecer elementos para o retrato alegórico do «tu» - as «mãos», em que estão contidos os traços da paisagem, e a «boca», onde reside a beleza das «rosas» (vv. 4-8);

- …

 

Recursos estilísticos e aspetos formais significativos

De entre os diversos recursos estilísticos, salientam-se:

- as metáforas em série («montes», «rios», «nuvens» e «rosas»), utilizadas ao longo do poema, contribuindo para a construção da imagem de uma terra primordial, edénica, marcada por harmonia e plenitude;

- a enumeração, repetida e reordenada, intensificando as noções quer de constituição (cf. w. 5-6) quer de perda (cf. vv. 9-11, 13-14, 17-19) do lugar-tempo paradisíaco; associado à enumeração, o polissíndeto recria uma semelhança com a linguagem infantil, realçando, nos vv. 5-6, uma emotividade feliz e, nos vv. 13-14, 18-19, a lembrança dolorosa do paraíso perdido;

- os artigos definidos («O», «OS» e «as»), individualizando as coisas nomeadas e criando, assim, com elas uma relação de proximidade;

- o discurso parentético e as reticências (vv. 12-14), evidenciando, pela pausa reflexiva, o sentimento de perda que domina o sujeito poético;

- …

 

Quanto aos aspetos formais significativos, há que destacar, entre outros:

- o versilibrismo desta composição poética, de duas estrofes de versos heterométricos, recriando um ritmo próximo da fala;

- a irregularidade estrófica, com recurso a uma oitava e a uma estrofe de onze versos (ocultando uma organização lógico-discursiva que remete para os modelos canónicos de estrofes – dísticos e tercetos, com exceção do monástico de abertura do poema);

- …

 

Nota - Para a atribuição da totalidade da cotação referente ao conteúdo deste tópico do comentário, é considerada suficiente a apresentação de quatro aspetos (estilísticos e/ou formais).

 

Traços caracterizadores do estado de espírito do sujeito poético

O estado de espírito do sujeito poético é caracterizado pelos seguintes traços:

- nostalgia, recordando com mágoa o tempo edénico partilhado com o «tu»;

- solidão, sofrendo com a ausência do «tu» e desejando a sua presença;

- lucidez, tendo consciência da perda da plenitude e beleza que do ser amado emanavam;

- desespero contido, confrontando-se com a certeza da alteração irreversível da medida do tempo («domingo») - breve e feliz no passado, longo e infeliz no presente;

- …

 

(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade (Dec.-Lei nº 286/89, de 29 de agosto). Curso Geral – Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A nº 138 e respetivos critérios de classificação. Portugal, GAVE [IAVE], 2000, 1.ª fase, 1.ª chamada)

 

 

Poderá também gostar de:



CARREIRO, José. “Pequena elegia chamada domingo, Eugénio de Andrade”. Portugal, Folha de Poesia, 10-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/pequena-elegia-chamada-domingo-eugenio.html


quinta-feira, 8 de setembro de 2022

De tarde, naquele «pic-nic» de burguesas, Cesário Verde


Vladimir Volegov


Naquele «pic-nic» de burguesas,

Houve uma coisa simplesmente bela,

E, que sem ter história nem grandezas,

Em todo o caso dava uma aguarela.

 

Foi quando tu, descendo do burrico,

Foste colher, sem imposturas tolas,

A um granzoal azul de grão de bico

Um ramalhete rubro de papoilas.

 

Pouco depois, em cima duns penhascos,

Nós acampámos, inda o Sol se via;

E houve talhadas de melão, damascos,

E pão-de-ló molhado em malvasia.

 

Mas, todo púrpuro, a sair da renda

Dos teus dois seios como duas rolas,

Era o supremo encanto da merenda

O ramalhete rubro das papoulas.

Cesário Verde, 1887

Notas

granzoal (v. 7): campo semeado de grão-de-bico.

malvasia (v. 12): vinho licoroso. 


 


Leitura orientada do poema "De tarde", de Cesário Verde.

 

Síntese do conteúdo de cada estrofe:

1.ª) indício de algo singularmente belo ocorrido num piquenique.

2.ª) relato da situação de uma mulher colhendo um ramo de papoilas.

3.ª) descrição do piquenique/merenda.

4.ª) o encanto provocado pelas papoilas colocadas no decote.

 

Divisão do poema em partes lógicas:

1.ª parte (I): introdução, apresentando o texto como uma aguarela que representa um piquenique passado, onde ocorreu um acontecimento singular.

 

2.ª parte (II e III): descreve o piquenique com pormenorização de acções e cores.

 

3.ª parte (IV): (reflexo  que a «coisa simplesmente bela» teve no interior do sujeito) a recordação que ficou desse piquenique: o ramalhete de papoilas vermelhas a contrastar com a brancura dos seios dessa mulher.

 

Presença do sujeito poético:

A imagem concebida de «uma coisa bela» permite que o sujeito poético passe de simples observador (do cenário dos movimentos) para elemento do grupo observado («nós acampámos»), mas participante privilegiado do momento de encanto.

 

 

Relação entre o piquenique do poema e o estado de espírito do sujeito lírico:

O piquenique em que o sujeito lírico participou (Nós acampámos, v. 10) teve a característica de permanecer na sua lembrança, daí o assunto do poema, devido a um acontecimento simples («sem ter história nem grandezas», v. 3) mas que o eu lírico destaca como algo singularmente belo («Houve uma coisa simplesmente bela», v.2). Num misto de satisfação e saudade, o sujeito recorda e relata com pormenor e vivacidade a situação de uma mulher a colher um ramo de papoilas («Foi quando tu [] / Foste colher [] / Um ramalhete rubro de papoulas», vv. 5-8), bem como o contraste provocado pela cor vermelha das papoilas junto da pele branca dessa mulher («[] todo púrpuro, a sair da renda / Dos teus dois seios como duas rolas, / [] / O ramalhete rubro das papoulas», vv. 13-16). Tal lembrança pode funcionar como uma tentativa de alimentar o ego do sujeito, já que recorda uma situação passada (note-se o predomínio dos pretéritos perfeito e imperfeito), aparentemente insignificante, mas que, pelos laivos de sensualidade e erotismo que deixa transparecer, leva-nos a pensar se o que resta de uma relação ou o que ainda acalenta o prazer do eu lírico.

 

 

Tema: a lembrança de um piquenique.

 

Assunto: recordação de um momento passado em que, num piquenique, o apanhar de um ramo de papoilas e a sua colocação num decote rendilhado o torna singular e inesquecível.

 

Poema narrativo / descritivo:

-          relato de um episódio – acção sequencial;

-          enumeração das cores e outros aspectos que compõem o cenário;

-          predomínio do pretérito perfeito do indicativo que atribui à acção narrada um carácter concluído e passado, uma acção localizada num determinado tempo mas sem continuidade no presente;

-          pretérito imperfeito do indicativo empresta à acção passada um certo cariz durativo («inda o sol se via», v. 10) ou conferindo-lhe uma tonalidade narrativa («Em todo o caso dava uma aguarela», v.4; «Era o supremo encanto da merenda», v. 15);

-          expressões temporais («Foi quando tu», v. 5; «Pouco depois», v. 9; «inda o sol se via», v. 10), conferindo assim dinamismo ao relato presente nas três estrofes iniciais.

 

Vasco Graça Moura, em Várias Vozes, analisa «De Tarde», poema de Cesário Verde, como uma aguarela, o que pode ser comparado «a um processo cinematográfico avant la lettre, um pouco como um filme colorido cuja montagem possa ser feita pelo encaixar ou encadear sucessivo de quatro secções de estrutura semelhante, em que se parte sempre do mais para o menos, do todo que enche o campo visual para o pormenor nele contido e posto em destaque, até a transição final do grande plano para a mancha (de cor) pura e simples, havendo ainda a notar os contrastes de cor que se vão sucedendo e ainda que até não falta o "genérico" inicial» (Moura 1987: 23).

 

Destacam-se três quadros descritivos:

1.º) Plano geral da mulher a descer do burro e a colher papoilas num granzoal (II).

2.º) Plano geral de ambos em cima duns penhascos envoltos dos alimentos (III).

3.º) Grande plano: dos seios e das papoilas. (IV).

 

Visão plástica do poeta-pintor conseguida pelo registo do pormenor de «uma coisa simplesmente bela» (v. 2), digna de ser pintada:

-          o cenário do campo: do granzoal (v.7) e dos penhascos (v.9), onde acampam para o piquenique de burguesas (v.1);

-          o fim de tarde («inda o Sol se via», v. 10);

-          os alimentos: os frutos como o melão e os damascos; o pão-de-ló e  o vinho malvasia;

-          as cores fortes azul («[] um granzoal azul de grão-de-bico», v. 7) e vermelha («Um ramalhete rubro de papoulas», v.8), os tons de amarelo ou dourado («Sol», v. 10; «[] talhadas de melão, damascos, / E pão-de-ló molhado em malvasia», vv. 11-12), bem como a cor branca da renda e dos seios («[] como duas rolas», v. 14) emprestam a este texto a coloração necessária para se estabelecer a analogia com uma aguarela, como o próprio sujeito lírico anuncia no verso 4. São as cores que emprestam a qualquer reprodução pictórica beleza, vivacidade, realismo, intemporalidade, as protagonistas desta tela. Entre elas, sobressaem o azul e o vermelho que, pela sua força característica, conferem lugar de destaque aos objectos que caracterizam – o granzoal e o ramalhete. Contrastando com a sua intensidade, está o branco da roupa interior e da pele da mulher. As restantes cores presentes, mais homogéneas entre si, quer se refiram ao sol, ao melão, quer aos damascos ou ao pão-de-ló, traduzem a visão atenta do sujeito, a intenção de não deixar qualquer pormenor esquecido, qualquer ponto da tela sem cor.

 

 

Sensualidade do quadro, com o «ramalhete rubro das papoulas» a emergir dos dois seios da jovem. A imagem das «duas rolas», a que compara os seios, associa-se fortemente a uma simbologia de ternura e de relação sensual. Assim, a expressão «dos teus seios» é uma sinédoque, ao permitir visualizar o corpo sensual da mulher.

 

Leitura comparativa dos versos 8 e 16: 

O verso que refere a realidade central do poema (ramo de papoilas) encontra-se em posição central e final, para assim conseguir maior efeito e destaque, quer pela reiteração, quer pelas posições que ocupa. Apenas há a distinguir nestas duas ocorrências o determinante, que no verso 8 é o artigo indefinido e no verso 16 é o artigo indefinido. O primeiro tem como objectivo não concretizar, não especificar, não atribuir especial importância  àquele ramalhete, já que se afirma sem grande emoção, objectivamente, o facto de uma mulher ter ido apanhar um. O segundo pretende tirar do abstracto, aquele ramo de papoilas, que, por ter provocado todas aquelas sensações e recordações, merece ser individualizado como o ramalhete e acrescentar-lhe uma exclamação como reforço de tais sentimentos.

 

(Fonte: adaptado de Sugestões de análise com propostas de resolução de textos líricos, Dulce Teixeira e Lurdes Trilho, Porto Ed., 1999 e Acesso ao ensino superior. Português 12.º ano – A e B, Vasco Moreira e Hilário Pimenta, Porto Editora, 2000.)




Questionários sobre a leitura do poema "De tarde", de Cesário Verde.

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.

1. Explicite a função da primeira quadra na estrutura do poema.

2. Indique três traços caracterizadores do «tu», fundamentando a resposta em elementos do texto.

3. Refira as sensações representadas no poema, justificando a resposta com citações.

4. Identifique dois recursos estilísticos presentes no texto, analisando o efeito expressivo de cada um deles.

 

Explicitação de cenários de resposta

1. A primeira quadra tem a função de apresentar, em traços genéricos, um determinado quadro social e de nele inscrever uma ocorrência significativa («cousa simplesmente bela» – v. 2), criando a expectativa de que tal ocorrência será o assunto do poema. Para fundamentar esta resposta, podem ser referidos, entre outros, os seguintes elementos dessa estrofe:

– é identificada uma situação – um «pic-nic» (v. 1);

– os intervenientes são apresentados como um grupo de «burguesas» (v. 1);

– é anunciada uma «cousa» caracterizada como «bela» (v. 2) e simples;

– essa «cousa» (v. 2) é apresentada como um motivo de «aguarela» (v. 4), induzindo a sua associação a valores pictóricos;

– ...

 

2. O «tu» apresenta, entre outros, os seguintes traços caracterizadores:

– surge integrado no grupo de «burguesas» (v. 1) referido na abertura do poema;

– individualiza-se do grupo, ao descer do «burrico» (v. 5) para ir colher um «ramalhete [...] de papoulas» (v. 8);

– distingue-se pela ausência de pose, impondo-se pela simplicidade que marca uma atitude «sem imposturas tolas» (v. 6);

– traz «renda» (v. 13) a rematar o decote, o que sugere um modo de vestir próprio da elegância citadina;

– age com naturalidade, colocando o «ramalhete» de «papoulas» (vv. 8 e 16) entre «os seios» (v. 14), a «sair da renda» (v. 13);

– ...

 

3. Predominam as sensações (ou imagens) visuais, na descrição de três quadros sucessivos – o tu» (v. 5) que desce do «burrico» (v. 5) e colhe o «ramalhete» de «papoulas» (v. 8); o «pic-nic» (v. 1) em cima duns «penhascos» (v. 9), num fim de tarde soalheiro; o ramo de «papoulas» entre os «seios», «a sair da renda» (vv. 13-14) – e, igualmente, no destaque dado às cores – «azul»; «rubro»; «púrpuro» – vv. 7, 8, 13 e 16.

     Há também uma forte sugestão de sensações gustativas no enumerar de elementos da «merenda» (v. 15): frutas doces e frescas, «pão-de-ló» (v. 12), vinho licoroso.

     Estes dois tipos de sensações comunicam ao poema uma ambiência de viva representação sensorial e realista.

 

4. Estão presentes no poema, entre outros, os seguintes recursos estilísticos:

– a adjetivação simples, em posposição («bela», «tolas», «azul», «rubro», «rubro» – v. 2, v. 6, v. 8 e v. 16) e em anteposição («supremo»), salientando a expressividade sensorial do quadro representado;

– as aliterações em /r/ («ramalhete rubro» – vv. 8 e 16) e em /z/ («granzoal azul» – v. 7), sublinhando as imagens visuais;

– a anáfora («E houve […] / E pão-de-ló […]» – vv. 11-12), conjugada com a enumeração («talhadas de melão, damascos» – v. 11), tanto reiterando e amplificando os elementos da «merenda» (v. 15) ao dispor dos convivas, como criando uma forte sugestão de sensações gustativas;

– a comparação («Dos teus dois seios como duas rolas» – v. 14), evidenciando, pela associação estabelecida entre «seios» e «rolas» (v. 14), a atenção do olhar do «eu» dirigido à figura feminina;

– a repetição de versos (8 e 16), com uma pequena variante: a substituição do artigo indefinido «Um» (v. 8) pelo artigo definido «O» (v. 16), exprimindo a alteração do estatuto do «ramalhete rubro», que deixa de ser um qualquer e passa a ser algo singular, único, conotando a sensualidade associada à figura feminina;

– o hipérbato, pondo em destaque, nos dois últimos versos do poema, pela inversão da ordem natural do sujeito e do predicado, o motivo central do poema («O ramalhete rubro das papoulas» – v. 16);

– … 

(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário (Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março) - Prova Escrita de Literatura Portuguesa n.º 734 e respetivos critérios de classificação - 11.º ou 12.º anos de Escolaridade. Portugal, GAVE, 2010, 2.ª Fase)

 ***



 

1. Divida o texto nas suas partes lógicas. justificando a resposta.

2. Indique as imagens do poema que podem ser associadas a uma aguarela.

3. Refira os traços principais que definem a figura feminina.

4. Mostre de que modos o espaço e o tempo são representados.

5. Identifique, no poema, dois traços característicos da poesia de Cesário Verde.

 

 

Explicitação de cenários de resposta

1. O poema pode dividir-se em duas partes lógicas: a primeira é constituída pelas três primeiras quadras e a segunda, pela última.

   Na primeira parte conta-se uma cena passada no campo; na segunda mostra-se uma imagem única, que é dada como «supremo encanto». A primeira parte é “narrativa", ao passo que a segunda é "descritiva".

 

Nota - Aceita-se, ainda, a seguinte divisão:

   As duas primeiras quadras, por um lado, e a terceira e a quarta, por outro.

   A primeira parte está centrada numa parte do passeio de burrico, aquela em que o «tu» vai colher as papoulas; a segunda tem a ver com o «pic-nic», «em cima duns penhascos».

 

2. São três as imagens que podem ser associadas a uma aguarela.

    Uma é a do «pic-nic» propriamente dito, em que aos tons magenta do crepúsculo («inda o sol se via»), ou, pelo menos, aos tons mais doces do fim da tarde, se juntam as cores claras das frutase do pão-de-ló.

    As outras duas estão relacionadas entra si: a primeira, a da uma dama que colha um «ramalhete rubro» de papoulas num «granzoal azul»; a segunda, a desse «ramalhete rubro» de papoulas visto, por assim dizer, em grande plano, no colo da figura feminina.

 

3. A figura feminina representada é uma dama da cidade, uma "burguesa". Destaca-se das outras pelas suas maneiras simples, «sem imposturas tolas». Mostra-se coquete no seu gesto de garridice, ao pôr entre os seios o «ramalhete rubro». Revela uma afinidade certa com a natureza, pois é vista no campo a colher flores e, depois, a confundi-las consigo, ou a juntar as flores à sua própria pele. Essa afinidade com a natureza surge acentuada pela comparação dos seios com «duas rolas».

    É a figura feminina que centraliza toda a representação que o poema propõe e que, primeiro vislumbrada ao longe, acaba por ser vista em primeiro plano, e já com exclusão de todos os outros elementos figurativos, na última quadra.

 

4. O espaço é o campo que é atravessado num passeio de burrices, uma "burricada” através do campo, do qual é dado a ver um «granzoal azul» com papoulas; depois, é uma elevação de terreno (uns «penhascos») propícia à merenda.

    O tempo é o de uma tarde que se escoa até ao fim, o momento do crepúsculo ou muito próximo dele.

 

5. Exemplos de traços característicos da poesia da Cesário:

- descritivismo e visualismo;

- simplicidade de processos estilísticos, ligada ao desejo de realismo;

- presença da natureza, na sua direta relação com as figuras femininas (as «burguesas», citadinas que gostam do campo);

- referência à oposição cidade/campo, evidente no relato de um passeio ao campo de alguém que habita na cidade;

- …

(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. Cursos Complementares Noturnos - Liceal e Técnicos. Prova escrita de Português n.º 537 (Índole Científica). Portugal, 1999, 2.ª fase)


 *** 

1. "Naquele pic-nic de burguesas / [...]/ Em todo o caso dava uma aguarela." (vv. 1 a 4)

1.1. Explique o sentido da palavra "aguarela", identificando o elemento referido pelo poema, que a poderia "dar".

1.2. Explicite o que significa neste contexto a expressão "em todo o caso".

2. "Foi quando tu, descendo do burrico / [...]/ Um ramalhete rubro de papoulas." (vv. 5 a 8)

2.1. Identifique o recurso estilístico patente nos versos 7 e 8, comentando o seu efeito expressivo.

2.2. Saliente a importância do verso 8 no poema; compare-o com o verso 16 e interprete as diferenças existentes entre eles.

3. "Pouco depois, em cima duns penhascos, /[...]/ E pão-de-ló molhado em malvasia" (w. 9 a 12).

3.1. Demonstre a presença da sugestão de cor, interpretando o seu valor estético.

3.2. Refira duas das características gerais da poesia de Cesário Verde, patentes neste poema.

4. "Mas, todo púrpuro a sair da renda [ ... ] O ramalhete rubro das papoulas" (vv. 13 a 16).

4.1. Esclareça a função da conjunção "Mas".

4.2. Identifique o recurso estilístico presente no verso 14 e demonstre a sua expressividade.

4.3. Comente os sentimentos do sujeito lírico expressos na última estrofe do poema.

 

(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 337 - Formação Geral 11.º ano - Prova escrita de Português, 1997, 1.ª fase, 1.ª chamada)


Vladimir Volegov



CARREIRO, José. “De tarde, naquele «pic-nic» de burguesas, Cesário Verde”. Portugal, Folha de Poesia, 08-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/de-tarde-cesario-verde.html