domingo, 11 de setembro de 2022

Canção Breve, Eugénio de Andrade

 



CANÇÃO BREVE

 

Tudo me prende à terra onde me dei:

o rio subitamente adolescente,

a luz tropeçando nas esquinas,

as areias onde ardi impaciente.

 

Tudo me prende do mesmo triste amor

que há em saber que a vida pouco dura,

e nela ponho a esperança e o calor

de uns dedos com restos de ternura.

 

Dizem que há outros céus e outras luas

e outros olhos densos de alegria,

mas eu sou destas casas, destas ruas,

deste amor a escorrer melancolia.

 

Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa (1940-1979), Lisboa, IN-CM, 1980

 

 

Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

- relação entre o passado e o presente;

- valor simbólico das referências espaciais;

- aspetos formais e recursos estilísticos relevantes;

- importância do título na construção do sentido.

 

EXPLICITAÇÃO DE CENÁRIOS DE RESPOSTA

 

Relação entre o passado e o presente

Assinalado pelas formas do pretérito perfeito («dei», «ardi»), o passado é representado como o tempo da paixão, da intensidade e da impaciência de viver, da adolescência feliz.

Através das formas do presente do indicativo («prende», «há», «dura», «ponho», «Dizem», «sou»), sinaliza-se o presente do «eu», tempo da memória, da consciência da fugacidade da vida, do amor experienciado como saudade, como «a esperança e o calor/ de uns dedos com restos de ternura».

Afirmando-se preso à «terra» que foi o lugar do amor-entrega, o «eu» presente define a sua ligação profunda a esse passado de vivências plenas, tempo que o constitui como ser do «amor» e da «terra».

 

Valor simbólico das referências espaciais

As palavras que constituem referências espaciais são as seguintes:

- «terra», «rio», «esquinas», «areias» (1.ª estrofe);

- «céus», «luas», «casas», «ruas» (3.ª estrofe).

Os elementos espaciais da primeira estrofe metaforizam um tempo passado, o da descoberta, da paixão, da ligação à natureza.

Na terceira estrofe, o espaço representado simboliza o tempo do «eu» adulto, consciente da sua pertença a um lugar que é, no presente, o do «amor a escorrer melancolia» e foi, no passado, o da vivência intensa do amor. A recusa de espaços alternativos, que os outros «Dizem» existir, enfatiza a ligação do sujeito à «terra» primordial.

 

Aspetos formais e recursos estilísticos relevantes

De entre os diversos recursos estilísticos, salientam-se:

- a anáfora «Tudo me prende», marcando, pela repetição, a insistência e a veemência;

- a personificação do «rio» e da «luz», convocando metaforicamente múltiplos sentidos (o fluir do tempo, o «eu» adolescente, o processo de descoberta ... );

- a metáfora da paixão representada pelo fogo («ardi») e associada ao Verão («as areias»);

- paralelismos de construção, no recurso, em três momentos, a enumerações tripartidas («o rio», «a luz», «as areias»; «outros céus», «outras luas», «outros olhos»; «destas casas», «destas ruas», «deste amor»), produzindo um ritmo ternário;

- antíteses / oposições («alegria» / «melancolia»; «outros», «outras», «outros» / «destas», «destas», «deste»), estabelecendo contrapontos (entre o próximo e o distante, entre o real e o virtual, entre o próprio e o alheio...);

- …

 

Quanto aos aspetos formais, há que destacar, entre outros:

- composição estrófica em quadras;

- rimas cruzadas em todos os versos, exceto nos versos 1 e 3 (em que há recurso ao verso branco);

- métrica oscilante (com versos de nove, dez e onze sílabas), com predomínio do decassílabo;

- …

 

Nota - Para a atribuição da totalidade da cotação referente ao conteúdo deste tópico do comentário, é considerada suficiente a apresentação de quatro elementos, englobando obrigatoriamente recursos estilísticos e aspetos formais.

 

Importância do título na construção do sentido

O título «Canção Breve», pelas expectativas de leitura que gera, faz sobressair os seguintes traços:

- importância da musicalidade (ritmos repetitivos, toada embaladora, organização em quadras, rimas cruzadas ... ) e da expressão de afetos (visível, desde logo, na diversidade de sentimentos explicitamente convocados: «triste amor», «esperança», «ternura», «alegria», «melancolia»);

- brevidade do texto poético, mas também centralidade do tema da efemeridade da vida (e da fugacidade da paixão);

- caráter celebratório do poema, canto de eternização do amor;

- …

 

(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade (Dec.-Lei nº 286/89, de 29 de agosto). Curso Geral – Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A nº 138 e respetivos critérios de classificação. Portugal, GAVE [IAVE], 2001, 1.ª fase, 2.ª chamada)

 



 

Variações do autor entre “Poema da vida breve” e “Canção breve”


POEMA DA VIDA BREVE


Tudo me prende à terra que te dei

—o sol dependurado nas esquinas,

as crianças descuidadas como um rio

e os olhos rasos de água que cantei.

 

Tudo me prende do mesmo triste amor

que há em saber que a vida pouco dura,

e nela ponho a esperança e o calor

e um pássaro de versos e brancura.

 

Dizem que há outros céus e outras luas

e outros olhos densos de alegria,

mas eu sou destas casas, destas ruas,

deste amor a escorrer melancolia.

 

Eugénio de Andrade, Os amantes sem dinheiro, Lisboa, Centro Bibliográfico, 1950 


“Poema da vida breve”

“Canção breve”

(in Os amantes sem dinheiro, Lisboa 1950)

(in Poemas, Porto 1971; Obra de Eugénio de Andrade / 1, Porto 1973; Poesia e prosa, Lisboa 1990, vol. I)

1. Tudo me prende à terra que te dei

2. —o sol dependurado nas esquinas,

3. as crianças descuidadas como um rio

4. e os olhos rasos de água que cantei.


1. Tudo me prende à terra onde me dei:

2. o rio subitamente adolescente,

3. a luz tropeçando nas esquinas,

4. as areias onde ardi impaciente.


5. Tudo me prende do mesmo triste amor

6. que há em saber que a vida pouco dura,

7. e nela ponho a esperança e o calor

8. e um pássaro de versos e brancura.

5. Tudo me prende do mesmo triste amor

6. que há em saber que a vida pouco dura,

7. e nela ponho a esperança ou o calor

8. de uns dedos com restos de ternura.


No "Poema da vida breve", depois em "Canção breve", todo o primeiro verso introduz alterações macroscópicas. O texto é composto por quatro estrofes (a última não é levada em consideração porque não propõe variantes significativas), está presente em todas as edições consultadas posteriores à primeira que, como no caso anterior, relatam a mesma versão do texto, e não está sujeito a deslocamentos de localização na estrutura geral da coleção.

A ligação declarada com a terra: "Tudo me prende à terra que te dei" depois "Tudo me prende à terra onde me dei" expressa-se na ambivalência dos elementos citados, que se mantém em parte na passagem do primeiro para a segunda versão: as qualidades humanas são atribuídas aos elementos da natureza.

A luz do sol do segundo verso e o rio do terceiro na primeira versão parecem ser o ímpeto a partir do qual a reelaboração começa; o rio, no entanto, não é mais objeto de uma similitude ("as crianças descuidadas como um rio"), mas torna-se ele próprio sujeito de uma transformação repentina ("o rio subitamente adolescente").

A nova elaboração do quarto verso, que provoca o desaparecimento da repetida analogia entre as lágrimas dos olhos e as extensões de água que formam a paisagem ("os olhos rasos de água que cantei"), prefere agora o calor escaldante das areias, onde o desejo frenético do corpo ganhava vida ("as areias onde ardi impaciente"). Ardor da terra e beijos no primeiro exemplo citado, fervor da sexualidade no segundo.

O último verso da segunda estrofe, também radicalmente transformado (só se mantém a rima em -ura: brancura-ternura), afirma a intervenção da fisicalidade, que agora se combina com uma relação diferente com o tempo: o pássaro do verso e da brancura e entre os dedos só resta o calor gerado por algum resquício de ternura. O ardor inicial foi assim transformado no ténue impulso que a memória pode oferecer.

Carlotta Paratore, “Alcune osservazioni sulle varianti d’autore in Os amantes sem dinheiro di Eugénio de Andrade”, Critica del testo, XV / 1, 2012

 



 

Poderá também gostar de:

 


CARREIRO, José. “Canção Breve, Eugénio de Andrade”. Portugal, Folha de Poesia, 11-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/cancao-breve-eugenio-de-andrade.html


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