CANÇÃO
BREVE
Tudo
me prende à terra onde me dei:
o
rio subitamente adolescente,
a
luz tropeçando nas esquinas,
as
areias onde ardi impaciente.
Tudo
me prende do mesmo triste amor
que
há em saber que a vida pouco dura,
e
nela ponho a esperança e o calor
de
uns dedos com restos de ternura.
Dizem
que há outros céus e outras luas
e
outros olhos densos de alegria,
mas
eu sou destas casas, destas ruas,
deste
amor a escorrer melancolia.
Eugénio de Andrade, Poesia
e Prosa (1940-1979), Lisboa, IN-CM, 1980
Elabore um
comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:
- relação entre o passado
e o presente;
- valor simbólico das
referências espaciais;
- aspetos formais e recursos
estilísticos relevantes;
- importância do título na
construção do sentido.
EXPLICITAÇÃO
DE CENÁRIOS DE RESPOSTA
Relação entre o passado e o presente
Assinalado pelas formas do
pretérito perfeito («dei», «ardi»), o passado é representado como o tempo da
paixão, da intensidade e da impaciência de viver, da adolescência feliz.
Através das formas do
presente do indicativo («prende», «há», «dura», «ponho», «Dizem», «sou»), sinaliza-se
o presente do «eu», tempo da memória, da consciência da fugacidade da vida, do
amor experienciado como saudade, como «a esperança e o calor/ de uns dedos com
restos de ternura».
Afirmando-se preso à
«terra» que foi o lugar do amor-entrega, o «eu» presente define a sua ligação profunda
a esse passado de vivências plenas, tempo que o constitui como ser do «amor» e
da «terra».
Valor simbólico das
referências espaciais
As palavras
que constituem referências espaciais são as seguintes:
- «terra»,
«rio», «esquinas», «areias» (1.ª estrofe);
- «céus»,
«luas», «casas», «ruas» (3.ª estrofe).
Os
elementos espaciais da primeira estrofe metaforizam um tempo passado, o da
descoberta, da paixão, da ligação à natureza.
Na terceira
estrofe, o espaço representado simboliza o tempo do «eu» adulto, consciente da
sua pertença a um lugar que é, no presente, o do «amor a escorrer melancolia» e
foi, no passado, o da vivência intensa do amor. A recusa de espaços
alternativos, que os outros «Dizem» existir, enfatiza a ligação do sujeito à
«terra» primordial.
Aspetos formais e recursos estilísticos
relevantes
De entre os diversos recursos estilísticos,
salientam-se:
- a anáfora «Tudo
me prende», marcando, pela repetição, a insistência e a veemência;
- a personificação
do «rio» e da «luz», convocando metaforicamente múltiplos sentidos (o fluir do tempo,
o «eu» adolescente, o processo de descoberta ... );
- a metáfora da
paixão representada pelo fogo («ardi») e associada ao Verão («as areias»);
- paralelismos de
construção, no recurso, em três momentos, a enumerações tripartidas («o rio», «a
luz», «as areias»; «outros céus», «outras luas», «outros olhos»; «destas
casas», «destas ruas», «deste amor»), produzindo um ritmo ternário;
- antíteses /
oposições («alegria» / «melancolia»; «outros», «outras», «outros» / «destas», «destas»,
«deste»), estabelecendo contrapontos (entre o próximo e o distante, entre o
real e o virtual, entre o próprio e o alheio...);
- …
Quanto aos aspetos formais, há que
destacar, entre outros:
- composição estrófica em quadras;
- rimas cruzadas em
todos os versos, exceto nos versos 1 e 3 (em que há recurso ao verso branco);
- métrica oscilante
(com versos de nove, dez e onze sílabas), com predomínio do decassílabo;
- …
Nota - Para a atribuição
da totalidade da cotação referente ao conteúdo deste tópico do comentário, é considerada
suficiente a apresentação de quatro elementos, englobando obrigatoriamente
recursos estilísticos e aspetos formais.
Importância do título na construção do
sentido
O título «Canção Breve»,
pelas expectativas de leitura que gera, faz sobressair os seguintes traços:
- importância da
musicalidade (ritmos repetitivos, toada embaladora, organização em quadras, rimas
cruzadas ... ) e da expressão de afetos (visível, desde logo, na diversidade de
sentimentos explicitamente convocados: «triste amor», «esperança», «ternura»,
«alegria», «melancolia»);
- brevidade do texto
poético, mas também centralidade do tema da efemeridade da vida (e da fugacidade
da paixão);
- caráter celebratório do
poema, canto de eternização do amor;
- …
(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário.
12.º Ano de Escolaridade (Dec.-Lei nº 286/89, de 29 de agosto). Curso Geral –
Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A nº 138 e respetivos critérios de classificação. Portugal, GAVE [IAVE], 2001, 1.ª fase,
2.ª chamada)
Variações do autor entre “Poema da vida breve” e “Canção breve”
POEMA
DA VIDA BREVE
Tudo
me prende à terra que te dei
—o
sol dependurado nas esquinas,
as
crianças descuidadas como um rio
e
os olhos rasos de água que cantei.
Tudo
me prende do mesmo triste amor
que
há em saber que a vida pouco dura,
e
nela ponho a esperança e o calor
e
um pássaro de versos e brancura.
Dizem
que há outros céus e outras luas
e
outros olhos densos de alegria,
mas
eu sou destas casas, destas ruas,
deste
amor a escorrer melancolia.
Eugénio de Andrade, Os amantes sem dinheiro, Lisboa, Centro Bibliográfico, 1950
“Poema da vida breve” |
“Canção breve” |
(in Os amantes sem dinheiro,
Lisboa 1950) |
(in Poemas, Porto 1971; Obra
de Eugénio de Andrade / 1, Porto 1973; Poesia e prosa, Lisboa
1990, vol. I) |
1. Tudo me prende à terra que te dei 2. —o sol dependurado nas esquinas, 3. as crianças descuidadas como um rio 4. e os olhos rasos de água que cantei. |
1. Tudo me prende à terra onde me
dei: 2. o rio subitamente adolescente, 3. a luz tropeçando nas esquinas, 4. as
areias onde ardi impaciente. |
5. Tudo me prende do mesmo triste amor 6. que há em saber que a vida pouco
dura, 7. e nela ponho a esperança e o calor 8. e um pássaro de versos e brancura. |
5. Tudo me prende do mesmo triste amor 6. que há em saber que a vida pouco
dura, 7. e nela ponho a esperança ou o
calor 8. de uns dedos com restos de
ternura. |
No "Poema
da vida breve", depois em "Canção breve", todo o primeiro verso
introduz alterações macroscópicas. O texto é composto por quatro estrofes (a
última não é levada em consideração porque não propõe variantes
significativas), está presente em todas as edições consultadas posteriores à
primeira que, como no caso anterior, relatam a mesma versão do texto, e não
está sujeito a deslocamentos de localização na estrutura geral da coleção.
A ligação declarada
com a terra: "Tudo me prende à terra que te dei" depois "Tudo me
prende à terra onde me dei" expressa-se na ambivalência dos elementos
citados, que se mantém em parte na passagem do primeiro para a segunda versão:
as qualidades humanas são atribuídas aos elementos da natureza.
A luz do sol
do segundo verso e o rio do terceiro na primeira versão parecem ser o ímpeto a
partir do qual a reelaboração começa; o rio, no entanto, não é mais objeto de
uma similitude ("as crianças descuidadas como um rio"), mas torna-se
ele próprio sujeito de uma transformação repentina ("o rio subitamente
adolescente").
A nova
elaboração do quarto verso, que provoca o desaparecimento da repetida analogia
entre as lágrimas dos olhos e as extensões de água que formam a paisagem
("os olhos rasos de água que cantei"), prefere agora o calor
escaldante das areias, onde o desejo frenético do corpo ganhava vida ("as
areias onde ardi impaciente"). Ardor da terra e beijos no primeiro exemplo
citado, fervor da sexualidade no segundo.
O último verso da
segunda estrofe, também radicalmente transformado (só se mantém a rima em -ura:
brancura-ternura), afirma a intervenção da fisicalidade, que agora se
combina com uma relação diferente com o tempo: o pássaro do verso e da brancura
e entre os dedos só resta o calor gerado por algum resquício de ternura. O
ardor inicial foi assim transformado no ténue impulso que a memória pode
oferecer.
Carlotta
Paratore, “Alcune osservazioni sulle varianti d’autore in Os
amantes sem dinheiro di Eugénio de Andrade”, Critica del
testo, XV / 1, 2012
Poderá também gostar de:
CARREIRO, José. “Canção
Breve, Eugénio de Andrade”. Portugal, Folha de Poesia, 11-09-2022. Disponível
em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/cancao-breve-eugenio-de-andrade.html
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