sábado, 24 de setembro de 2022

Claro-escuro, Miguel Torga

Exemplo de efeito claro-escuro. David e Golias, Caravaggio.



CLARO-ESCURO

 

Dia da vida

Noite da morte ...

O verso

E o reverso

Da medalha.

E não há desespero que nos valha,

Nem crença,

Nem descrença,

Nem filosofia.

Esta brutalidade, e nada mais:

Sol e sombra - o binómio dos mortais.

 

Só que o sol vem primeiro

E a sombra depois...

E à luz do sol é tudo o que sabemos:

Juventude,

Beleza,

Poesia,

E amor

- Amargo fruto que na sepultura,

Em vez de apodrecer, ganha doçura.

 

Miguel Torga, Orfeu Rebelde, 1958

 

MIGUEL TORGA

     Pseudónimo literário do médico Adolfo Correia da Rocha, nascido em S. Martinho de Anta. Na sua poesia pode ler-se o Homem e as suas universais certezas e angústias: "Encosto o ouvido à concha do silêncio./ Oiço um rumor de angústia na lembrança./ É o mar humano do desassossego/ A ressoar... ". Os seus poemas abrem sempre clarividentes espaços de reflexão e questionamento. Certezas? A devolução do humilde corpo mortal ao espaço telúrico que tanto amou. A libertação do espírito pela órfica busca da poesia.

 

LER POR DENTRO

1. O poema constrói-se em torno da dicotomia Vida/Morte.

1.1. Releve outras dicotomias que metaforicamente se lhe refiram.

1.2. Explique, então, a escolha do título «Claro-escuro».

2. Mostre que o poema representa uma profunda reflexão sobre a condição humana, tendo em conta:

2.1. a enunciação da morte como uma certeza.

2.2. a enumeração das atitudes do homem perante essa certeza.

2.3. a reflexão sobre o tempo e a simbologia de "luz do sol".

2.4. o jogo antitético presente nos dois últimos versos.

3. Que efeito expressivo se tira, na primeira estrofe, da inexistência de adjetivos?

4. As palavras "juventude", "beleza", "poesia" e "amor" aparecem destacadas.

4.1. Qual a estratégia usada para lhes dar maior visibilidade no poema?

4.2. Construa uma frase em que utilize essas quatro palavras.

4.3. Com algumas dessas palavras crie uma metáfora.

 

VERÍSSIMO, Artur (coord.) (2004). Ser em Português 10 – Língua Portuguesa 10.º ano. Porto: Areal Editores. Disponível em: https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/6369/4/LIVRO.PDF

 

PROVA ESCRITA DE PORTUGUÊS

1. Explique a escolha do título "Claro-escuro".

2. No poema faz-se uma profunda reflexão sobre a condição humana. Explicite o pensamento do poeta sobre a enunciação da morte como uma certeza.

3. Que efeito expressivo se tira, na primeira estrofe, da inexistência de adjetivos.

4. Clarifique o jogo antitético presente nos dois últimos versos.

 

(Fonte: Exame de Português - Acesso ao Ensino Superior para os Maiores de 23 Anos, Faculdade De Direito Da Universidade De Coimbra, 2012-2013)

 

APONTAMENTO SOBRE O CONCEITO DE CLARO-ESCURO

O conceito de claro-escuro é usado no campo da pintura para nomear o contraste que ocorre entre sombras e luz em uma obra. É uma técnica que recorre a esses contrastes para destacar certos elementos do quadro e desenvolver efeitos visuais de modelagem e relevo.

O claro-escuro surgiu no século XVI, no contexto do período artístico conhecido como Cinquecento. Pintores italianos e flamengos começaram a ensaiar essa técnica que teve seu auge durante o barroco.

 

 

Caravaggio (1571-1610) foi um dos grandes artistas que usou o claro-escuro. “A Flagelação de Cristo” e “Morte da Virgem” estão entre suas obras que demonstram o uso dessa técnica. Rembrandt (1606-1669) também brilhou ao lidar com luz e sombra em pinturas como “O jovem Rembrandt”, “O filósofo em meditação” e outros.

A radicalização do claro-escuro foi denominada de tenebrismo. Nesse estilo, impulsionado por artistas como José de Ribera, El Greco e Caravaggio, o contraste entre luz e sombra é muito acentuado.

Além da pintura, o claro-escuro também chegou à xilografia. O seu desenvolvimento exigiu o uso de várias placas para colorir as imagens. Note-se que, com o passar dos anos, o claro-escuro invadiu o cinema.

https://conceito.de/claro-escuro, 2019-10-24

 

Poderá também gostar de:

  

  • A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013

 




CARREIRO, José. “Claro-escuro, Miguel Torga”. Portugal, Folha de Poesia, 24-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/claro-escuro-miguel-torga.html



sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Viagem: Aparelhei o barco da ilusão, Miguel Torga


 

VIAGEM

 

Aparelhei o barco da ilusão

E reforcei a fé de marinheiro,

Era longe o meu sonho, e traiçoeiro

O mar...

(Só nos é concedida

Esta vida

Que temos;

E é nela que é preciso

Procurar

O velho paraíso

Que perdemos.)

 

Prestes1, larguei a vela

E disse adeus ao cais, à paz tolhida,

Desmedida,

A revolta imensidão

Transforma dia a dia a embarcação

Numa errante2 e alada3 sepultura...

Mas corto as ondas sem desanimar.

Em qualquer aventura,

O que importa é partir, não é chegar.

 

Miguel Torga, Antologia Poética, 5.ª ed., Lisboa, Dom Quixote, 1999

 

__________

[1] Prestes: (adj.) pronto; preparado; (adv.) depressa.

[2] errante: que muda continuamente de lugar.

[3] alada: com asas.

 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas ao questionário.

1. A «Viagem» representada no poema tem um carácter metafórico.

1.1. Identifique os diferentes momentos dessa «Viagem».

1.2. Interprete o valor simbólico que os elementos «barco» e «marinheiro» adquirem no texto.

2. Indique os traços caracterizadores do sujeito poético.

3. Analise os efeitos de sentido resultantes da utilização de parêntesis na primeira estrofe.

4. Comente a importância dos dois últimos versos na construção do sentido do poema.

 

 

Explicitação de cenários de resposta

1.1. A «Viagem» representa metaforicamente a vida do homem e constitui-se nos seguintes momentos:

- preparativos de embarque, com lançamento da «vela» e partida apressada do «cais» (cf. vv. 1-2 e 12-13), ou seja, tomada de decisão por parte do «eu» de enfrentar a «aventura» da vida;

- navegação em pleno mar (cf. vv. 14-18), enfrentando o sujeito as «ondas», ou seja, lutando com determinação pela concretização do seu percurso pessoal.

 

1.2. Os elementos «barco» e «marinheiro» representam simbolicamente o sujeito e metaforizam o seu pensamento sonhador («barco da ilusão»), a crença em si mesmo («fé de marinheiro») e a vontade de enfrentar a vida («Viagem», «mar», «aventura»), comandando o seu destino pessoal, isto é, traçando-lhe um rumo, tal como o «marinheiro» no comando do seu «barco».

    Este par simbólico representa, assim, a luta incessante do homem pela conquista da felicidade, única forma de enfrentar e ultrapassar a angústia existencial provocada pela certeza da morte (cf. vv. 14-17).

 

2. O sujeito poético caracteriza-se por ser:

- sonhador, acreditando no «sonho» de uma vida marcada pela busca da felicidade plena, na procura do «velho paraíso» perdido (cf. vv. 1-3 e 5-11);

- insatisfeito, rejeitando um modelo de vida limitado (cf. v. 13);

- determinado, persistindo na concretização do seu objetivo, apesar das adversidades a enfrentar (cf. v. 3 e vv. 15-18);

- lúcido, consciente de que nem mesmo a «ilusão» pode alterar a precariedade da existência humana (cf. vv. 14-17);

- aventureiro, enfrentando a incerteza e o risco próprios da «aventura» (cf. vv. 19-20).

Nota - A apresentação de quatro traços caracterizadores é considerada suficiente para a atribuição da totalidade da cotação referente aos aspetos de conteúdo.

 

3. A utilização de parêntesis introduz uma pausa discursiva que suspende o relato da «Viagem» e instaura um momento de reflexão em que o sujeito explicita (em cumplicidade com o leitor) os fundamentos da sua atitude, apresentando-os como uma regra de vida que propõe a toda a humanidade: o homem, no curto espaço da sua existência terrena a única que «nos» é «concedida» -, deve ter como ideal a busca e a (re)conquista da felicidade edénica. Os parêntesis evidenciam a importância desta tese no poema, isolando-a e conferindo-lhe unidade e autonomia.

 

4. Colocados no final do poema e apresentados sob a forma de uma máxima, estes versos ganham particular importância, pois neles se põe em evidência uma espécie de chave interpretativa. Na verdade, ao salientar a noção de que o princípio motor de «qualquer aventura» é a própria busca, e não o objetivo a alcançar, o sujeito clarifica o modo como encara a vida.

    Assim se justifica que o «eu», embora certo de que a morte é o destino inevitável do homem (cf. vv. 15-17), não abdique da sua capacidade de busca e persista na concretização do «sonho» que conferirá sentido à existência humana - o da procura da felicidade na única «vida» («Esta», a terrena) que aos homens «é concedida».

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais - Agrupamentos 1, 2 e 3 e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B n.º 139. Portugal, GAVE, 2000, 1.ª fase, 1.ª chamada

 

 

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  • A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013

 

 



CARREIRO, José. “Viagem: Aparelhei o barco da ilusão, Miguel Torga”. Portugal, Folha de Poesia, 23-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/viagem-aparelhei-o-barco-da-ilusao.html


quinta-feira, 22 de setembro de 2022

A um Negrilho, Miguel Torga

Foto: in Árvores Monumentais de Portugal, Ernesto Goes(1984)

 

A UM NEGRILHO1

 

Na terra onde nasci há um só poeta.

Os meus versos são folhas dos seus ramos.

Quando chego de longe e conversamos,

É ele que me revela o mundo visitado.

Desce a noite do céu, ergue-se a madrugada,

E a luz do sol aceso ou apagado

É nos seus olhos que se vê pousada.

 

Esse poeta és tu, mestre da inquietação

Serena!

Tu, imortal avena2

Que harmonizas o vento e adormeces o imenso

Redil3 de estrelas ao luar maninho4.

Tu, gigante a sonhar, bosque suspenso

Onde os pássaros e o tempo fazem ninho!

 

Miguel Torga, Antologia Poética, 5.ª ed. Lisboa, Dom Quixote, 1999. Poema publicado inicialmente em Diário, VII, 1957

 

________

1 Negrilho: árvore de grande porte que dá madeira escura, também designada por olmo ou ulmeiro.

2 Avena: flauta pastoril; símbolo do estilo simples, próprio dos versos pastoris.

3 Redil: local cercado onde se recolhe o gado, especialmente cabras e ovelhas.

4 Maninho: que não é fecundo; estéril.



 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas ao questionário.

1. Indique as características do «Negrilho» referidas no poema.

2. Explicite o efeito de sentido produzido pela mudança de pessoa verbal – «ele»/«tu» – da primeira para a segunda estrofe.

3. Refira as atitudes assumidas pelo «eu» no seu relacionamento com o «Negrilho».

4. Interprete o significado da metáfora «imenso/ Redil de estrelas» (vv. 11-12).

5. Caracterize o conceito de poesia simbolizado pelo «Negrilho».

 

Explicitação de cenários de resposta

1. De acordo com o poema, o «Negrilho» é:

- uma árvore («folhas dos seus ramos») imponente («gigante»), antiga (nela o «tempo» faz «ninho»), de copa abundante («bosque suspenso») e em cuja ramagem se refletem a «luz do sol» e a luminosidade noturna (cf. vv. 6-7);

- um espaço protetor, a que se acolhem o «eu», «os pássaros e o tempo»;

- um ser com estatuto humano, dotado quer de atributos físicos - a voz («conversamos») e os «olhos» -, quer de traços psicológicos, pois é definido como sábio («revela o mundo visitado») e sonhador;

- o único poeta da terra natal do «eu», e «mestre da inquietação/ Serena».

 

2. A alteração de pessoa verbal - de «ele» para «tu» - entre as duas estrofes faz ressaltar a proximidade entre o «eu» e o «Negrilho». Na primeira estrofe, o sujeito poético enfatiza o carácter excecional daquela árvore e da sua relação com ela, mas mantém. através do discurso de terceira pessoa, um tom contido de aparente distanciamento. Ao dirigir-se ao «Negrilho», na segunda estrofe, tratando-o por «tu», dá expressão dramática à sua relação com a árvore, revelando, em toda a sua intensidade, o envolvimento afetivo que a caracteriza.

 

3. No seu relacionamento com o «Negrilho», o sujeito poético assume atitudes de:

- identificação e respeito, tomando o «Negrilho» como origem dos seus próprios versos (cf. v. 2) e como «mestre» (cf. v. 8);

- aprendizagem («conversamos», «revela»), pois é o «Negrilho» quem decifra o «mundo», permitindo ao «eu» aceder ao sentido das coisas vistas;

- admiração, devido à capacidade suprema que o «Negrilho» tem de simbolizar a harmonia da natureza (cf. vv. 8-9 e 11-12).

 

4. Ao recorrer à metáfora «imenso/ Redil de estrelas», o sujeito poético estabelece uma analogia entre o gado miúdo e as «estrelas»: os minúsculos pontos luminosos distribuídos na imensidão do céu sugerem a imagem do gado que está reunido, para passar a noite, numa cerca (o «Redil»): assim, o sujeito poético expressa, por um lado, a valorização da realidade rural, terrena, que surge como que refletida no céu, e, por outro, uma vivência do Cosmos como uma realidade próxima e familiar.

 

5. O conceito de poesia simbolizado pelo «Negrilho» apresenta os seguintes traços:

- valorização da sabedoria da terra («É ele que me revela o mundo visitado»);

- simplicidade poética, inspirada na natureza («imortal avena»);

- ideal de harmonia e de serenidade («inquietação/ Serena»);

- valor da poesia como ordenadora mágica do Universo;

- expressão do sonho humano de elevação («gigante a sonhar») e de integração na ordem cósmica;

- …

Nota - A apresentação de três traços caracterizadores é considerada suficiente para a atribuição da totalidade da cotação referente aos aspetos de conteúdo.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B n.º 139. Portugal, GAVE, 2001, 1.ª fase, 2.ª chamada


 


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  • A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013

 

 



CARREIRO, José. “A um Negrilho, Miguel Torga”. Portugal, Folha de Poesia, 22-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/a-um-negrilho-miguel-torga.html


quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Prospeção, Miguel Torga

Pascal Moreaux, Encontro marcado com Miguel Torga

 

PROSPEÇÃO

 

Não são pepitas de oiro que procuro.

Oiro dentro de mim, terra singela!

Busco apenas aquela

Universal riqueza

Do homem que revolve a solidão:

O tesoiro sagrado

De nenhuma certeza,

Soterrado

Por mil certezas de aluvião.

 

Cavo,

Lavo,

Peneiro,

Mas só quero a fortuna

De me encontrar.

Poeta antes dos versos

E sede antes da fonte.

Puro como um deserto.

Inteiramente nu e descoberto.

 

Miguel Torga, Antologia Poética, 5.ª ed., Lisboa, Dom Quixote, 1999

 

_________

Prospeção: pesquisa destinada a descobrir os filões ou jazigos de uma mina.

Aluvião: depósito de materiais provenientes da destruição das rochas e transportados pelas águas correntes.

 

 



 Elabore um comentário do poema “Prospeção”, de Miguel Torga, que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

- adequação do título ao sentido geral do texto;

- caracterização da figura do «eu»;

- recursos estilísticos mais importantes;

- integração no universo poético de Miguel Torga.

 

 

Explicitação de cenários de resposta

Adequação do título ao sentido geral do texto

«Prospeção», significando uma atividade de procura de minério no interior da terra, torna-se, enquanto metáfora, sinónimo de «introspeção».

O poema descreve a atividade de busca interior de um «tesoiro», que é, por sua vez, metáfora do processo de identificação de uma verdade subjetiva, num espaço de despojamento e de pureza; o «tesoiro» procurado pela «Prospeção», que começa por ser associado a uma atitude de suspensão de toda e qualquer «certeza» - isto é, a uma atitude de abertura ao desconhecido e ao improvável -, é, na segunda estrofe, associado ao ser «Poeta antes dos versos»; esse «tesoiro» é um «eu» profundo que os versos pressupõem e, portanto, indica de forma direta a atividade poética em geral.

 

Caracterização da figura do «eu»

O «eu» lírico começa por se apresentar como uma «terra singela», ou seja, um homem igual a todos os homens que a si mesmos se procuram, e que nem encerra nenhuma fortuna especial nem possui nenhum privilégio da sorte; o «eu» traça, então, o seu autorretrato com base no facto de não ter «nenhuma certeza».

O «eu» autodefine-se, na segunda estrofe, como «Poeta antes dos versos», alguém que é constituído essencialmente por uma vontade de ser poeta, ou que vive um estado poético anterior ao concreto exercício da escrita.

A associação estabelecida nos vv. 15-16 entre ser «Poeta» e ter «sede» - antes mesmo de escrever «versos» e de procurar a «fonte» - implica destacar a dimensão do desejo, da ânsia, a presença de uma força interior aberta e inocente (o estar «Puro» e «nu e descoberto»).

 

Recursos estilísticos mais importantes

Todo o poema pode ser definido como uma alegoria da procura («Prospeção») interior, encontrando-se ainda como recursos estilísticos principais:

- metáforas: «pepitas de oiro», «terra singela», «Universal riqueza», «Cavo», «Lavo», «Peneiro», «a fortuna/ De me encontrar», «Inteiramente nu e descoberto»;

- comparação: «Puro como um deserto»;

- imagem: «O tesoiro sagrado/ De nenhuma certeza,/ Soterrado/ Por mil certezas de aluvião»;

- pleonasmo: «nu e descoberto»;

- …

 

Integração no universo poético de Miguel Torga

Este poema é representativo do modo de escrita próprio do seu autor, pela importância que nele tomam:

- as imagens ligadas à terra, e sobretudo à «terra singela», com as suas conotações de rudeza, sobriedade, força e beleza;

- os gestos de trabalho prático e duro, de que a «Prospeção» é um exemplo;

- os temas da pureza e da ânsia interiores, associáveis à temática mais geral da sinceridade, própria também da geração da presença;

- o tema da nudez interior, associável à temática da autenticidade;

- a figuração de uma imagem heroica do poeta;

- …

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade - Via de Ensino (4.º curso). Prova Escrita de Literatura Portuguesa n.º 134, 2001, 1.ª fase, 2.ª chamada.

 


Pascal Moreaux, Encontro marcado com Miguel Torga


Amar “o duro ofício de criar beleza” 

A metáfora da busca da poesia enquanto mineração, tanto em sentido metafísico como alquímico, encontra-se desenvolvida no poema «Prospeção», inserto em Orfeu Rebelde.

A duplicidade da natureza do trabalho é aqui evidente. Os sentidos inerentes ao uso das formas verbais «Cavo/Lavro/Peneiro» sugerem tanto uma pesquisa interior quanto uma pesquisa prática, organizadoras do trabalho poético.

Atrever-me-ia a afirmar, como Aníbal Pinto Castro, que se trata de um constante «labor limae» (2005: 83) que se consubstancia, segundo o mesmo autor, na preocupação em procurar atingir a senda da perfeição, por exemplo, também, quando o poeta emenda, compulsivamente, as versões manuscritas das suas obras.

O árduo labor sobre o verbo fica igualmente bem vincado no poema «Profissão» incluído na obra supracitada, que me inspirou o título para o item a que agora me dedico:

 

PROFISSÃO

 

Brilha o poema como um novo astro

No céu da eternidade…

Tenacidade

Humana!

Tanto fiz

E desfiz,

Que ninguém diz

Que já foi minha a luz que dele emana.

 

Amo

O duro ofício de criar beleza,

Sina igual à do ramo

Que desprende de si o gosto do seu fruto.

E lapido no torno da tristeza

As lágrimas em bruto

Que recolho dos olhos

Com secreta

Ironia.

Transfiguro o meu pranto, e sou poeta:

Começa a noite em mim quando amanhece o dia.

 

Aqui, o ato criativo é entendido como laboração e metamorfose da própria emoção. O sentimento é cavilha que modela «as lágrimas em bruto». Dá-se então a epifania, a fulguração, a erosfania.

Torga é, pois, o poeta que, numa entrega total, se dedica ao penoso ofício de criar beleza. Com rigor, mas também com uma paixão incontestada, que enriquece sobremaneira o seu processo criativo.

 

Ana Ferrão, O Pulsar de Eros na Criação Poética de Miguel Torga: Um Paradigma da Celebração da Vida, Universidade de Évora, 2010

 

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  • A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013

 




CARREIRO, José. “Prospeção, Miguel Torga”. Portugal, Folha de Poesia, 21-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/prospecao-miguel-torga.html



terça-feira, 20 de setembro de 2022

Depoimento: Nunca pisei um chão de segurança, Miguel Torga

Miguel Torga, por Isolino Vaz. Retrato a carvão, 1961

 

DEPOIMENTO

 

Foi na vida real como nos sonhos:

Nunca pisei um chão de segurança.

Procuro na lembrança

Um sólido caminho percorrido,

E vejo sempre um barco sacudido

Pelas ondas raivosas do destino.

Um barco inconsciente de menino,

Um barco temerário de rapaz,

E um barco de homem, que já não domino

Entre os rochedos onde se desfaz.

 

Mas o céu era belo

Quando à noite o seu dono o acendia;

E era belo o sorriso da poesia,

E belo o amor, dragão insatisfeito;

E era belo não ter dentro do peito

Nem medo, nem remorsos, nem vaidade.

Por isso digo que valeu a pena

A dura realidade

Desta viagem trágico-terrena

 

Sempre batida pela tempestade.

 

Miguel Torga, Orfeu Rebelde, 1958.
Antologia Poética, 2.ª edição, Coimbra, 1985

 

_________

VOCABULÁRIO:

Depoimento – ato ou efeito de depor; testemunho.

Temerário – ousado perante um perigo quase certo; imprudente, aventureiro.

 

 

I – Questionário sobre a leitura do poema “Depoimento”, de Miguel Torga.

1. O sujeito poético, ao fazer um balanço da sua vida, conclui: "Nunca pisei um chão de segurança” (v. 2). Este verso significa que ele

a) nunca se mostrou firme no andar.

b) nunca teve uma vida fácil.

c) nunca se integrou na Natureza.

d) nunca foi aceite pelos outros.

 

2. A primeira estrofe constrói-se com base na metáfora. Explicita o significado de "um barco sacudido pelas ondas raivosas do destino" (vv. 5 e 6)

 

3. Caracteriza as etapas fundamentais da vida do sujeito poético, partindo das expressões “barco inconsciente de menino", "barco temerário de rapaz", "barco de homem".

 

4. Relê atentamente a segunda estrofe. Aponta os aspetos positivos que preencheram a vida do poeta.

 

5. Explicita o balanço que o sujeito poético faz da sua vida no final do poema.

 

Fonte: Teste de Língua Portuguesa – 8.º ano de escolaridade. Professora Sónia Pinto, Externato João Alberto Faria Arruda dos Vinhos, abril de 2010. Disponível em: https://zdocx.com.br/doc/pg8ano-201112-reparado-r8p53wqv2x6q

***

 

II - Elabore um comentário global do poema “Depoimento”, de Miguel Torga, tendo em conta os níveis formal, fónico, morfossintático e semântico, de modo a evidenciar, entre outros, os seguintes aspetos:

- assunto e estrutura lógica da sua composição;

- valor do título e sua relação com o tom do discurso apresentado;

- jogo metafórico e o seu processo de desenvolvimento;

- sua relação com o universo temático fundamental de Miguel Torga.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade - Via de Ensino (4.º curso). Prova Escrita de Literatura Portuguesa n.º 134, 1997, 1.ª fase, 1.ª chamada.

  

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  • A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013

 




CARREIRO, José. “Depoimento: Nunca pisei um chão de segurança, Miguel Torga”. Portugal, Folha de Poesia, 20-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/depoimento-nunca-pisei-um-chao-de.html