VIAGEM
Aparelhei o
barco da ilusão
E reforcei a fé
de marinheiro,
Era longe o meu
sonho, e traiçoeiro
O mar...
(Só nos é
concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é
preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos.)
Prestes1,
larguei a vela
E disse adeus
ao cais, à paz tolhida,
Desmedida,
A revolta
imensidão
Transforma dia
a dia a embarcação
Numa errante2
e alada3 sepultura...
Mas corto as
ondas sem desanimar.
Em qualquer
aventura,
O que importa é
partir, não é chegar.
Miguel Torga, Antologia
Poética, 5.ª ed., Lisboa, Dom Quixote, 1999
__________
[1] Prestes: (adj.)
pronto; preparado; (adv.) depressa.
[2] errante: que muda
continuamente de lugar.
[3] alada: com asas.
Apresente, de forma bem estruturada, as
suas respostas ao questionário.
1. A «Viagem» representada no poema tem um carácter metafórico.
1.1. Identifique os diferentes momentos dessa «Viagem».
1.2. Interprete o valor simbólico que os
elementos «barco» e «marinheiro» adquirem no texto.
2. Indique os traços caracterizadores do sujeito poético.
3. Analise os efeitos de sentido resultantes da utilização de
parêntesis na primeira estrofe.
4. Comente a importância dos dois últimos versos na construção
do sentido do poema.
Explicitação de cenários de resposta
1.1.
A «Viagem» representa metaforicamente a vida do homem e constitui-se nos
seguintes momentos:
- preparativos de embarque, com lançamento
da «vela» e partida apressada do «cais» (cf. vv. 1-2 e 12-13), ou seja, tomada
de decisão por parte do «eu» de enfrentar a «aventura» da vida;
- navegação em pleno mar (cf. vv. 14-18),
enfrentando o sujeito as «ondas», ou seja, lutando com determinação pela
concretização do seu percurso pessoal.
1.2.
Os elementos «barco» e «marinheiro» representam simbolicamente o sujeito e
metaforizam o seu pensamento sonhador («barco da ilusão»), a crença em si mesmo
(«fé de marinheiro») e a vontade de enfrentar a vida («Viagem», «mar»,
«aventura»), comandando o seu destino pessoal, isto é, traçando-lhe um rumo,
tal como o «marinheiro» no comando do seu «barco».
Este par simbólico representa, assim, a
luta incessante do homem pela conquista da felicidade, única forma de enfrentar
e ultrapassar a angústia existencial provocada pela certeza da morte (cf. vv.
14-17).
2.
O sujeito poético caracteriza-se por ser:
- sonhador, acreditando no «sonho» de uma
vida marcada pela busca da felicidade plena, na procura do «velho paraíso»
perdido (cf. vv. 1-3 e 5-11);
- insatisfeito, rejeitando um modelo de
vida limitado (cf. v. 13);
- determinado, persistindo na concretização
do seu objetivo, apesar das adversidades a enfrentar (cf. v. 3 e vv. 15-18);
- lúcido, consciente de que nem mesmo a
«ilusão» pode alterar a precariedade da existência humana (cf. vv. 14-17);
- aventureiro, enfrentando a incerteza e o
risco próprios da «aventura» (cf. vv. 19-20).
Nota - A apresentação de quatro traços
caracterizadores é considerada suficiente para a atribuição da totalidade da
cotação referente aos aspetos de conteúdo.
3.
A utilização de parêntesis introduz uma pausa discursiva que suspende o relato
da «Viagem» e instaura um momento de reflexão em que o sujeito explicita (em
cumplicidade com o leitor) os fundamentos da sua atitude, apresentando-os como
uma regra de vida que propõe a toda a humanidade: o homem, no curto espaço da
sua existência terrena a única que «nos» é «concedida» -, deve ter como ideal a
busca e a (re)conquista da felicidade edénica. Os parêntesis evidenciam a
importância desta tese no poema, isolando-a e conferindo-lhe unidade e
autonomia.
4.
Colocados no final do poema e apresentados sob a forma de uma máxima, estes
versos ganham particular importância, pois neles se põe em evidência uma
espécie de chave interpretativa. Na verdade, ao salientar a noção de que o
princípio motor de «qualquer aventura» é a própria busca, e não o objetivo a
alcançar, o sujeito clarifica o modo como encara a vida.
Assim se justifica que o «eu», embora certo
de que a morte é o destino inevitável do homem (cf. vv. 15-17), não abdique da
sua capacidade de busca e persista na concretização do «sonho» que conferirá
sentido à existência humana - o da procura da felicidade na única «vida» («Esta»,
a terrena) que aos homens «é concedida».
Fonte: Exame
Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º
286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais - Agrupamentos 1, 2 e 3 e Cursos
Tecnológicos. Prova Escrita de Português B n.º 139. Portugal, GAVE, 2000, 1.ª
fase, 1.ª chamada
- “A Viagem” - comentário de uma professora do Ensino Secundário ao poema de Miguel Torga, disponível em: https://atena2010.wordpress.com/2012/02/19/a-viagem/
- “Miguel Torga”, https://folhadepoesia.blogspot.com/search/label/Miguel%20Torga, José Carreiro
- “A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013
- “A Criação do Mundo (1937-1981),
Miguel Torga”, José Carreiro. In Lusofonia - Plataforma de apoio ao
estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª ed.).
CARREIRO,
José. “Viagem: Aparelhei o barco da ilusão, Miguel Torga”. Portugal, Folha
de Poesia, 23-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/viagem-aparelhei-o-barco-da-ilusao.html
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