sexta-feira, 28 de outubro de 2022

O Jardim e a Casa, Sophia Andresen

Casa Andresen <https://sigarra.up.pt/faup/pt/noticias_geral.noticias_cont?p_id=F-1286691029/190708_InternationalArcAward2019_700px.png>

 

 

O JARDIM E A CASA

 

Não se perdeu nenhuma coisa em mim.

Continuam as noites e os poentes

Que escorreram na casa e no jardim,

Continuam as vozes diferentes

Que intactas no meu ser estão suspensas.

Trago o terror e trago a claridade,

E através de todas as presenças

Caminho para a única unidade.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

POESIA, 1.ª ed., 1944, Coimbra, Edição da Autora • 2.ª ed., 1959, Lisboa, Edições Ática • 3.ª ed., Poesia I, 1975, Lisboa, Edições Ática • 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho • 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho • 6.ª ed., 2007, Lisboa, Editorial Caminho • 1.ª edição na Assírio & Alvim (7.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Pedro Eiras.

 

Comentário de texto

    Escreve um texto expositivo, com um mínimo de 100 e um máximo de 140 palavras, no qual apresentes uma análise do poema. O teu texto deve incluir uma parte introdutória, uma parte de desenvolvimento e uma parte de conclusão. Organiza a informação da forma que considerares mais pertinente, tratando os tópicos apresentados a seguir.

  • Indicação do tempo recordado pelo sujeito poético.
  • Explicitação do que não se perdeu (v. 1).
  • Referência à importância da repetição da forma verbal «Continuam» no presente do indicativo.
  • Referência ao «local» para onde caminha o sujeito poético e à forma como o faz.
  • Indicação do tema do texto.

 

Tópicos de resposta:

  • O tempo recordado é o passado que o «eu» viveu.
  • Não se perderam as vivências do passado, assinaladas pelas noites, pelos poentes que escorreram pela casa e jardim, pelas vozes.
  • A repetição da forma verbal «Continuam», no presente do indicativo, reforça a ideia de que as «coisas» do passado ainda vivem dentro do sujeito poético.
  • O sujeito poético caminha para o futuro (sendo a unidade conseguida com a junção do passado, presente e futuro), e fá-lo de forma tranquila.
  • O tema do texto é a evocação do passado na caminhada para o futuro.

 

Fonte: Letras e Companhia 9 - Preparar a Prova Final de Português. Carla Marques e Inês Silva. Lisboa, Edições Asa, 2013

 

 

Textos de apoio:

 

Natureza e poesia

Nos poemas de caráter essencialmente nostálgico, o eu lírico evidencia uma busca por se religar a um tempo ideal, de modo que as imagens apresentadas podem ser interpretadas também como um desejo por unidade. É o que se percebe no poema “O jardim e a casa”.

Nesse texto, o uso de noites e poentes e terror e claridade evidencia as tensões decorrentes de um olhar que em determinado momento se volta para a dura realidade do tempo presente e noutro alude a uma dimensão nostálgica, que é um ser/estar feito memória e linguagem, como alternativa ao presente. Assim, ressaltam-se, ao longo do poema, as tensões entre imagens que remetem à luminosidade e às representações de caráter noturno, conforme afirma o crítico Luís Ricardo Pereira sobre a obra andreseana: “diante da natureza disfórica da realidade, há sempre uma contrária e promissora força eufórica capaz de se impor como realidade alternativa” (PEREIRA, 2003, p. 50).

Novamente, a dimensão do ato contemplativo se mostra um elemento-chave para a compreensão do poema, de modo que as imagens da casa e do jardim permanecem como modelos ideais intactos na memória do eu lírico. Consistem, portanto, em presenças constituintes “da perceção de um mundo fundador, inaudito, elaborado na e pela linguagem” (PEREIRA, 2003, p. 158), uma vez que o eu lírico as evoca como um “Caminho para a única unidade”, ou seja, para a vontade de comunhão com a natureza que atravessa a sua linguagem. Assim, a palavra ser evocada pelo eu lírico pode ser interpretada tanto como o verbo que denota o ato de existir quanto como o substantivo que especifica o que existe ou se supõe existir; qualquer ente vivo. Nesse sentido, a ambiguidade da palavra pode ser assimilada como um elemento textual de aproximação entre palavra e natureza – apelo este confrontado nos versos seguintes em face das perspetivas de “terror” diante de uma modernidade fragmentada e da “claridade” presente tanto no ato de contemplação quanto na criação poética, ambos elementos que simbolizam o desejo de unidade almejado pelo eu lírico.

 

Murillo Castex, Uma arte do ser: relações entre palavra e natureza na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen. Curitiba, UTFPR, 2022

 

***

 

Prelúdio a um centenário: O Jardim de Sophia

1. Revelada nos alvores da década de ’40, em ligação à dinâmica dos Cadernos de Poesia, Sophia de Mello Breyner Andresen depressa se impôs num trajeto muito individualizado; e tornou-se, com seu ritual de vate «escutador» do poema imanente ao mundo, uma oficiante da restituição genuína de O Nome das Coisas (1977).

O seu discurso de profetismo lírico, inconfundível em concisão e eloquência, em distância e paixão, em autonomia estética e alcance ético-cívico, com intencionalidade testemunhal já desde No Tempo Dividido (1954), mas mais interventivo com Livro Sexto (1962), Grades (1970), Dual (1972), elevou-a aos lugares cimeiros da modernidade poética em Portugal.

Com linguagem e estilo tão crescentemente despojados quanto férteis em imagens de densa alusão, Sophia margina com a exemplaridade de extraordinárias narrativas breves uma poesia vocacionada desde as primícias (Poesia (1944), Dia do Mar (1947), Coral (1950)) para se cumprir como «casa do ser» (Ilhas (1989)). Num e noutro modo literário, sonda a manifestação concreta do inefável no universo sensível dos quatro elementos fundamentais e na dualidade transversal de «cidade alheia» e natureza refontalizante. Exercício de recognição e reencontro com «a primitiva manhã da criação», sintetizada em Navegações (1983), quando a lírica de Sophia se determina a retomar a energia mitopoética dos inícios, com Musa (1994) e com O Búzio de Cós (1997).

Ora, tal como, no dealbar do século XXI, Maria Andresen de Sousa Tavares em boa hora organizou a coletânea Mar com meia centena dos melhores poemas de sua mãe, a partir das referências ao oceano, também se poderia conceber idêntico gesto antológico a partir da presença explícita ou alusiva, evocativa ou simbólica, do Jardim. De facto, o «jardim» revela-se elemento fundamental da geografia eletiva na obra de Sophia, correlata da sua antropologia poética na «verdade antiga da natureza»; e, ao mesmo tempo, sobressai como figuração privilegiada do genius loci propiciatório do discernimento para o Eu profundo, perante a relação biunívoca entre o sentido do deslumbramento do mundo e o sentido do sofrimento do mundo.

Por isso, na escrita de Sophia e na sua poética do espaço (a pedir uma leitura fenomenológica à maneira de Gaston Bachelard) «o jardim» - e a casa, e a quinta - migrará, com adequadas formas discursivas da «evidência do / lugar sagrado» e húmus da resiliência da Criação, para a narrativa breve, com ficção e dicção não menos líricas. No exercício nada trivializante da fantasia órfica, Contos Exemplares (1962) e Histórias da Terra e do Mar (1984) inseminam inquietações ético-religiosas no maravilhoso e no fantástico; e os contos para crianças, como O rapaz de bronze (1956), Noite de Natal (1960), A Floresta (1968), etc., não debilitam a intensidade alegórica, sem que a salvação exija que «Nós quebraremos o arco-íris da aliança com as flores». 

 

2. O jardim do Campo Alegre (e a casa e a quinta portuenses de que é indissociável) constitui para Sophia de Mello Breyner Andresen (1919 - 2004) um fecundo fator de «alvoroço e início» análogo ao que a grande pitonisa de Navegações lapidarmente atribuíu ao génio inacomodado do primo Ruben A., na «Carta» que, sob a forma de magnífico poema, lhe endereçou após a morte.

Alvoroço e início, primeiro, no plano existencial da escritora, na medida em que primeiro se torna inigualável espaço propiciatório de expansão convivial, lúdica e devaneante de Sophia, no decurso formativo de infância e adolescência, deixando marcas indeléveis na sua sensibilidade e no seu imaginário.

Alvoroço e início, depois, na medida em que essa experiência existencial no/com o jardim e seu termo suscitou na sua obra literária figurações recorrentes e renovadoras, as quais ganharam um valor simbólico que permanece fulcral para a reativação interpretativa dos seus textos.

Alvoroço e início, finalmente, porque no discurso poético, narrativo e ensaístico de Sophia o jardim do Campo Alegre, tornado «o jardim» por antonomásia, subjaz no plano cognitivo e expressivo das práticas simbólicas, à perseguição arquetípica da matriz ontológica do humano em sua excecional singularização e em sua realização interpessoal.

Sophia exprimiu por outros termos e gestos o que Ruben A. confessou: «Um dia compreendi a importância que teve para mim o Campo Alegre, o sítio, o cheiro, a vista, as árvores. Foi a fragrância quem me recebeu primeiro, facilitando-me no vaivém da ondulação distinguir as plantas e a terra que as recolhe. […] A mata da quinta, o souto de castanheiros, os altos muros de camélias, os milheirais em vários andares, os campos […]». Em consonância, lembrará Sophia: «Vivemos e brincámos juntos nas mesmas casas, nos mesmos jardins. Sobretudo naquela casa da nossa avó [ao Campo Alegre]. Para uma criança, aquela casa e aquele enorme jardim com os altíssimos plátanos, as tílias, o carvalho, ao lado do ténis, as camélias, o roseiral, o pomar, as adegas, o pinhal, os morangos selvagens, eram um mundo, um reino que em nós permanece como uma inesgotável memória inspiradora. Nunca se consegue dizer tudo.»        

 

3. O encontro do sujeito poético com o desejo de esplendor do real começa, na obra de Sophia de Mello Breyner Andresen, pelo tropismo paradoxal de identificação com a noite e a sua mediação num processo iniciático sob a aura de mistério e o signo da energia espiritual. Requer seu tempo a transmutação do sujeito poético, num trajeto que, lá para os confins de Poesia (1944), o conduz ao encontro do «Dia perfeito inteiro e luminoso.»

Esse trajeto é indissociável da ligação ao «jardim» - forma originária de manifestação da beleza da paisagem, do mundo, das coisas, lugar cativo e sortílego da memória afetiva e da sua importância catalítica, mas também, e sobretudo, espaço imaginário da busca ontológica, figuração eudemónica (mesmo se perdida ou distante) do real como «pátria do ser».

Os primeiros livros de Sophia rescendem constantemente aos «lugares mágicos do jardim» que em 1988, falando na Sorbonne, a poetisa havia de evocar como nexo fundacional da sua doutrina da imanência poética.

Emergindo como elemento nuclear da geografia vivencial das origens, em conúbio com a «noite» e a «casa» da juvenil Poesia, como evidenciam os poemas «O jardim e a noite», «O jardim e a casa», «O jardim», «Em todos os jardins». Depois, torna-se elemento constante no Dia do Mar de 1947, em regime evocativo ou metafórico, sempre com idêntico potencial simbólico através dos poemas «Jardim do mar», «O jardim», «abril», Jardim verde», «Partida», «Há jardins», «Devagar no jardim», «A luz oblíqua».

Ganha então valência icónica de aferição e cotação de realia ou como viabilização ainda da vidência pampsiquista oriunda de Pascoaes: «… / E tens o silêncio indizível dum jardim / Invadido de luar e de segredos.», «Cada instante / No seu secreto murmurar é semelhante / A um jardim que verdeja e que floresce.»

Depois, o «jardim» rareia e só volta como ferida ou falha – no limiar de Dual (1972) e na magoada ironia rimbaldiama de O Nome das Coisas: «A casa que eu amei foi destroçada / A morte caminha no sossego do jardim / A vida sussurrada na folhagem / Subitamente quebrou-se não é minha», «Onde o mar aberto / E o tempo lavado? / Perdi-me tão perto / Do jardim buscado».

 

4. Real não abolido, embora intangível, esse jardim! É então, aliás, que mais ressalta, enquanto projeção ontológica, o valor paradigmático do «jardim». Assim se vê, por exemplo, na lapidar anotação final de «Caderno I»: «E dói-me a luz como um jardim perdido.»

Afinal, essa dúplice indicação estava já presente dialeticamente na primicial Poesia, enquanto elo inquebrantável de virtualidade na abertura e no fecho do «Jardim perdido» - «Jardim em flor, jardim de impossessão, / …» que trazia em si «sempre suspenso / Outro jardim possível e perdido.» E assim latejava como ferida em momentos fulcrais de Dia do Mar (poemas «Jardim perdido», «Bebido o luar») e de Coral (poema «Passam os carros»).

Assim permaneceria, latente, Na alma tensa, comungante e ecuménica, da palavra de Sophia, permaneceria latente o «jardim», como garante da vocação de absoluto na perceção do carente e do belo no Mundo, bem como no horizonte de realização do eu poético e do justo na História.

Talvez nenhum outro texto de Sophia o diga de forma mais veemente e sugestiva do que certo poema de O Nome das Coisas que, sintomaticamente, remata no «Kaos» genésico que seu primo Ruben A. consagrará no título do seu derradeiro e desconcertante romance:

«Era um dos palácios do Minotauro
— O da minha infância para mim o primeiro —
Tinha sido construído no século passado (e pintado a vermelho)

Estátuas escadas veludo granito
Tílias o cercavam de música e murmúrio
Paixões e traições o inchavam de grito

Espelhos ante espelhos tudo aprofundavam
Seu pátio era interior era átrio
As suas varandas eram por dentro
Viradas para o centro
Em grandes vazios as vozes ecoavam
Era um dos palácios do Minotauro
O da minha infância — para mim o vermelho

Ali a magia como fogo ardia de março a fevereiro
A prata brilhava o vidro luzia
Tudo tilintava tudo estremecia
De noite e de dia

Era um dos palácios do Minotauro
— O da minha infância para mim o primeiro —
Ali o tumulto cego confundia
O escuro da noite e o brilho do dia
Ali era a fúria o clamor o não-dito
Ali o confuso onde tudo irrompia
Ali era o Kaos onde tudo nascia».

[Sophia de Mello Breyner Andresen, “O Palácio” in O Nome das Coisas, 1977 (1.ª ed.)]

 

José Carlos Seabra Pereira, “Prelúdio a um centenário: O Jardim de Sophia” in Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, 07.01.2019. Disponível em: https://www.snpcultura.org/preludio_a_um_centenario_o_jardim_de_sophia.html

 

***

 

Visita à Casa Andresen, que inspirou a obra de Sophia, no Porto

A escritora portuense Sophia de Mello Breyner passou parte da sua infância na Quinta do Campo Alegre. E nela se inspirou para alguns dos mais conhecidos contos.


A casa e a quinta inspiraram as obras de Sophia de Mello Breyner Andresen e do primo Ruben A. (Fotografia de Pedro Granadeiro/GI)

Quando Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu, a 6 de novembro de 1919, aquela que é atualmente conhecida como Casa Andresen era a casa da Quinta do Campo Alegre. Adquirida em 1895 pelo comerciante de vinho do Porto João Henrique Andresen, este transformou-a nessa época ao estilo romântico então em voga.

Foi, então, num ambiente propício à descoberta e à imaginação que a escritora passou parte da infância e juventude, tal como Ruben A., seu primo e também escritor. Na obra de ambos, a quinta e a casa aparecem como inspiração. Exemplo disso são os contos para crianças, de Sophia, “O Rapaz de Bronze” e “A Floresta”.

O Estado tomou posse da quinta em 1949. Dois anos depois, foi transformada em Jardim Botânico, com gestão da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto que também teve a casa à sua disposição, com laboratórios e salas até 2010.


Esqueleto de baleia que ocupa o átrio central da Casa Andresen, no Jardim Botânico do Porto(Fotografia de Pedro Granadeiro/GI)


No seu conto “Saga”, que integra o livro “Histórias da Terra e do Mar”, publicado em 1984, Sophia conta a história dos seus antepassados e descreve a casa e a quinta. “Tudo na casa era desmedidamente grande, desde os quartos de dormir onde as crianças andavam de bicicleta até ao enorme átrio para o qual davam todas as salas e no qual se podia armar o esqueleto da baleia que há anos repousava empacotado em numerosos volumes, nas caves da Faculdade de Ciências”. Premonitório ou não, a verdade é que, hoje, nesse átrio que é agora parte da Galeria da Biodiversidade, que ocupa a casa desde 2017, está montado o grandioso esqueleto.

 

Jardim Botânico

(Fotografia de Pedro Granadeiro/GI)


Quando o Estado adquiriu a Quinta do Campo Alegre, em 1949, esta tinha 12 hectares, estendendo-se até ao rio. Dois anos depois foi transformado em Jardim Botânico e nos anos 60 com a construção da Via de Cintura Interna, ficou apenas com 4 hectares. Foi o arquiteto paisagista alemão Franz Koepp que converteu a quinta em jardim, criando em jeito de homenagem a Sophia o Jardim dos Anões, numa alusão ao lugar onde Isabel, personagem principal de “A Floresta”, fantasiava encontrar anões.

 

Galeria da Biodiversidade

(Fotografia de Pedro Granadeiro/GI)


Neste que é o primeiro polo do Museu de História Natural e Ciência da Universidade do Porto, experiências sensoriais e bonitas instalações guiam os visitantes pela diversidade biológica, numa galeria que casa ciência, arte e literatura.

 

Clube Universitário do Porto

(Fotografia de Pedro Granadeiro/GI)


Na mesma rua do Campo Alegre ergue-se o palacete Primo Madeira. Aqui funciona o Clube Universitário do Porto, casa dos Alumni – antigos estudantes da Universidade do Porto – está também aberto à comunidade em geral. Serve almoços e lanches em vários espaços da casa de segunda a sexta-feira e o seu jardim romântico convida a passeios tranquilos.

 

Luísa Marinho, https://www.evasoes.pt/o-que-fazer/visita-a-casa-andresen-que-inspirou-a-obra-de-sophia-no-porto/1036237/, 25/04/2022

 

Poderá também gostar de:

 

  • [O jardim como hortus conclusus]

Podemos falar do jardim como representação: uma representação do olhar do homem sobre a natureza. Neste sentido, não há nada mais antinatural do que o jardim. As suas formas, quer sigam os padrões clássicos de uma estrutura geométrica e arquitetónica definida pelo desenho rigoroso do espaço, quer procurem imitar a desordem da vegetação selvagem, são concebidas para sugerir um domínio do homem sobre algo que lhe é anterior, e que durante séculos ou milénios condicionou a sua própria existência através dos ciclos naturais da alternância climática, dos períodos de seca ou dos incêndios, das barreiras que muitas vezes a natureza colocou ao avanço da chamada civilização.

A função do jardim variou ao longo da história e o seu objetivo nem sempre foi o mesmo. A ambição de reproduzir um éden, ou o que seria o espaço perfeito dos deuses, vem da imagem dos jardins suspensos da Babilónia, onde a construção em vários níveis sugere a ascensão ao Paraíso através do contacto com vários planos de distribuição da beleza natural. O Oriente

é um dos lugares em que o jardim tem essa função transcendente de fruição pura das cores e das formas das plantas, cruzando-se com a água, ao contrário do jardim medieval que acrescenta um lado utilitário com a plantação de ervas aromáticas, de sabores, de frutos.

Mas o jardim é também um lugar destinado a pôr um parêntesis na desordem e na confusão do mundo. Mesmo em épocas remotas, ele tinha essa função de hortus conclusus — o lugar fechado onde era possível o refúgio de tudo aquilo que ameaçava o homem, na sua vida social. Lugar de meditação e locus amoenus, era aí que o tempo podia parar o seu curso, como se o contacto com a vegetação «desviasse» o homem desse ciclo infernal do tempo que não para e que o arrasta inevitavelmente para a morte. Ao contrário do tempo filosófico, o tempo associado por Heraclito à água do rio que nunca é a mesma, e não é reversível no seu curso, o tempo natural é cíclico, tendo nele origem a filosofia do eterno retorno que, em cada primavera, faz regressar o viço que o outono fez perder, antecipando a morte invernal.

Por isso, o jardim é um espaço otimista, onde é possível o contacto com essa ilusão de perenidade que a escolha das suas espécies — em que poderá sempre haver folhagem, mesmo no inverno — permite sugerir. Também o sonho da renovação se encontra nele, juntando os dois mundos elementares que são a terra e a água, de uma forma ativa, sempre transmitindo essa dinâmica que faz parte da evolução sazonal onde o céu desempenha igualmente um papel central, como teto e suporte dessa dinâmica. Será também contraditória esta coexistência, no jardim, de dois opostos: a imobilidade, a paragem do tempo, que prende o homem a uma ideia de eternidade; e o movimento invisível da natureza, as transformações que se verificam a cada momento no interior das plantas, e que nos levam a olhá-las sabendo que a floração é uma fase, mas que o seu desaparecimento arrastará necessariamente um futuro renascimento.

Nuno Júdice, Camões – Por Cantos Nunca Dantes Navegados, Lisboa, Sibila Publicações, 2019, pp. 83-84.




“O Jardim e a Casa, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-28. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/o-jardim-e-casa-sophia-andresen.html


quinta-feira, 27 de outubro de 2022

MAR, Sophia Andresen

 

 

ATLÂNTICO

 

Mar,

Metade da minha alma é feita de maresia.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, POESIA, 1944 (1.ª ed.)

 

 

     Se esboçássemos uma geografia radicada nos poemas de Sophia dir-se-ia que do fio do mar Atlântico, contemplado na sua infância passou ao Mediterrâneo luminoso e quente e que trocou as brumas do norte pela claridade do sul.

Maria de Lourdes Belchior, “Itinerário literário de Sophia”. Colóquio Letras. nº 89. jan de 1986, pp. 36-42

***

     Esse atlântico selvagem, que desde cedo ela reconhece como fonte de linguagem, levá-la-á para uma busca existencial ao longo dos caminhos que levam para o mar interior, o Mediterrâneo, que se apresentará como lugar sagrado à volta de uma terra, a Grécia, onde a sua espiritualidade será completa numa fusão entre vida, poesia, e sentimento do divino. 

Federico Bertolazzi, Almadilha. Ensaios sobre Sophia de Mello Breyner Andresen. Lisboa, Documenta, 2019, p.17


[…]

JCV – Dizia eu que a imagem do jardim foi desaparecendo, enquanto as do mar e da praia se mantiveram: não representam estas também um sentimento de liberdade?

 

Sophia – Sim. Mas eu dou-me maravilhosamente na praia, gosto muito do mar.

 

JCV – Além disso...

 

Sophia – São muito o mar e praia. Chegar a uma praia dá-me sempre uma certa embriaguez. Além disso a praia lava-me, renova-me, recria-me, fisicamente, moralmente, espiritualmente.

[…]

José Carlos de Vasconcelos, “Sophia: a luz dos versos”, in Jornal de Letras, Artes e Ideias n.º 468, 25 junho a 1 julho de 1991, pp. 8-13

 


Sophia no areal da praia de Dona Ana, em Lagos© D.R.


 

MAR

 

I

De todos os cantos do mundo

Amo com um amor mais forte e mais profundo

Aquela praia extasiada e nua,

Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.

 

II

Cheiro a terra as árvores e o vento

Que a Primavera enche de perfumes

Mas neles só quero e só procuro

A selvagem exalação das ondas

Subindo para os astros como um grito puro.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, POESIA, 1944 (1.ª ed.)

 

 


O olhar contemplativo é um aspeto central da poética de Sophia de Mello Breyner Andresen, autora que alude constantemente aos elementos naturais por meio da evocação de representações da fauna e da flora, bem como “dos quatro elementos primordiais” (CEIA, 2003, p. 37), que caracterizam, em um sentido amplo, “uma fenomenologia que privilegia o regresso às coisas elas mesmas” (CEIA, 2003, p. 36). Nesse contexto, a contemplação voltada para as formas da natureza se destaca nos versos da autora, que atribui especial ênfase ao mar e às imagens marítimas, os quais perpassam pela obra andreseana em sua totalidade e representam “não só o percurso da vida, mas também o seu ressurgimento para além das fronteiras do tempo” (MALHEIRO, 2008, p. 190). Assim, ao se voltar, em estado contemplativo, para as formas da natureza, a autora apresenta uma busca não de uma imitação do real, mas de uma realidade outra, descoberta na linguagem (PEREIRA, 2003, p. 151), diante da cesura entre homem e natureza estabelecida a partir da modernidade. Essa busca pode ser observada no poema “Mar”, que traduz um motivo recorrente da obra andreseana relacionado à perceção de um “tempo puro” que se ultrapassa a si próprio numa afirmação atemporal de eternidade (MALHEIRO, 2008, p. 129). 

O eu lírico inicia esse poema evocando uma “praia extasiada e nua”, lugar enunciado como aquele que mais ama no mundo. Observa-se, assim, a apresentação de uma paisagem segundo uma visão idílica, que opera também como uma recriação da realidade com base em um registo da memória tomada enquanto elemento estruturante do sujeito, que aqui se torna simultaneamente o lugar de encontro de todos os tempos e do próprio trânsito existencial (MORNA, 2013, p. 157), na medida em que o eu lírico situa a dimensão de um “reencontro com a origem, da consolidação da memória primordial” (MORNA, 2013, p. 156). Esse aspeto é reforçado pelo emprego do verbo “uni”, conjugado no pretérito perfeito do indicativo, que, no contexto do poema, denota sentido de união que “impede a natureza de ficar contida no dado físico, ao mesmo tempo que encaminha a arte e a poesia, não para o desvelamento do oculto, mas para a captação e reverberação do evidente” (RUBIM, 2013, p. 237). Nos versos subsequentes, o eu lírico descreve as sensações experimentadas nesse lugar idílico, como o cheiro da terra, das árvores e do vento, e destaca a estação do ano em que tal união “ao mar, ao vento e à lua” ocorreu: a Primavera, que pode ser associada, segundo a sua representação simbólica mais característica, à juventude, isto é, à etapa de formação do indivíduo, conforme a perspetiva de que “a sucessão das estações, assim como a das fases da lua, marca o ritmo da vida, as etapas de um ciclo de desenvolvimento: nascimento, formação, maturidade, declínio” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2017, p. 401). Nesse sentido, em face de tal união com base em “um amor mais forte e mais profundo”, o eu lírico afirma procurar apenas “A selvagem exaltação das ondas / Subindo para os astros como um grito puro”. Sob uma ótica simbólica, é possível inferir que

As ondas simbolizam o princípio passivo, a atitude daquele que se deixa levar, que vai ao sabor das ondas. Mas as ondas podem ser erguidas com violência por uma outra força. A sua passividade é tão perigosa quanto a ação descontrolada. Representam toda a força da profunda inércia. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2017, p. 401).

Nesse contexto, em que as ondas são comparadas a um “grito puro”, o eu lírico emprega a linguagem para decididamente buscar uma forma de rutura, que se reflete também na experiência de seu contexto histórico, isto é, a modernidade, que o afasta da aliança “ao mar, ao vento e à lua” celebrada no poema. A análise dos componentes verbais empregados permite a constatação da centralidade, na poesia de Andresen, da evocação dos elementos naturais, com os quais se evidencia um profundo desejo de identificação, configurando, assim, uma visão ecocrítica. Desse modo, diante da perspetiva de uma modernidade fragmentada e dividida, o “grito puro”, utilizado como objeto de analogia à agitação das ondas, remete a um entendimento ancestral, pré-verbal, animal e, portanto, responsável por levar a linguagem aos limites da expressão. Em razão disso, o eu lírico afirma, por meio da utilização do recurso metafórico, matéria-prima da imagem literária na sua orquestração metamorfoseante (PEREIRA, 2003, p. 151), ter se unido “ao mar, ao vento e à lua”, na praia que tem o seu “amor mais forte e mais profundo”, o que revela um ato contemplativo radical, fronteira última de um “desejo de unidade com a natureza” (CEIA, 2003, p. 36).

Este desejo de “unidade” com a natureza é elaborado por Andresen em seu ensaio crítico O nu na Antiguidade Clássica, em que discorre a respeito da essência da arte grega do período clássico e estabelece um paralelo entre o conceito grego de aletheia, isto é, o “não coberto” ou “não oculto” (ANDRESEN, 1978, p. 12), e a arte de orientação naturalista cultivada pela civilização da Antiguidade Clássica. Assim, a autora afirma: “Descobrir a ordem da natureza, descobrir a felicidade e a harmonia múltipla e radiosa da natureza, será descobrir o divino. Por isso a arte grega é naturalista” (ANDRESEN, 1978, p. 11). A busca por essa poética de essência naturalista fundamentada na “perseguição do real” (ANDRESEN, 2015, p. 893) guia Andresen ao longo de toda a sua obra poética, desde seu primeiro livro, Poesia, até seus últimos poemas. Assim, sua linguagem é permeada por um olhar que descobre a beleza nas formas do mundo:

[...] Por isso os corpos que vemos na escultura grega nunca são apenas retratos de belos homens ou de belas mulheres mas corpos portadores duma perfeição à qual o homem está religado, corpos que revelam a harmonia do Kosmos, como a concha que apanhamos na praia. No corpo o ser emerge, é, está. (ANDRESEN, 1978, p. 12, grifo nosso).

A autora discorre, ao longo do ensaio, sobre uma correspondência entre a nudez do corpo humano, aspeto central da arte da Antiguidade Clássica, e as formas encontradas na natureza, que revelam a “harmonia do Kosmos”, como as conchas a que se refere no excerto. Em consonância com essas ideias, Deguy (2010, p. 114) defende, em seu ensaio Ecologia e poesia, um vínculo íntimo e estruturante entre poesia e ecologia, com base na aproximação entre a essência do saber ecológico e o fazer poético: “ecologia e poesia não somente convêm uma à outra, mas dizem e visam ‘o mesmo’”. Nesse sentido, o autor introduz definições etimológicas dos termos ecologia e poesia e, assim, situa a ecologia como um pensamento do oikos, ou seja, como o estudo voltado para a morada terrestre e mundana dos humanos (DEGUY, 2010, p. 114). Essa definição se aproxima, por sua vez, à conceção de poesia descrita pelo poeta Friedrich Hölderlin (1770-1843): o “modo de habitação dos homens” (DEGUY, 2010, p. 114). Assim, para Deguy (2010, p. 114), os poetas são aqueles que “reúnem a beleza da terra”, portanto o fazer poético é intimamente perpassado pelo que Andresen explicita no seu ensaio crítico, em que vislumbra uma arte na qual “o homem está religado”, de modo que os seus versos propõem a “unificação total do ser e do mundo” (MALHEIRO, 2008, p. 138).

Com base na aproximação semântica entre os conceitos de ecologia e poesia, observa-se que o universo poético de Andresen engendra, em seu íntimo, a proposição de um convívio mais harmonioso entre o homem e o meio ambiente, em consonância com uma perspetiva ecocrítica que percebe a natureza como “um valor intrínseco, ou seja, à parte de sua utilidade para os seres humanos” (BICCA, 2018, p. 162). Assim, os versos da autora são permeados pela voz de um eu lírico que celebra a união do homem com a natureza, na medida em que

o mundo natural tem valor quase sacramental: guarda a promessa de uma relação autêntica e renovada da humanidade com a terra, um pacto pós-cristão encontrado num espaço de pureza e calcado numa atitude de reverência e humildade (GARRARD, 2006, p. 87).

Esse espaço de pureza calcado numa atitude de reverência é evocado no poema “As ondas quebravam uma a uma”:

 

     As ondas quebravam uma a uma

     Eu estava só com a areia e a espuma

     Do mar que cantava só para mim

(in Dia do mar, 1947)

 

No poema apresentado, observa-se novamente a descrição de um cenário idílico, em que a natureza canta para o eu lírico, isto é, oferece-lhe sua voz para que possa encontrar a arte em seu estado puro, de maneira que é possível observar na poética andreseana “a arte começar na natureza, ela mesma” (RUBIM, 2013, p. 237). Assim, para que tal encontro com as “vozes” do mar ocorra, o elemento rítmico cumpre função essencial no poema, na medida em que

as muito audíveis recorrências silábicas constitutivas do verso de Sophia produzem no leitor a sensação de um ligeiro desafastamento entre o som e as palavras (como se o som estivesse ligeiramente adiantado), pois as sílabas articulam-se tão nitidamente que o leitor tem a sensação de que essa fluência silábica atravessa (e secundariza) as palavras do poema [...] (MARTELO, 2013, p. 35).

Assim, com base no conceito de fluência silábica, observa-se uma estrutura poética na qual os versos parecem sugerir uma temporalidade lenta por meio da recorrência de rimas, como em “uma a uma” e “espuma”, e da alternância entre acentos mais fortes e mais fracos formando uma unidade sonora: “As ondas quebravam uma a uma/ Eu estava só com a areia e a espuma/ Do mar que cantava só pra mim”. Essa alternância entre sílabas tónicas e átonas remete à representação sonora do contínuo “ir e vir” das ondas do mar, de modo que os recursos formais empregados se mostram em consonância com os elementos imagéticos evocados ao longo do poema, como as “ondas”, a “areia”, a “espuma” e o “mar”. Nesse sentido, evidencia-se a demora de um estado contemplativo manifestado pela voz do eu lírico, acentuado pela proposição “As ondas quebravam uma a uma”, que sugere, também, um profundo vínculo da poeta com o mar, “seu motivo preferido” (MOISÉS, 2013, p. 463).

Assim, na poética andreseana a contemplação dos elementos da natureza e a ênfase às suas representações podem ser compreendidas como uma forma de “mostrar apego e cuidado com toda uma diversidade de coisas vivas e processos vitais com os quais todos estamos conectados” (BICCA, 2018, p. 266), pensamento essencialmente ecocrítico que dialoga com as reflexões propostas por Andresen no ensaio O nu na Antiguidade Clássica:

E cada dia parece mais evidente que não encontraremos acordo com nós próprios nem com a terra em que estamos se não conseguirmos emergir da civilização exilante e mutilante onde nos emaranhamos e se não conseguirmos retomar o caminho que a Grécia arcaica traçou. (ANDRESEN, 1978, p. 83, grifos nossos).

 

Murillo Castex, Uma arte do ser: relações entre palavra e natureza na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen. Curitiba, UTFPR, 2022

 

 

MAR

 

De novo o som o ressoar o mar

De novo o embalo do tumulto mais antigo

E a inteireza de instante primitivo

De novo o canto o murmurar o mar

Que se repete intacto e sacral

De novo o limpo e nu clamor primordial

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

“Poemas dispersos” in OBRA POÉTICA (edição de Carlos Mendes de Sousa), 1.ª ed., 2010, Alfragide, Editorial Caminho • 2.ª ed., 2011, Alfragide, Editorial Caminho. • 1.ª edição na Assírio & Alvim (3.ª ed.), Lisboa, 2015, prefácio de Maria Andresen Sousa Tavares.

 

 

O poema trata, novamente, do “encontro com a natureza, que é, sobretudo, um encontro com a sua própria interioridade, iluminada pela crença numa religiosidade que transcende o visível” (Magalhães apud Malheiro, 2008, p. 252).

Em seus seis versos, o poema apresenta apenas um verbo, (se) repete. Como no poema que discutimos acima, ele está no presente do indicativo. Há, no poema, outros dois termos que merecem destaque quando falamos sobre as formas verbais, murmurar e ressoar. Ambos são, originalmente, verbos, mas aparecem, no poema, substantivados e como núcleos dos sintagmas de que fazem parte. Esse processo confere destaque ao som produzido pelas ondas do mar, que aparece também em clamor, e em som, no primeiro verso. Mencionamos, anteriormente, a importância da dimensão da escuta na poética andresiana, que aparece novamente nesse poema. O ressoar característico do mar é um som que merece ser destacado porque pertence a um espaço ao qual o sujeito poético deseja se religar, ao mesmo tempo em que compõe, com seu ritmo cadenciado e constante, um cântico, uma música que aproxima o sujeito do poema dos deuses.

Nesse poema, porém, a ideia de repetição, de que falamos acima, não se limita às formas verbais, podendo ser identificada na estrutura parelelística presente nas duas estrofes de que é composto. A expressão “de novo” aparece em quatro dos seis versos do poema e é, ela própria, uma expressão que denota repetição. Além disso, as duas estrofes possuem um sentido similar e quase parafrástico; em ambas, estamos diante do marulhar, que, em seu movimento contínuo e incessante, torna-se sagrado. Ao contrário de outros elementos do universo, ele “se repete intacto e sacral”, sem se deixar contaminar pela penúria de nossos tempos e, assim como “o rumor do mar dentro de um búzio” do poema anterior, coloca-nos diante da esfera do sagrado. E, como a dimensão sonora parece importante para essa religação do homem com o mundo e com o divino, o poema também está repleto de aliterações em m e n (som, embalo, limpo) e em s (ressoar, sacral). Nesse contexto, o poema parece criar um tempo próprio, apartado do tempo do mundo, que não tem princípio nem fim e no qual se torna possível, ainda que apenas por alguns instantes, a união com a divindade. 

Ana Côrtes, “Utopia e estatuto da poesia em poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen” in Forma Breve n.º 15 (2018): Em busca da terra prometida: mitos de salvação. DOI: https://doi.org/10.34624/fb.v0i15.1969

 

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“MAR, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-27. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/mar-sophia-andresen.html