ATLÂNTICO
Mar,
Metade da minha alma é
feita de maresia.
Sophia
de Mello Breyner Andresen, POESIA, 1944 (1.ª
ed.)
Se esboçássemos uma geografia radicada nos poemas de Sophia dir-se-ia que do fio do mar Atlântico, contemplado na sua infância passou ao Mediterrâneo luminoso e quente e que trocou as brumas do norte pela claridade do sul.
Maria de Lourdes Belchior,
“Itinerário literário de Sophia”. Colóquio Letras. nº 89. jan de 1986,
pp. 36-42
***
Esse atlântico selvagem, que desde cedo ela reconhece como fonte de linguagem, levá-la-á para uma busca existencial ao longo dos caminhos que levam para o mar interior, o Mediterrâneo, que se apresentará como lugar sagrado à volta de uma terra, a Grécia, onde a sua espiritualidade será completa numa fusão entre vida, poesia, e sentimento do divino.
Federico Bertolazzi, Almadilha.
Ensaios sobre Sophia de Mello Breyner Andresen. Lisboa, Documenta, 2019,
p.17
[…]
JCV – Dizia eu que a imagem do jardim foi desaparecendo, enquanto as do mar e da praia se mantiveram: não representam estas também um sentimento de liberdade?
Sophia – Sim. Mas eu dou-me maravilhosamente na praia, gosto muito do mar.
JCV – Além disso...
Sophia – São muito o mar e praia. Chegar a uma praia dá-me sempre uma certa embriaguez. Além disso a praia lava-me, renova-me, recria-me, fisicamente, moralmente, espiritualmente.
[…]
José Carlos de Vasconcelos, “Sophia: a luz dos versos”, in Jornal de Letras, Artes e Ideias n.º 468, 25 junho a 1 julho de 1991, pp. 8-13
Sophia no areal da praia de Dona Ana, em Lagos© D.R. |
MAR
I
De todos os cantos do
mundo
Amo com um amor mais
forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e
nua,
Onde me uni ao mar, ao
vento e à lua.
II
Cheiro a terra as árvores
e o vento
Que a Primavera enche de
perfumes
Mas neles só quero e só
procuro
A selvagem exalação das
ondas
Subindo para os astros
como um grito puro.
Sophia
de Mello Breyner Andresen, POESIA, 1944 (1.ª
ed.)
O olhar contemplativo é um aspeto central da poética de Sophia de Mello Breyner Andresen, autora que alude constantemente aos elementos naturais por meio da evocação de representações da fauna e da flora, bem como “dos quatro elementos primordiais” (CEIA, 2003, p. 37), que caracterizam, em um sentido amplo, “uma fenomenologia que privilegia o regresso às coisas elas mesmas” (CEIA, 2003, p. 36). Nesse contexto, a contemplação voltada para as formas da natureza se destaca nos versos da autora, que atribui especial ênfase ao mar e às imagens marítimas, os quais perpassam pela obra andreseana em sua totalidade e representam “não só o percurso da vida, mas também o seu ressurgimento para além das fronteiras do tempo” (MALHEIRO, 2008, p. 190). Assim, ao se voltar, em estado contemplativo, para as formas da natureza, a autora apresenta uma busca não de uma imitação do real, mas de uma realidade outra, descoberta na linguagem (PEREIRA, 2003, p. 151), diante da cesura entre homem e natureza estabelecida a partir da modernidade. Essa busca pode ser observada no poema “Mar”, que traduz um motivo recorrente da obra andreseana relacionado à perceção de um “tempo puro” que se ultrapassa a si próprio numa afirmação atemporal de eternidade (MALHEIRO, 2008, p. 129).
O eu lírico inicia esse
poema evocando uma “praia extasiada e nua”, lugar enunciado como aquele que
mais ama no mundo. Observa-se, assim, a apresentação de uma paisagem segundo
uma visão idílica, que opera também como uma recriação da realidade com base em
um registo da memória tomada enquanto elemento estruturante do sujeito, que
aqui se torna simultaneamente o lugar de encontro de todos os tempos e do
próprio trânsito existencial (MORNA, 2013, p. 157), na medida em que o eu
lírico situa a dimensão de um “reencontro com a origem, da consolidação da memória
primordial” (MORNA, 2013, p. 156). Esse aspeto é reforçado pelo emprego do
verbo “uni”, conjugado no pretérito perfeito do indicativo, que, no contexto do
poema, denota sentido de união que “impede a natureza de ficar contida no dado
físico, ao mesmo tempo que encaminha a arte e a poesia, não para o desvelamento
do oculto, mas para a captação e reverberação do evidente” (RUBIM, 2013, p.
237). Nos versos subsequentes, o eu lírico descreve as sensações experimentadas
nesse lugar idílico, como o cheiro da terra, das árvores e do vento, e destaca
a estação do ano em que tal união “ao mar, ao vento e à lua” ocorreu: a
Primavera, que pode ser associada, segundo a sua representação simbólica mais
característica, à juventude, isto é, à etapa de formação do indivíduo, conforme
a perspetiva de que “a sucessão das estações, assim como a das fases da lua,
marca o ritmo da vida, as etapas de um ciclo de desenvolvimento: nascimento,
formação, maturidade, declínio” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2017, p. 401). Nesse
sentido, em face de tal união com base em “um amor mais forte e mais profundo”,
o eu lírico afirma procurar apenas “A selvagem exaltação das ondas / Subindo
para os astros como um grito puro”. Sob uma ótica simbólica, é possível inferir
que
As ondas
simbolizam o princípio passivo, a atitude daquele que se deixa levar, que vai
ao sabor das ondas. Mas as ondas podem ser erguidas com violência por uma outra
força. A sua passividade é tão perigosa quanto a ação descontrolada.
Representam toda a força da profunda inércia. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2017, p.
401).
Nesse contexto, em que as
ondas são comparadas a um “grito puro”, o eu lírico emprega a linguagem para
decididamente buscar uma forma de rutura, que se reflete também na experiência
de seu contexto histórico, isto é, a modernidade, que o afasta da aliança “ao
mar, ao vento e à lua” celebrada no poema. A análise dos componentes verbais
empregados permite a constatação da centralidade, na poesia de Andresen, da
evocação dos elementos naturais, com os quais se evidencia um profundo desejo
de identificação, configurando, assim, uma visão ecocrítica. Desse modo, diante
da perspetiva de uma modernidade fragmentada e dividida, o “grito puro”,
utilizado como objeto de analogia à agitação das ondas, remete a um
entendimento ancestral, pré-verbal, animal e, portanto, responsável por levar a
linguagem aos limites da expressão. Em razão disso, o eu lírico afirma, por
meio da utilização do recurso metafórico, matéria-prima da imagem literária na
sua orquestração metamorfoseante (PEREIRA, 2003, p. 151), ter se unido “ao mar,
ao vento e à lua”, na praia que tem o seu “amor mais forte e mais profundo”, o
que revela um ato contemplativo radical, fronteira última de um “desejo de
unidade com a natureza” (CEIA, 2003, p. 36).
Este desejo de “unidade”
com a natureza é elaborado por Andresen em seu ensaio crítico O nu na
Antiguidade Clássica, em que discorre a respeito da essência da arte grega
do período clássico e estabelece um paralelo entre o conceito grego de aletheia,
isto é, o “não coberto” ou “não oculto” (ANDRESEN, 1978, p. 12), e a arte de
orientação naturalista cultivada pela civilização da Antiguidade Clássica.
Assim, a autora afirma: “Descobrir a ordem da natureza, descobrir a felicidade
e a harmonia múltipla e radiosa da natureza, será descobrir o divino. Por isso
a arte grega é naturalista” (ANDRESEN, 1978, p. 11). A busca por essa poética
de essência naturalista fundamentada na “perseguição do real” (ANDRESEN, 2015,
p. 893) guia Andresen ao longo de toda a sua obra poética, desde seu primeiro
livro, Poesia, até seus últimos poemas. Assim, sua linguagem é permeada
por um olhar que descobre a beleza nas formas do mundo:
[...] Por isso os
corpos que vemos na escultura grega nunca são apenas retratos de belos homens
ou de belas mulheres mas corpos portadores duma perfeição à qual o homem está religado,
corpos que revelam a harmonia do Kosmos, como a concha que apanhamos na praia.
No corpo o ser emerge, é, está. (ANDRESEN,
1978, p. 12, grifo nosso).
A autora discorre, ao
longo do ensaio, sobre uma correspondência entre a nudez do corpo humano,
aspeto central da arte da Antiguidade Clássica, e as formas encontradas na
natureza, que revelam a “harmonia do Kosmos”, como as conchas a que se refere
no excerto. Em consonância com essas ideias, Deguy (2010, p. 114) defende, em
seu ensaio Ecologia e poesia, um vínculo íntimo e estruturante entre
poesia e ecologia, com base na aproximação entre a essência do saber ecológico
e o fazer poético: “ecologia e poesia não somente convêm uma à outra, mas dizem
e visam ‘o mesmo’”. Nesse sentido, o autor introduz definições etimológicas dos
termos ecologia e poesia e, assim, situa a ecologia como um
pensamento do oikos, ou seja, como o estudo voltado para a morada
terrestre e mundana dos humanos (DEGUY, 2010, p. 114). Essa definição se
aproxima, por sua vez, à conceção de poesia descrita pelo poeta Friedrich
Hölderlin (1770-1843): o “modo de habitação dos homens” (DEGUY, 2010, p. 114).
Assim, para Deguy (2010, p. 114), os poetas são aqueles que “reúnem a beleza da
terra”, portanto o fazer poético é intimamente perpassado pelo que Andresen
explicita no seu ensaio crítico, em que vislumbra uma arte na qual “o homem
está religado”, de modo que os seus versos propõem a “unificação total do ser e
do mundo” (MALHEIRO, 2008, p. 138).
Com base na aproximação
semântica entre os conceitos de ecologia e poesia, observa-se que
o universo poético de Andresen engendra, em seu íntimo, a proposição de um
convívio mais harmonioso entre o homem e o meio ambiente, em consonância com
uma perspetiva ecocrítica que percebe a natureza como “um valor intrínseco, ou
seja, à parte de sua utilidade para os seres humanos” (BICCA, 2018, p. 162).
Assim, os versos da autora são permeados pela voz de um eu lírico que celebra a
união do homem com a natureza, na medida em que
o mundo natural
tem valor quase sacramental: guarda a promessa de uma relação autêntica e
renovada da humanidade com a terra, um pacto pós-cristão encontrado num espaço
de pureza e calcado numa atitude de reverência e humildade (GARRARD, 2006, p. 87).
Esse espaço de pureza
calcado numa atitude de reverência é evocado no poema “As ondas quebravam uma a
uma”:
As ondas quebravam uma a uma
Eu estava só com a areia e a espuma
Do mar que cantava só para mim
(in Dia
do mar, 1947)
No poema apresentado,
observa-se novamente a descrição de um cenário idílico, em que a natureza canta
para o eu lírico, isto é, oferece-lhe sua voz para que possa encontrar a arte
em seu estado puro, de maneira que é possível observar na poética andreseana “a
arte começar na natureza, ela mesma” (RUBIM, 2013, p. 237). Assim, para que tal
encontro com as “vozes” do mar ocorra, o elemento rítmico cumpre função
essencial no poema, na medida em que
as muito audíveis
recorrências silábicas constitutivas do verso de Sophia produzem no leitor a
sensação de um ligeiro desafastamento entre o som e as palavras (como se o som
estivesse ligeiramente adiantado), pois as sílabas articulam-se tão nitidamente
que o leitor tem a sensação de que essa fluência silábica atravessa (e
secundariza) as palavras do poema [...] (MARTELO, 2013, p. 35).
Assim, com base no
conceito de fluência silábica, observa-se uma estrutura poética na qual os
versos parecem sugerir uma temporalidade lenta por meio da recorrência de
rimas, como em “uma a uma” e “espuma”, e da alternância entre acentos mais
fortes e mais fracos formando uma unidade sonora: “As ondas quebravam uma a
uma/ Eu estava só com a areia e a espuma/ Do mar que cantava só pra mim”. Essa
alternância entre sílabas tónicas e átonas remete à representação sonora do
contínuo “ir e vir” das ondas do mar, de modo que os recursos formais
empregados se mostram em consonância com os elementos imagéticos evocados ao
longo do poema, como as “ondas”, a “areia”, a “espuma” e o “mar”. Nesse sentido,
evidencia-se a demora de um estado contemplativo manifestado pela voz do eu
lírico, acentuado pela proposição “As ondas quebravam uma a uma”, que sugere,
também, um profundo vínculo da poeta com o mar, “seu motivo preferido” (MOISÉS,
2013, p. 463).
Assim, na poética
andreseana a contemplação dos elementos da natureza e a ênfase às suas
representações podem ser compreendidas como uma forma de “mostrar apego e
cuidado com toda uma diversidade de coisas vivas e processos vitais com os
quais todos estamos conectados” (BICCA, 2018, p. 266), pensamento
essencialmente ecocrítico que dialoga com as reflexões propostas por Andresen
no ensaio O nu na Antiguidade Clássica:
E cada dia parece
mais evidente que não encontraremos acordo com nós próprios nem com a terra em
que estamos se não conseguirmos emergir da civilização exilante e mutilante
onde nos emaranhamos e se não conseguirmos retomar o caminho que a Grécia
arcaica traçou.
(ANDRESEN, 1978, p. 83, grifos nossos).
Murillo Castex, Uma
arte do ser: relações entre palavra e natureza na poesia de Sophia de Mello
Breyner Andresen. Curitiba, UTFPR, 2022
MAR
De
novo o som o ressoar o mar
De
novo o embalo do tumulto mais antigo
E a
inteireza de instante primitivo
De
novo o canto o murmurar o mar
Que
se repete intacto e sacral
De
novo o limpo e nu clamor primordial
Sophia
de Mello Breyner Andresen
“Poemas dispersos” in OBRA
POÉTICA (edição de Carlos Mendes de Sousa), 1.ª ed., 2010, Alfragide, Editorial
Caminho • 2.ª ed., 2011, Alfragide, Editorial Caminho. • 1.ª edição na Assírio
& Alvim (3.ª ed.), Lisboa, 2015, prefácio de Maria Andresen Sousa Tavares.
O
poema trata, novamente, do “encontro com a natureza, que é, sobretudo, um
encontro com a sua própria interioridade, iluminada pela crença numa
religiosidade que transcende o visível” (Magalhães apud Malheiro, 2008, p.
252).
Em
seus seis versos, o poema apresenta apenas um verbo, (se)
repete. Como no poema que discutimos acima, ele
está no presente do indicativo. Há, no poema, outros dois termos que merecem
destaque quando falamos sobre as formas verbais, murmurar
e ressoar.
Ambos são, originalmente, verbos, mas
aparecem, no poema, substantivados e como núcleos dos sintagmas de que fazem
parte. Esse processo confere destaque ao som produzido pelas ondas do mar, que
aparece também em clamor, e
em som, no
primeiro verso. Mencionamos, anteriormente, a importância da dimensão da escuta
na poética andresiana, que aparece novamente nesse poema. O ressoar
característico do mar é um som que merece ser destacado porque pertence a um
espaço ao qual o sujeito poético deseja se religar, ao mesmo tempo em que
compõe, com seu ritmo cadenciado e constante, um cântico, uma música que
aproxima o sujeito do poema dos deuses.
Nesse poema, porém, a ideia de repetição, de que falamos acima, não se limita às formas verbais, podendo ser identificada na estrutura parelelística presente nas duas estrofes de que é composto. A expressão “de novo” aparece em quatro dos seis versos do poema e é, ela própria, uma expressão que denota repetição. Além disso, as duas estrofes possuem um sentido similar e quase parafrástico; em ambas, estamos diante do marulhar, que, em seu movimento contínuo e incessante, torna-se sagrado. Ao contrário de outros elementos do universo, ele “se repete intacto e sacral”, sem se deixar contaminar pela penúria de nossos tempos e, assim como “o rumor do mar dentro de um búzio” do poema anterior, coloca-nos diante da esfera do sagrado. E, como a dimensão sonora parece importante para essa religação do homem com o mundo e com o divino, o poema também está repleto de aliterações em m e n (som, embalo, limpo) e em s (ressoar, sacral). Nesse contexto, o poema parece criar um tempo próprio, apartado do tempo do mundo, que não tem princípio nem fim e no qual se torna possível, ainda que apenas por alguns instantes, a união com a divindade.
Ana
Côrtes, “Utopia e estatuto da poesia em poemas de Sophia de Mello Breyner
Andresen” in Forma Breve n.º 15 (2018): Em busca da terra prometida:
mitos de salvação. DOI: https://doi.org/10.34624/fb.v0i15.1969
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“MAR,
Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-27. Disponível
em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/mar-sophia-andresen.html
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