Um
mover de olhos, brando e piadoso1,
Sem ver de quê; um riso brando e honesto,
Quase forçado; um doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso;
Um despejo2 quieto e vergonhoso3;
Um repouso gravíssimo e modesto;
Ũa4 pura bondade, manifesto
Indício da alma, limpo e gracioso;
Um encolhido ousar; ũa4 brandura;
Um medo sem ter culpa; um ar sereno;
Um longo e obediente sofrimento5:
Esta foi a celeste fermosura6
Da minha Circe7, e o mágico veneno
Que pôde transformar meu pensamento.
Luís de Camões, Obras
Completas, Lisboa, Sá da Costa, 1985
_________ 1 piadoso: piedoso. 2 despejo: desenvoltura. 3vergonhoso: tímido; recatado. 4Ũa: uma. 5sofrimento: paciência. 6fermosura: formosura. 7Circe: feiticeira muito bela que transformou os
companheiros de Ulisses em animais.
Elabore um comentário
do poema de Camões que integre o tratamento dos seguintes tópicos:
O poema estrutura-se em
duas partes distintas, correspondendo a primeira às duas quadras e ao primeiro
terceto, e a segunda ao último terceto.
Ao longo dos primeiros
onze versos, o sujeito poético desenvolve o tema das qualidades físicas e
morais da senhora, de acordo com o cânone petrarquista da beleza feminina. Nos
três versos finais, que constituem a chave do soneto, o «eu» sintetiza na
expressão «celeste fermosura» o conjunto dos atributos da mulher e revela o
efeito que a sua beleza produziu nele («O mágico veneno / Que pôde transformar
meu pensamento»).
Caracterização da figura feminina
Assente na acumulação de
sintagmas nominais com uma mesma estrutura sintática, a descrição da figura
feminina aponta para uma beleza rara e inusitada, em que a enumeração dos
traços que a caracterizam valoriza particularmente a graça, o recato, a doçura,
a quietude, a suavidade, transmitindo uma imagem intelectualizada da senhora.
No entanto, a essência angelical da mulher amada reflete uma certa ambiguidade,
prefigurada em alguns dos seus atributos («despejo quieto», «encolhido ousar»),
já que, ao rematar o retrato, o poeta associa, surpreendentemente, a essa imagem
de perfeição celeste algo da natureza maléfica e enigmática da feiticeira
Circe.
Recursos estilísticos relevantes
Destacam-se, entre outros, os seguintes aspetos
estilísticos:
- a adjetivação frequente
e expressiva, que traduz o predomínio das qualidades morais: «brando e piadoso»,
«brando e honesto / Quase forçado», «doce e humilde», «quieto e vergonhoso», «gravíssimo
e modesto», «pura», «limpo e gracioso», «encolhido», «sereno», «longo e
obediente», «celeste», «mágico»;
- a repetição anafórica do
artigo indefinido, recurso que contribui para criar uma impressão mais indefinível
do descrito;
- as metáforas alusivas à
intensidade da influência feminina - «veneno», «Circe»;
- a enumeração, processo
utilizado para marcar, não só um certo ritmo no poema, mas a dimensão
quantitativa nos atributos da amada: «Um mover de olhos», «um riso», «um [...]
gesto», «Um despejo», «Um repouso», «Ũa [...] bondade», «Um [...] ousar»,..;
- …
Marcas
da estética renascentista
Temáticas
- referência a uma figura mitológica da
Antiguidade - «Circe»;
CARREIRO, José. “Um mover de olhos, brando e piedoso,
Camões”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento
de si, 25-03-2023.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/03/um-mover-de-olhos-brando-e-piedoso.html
O poema divide-se em duas partes, correspondendo
a primeira às quadras e a segunda aos tercetos. O elo entre ambas é o advérbio “enfim”
usado com valor conclusivo.
A primeira parte é constituída por uma
descrição dos elementos da natureza, a que se opõe a descrição do estado
emocional do sujeito, assinalada na segunda parte pela introdução do eu lírico (“me
está, se não te vejo, magoando”). A enumeração analítica dos elementos
paisagísticos, desenvolvida nas quadras, dá lugar, no primeiro terceto, à
síntese (“tudo”, “Natureza”), seguida, no segundo terceto, pela conclusão que
desvaloriza a beleza do cenário na ausência da mulher amada (“Sem ti, tudo me enoja
e me aborrece”).
Processos
usados na descrição da natureza
O processo de descrição da paisagem
consiste essencialmente na enumeração dos elementos que a compõem (“serra”, “castanheiros”,
“ribeiros”, “mar”, “ sol”, “ outeiros”, “gados”, “nuvens”), justapostos por
acumulação assindética (exceto no verso 2) em frases do tipo nominal (“o manso
caminhar destes ribeiros”, “o esconder do sol pelos outeiros”…). A harmonia do
cenário resulta quer da beleza cada um dos seus elementos - caracterizados por
adjetivos (“fresca”, “manso”, “branda”…) ou por nomes (“fermosura”, “sombra”…)
-, quer da sua profusão (“variedade”) e da excelência do conjunto (“rara Natureza”).
Após a enumeração realizada nas quadras, surge a síntese operada no primeiro terceto,
que contém, resumindo-os (“tudo”), os elementos antes especificados.
Relação
entre a representação da paisagem e o estado emocional do sujeito
A natureza é descrita como locus amoenus,
um ambiente bucólico em que todos os elementos se combinam harmoniosamente de
modo a criar um cenário propício ao deleite. Mas a euforia da paisagem, “donde
toda a tristeza se desterra”, opõe-se a disforia do sujeito, expressa pelo
paradoxo final: “estou passando, / nas mores alegrias, mor tristeza”. Em
consequência dos efeitos criados por esse contraste, a representação da
paisagem, viva e alegre, confere maior intensidade ao estado emocional do
sujeito, triste e magoado pela privação da mulher amada, cuja ausência (sublinhada
pela anáfora “Sem ti”, “sem ti”) transforma as dádivas da natureza em fonte de
dor. Daí a predominância, nos últimos versos, de vocábulos relacionados com
sentimentos e a conotação negativa de todos eles (“magoando”, “enoja”, “tristeza”…).
CARREIRO, José. “A fermosura desta fresca serra, Camões”.
Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 24-03-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/03/a-fermosura-desta-fresca-serra-camoes.html
O céu, a
terra, o vento sossegado…
As ondas, que se estendem pela areia…
Os peixes, que no mar o sono enfreia1…
O noturno silêncio repousado…
O pescador Aónio, que, deitado
onde co vento a água se meneia2,
chorando, o nome amado em vão nomeia,
que não pode ser mais que nomeado:
– Ondas (dezia), antes que Amor me mate,
tornai-me3 a minha Ninfa4, que tão cedo
me fizestes à morte estar sujeita.
Ninguém lhe fala; o mar de longe bate,
move-se brandamente o arvoredo;
leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita.
Luís de Camões, Rimas,
edição de Álvaro J. da Costa Pimpão, Coimbra, Almedina, 1994, p. 169
_________ 1 enfreia (verso 3) – domina; subjuga. 2 se meneia (verso 6) – se move; se agita. 3 tornai-me (verso 10) – trazei-me de volta. 4 Ninfa (verso 10) – neste contexto, termo usado para designar a
amada; mulher jovem e formosa; divindade que habita o campo, os bosques e as
águas.
I - Apresente, de forma bem estruturada,
as suas respostas aos itens que se seguem.
1. Caracterize o espaço físico representado
na primeira quadra e a atmosfera nele predominante.
2. Descreva o estado de espírito do pescador
Aónio, com base na segunda e na terceira estrofes.
3. Refira um dos efeitos expressivos da
aliteração presente no último verso do poema.
4. Interprete a reação da natureza ao apelo
do pescador.
1.
O espaço físico representado na primeira quadra corresponde ao de uma noturna
paisagem marinha («As ondas, que se estendem pela areia…» – v. 2). Predomina
uma atmosfera de tranquilidade, de quietude e de silêncio («O céu, a terra, o
vento sossegado...», «Os peixes, que no mar o sono enfreia…», «O noturno silêncio
repousado...» – vv. 1, 3 e 4).
2.
O pescador Aónio está dominado por um sentimento de profunda tristeza devido à
morte da amada. Num estado de desalento, patente na atitude de abandono em que
se encontra («deitado / onde co vento a água se meneia» – vv. 5-6), exprime o
seu desespero chorando, clamando pelo «nome amado» (v. 7) e suplicando às
«Ondas» (v. 9) a graça do retorno à vida da sua «Ninfa» (v. 10).
3.
Entre outros, destacam-se os seguintes efeitos expressivos da aliteração
(predominância do som <v>) presente no último verso do poema:
−
confere uma tonalidade musical harmoniosa;
−
cria um efeito que sugere o som do vento;
−
marca o ritmo sincopado do verso;
−
acentua a importância da relação simbólica entre voz e vento.
4.
A reação da natureza sugere indiferença relativamente ao pescador Aónio, pois
aquela não responde à sua súplica. Assim, à completa ausência de resposta,
segue-se a indiferença do mar («de longe bate» – v. 12), o movimento brando do
«arvoredo» (v. 13) e do «vento» (v. 14) que, soprando, torna inaudível a «voz» (v.
14) da figura central.
Fonte: Fonte: Exame Nacional do Ensino
Secundário n.º 734. Prova Escrita de Literatura Portuguesa. 11.º Ano de
Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Governo de Portugal –
Ministério da Educação e Ciência / IAVE-Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2014,
1.ª Fase
II - Outro questionário sobre o poema “O céu, a terra,
o vento sossegado…”
1. A partir da leitura deste soneto, identifique
o seu tema, indicando as linhas segundo as quais é desenvolvido.
2. Na descrição inicial do texto apresenta-se
a natureza.
2.1. Explicite a impressão que essa natureza
sugere ao leitor.
2.1.1. Refira os processos utilizados para obter
esse efeito.
3. A imagem da natureza contrasta com o
sentimento experimentado pelo pescador.
3.1. Caracterize a personagem, recolhendo do
soneto todas as expressões que concorrem para a definição do seu perfil.
3.2. Aponte a causa motivadora do estado
emocional da personagem.
4. Mencione os recursos estilísticos
relevantes do poema.
Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 537. Cursos
Complementares Nocturnos - Liceal e Técnicos. Prova Escrita de Português
(Índole Científica). Portugal, 1997, 1.ª fase, 2.ª Chamada
Proposta de resolução
1. O
tema do soneto é o sofrimento amoroso do pescador Aónio, que perdeu a sua amada
Ninfa e chora a sua ausência na praia. O tema é desenvolvido segundo as
seguintes linhas:
Nas quadras (versos 1 a 8), apresenta-se uma descrição da natureza tranquila e
silenciosa, que contrasta com a dor do pescador;
Nos
tercetos (versos 9 a 14), apresenta-se o lamento do pescador, que pede às ondas
que lhe devolvam a sua Ninfa, mas não obtém resposta.
2.1. A
natureza é descrita como sossegada e repousada, sugerindo uma sensação de calma
e tranquilidade ao leitor.
2.1.1.
Os processos utilizados para obter esse efeito são:
A
enumeração de elementos naturais (o céu, a terra, o vento, as ondas, os
peixes);
O
uso de adjetivos que sugerem tranquilidade, qualificando esses elementos como sossegados
ou repousados;
O
uso dos verbos estendem, enfreia, meneia que indicam movimentos suaves
ou lentos.
Além
disso, a natureza é descrita de maneira personificada, como se fosse uma
entidade que pode ouvir e responder ao pescador. Esse efeito é obtido através
do uso de verbos como "sossegado", "estendem",
"move-se" e "leva", que conferem a sensação de que a
natureza está viva e atenta.
3.1. A
personagem é caracterizada como um pescador triste e solitário, que chora pela
sua amada perdida e que não encontra consolo na natureza nem nos homens. As
expressões que concorrem para a definição do seu perfil são:
-
“chorando” (verso 6);
-
“o nome amado em vão nomeia” (verso 7);
-
“que não pode ser mais que nomeado” (verso 8);
-
“antes que Amor me mate” (verso 10);
-
“me fizestes à morte estar sujeita” (verso 12);
-
“Ninguém lhe fala” (verso 13).
3.2. A
causa motivadora do estado emocional da personagem é a perda da sua amada
Ninfa, que morreu.
4. O
soneto "O céu, a terra, o vento sossegado" de Camões apresenta uma
variedade de recursos estilísticos, que contribuem para a sua expressividade
poética. Alguns dos principais recursos estilísticos presentes no poema são:
- Aliteração: repetição de sons
consonânticos para criar um efeito sonoro. Exemplo: “O céu, a terra, o vento
sossegado” (verso 1), onde se repete o som /s/ para sugerir a calma e o
silêncio da natureza.
- O uso da aliteração em /v/ no último
verso acentua o alheamento da Natureza perante as palavras de Aónio e
intensifica a sua solidão;
- O uso da apóstrofe para se dirigir às
ondas como interlocutoras;
- A personificação da natureza, por
exemplo, no último verso da primeira quadra (“O noturno silêncio repousado”), reforça
a ideia de uma natureza amena, calma e equilibrada;
- A utilização de adjetivos que evocam
tranquilidade: “sossegado” (verso 1), “manso” (verso 2), “quieto” (verso 3) e
“sereno” (verso 4);
- O contraste entre a calma da natureza e o
sofrimento do pescador.
Poderá também gostar de:
Lição sobre "O céu, a terra, o vento
sossegado..." apresentada no Projeto de parceria entre o Ministério da
Educação e a RTP #ESTUDOEMCASA, aula 32 de Português – 10.º ano, sobre o tema
do amor na lírica de Camões: "Como quando do mar tempestuoso" e
"O céu, a terra, o vento sossegado...", 2021-03-17. Disponível em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7884/e530880/portugues-10-ano
(inicia no minuto 15’55’’)
CARREIRO, José. “O céu, a terra, o vento sossegado… (Camões)”.
Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 23-03-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/03/o-ceu-terra-o-vento-sossegado-camoes.html