sábado, 25 de março de 2023

Um mover de olhos, brando e piedoso, Camões



  






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Um mover de olhos, brando e piadoso1,
Sem ver de quê; um riso brando e honesto,
Quase forçado; um doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso;

Um despejo2 quieto e vergonhoso3;
Um repouso gravíssimo e modesto;
Ũa4 pura bondade, manifesto
Indício da alma, limpo e gracioso;

Um encolhido ousar; ũa4 brandura;
Um medo sem ter culpa; um ar sereno;
Um longo e obediente sofrimento5:

Esta foi a celeste fermosura6
Da minha Circe7, e o mágico veneno
Que pôde transformar meu pensamento.

Luís de Camões, Obras Completas, Lisboa, Sá da Costa, 1985

_________
1 piadoso: piedoso.
2 despejo: desenvoltura.
3 vergonhoso: tímido; recatado.
4 Ũa: uma.
5 sofrimento: paciência.
6 fermosura: formosura.
7 Circe: feiticeira muito bela que transformou os companheiros de Ulisses em animais.

 

Elabore um comentário do poema de Camões que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

- partes lógicas constitutivas do texto;

- caracterização da figura feminina;

- recursos estilísticos relevantes;

- marcas da estética renascentista.

 

Explicitação de cenários de resposta:

Partes lógicas constitutivas do texto

O poema estrutura-se em duas partes distintas, correspondendo a primeira às duas quadras e ao primeiro terceto, e a segunda ao último terceto.

Ao longo dos primeiros onze versos, o sujeito poético desenvolve o tema das qualidades físicas e morais da senhora, de acordo com o cânone petrarquista da beleza feminina. Nos três versos finais, que constituem a chave do soneto, o «eu» sintetiza na expressão «celeste fermosura» o conjunto dos atributos da mulher e revela o efeito que a sua beleza produziu nele («O mágico veneno / Que pôde transformar meu pensamento»).

Caracterização da figura feminina

Assente na acumulação de sintagmas nominais com uma mesma estrutura sintática, a descrição da figura feminina aponta para uma beleza rara e inusitada, em que a enumeração dos traços que a caracterizam valoriza particularmente a graça, o recato, a doçura, a quietude, a suavidade, transmitindo uma imagem intelectualizada da senhora. No entanto, a essência angelical da mulher amada reflete uma certa ambiguidade, prefigurada em alguns dos seus atributos («despejo quieto», «encolhido ousar»), já que, ao rematar o retrato, o poeta associa, surpreendentemente, a essa imagem de perfeição celeste algo da natureza maléfica e enigmática da feiticeira Circe.

Recursos estilísticos relevantes

Destacam-se, entre outros, os seguintes aspetos estilísticos:

- a adjetivação frequente e expressiva, que traduz o predomínio das qualidades morais: «brando e piadoso», «brando e honesto / Quase forçado», «doce e humilde», «quieto e vergonhoso», «gravíssimo e modesto», «pura», «limpo e gracioso», «encolhido», «sereno», «longo e obediente», «celeste», «mágico»;

- a repetição anafórica do artigo indefinido, recurso que contribui para criar uma impressão mais indefinível do descrito;

- as metáforas alusivas à intensidade da influência feminina - «veneno», «Circe»;

- a enumeração, processo utilizado para marcar, não só um certo ritmo no poema, mas a dimensão quantitativa nos atributos da amada: «Um mover de olhos», «um riso», «um [...] gesto», «Um despejo», «Um repouso», «Ũa [...] bondade», «Um [...] ousar»,..;

- …

Marcas da estética renascentista

Temáticas

- referência a uma figura mitológica da Antiguidade - «Circe»;

- idealização da mulher;

- …

Formais

- soneto;

- medida nova (decassílabo);

- sintaxe latinizante (Classicismo);

- …

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 637. Curso Complementar Licear Nocturno. Prova Escrita de Português (Índole Literária). Portugal, 2000, 1.ª Fase, 1.ª Chamada

 

 


CARREIRO, José. “Um mover de olhos, brando e piedoso, Camões”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 25-03-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/03/um-mover-de-olhos-brando-e-piedoso.html


sexta-feira, 24 de março de 2023

A fermosura desta fresca serra, Camões

 








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A fermosura desta fresca serra
E a sombra dos verdes castanheiros,
O manso caminhar destes ribeiros,
Donde toda a tristeza se desterra;

O rouco som do mar, a estranha terra,
O esconder do sol pelos outeiros,
O recolher dos gados derradeiros,
Das nuvens pelo ar a branda guerra;

Enfim, tudo o que a rara Natureza
Com tanta variedade nos oferece,
Me está, se não te vejo, magoando.

Sem ti, tudo me enoja e me aborrece;
Sem ti, perpetuamente estou passando,
Nas mores alegrias, mor tristeza.

Luís de Camões, Líricas, Lisboa, Sá da Costa, 1981

 

Elabore um comentário o poema de Camões que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

- partes lógicas constitutivas do texto;

- processos usados na descrição da natureza;

- relação entre a representação da paisagem e o estado emocional do sujeito;

- marcas da estética renascentista.

 

Explicitação de cenários de resposta:

Partes lógicas constitutivas do texto

O poema divide-se em duas partes, correspondendo a primeira às quadras e a segunda aos tercetos. O elo entre ambas é o advérbio “enfim” usado com valor conclusivo.

A primeira parte é constituída por uma descrição dos elementos da natureza, a que se opõe a descrição do estado emocional do sujeito, assinalada na segunda parte pela introdução do eu lírico (“me está, se não te vejo, magoando”). A enumeração analítica dos elementos paisagísticos, desenvolvida nas quadras, dá lugar, no primeiro terceto, à síntese (“tudo”, “Natureza”), seguida, no segundo terceto, pela conclusão que desvaloriza a beleza do cenário na ausência da mulher amada (“Sem ti, tudo me enoja e me aborrece”).

 

Processos usados na descrição da natureza

O processo de descrição da paisagem consiste essencialmente na enumeração dos elementos que a compõem (“serra”, “castanheiros”, “ribeiros”, “mar”, “ sol”, “ outeiros”, “gados”, “nuvens”), justapostos por acumulação assindética (exceto no verso 2) em frases do tipo nominal (“o manso caminhar destes ribeiros”, “o esconder do sol pelos outeiros”…). A harmonia do cenário resulta quer da beleza cada um dos seus elementos - caracterizados por adjetivos (“fresca”, “manso”, “branda”…) ou por nomes (“fermosura”, “sombra”…) -, quer da sua profusão (“variedade”) e da excelência do conjunto (“rara Natureza”). Após a enumeração realizada nas quadras, surge a síntese operada no primeiro terceto, que contém, resumindo-os (“tudo”), os elementos antes especificados.

 

Relação entre a representação da paisagem e o estado emocional do sujeito

A natureza é descrita como locus amoenus, um ambiente bucólico em que todos os elementos se combinam harmoniosamente de modo a criar um cenário propício ao deleite. Mas a euforia da paisagem, “donde toda a tristeza se desterra”, opõe-se a disforia do sujeito, expressa pelo paradoxo final: “estou passando, / nas mores alegrias, mor tristeza”. Em consequência dos efeitos criados por esse contraste, a representação da paisagem, viva e alegre, confere maior intensidade ao estado emocional do sujeito, triste e magoado pela privação da mulher amada, cuja ausência (sublinhada pela anáfora “Sem ti”, “sem ti”) transforma as dádivas da natureza em fonte de dor. Daí a predominância, nos últimos versos, de vocábulos relacionados com sentimentos e a conotação negativa de todos eles (“magoando”, “enoja”, “tristeza”…).

 

Marcas da estética renascentista

Temáticas

- locus amoenus

- idealização da mulher

- …

Formais

- soneto

- medida nova (decassílabo)

-  personificação dos elementos da natureza

- …

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 637. Curso Complementar Licear Nocturno. Prova Escrita de Português (Índole Literária). Portugal, 1998, 1.ª Fase, 1.ª Chamada

 

 


CARREIRO, José. “A fermosura desta fresca serra, Camões”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 24-03-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/03/a-fermosura-desta-fresca-serra-camoes.html


quinta-feira, 23 de março de 2023

O céu, a terra, o vento sossegado… (Camões)

 








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O céu, a terra, o vento sossegado…
As ondas, que se estendem pela areia…
Os peixes, que no mar o sono enfreia1
O noturno silêncio repousado…

O pescador Aónio, que, deitado
onde co vento a água se meneia2,
chorando, o nome amado em vão nomeia,
que não pode ser mais que nomeado:

– Ondas (dezia), antes que Amor me mate,
tornai-me3 a minha Ninfa4, que tão cedo
me fizestes à morte estar sujeita.

Ninguém lhe fala; o mar de longe bate,
move-se brandamente o arvoredo;
leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita.

 

Luís de Camões, Rimas, edição de Álvaro J. da Costa Pimpão, Coimbra, Almedina, 1994, p. 169

 

_________
1 enfreia (verso 3) – domina; subjuga.
2 se meneia (verso 6) – se move; se agita.
3 tornai-me (verso 10) – trazei-me de volta.
4 Ninfa (verso 10) – neste contexto, termo usado para designar a amada; mulher jovem e formosa; divindade que habita o campo, os bosques e as águas.

 

I - Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.

1. Caracterize o espaço físico representado na primeira quadra e a atmosfera nele predominante.

2. Descreva o estado de espírito do pescador Aónio, com base na segunda e na terceira estrofes.

3. Refira um dos efeitos expressivos da aliteração presente no último verso do poema.

4. Interprete a reação da natureza ao apelo do pescador.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. O espaço físico representado na primeira quadra corresponde ao de uma noturna paisagem marinha («As ondas, que se estendem pela areia…» – v. 2). Predomina uma atmosfera de tranquilidade, de quietude e de silêncio («O céu, a terra, o vento sossegado...», «Os peixes, que no mar o sono enfreia…», «O noturno silêncio repousado...» – vv. 1, 3 e 4).

2. O pescador Aónio está dominado por um sentimento de profunda tristeza devido à morte da amada. Num estado de desalento, patente na atitude de abandono em que se encontra («deitado / onde co vento a água se meneia» – vv. 5-6), exprime o seu desespero chorando, clamando pelo «nome amado» (v. 7) e suplicando às «Ondas» (v. 9) a graça do retorno à vida da sua «Ninfa» (v. 10).

3. Entre outros, destacam-se os seguintes efeitos expressivos da aliteração (predominância do som <v>) presente no último verso do poema:

− confere uma tonalidade musical harmoniosa;

− cria um efeito que sugere o som do vento;

− marca o ritmo sincopado do verso;

− acentua a importância da relação simbólica entre voz e vento.

4. A reação da natureza sugere indiferença relativamente ao pescador Aónio, pois aquela não responde à sua súplica. Assim, à completa ausência de resposta, segue-se a indiferença do mar («de longe bate» – v. 12), o movimento brando do «arvoredo» (v. 13) e do «vento» (v. 14) que, soprando, torna inaudível a «voz» (v. 14) da figura central.

 

Fonte: Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 734. Prova Escrita de Literatura Portuguesa. 11.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Governo de Portugal – Ministério da Educação e Ciência / IAVE-Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2014, 1.ª Fase

 

II - Outro questionário sobre o poema “O céu, a terra, o vento sossegado…”

1. A partir da leitura deste soneto, identifique o seu tema, indicando as linhas segundo as quais é desenvolvido.

2. Na descrição inicial do texto apresenta-se a natureza.

2.1. Explicite a impressão que essa natureza sugere ao leitor.

2.1.1. Refira os processos utilizados para obter esse efeito.

3. A imagem da natureza contrasta com o sentimento experimentado pelo pescador.

3.1. Caracterize a personagem, recolhendo do soneto todas as expressões que concorrem para a definição do seu perfil.

3.2. Aponte a causa motivadora do estado emocional da personagem.

4. Mencione os recursos estilísticos relevantes do poema.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 537. Cursos Complementares Nocturnos - Liceal e Técnicos. Prova Escrita de Português (Índole Científica). Portugal, 1997, 1.ª fase, 2.ª Chamada

 

Proposta de resolução

1. O tema do soneto é o sofrimento amoroso do pescador Aónio, que perdeu a sua amada Ninfa e chora a sua ausência na praia. O tema é desenvolvido segundo as seguintes linhas:

Nas quadras (versos 1 a 8), apresenta-se uma descrição da natureza tranquila e silenciosa, que contrasta com a dor do pescador;

Nos tercetos (versos 9 a 14), apresenta-se o lamento do pescador, que pede às ondas que lhe devolvam a sua Ninfa, mas não obtém resposta.

2.1. A natureza é descrita como sossegada e repousada, sugerindo uma sensação de calma e tranquilidade ao leitor.

2.1.1. Os processos utilizados para obter esse efeito são:

A enumeração de elementos naturais (o céu, a terra, o vento, as ondas, os peixes);

O uso de adjetivos que sugerem tranquilidade, qualificando esses elementos como sossegados ou repousados;

O uso dos verbos estendem, enfreia, meneia que indicam movimentos suaves ou lentos.

Além disso, a natureza é descrita de maneira personificada, como se fosse uma entidade que pode ouvir e responder ao pescador. Esse efeito é obtido através do uso de verbos como "sossegado", "estendem", "move-se" e "leva", que conferem a sensação de que a natureza está viva e atenta.

3.1. A personagem é caracterizada como um pescador triste e solitário, que chora pela sua amada perdida e que não encontra consolo na natureza nem nos homens. As expressões que concorrem para a definição do seu perfil são:

- “chorando” (verso 6);

- “o nome amado em vão nomeia” (verso 7);

- “que não pode ser mais que nomeado” (verso 8);

- “antes que Amor me mate” (verso 10);

- “me fizestes à morte estar sujeita” (verso 12);

- “Ninguém lhe fala” (verso 13).

3.2. A causa motivadora do estado emocional da personagem é a perda da sua amada Ninfa, que morreu.

4. O soneto "O céu, a terra, o vento sossegado" de Camões apresenta uma variedade de recursos estilísticos, que contribuem para a sua expressividade poética. Alguns dos principais recursos estilísticos presentes no poema são:

- Aliteração: repetição de sons consonânticos para criar um efeito sonoro. Exemplo: “O céu, a terra, o vento sossegado” (verso 1), onde se repete o som /s/ para sugerir a calma e o silêncio da natureza.

- O uso da aliteração em /v/ no último verso acentua o alheamento da Natureza perante as palavras de Aónio e intensifica a sua solidão;

- O uso da apóstrofe para se dirigir às ondas como interlocutoras;

- A personificação da natureza, por exemplo, no último verso da primeira quadra (“O noturno silêncio repousado”), reforça a ideia de uma natureza amena, calma e equilibrada;

- A utilização de adjetivos que evocam tranquilidade: “sossegado” (verso 1), “manso” (verso 2), “quieto” (verso 3) e “sereno” (verso 4);

- O contraste entre a calma da natureza e o sofrimento do pescador.

 

Poderá também gostar de:

Lição sobre "O céu, a terra, o vento sossegado..." apresentada no Projeto de parceria entre o Ministério da Educação e a RTP #ESTUDOEMCASA, aula 32 de Português – 10.º ano, sobre o tema do amor na lírica de Camões: "Como quando do mar tempestuoso" e "O céu, a terra, o vento sossegado...", 2021-03-17. Disponível em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7884/e530880/portugues-10-ano (inicia no minuto 15’55’’)


 


CARREIRO, José. “O céu, a terra, o vento sossegado… (Camões)”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 23-03-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/03/o-ceu-terra-o-vento-sossegado-camoes.html